domingo, 23 de fevereiro de 2020

" POR AÍ ... "





Tarde ensolarada de mais um Carnaval ...
Aí está uma época do ano e uma efeméride que sempre detestei.  No meu senso de humor não encaixa ter que me "divertir" quando o calendário assim o decide.
Mas hoje o dia foi absolutamente generoso com os foliões, com temperaturas de franca Primavera, embora ainda tenhamos um mês de Inverno pela frente.

O Carnaval é sobretudo para as crianças  que, seja qual for a fatiota que lhes inventem, ficam felizes e eufóricas, na magia de uma personagem encantada.
Relembrei inevitavelmente os anos aqui em casa, com duas para mascarar, nos tempos em que ainda não existia a panóplia de oferta extremamente variada, criativa e baratinha, propiciada pelas lojas dos chineses e afins.
Os fatos de então, eram confeccionados ( o que era uma bela de uma chatice ), ou alugados, o que obviamente não era para todos os bolsos.
A escolha não tinha muita margem de variação ( sempre se tentava que no ano seguinte se retomassem os modelitos já passados, com a inerente resistência por parte de quem os envergaria ... 😃😃😃 ).
Havia que rentabilizar o mais possível o trabalho e o capital ... ( rsrsrs ).  Assim, a minhota, a sevilhana e as fadas, eram coisa certa e segura ...
Depois passava-se à epopeia de vestir, de pentear adequadamente e de maquilhar.
Enquanto que uma das minhas filhas desejava, suportava e participava mesmo, na "construção" da figurinha, não reclamando e prestando-se a todas as facécias necessárias (cabelos ripados, palha de aço na cabeleira para segurar a peiñeta, e imobilidade quase total para que a pintura saísse a preceito ), a outra quase tinha que ser manietada para lhe conseguir fazer qualquer coisa.  Fugia, não queria, esquivava-se o mais que podia.  Era um cansaço e uma prova de esforço, conseguir sair incólume de tal odisseia !
Hoje, tem uma filha com idade para as mesmas tropelias.
E também a mãe "corta um dobrado" para a convencer, quase ingloriamente, a deixar pôr a bendita fatiota e prender as asas de borboleta, ou a bandolete das antenas no alto do cocuruto ... o máximo permitido ... ( rsrsrs )

Nessa altura, o Carnaval ainda tinha sabor a vida, a brincadeira, a boa disposição.
O tempo passou.  Os mais velhos ignoram as palhaçadas da época.  Dezoito, quinze e doze anos conferem-lhes o "estatuto" de gente muito crescida e séria ...
Resta a "pitorrinha" de pouco mais de dois anos e meio, com quem, como disse, o sucesso não parece ser muito !!!

Eu agora ando assim.  Não sei se serei só eu ( penso que não ), para quem a vida se norteia por revivalismos de tempos passados, ou por uma afobação sentida e urgente, de esgotar tudo aquilo que ainda possa, enquanto possa.
Uma vida feita "às pressas", como se fosse acabar-se amanhã ... e uma vida de lembranças e recordações, boas e más ... sempre gratificantes, porque o são da minha história.
A fragilidade da existência, a efemeridade da mesma, a precariedade dos tempos e a corrida vertiginosa dos dias, assustam-me e pressionam-me.  As vinte e quatro horas voam, literalmente.  Levanto-me tarde, é certo, o que consequentemente as encurta.  Mal tenho aqui o sol a inundar-me, frente à janela, já daqui a pouco estou a descer os estores, porque o céu  laranja lá longe no horizonte, me anuncia que mais um dia está a findar ...
Nada disto é obviamente saudável.  Nada disto deveria ser condicionante das nossas vivências diárias.  Afinal a vida segue indiferente, angustiemo-nos ou não.  E tudo será o que tiver que ser, quando tiver que ser !...
O mundo é cada vez mais um lugar perigoso de se viver.  Viver, é cada vez mais uma condição humana, exponencialmente de risco elevado...

Cerca de duas mil e quinhentas pessoas morreram já, com a pandemia que se alastra indiferente, neste barco de casco disfarçadamente roto, que é o planeta.  O medo instala-se e grassa.
Não adianta, dizem.  Sabemo-lo bem !  Afinal, como estancar ou refrear  num mundo de globalização, a circulação permanente, incontida e fácil das pessoas e dos contactos ?!
Assim, a juntar às incertezas que se vivem, inerentes às dificuldades experimentadas por todas as realidades existentes a nível pessoal, familiar e social ... a juntar ao horror dos conflitos generalizados, das guerras instaladas, dos ódios, da fome e das perseguições ... a juntar às mais disfarçadas agressões a que o ser humano é sujeito em permanência ... à constatação angustiante indiferente e doída da degradação do planeta, vítima do descaso e da loucura de alguns ... a juntar a tudo isto, digo, como se um castigo viesse redimir tanta ignomínia, como se se fizesse um qualquer acerto de contas no Universo ... como que um cerco se fecha, e as doenças acrescidas àquelas que já nos fustigam, amarguram-me, intranquilizam-me, assustam-me, e apavoram mesmo os meus dias ...

Não  será  preciso tanto, dirão.   Afinal,  para  se  morrer  basta  estar  vivo ! - Velhíssima  máxima ...

Nos últimos dias têm partido figuras públicas que, por o serem, não nos passam despercebidas.  Indivíduos que também escreveram, à sua maneira, a História do nosso país.  E, apesar de para mim representarem apenas isso ... o facto de deterem em si, o protagonismo do enriquecimento da nossa realidade nas mais variadas áreas, culturais, sociais e políticas, com o contributo que nos legaram ... sempre me sinto empobrecida, nostálgica e interrogativa com o seu desaparecimento ... como se o mesmo fosse um processo contra-natura, despropositado e ilógico ...
Afinal foram meus contemporâneos, são meus "conterrâneos" e responsáveis também, por um acréscimo e uma valorização integral dos meus conhecimentos, da minha personalidade ... da minha individualidade enquanto gente, aqui e agora nesta Terra !...

Bom, não alongarei mais a escorrência dos meus estados de alma ...
Hoje tratou-se tão somente disso mesmo ... um mix aleatório, um fluir solto, desconstruído, sem elaboração prévia ... sem linha ou estrada previamente decidida.
Simplesmente uma torrente a esmo  pelo meio dos escolhos que me atormentam, das interrogações que me coloco, das perguntas insolúveis, das respostas silentes às dúvidas audíveis ... Exactamente como me foram chegando ...
Por aí ...
Não mais ...

Anamar

domingo, 16 de fevereiro de 2020

" A ESPERANÇA AINDA MORA EM WUHAN"


 REQUIEM  PARA  WUHAN




Hoje foi um domingo de sol em Wuhan.

Foi a esperança que mo disse.  A doçura de um sol frouxo penetrou  pelas vidraças veladas, fechadas há muito, na reclusão de quem foge ao horror lá de fora.
Sente-se o silêncio da condenação dos condenados, nos hospitais, nas casas ... nas ruas ...
Experimenta-se o medo ... o pavor de quem foge aos tentáculos monstruosos que pairam por ali ...
Agoniza-se de terror pelo ar que se respira, pela mão que se toca, pelo monstro gigante que espreita em cada esquina ... e emudece-se sepulcralmente ...
Percebe-se a exaustão dos que lutam, dos que se excedem e se ultrapassam na ânsia de chegar primeiro.  Antes dela ... da morte !

Mas a esperança ainda lá vive.
A esperança dos que se sentem abençoados pelo simples facto de amanhecerem, por cada dia.
A esperança dos que se sentem escolhidos, só porque, mesmo através da vidraça, podem ver o verde que ponteia naquela cidade amaldiçoada e mártir, de onze milhões de penitentes..
Uma planície aluvial de colinas, lagos e lagoas, antes pujante de vida, hoje o epicentro infernal de mais um descaso atroz do destino !...

E o sorriso ...
O sorriso dos que ainda conseguem sorrir ... 
 ... só porque em Wuhan  há pegas azuis,  que não desistiram de gorgear e de enfeitar hoje, ainda, um céu que foi azul também...

Anamar 

" REGRESSO ÀS ORIGENS "





Fui ao Alentejo.

E o Alentejo está lindo neste fim de Inverno, início de uma Primavera que já se apruma a chegar.
Tem chovido alguma coisa e a Natureza que é frugal, desponta em força, exuberantemente verde, prometendo para breve, o multicolorido das flores que começam a anunciar-se pelos campos fora.
Os pássaros chilreiam, em tempos de acasalamento. E volteiam, em afobação de ninho.
A vida brota, o ciclo reinicia-se e aquele chão generoso não se esquiva nunca.
As cegonhas empoleiram-se,  geração após geração, no ninho que as viu nascer, agora que notoriamente já não emigram para o norte de África.  O clima, a garantia de satisfação das necessidades alimentares e uma segurança nas vidas, fixa-as na paz de habitações colectivas, em verdadeiros "condomínios"  pelos postes de alta tensão acima, à beira das estradas.
Depois, o gado pastoreia placidamente e é uma paz para a alma ouvir-lhe os chocalhos, o balido das ovelhas, o ladrar dos cães ... a brisa que perpassa leve e solta pela charneca ...
e  os sinos dos campanários longínquos, dando as horas numa lentidão arrastada, numa paz modorrenta, como as sombras doces e longas, projectadas por um sol manso e também ele meio dormente ...
E o silêncio ... aquele silêncio que é e não é, que se se escuta e adormece, em cumplicidade com as memórias e com a presença "ainda", dos que já partiram mas que sempre estão por ali ...

E lá estão as gentes, as vozes cantadas, a solicitude nas respostas, se uma pergunta lhes é feita ... Sempre ... como sempre, ao longo dos tempos ...
Encontrei os mesmos velhos, na ociosidade da pirisca esquecida no canto dos lábios, nos bancos de pedra do largo da Matriz ...
Velhos do asilo, a maioria ... que procuram conforto no calor dos raios do sol, e paz na certeza do reencontro diário ...
Senti-lhes as mesmas conversas lentas ... as mesmas de há cem anos.  As mesmas de toda a vida.  De todas as vidas ...

E aquela terra, não nega que é a minha terra, deserdada que estou na cidade impessoal.
O sangue fervilha logo que os cheiros, os sons, as cores e o olhar  ( que de repente ganha asas e espaço para se alargar além-horizontes ) descomanda e ciranda livre e solto, como eu o era, nos tempos de pai, mãe, avós, tios e primos ...
Todos já foram indo, abrindo caminho ao que há-de ser, quando for ...

E as pedras da calçada  ainda falam de mim.  Mesmo que as tranças já não existam. Mesmo que da casa mãe, só existam as paredes iguais, esvaziadas e silenciosas, sem alma ... porque são outras, as mãos que a detêm ...
E as histórias também, porque essas, são perenes, porque são histórias de Vida !

O largo, dos jogos da macaca, das brincadeiras de roda, da "linda falua", das  covinhas  dos berlindes ( tampas dos pirolitos mantidos no fresco do poço, revestido de avencas verdes e frondosas, para adoçar as refeições ) ... está lá, intocável, parece.
É um largo de memória e saudade !...
Da loja do Zé Marovas, com a exposição de tudo quanto lá se vendia  pendurado em pregos, na rua, parede fora, desde as pás de lixo em zinco, às vassouras, aos alguidares de vários tamanhos, às panelas, às pequenas alfaias agrícolas, escadotes, canas e pincéis para a caiança, tintas, cal  e tudo quanto a necessidade exigisse ... só existem os pregos, e portas e montras entaipadas há muito ... numa parede de velhice e solidão ...
A barbearia do Zé Francisco, lugar de amenidades, encontros e novidades da terra, também já foi.
A senhora Teresa, das miniaturas em barro para as brincadeiras da raparigada, partiu há muito.
As senhoras Capitoas, frente à casa da avó, onde os queijos frescos, de alavão pessoal, e o almeice que fazia as delícias da minha mãe ... são também uma lembrança distante, apenas.
A menina Sofia e a irmã, solteironas, austeras regentes escolares  já então aposentadas, muito respeitadas e vivendo duas portas abaixo ... sempre paravam pela janela ou pelo postigo ... E havia que serem cumprimentadas, à passagem.  A educação assim o impunha ...
A igreja da Saúde,  igreja das missas do Galo pela mão da avó  embiocada no xaile dos dias solenes, na gélida madrugada dos Natais ... continua a "desvendar-me"  com nitidez, a luz clara do altar, o incenso do turíbulo, o som dos cânticos ecoando, e a imagem do Menino cujo pezinho beijaríamos à saída. "Vejo" tudo claramente ... enquanto a lembrança mo deixar ...

E as horas foram indo ...
Breve, a torre do castelo daria as horas do regresso.  E deu.
Lá longe, a cidade de sempre, nos lugares de sempre, com as pessoas de sempre ... na vida quase sempre igual, requeria que eu voltasse ...




Anamar

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

" A VOZ DO DONO "


Não sou licenciada em Direito.  Não tenho formação jurídica.  Convivi contudo intimamente, mais de dois terços da minha vida com quem o era, e com quem a tinha.
E tinha-a, nos tempos em que nesta área ainda havia muita gente honesta, séria, capaz, sabedora e escrupulosa.
Depois, a minha linha sucessória deu continuidade a esta senda, com os princípios, os valores, a dedicação, o esforço, a seriedade e o acreditar de quem havia felizmente bebido em boa "fonte".

Assim, sou uma simples cidadã deste país que constata, analisa e reflecte sobre o que se passa à sua volta ... e se indigna ainda, felizmente, com todos os atropelos miseráveis em que vamos tropeçando.
Esta minha exposição  traduz por isso, apenas o meu sentir, a minha análise e o meu entendimento, estando seguramente ferida de imprecisões técnicas que não domino, e logicamente, de rigor de linguagem e conceitos.

Neste momento, e de novo na ribalta pelas piores razões, mais episódios da novela "Tancos" - o desvio das armas nesta unidade militar.
E como cidadã comum que lê, se informa e escuta o que a rodeia, assiste-me o direito à indignação, à estupefacção, e à incredulidade perante o rumo que as coisas entretanto, assumiram.

O tempo da ditadura de má memória, caracterizara-se como em todas as ditaduras, por repressão, arbitrariedades, crimes, amputação das liberdades e direitos dos cidadãos, desrespeito por instituições, valores e princípios que pusessem em causa o regime em vigor na nossa sociedade.
O 25 de Abril de 74, foi a alvorada das nossas existências, repondo finalmente, ao fim de 48 anos, os alicerces do estado de direito !
As liberdades e os direitos individuais foram repostos e consignados na Constituição da República Portuguesa.
A actual Constituição, foi redigida pela Assembleia Constituinte eleita na sequência das primeiras eleições gerais livres no país em 25 de Abril de 1975, data de 1976 e na sua feitura teve um papel  destacado o eminente constitucionalista Jorge Miranda.

Aprendi que num estado de direito, existem consignados na Constituição da República, três poderes, a saber, o legislativo, o executivo e o judicial e que as áreas abrangidas pelos mesmos, deveriam ser respeitadas,  não podendo ser entre si devassadas, violadas e "atropeladas".
Também aprendi, que à luz da mesma Constituição ( documento sagrado ou Bíblia, numa democracia ou estado de direito ), todos os cidadãos são iguais perante a lei, com igualdade de deveres e de direitos.
Acontece que, como sabemos, nada disto se passa.
Neste momento assiste-se a uma vergonhosa, escandalosa e discricionária interferência do poder político sobre as estruturas judiciais responsáveis, primeiro pelo inquérito ( na fase de investigação ) e agora sobre a instrução do referido processo.
Há uma manifesta e objectiva obstrução à isenção que os profissionais de direito (garantes do cumprimento de todos os trâmites julgados necessários e fundamentais para a averiguação e  esclarecimento do processo ), tentam por em prática.
Assiste-se a uma intocabilidade de determinadas figuras públicas, devido à "dignidade" dos lugares que ocupam no quadro político do país.  Refiro-me como é de conhecimento geral, ao Primeiro Ministro e ao Presidente da República, que haviam sido convocados pelo Ministério Público, na qualidade de testemunhas, a prestarem esclarecimentos julgados úteis, importantes e determinantes para a consecução da investigação do processo.
A Procuradoria Geral da República, na figura da sua Procuradora Geral, Lucília Gago, veio de imediato à liça, invocando a não adequação desta intimação, dada a especificidade dos cargos desempenhados por António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa, impedindo que esta diligência fosse efectuada.
Baseou a sua fundamentação numa consulta feita ao seu conselho consultivo, e desta forma  tornou-a  numa directiva sobre a intervenção da hierarquia em processos judiciais.
Indicava este parecer, que os procuradores só poderiam desobedecer às chefias, quando estivesse em causa uma violação da consciência jurídica do magistrado, e ainda assim, deveria a mesma ser devidamente espaldada e fundamentada, sob risco de ser levantado um processo disciplinar ao mesmo.
Desta forma, os Procuradores viram-se desautorizados, condicionados, viram os seus poderes coartados, viram as suas consciências violadas e a sua autonomia questionada, tornando-se  simples marionetas nas mãos dos seus superiores hierárquicos, abrindo-se assim um perigoso precedente, sem tamanho.
Passaram a ser meros técnicos jurídicos e não mais magistrados, na verdadeira acepção do desempenho das suas funções, caracterizadas sempre por isenção, idoneidade e independência, limitando-se agora a expressar, a traduzir  e a  fazer exercer determinantemente e não mais,  o entendimento dos seus superiores.
Ou seja, a defenderem  inapelavelmente, e tão só, a "voz do dono " !!!

Esta "guerra" aberta e vergonhosa que mostra claramente a intromissão abusiva e inadmissível da esfera política na área judicial, leva-nos ao crepúsculo mais escuro, das liberdades alcançadas na madrugada de Abril, há quase 46 anos.  Leva-nos a memórias de repressão, de silêncios e de opacidade. Traz-nos à memória perseguições, processos persecutórios hediondos, interesses escusos, arbitrariedades e compadrios !!!

Não foi p'ra nada disto, seguramente, que os cravos vermelhos desceram à rua naquela madrugada de ESPERANÇA !!!

Anamar

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

" O FIEL JARDINEIRO "





Os dias continuam radiosos e abençoados.  O sol não se esquiva, a temperatura é generosa, o céu azula, os pássaros chilreiam e mostram-se saltitantes pelos campos e jardins, onde a erva rebentou em força  com um verde saudável e viçoso, e onde as flores despontam já, com a pujança e a beleza promissora de uma Primavera candente.
O sol faz o milagre.  Aliás, o sol sempre faz o milagre de despertar, colorir e adornar gentilmente os dias que agora nos arquivam a escuridão, a neblina e o frio do Inverno, que apesar de tudo ainda atravessamos.

Adoro a Natureza.  Sempre ela subjaz aos meus escritos, porque sempre ela emoldura e determina os meus estados de alma.  Não canso de o referir, e tenho-a como o bem mais seguro e precioso de que dispomos,  porque ela representa a VIDA ... 
É certa, magnânima, não guarda ressentimento ...
Fascina-me sempre a sua dádiva sem cobrança, apesar dos maus tratos e da insensibilidade do Homem.  Ela não pede, aceita ... não nega, dá-se ... não cobra e não nos falha ...

Aprecio quem a aprecia.  Identifico-me com quem com ela se identifica.  Agrada-me a sensibilidade de quem com ela gosta de se miscigenar, de quem lhe identifica a linguagem e lhe sabe ler os mistérios.
De quem se extasia com um nascer ou um por de sol.  De quem sabe olhar as margaridas selvagens, as azedas delicadas, ou a nudez dos plátanos despidos.  De quem entende, porque escuta, o trinado do melro, o arrulhar dos pombos, o pipilar do chapim ou da pega rabuda ... o grasnido da gaivota que patrulha os penhascos alterosos ou saúda a rebentação da maré baixa ...
Emociono-me com quem se debruça para colher um malmequer dos campos, uma madressilva dos muros velhos, apanhar um seixo dos areais, ou com quem "guarda" a cantilena da rebentação, nas praias ora desertas.  Quem entende a voz do vento, quem lê o recado da tempestade ... quem silencia, para sonhar, no horizonte ...
Enterneço-me com quem planta tomates, pimentos, aromáticas, figueiras, malaguetas, morangos e outros,  em vasos de varanda, e  rejubila com cada um que nasce e cresce, e o acarinha e o trata como se de uma criança se tratasse.
Extasio-me com a dádiva de amor posta na recuperação das espécies doentes ou moribundas, tantas e tantas vezes irremediável e desprezadamente largadas no lixo ... por nós, aqueles que não as "sentem" como seres vivos clamando por ajuda ...
Extasio-me com quem ajardina encostas inóspitas de falésias junto ao mar, só porque nelas se encerram vidas, histórias e destinos ...
E admiro profundamente quem ama os animais, sobretudo aqueles a quem a desdita jogou em futuros  tortuosos e indefinidos ... Quem os ajuda, os defende e os protege ...

Conheço alguém assim.
E só consegue ser assim, quem tiver um coração do tamanho do mundo e uma alma aberta, disponível, pura e "naïve", capaz de deixar albergar em si tudo e todos que o precisarem ... Quem tiver uma sensibilidade ímpar e desperta,  na arte da "jardinagem da vida" ...
Já lhe chamei  "o homem das rosas", e sobre ele escrevi um conto, há anos atrás.  Hoje, chamo-lhe o "fiel jardineiro" ... e sinto-me privilegiada por, de quando em vez, também eu ser uma humilde "plantinha" do seu jardim ...



Anamar

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

" DE TUDO UM POUCO "



O dia amanheceu radioso, aliás já ontem o seu semblante foi primaveril.
Um sol luminoso e quente, num céu completamente límpido e translúcido, emoldurou estes primeiros dias de Fevereiro.  Afinal, Fevereiro igual a si próprio ... sempre nos presenteia com estes dias que parecem anunciar uma Primavera com pressa de chegar ...

Ontem, a efeméride do costume ... dia de Nossa Senhora das Candeias,  Nossa Senhora da Candelária, Nossa Senhora da Apresentação ou Nossa Senhora da Luz ... conforme o local que A homenageia.  Este ano, com uma data interessantíssima :  02-02-2020, ou seja, uma sequência numérica chamada de palíndromo.
Este conceito que não se aplica apenas aos números, respeita a uma palavra, frase ou qualquer outra sequência de unidades que tenha a característica de poder ser lida de igual forma, da direita para a esquerda, ou em sentido contrário.
 "Ovo", "reviver", "luz azul", "ame o poema", são exemplos de palíndromos.
Na nossa travessia,  tivemos  já o privilégio de vivenciar duas capicuas :  os anos  1991 e  2002, o que é raro acontecer. A data de ontem, constitui uma perfeição global !

Bom, neste domingo "perfeito", a Senhora da Luz chegou-nos com um tempo gloriosamente luminoso ... talvez por isso mesmo !  E acresce, que consequentemente  e pegando no ditado popular, teremos ainda um Inverno para chegar ...
Sempre a minha mãe lembrava : se o dia da Senhora das Candeias "rir", o Inverno está p'ra vir, e se ele "chora", temos o Inverno fora !...
Sempre a minha mãe e os seus "ditos" !...

Hoje fiz a minha caminhada, embrulhada na mornidão deste solzinho de Inverno, doce e manso.
Por todo o lado onde o verde ainda só se anuncia longinquamente, os pássaros volteiam, saltitam e trinam numa alegria esfuziante.
Afinal, Fevereiro é mês de acasalamento e nidificação, Março mês de posturas e nascimentos, ou não albergasse em si a chegada da estação da renovação e da continuidade ...
A Natureza é sábia e nunca erra !

E a Natureza é um pote de alimento para a alma, um boião de néctar para o coração !
O ser humano experimenta em si, uma força e um poder,  uma esperança sentida e vinda nem se sabe de onde, e uma claridade insuspeita que nos inunda, como uma onda que se espraiasse mansamente num areal deserto ...
De repente, da escuridão e das trevas dos meses de recolhimento que atravessamos, surge o dealbar de uma nova aurora, de um renascimento que nos anima e "recarrega" todas as baterias do nosso ser !...
Era então que a minha mãe dizia que "ficamos com vontade de fazer coisas" ...  E fazer coisas, para ela, era desencadear uma faxina feroz na casa, de fio a pavio, que ninguém amansava ...
Nunca entendi muito bem estas "realizações" que deixavam a minha mãe exultando de felicidade !... ( rsrsrs  😄😄😄 )
Não lhe herdei, de facto, estes rompantes efusivos que tornam felizes as pessoas simples, as que não exigem demais da vida, as que se realizam e pacificam com o que os dias lhes vão dando ...
São seres de paz, de bonomia, de aceitação ... seres não tumultuados, e de bem com a existência !...

Ontem tive comigo, toda a tarde, a minha benjamina.  A Teresa, a caminho dos três anos que completará em Junho, é de facto uma bênção para quem com ela convive ...
Pequenina de estatura, tem um desenvolvimento físico mas sobretudo mental, que me maravilha.  Desde muito novinha no infantário, no que considero ser uma mais valia no desabrochamento intelectual de qualquer criança, estimulando-lhe aptidões fundamentais quer individualmente quer na relacionação grupal, a Teresa é uma criança sem inibições, com uma desenvoltura e um à-vontade espantosos, extrovertida e com uma linguagem perfeitamente escorreita e rica, para a pouca idade que detém.
Tem um discurso lógico, claro e rico em expressões.  Divide e partilha.  É calma e sempre bem disposta.  Não é uma criança birrenta, pelo que é fácil o convívio com ela.  Ouve os adultos, aceita o que se lhe diz e expõe as suas ideias enriquecendo-as com uma expressão gestual que me fascina ...
O convívio quase exclusivo com a mãe, já que o pai trabalhando no exterior passa grande parte do tempo fora, propicia-lhe e estimula-lhe uma ligação íntima  com esta, muito forte e cúmplice, que nos mostra uma menina parecendo ter bastante mais idade.

Já há muitos anos que não acompanhava de perto o crescimento de uma criança.  Antes dela, o meu outro neto mais novo, tem já doze anos, e acho que me escapou muito do seu desenvolvimento.
A vida tem períodos e fases mais ou menos complicadas, em que as prioridades, por vezes, não nos são generosas ...
Agora a Teresa, chegada quase nos quarenta anos da mãe, e em que eu talvez já não acreditasse muito que um novo elemento nos viesse enriquecer a família, é uma descoberta permanente ... um enamoramento e um fascínio constantes para mim, o facto de poder testemunhar o seu percurso promissor, nestes tempos tão conturbados e descoloridos !...

Desculpem um pouco da imodéstia.  Não o é, na verdade.  Sinto-me sim, uma "sortuda", uma privilegiada e abençoada mesmo, por a vida ainda me presentear com a possibilidade da descoberta do milagre que é a chegada ao mundo de um ser tão indefeso, tão frágil e tão vulnerável ...  e poder testemunhar dia a dia, a sua busca pelo seu lugar no mundo !
De alguma forma, sente-se  uma realização muito grande, uma imensa expectativa, e como que uma gratificação e um sentido objectivo para a continuidade, também, das nossas existências nesta Terra !...

Anamar