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quinta-feira, 25 de abril de 2024

" MEIO SÉCULO PASSADO ..."



Hoje, 25 de Abril de 2024 , fui impelida a escrever. 

Sinto um misto de sentimentos e emoções que não sei muito bem explicar. Um aperto no peito, uma angústia, uma espécie de tristeza, um vazio, um buraco aqui dentro ... uma esquisita sensação de orfandade ... talvez nem eu saiba porquê ...

Festeja-se no país uma data absolutamente histórica, uma data indelével ... "a data" ... a primordial, a determinante, a matriz de um Portugal que nos arrebatou, nos envolveu e nos ensinou a sonhar, naquela  madrugada de Abril, faz hoje exactamente meio século.
Convidaram-me pra festejar, pra recuar no tempo, pra me deixar ir pelo sonho, Avenida da Liberdade abaixo, no que, estou certa, estará a ser uma nova expressão de unidade, de partilha, de felicidade colectiva.  Afinal, é o que se sente quando uma onda nos envolve, nos mergulha em turbilhão, numa embriaguês que nos transporta adiante, que nos aturde e nos leva do riso à lágrima, só porque a emoção é arrebatadora demais ...
São expressões inquestionáveis, são manifestações de massas que não precisam de justificações.  São fenómenos que acontecem, irreprimíveis, proporcionais àquela felicidade avassaladora que nos toma, que nos faz falar com quem não conhecemos, dar o braço a quem está ao lado, gritar até que a voz se oiça, cantar até à exaustão.  É como se um "porre" nos tomasse, como se o cérebro parasse e apenas quiséssemos viver o momento antes de acordar outra vez !
Recordo o Maio de 74, a que assisti, então por impossibilidade pessoal, apenas das janelas.  Engraçado, que, ao longo do tempo sempre lastimei assim ter sido.
Desta vez, fui eu que declinei.  E sem que o lamente !

Já escrevi alguns textos sobre o 25 de Abril, aquele, o de 74, aquele em que tudo pareceu possível, em que tudo foi tão intenso, que as águas oníricas  rebentaram as comportas  fechadas de uma vida,  extravasaram e inundaram.   
Já poemei sobre a avalanche que me submergia, já senti vezes sem conta um nó de ferrolhos na garganta e a escorrência incontida rosto abaixo, de lágrimas de emoção.
Já acreditei tanto em tudo, como a menina que antevê a felicidade que há-de experimentar com a boneca que acabou de ganhar ...
Eu ainda choro se escuto o Hino, choro se os acordes da "Grândola, vila morena" se ouvem ... choro se vejo pela décima vez  as reportagens de Salgueiro Maia à frente das tropas revoltosas ... nessa madrugada distante. 

Mas mudei, mudei muito.  Endureci, insensibilizei-me, tornei-me indiferente.  Acho que a velhice e o pragmatismo com que comecei a encarar a vida, me estão a roubar a parte mais bonita de mim, a parte mais encantatória e interessante, que advinha, creio, da capacidade de sonhar e acreditar. Uma espécie de faceta infantil, ingénua e pura.
Seguramente sou eu que não estou bem.  A minha mãe até ao fim da vida sempre foi doce, crédula nas coisas e nas pessoas, tolerante com as situações e esforçada por entender e aceitar o mundo possível.
Emocionava-se facilmente, tinha o coração ao pé da boca, como "soi dizer-se".  De lágrima fácil, sempre preservou valores e sentimentos de que nunca abdicou. 
Hoje, perante o rememorar das imagens da Revolução dos Cravos, quantas lágrimas já teria vertido pelo seu país !!!
Mas a minha mãe era uma pessoa boa !...

Anamar

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

" FIM DE LINHA ... "

 


Ontem, olhando os títulos que circulam nos tablóides, deparei-me com o do suicídio de dois jovens respectivamente de quarenta e sete e trinta e oito anos, figuras públicas ambos, do nosso meio artístico. 
Ambos modelos, artistas na área da ficção, ambos com filhos ... aparentemente com histórias de vida em fim de linha.
Ela com três filhos, com um arrastar de uma vida sem escapatória, da qual terá desistido.  Ele, com um bebé de três anos, e mergulhado, também ao que parece, numa depressão profunda que o terá atirado para o tapete ...

Até aqui, infelizmente são apenas situações mais comuns e frequentes do que o imaginável, inseridas num panorama que quase sempre nos escapa, obviamente porque não se referem a ninguém com visibilidade mediática.
Mas são seguramente situações extremas de dor, de cansaço, de desistência, para as quais a sociedade foi absolutamente incapaz de ter uma resposta preventiva, atempadamente. 
São dramas sangrantes bem frente aos nossos olhos, são pessoas para quem todas as portas parecem ter-se fechado, pessoas que esbracejaram até à exaustão e a quem nenhuma bóia de salvação foi atirada.  Ao contrário, os horizontes cerraram, a borrasca abateu-se e as forças, certamente, esgotaram a capacidade de resistência.
E atinge-se aquela altura em que os corações esgotaram o limite de esperança, aquela altura em que todas as armas são depostas, aquele momento em que a escuridão é de tal ordem que nada já interessa. As perspectivas inexistem, os projectos defraudam-se, o futuro some da história, os afectos já não têm força pra segurar o que quer ou quem quer que seja ...
E pronto ... arranca-se a ficha da tomada !  Fim de linha !...

Todas as pessoas que têm a coragem de consumar este acto tresloucado, merecem o meu mais profundo respeito.  A coragem necessária para fechar os olhos e "saltar", é duma dimensão inalcançável !
A sociedade não soube protegê-las, não soube responder-lhes, "vê-las" ... não soube sequer acarinhá-las.  Andamos todos demasiado ocupados a salvar-nos, demasiado insensíveis para sequer percebermos, lermos as entrelinhas, vermos os sinais dos que, bem ali ao nosso lado, os foram deixando ...
Não conseguimos visualizar a luz vermelha da desistência, a piscar-nos.  Não conseguimos sentir o grito de socorro que quantas vezes nos é lançado, das mais diversas formas...  Não temos capacidade para descodificar palavras, olhares, ouvir frases aparentemente enviesadas ...
Estamos todos demasiadamente distraídos ... a esbracejar também por aí ... às vezes também apenas à procura dum nexo, dum rumo, duma alvorada a levantar-se ...
O mundo torna-se insuportável, desaprendemos de viver.  Às vezes guardamos ainda no fundo do nosso âmago um lampejo de esperança que sonhamos, mas em que na verdade não acreditamos.  Não sabemos o que buscamos, apesar de vivermos cercados de uma poluição informativa, de uma poluição de soluções, caminhos aparentemente fáceis e acessíveis, num mundo do parecer e cada vez menos do ser ...
E vamos indo, calcorreando as veredas que às vezes apenas nos confrontam duramente com uma solidão a que parecemos também já não pertencer, e em que o túnel da desesperança estreita mais e mais, convidando-nos a partir ... 
À nossa volta já não existe mais sinal de pertença ... o cansaço não dá tréguas, a voz estiola na garganta e ir embora é a solução que nos resta ...

Há então aquele segundo maldito em que o vazio se estende mesmo até à alma e em que a exaustão nos apaga por dentro.  São instantes de silêncio, de escuridão ... de abandono imenso e total ...
Já não fazemos parte deste chão, já aqui não pertencemos ... e simplesmente, partimos !...

Nada mais faz sentido .  A linha chegou definitivamente ao fim !

Anamar

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

" ÀS VEZES A GENTE SÓ QUERIA UM MIMO ..."



Dia 3 do primeiro mês do ano que há pouco se iniciou.  
O tempo, profundamente instável, presenteou-nos com um dia escurecido, abóboda cinzenta pesada, com chuva ininterrupta desde ontem.  Dia bom para estar à lareira, ou não a tendo, dia bom para deixar perder a vista até onde ela chega, através das vidraças, por onde os pingos escorrem desenhando linhas incertas e imprecisas.
Hoje foi o funeral de uma colega de trabalho, contemporâneas que fomos a vida toda na mesma escola e antes disso, colegas de liceu, da mesma turma, no tempo em que éramos estudantes.  Tínhamos portanto exactamente a mesma idade.  A doença "da moda" vitimou-a depois de prolongado sofrimento, ao que parece.
Fui ao velório ontem.  Hoje, poupei-me.

Com o avanço dos anos, estou a atingir um grau de fragilidade enorme, absurdamente preocupante.  Sempre fui saudável, costumava dizer que nem as "simpáticas dores de costas" que se tornavam amigas inseparáveis das pessoas minhas contemporâneas ( inevitáveis parecia ), queriam nada comigo.  Nem coluna, nem "cruzes", nem pernas, nem braços me atormentavam.
"Sortuda" ... era assim que me diziam, era assim que me considerava ...
Só que, sem eu dar por isso, de repente, de supetão, apanhando-me na curva da estrada, parece que tudo se me chegou. Ou então sou eu que de repente também, dei em viver com medos, com temores assombrados, com fobias idiotas... E aquela mulher destinada a varar a bitola do tempo, ficou da noite para o dia, como um passarinho assustado.  
Deito-me e até que o sono faça a caridade de me levar para os seus braços, passam por mim todos os filmes possíveis.  Sozinha em casa, com o gato aos pés, em cada noite que chega, a reprise assustada vai desfilando.  Tudo fica passível de acontecer.  Tudo é mais do que provável que aconteça ...
E fico encolhidinha entre o macio dos lençóis e o quente aconchegante do édredon, tentando sonhos e não pesadelos ...

Eu sei que a vida se fez, que os anos foram indo.  Sei que os filhos cresceram, que as crianças que eram não são mais, que hoje estão aí aos comandos das próprias vidas e próprias responsabilidades.  
Olho-lhes as rugas à socapa, para não darem conta da fortuita avaliação ... Sei-lhes as dificuldades, as preocupações. E lamento-as.  E sofro com elas ...  
Percebo-lhes o tempo de que não dispõem, o muito que têm que fazer ... Falar-lhes da dor do joelho que me atormenta, é pura ousadia ... lamentar que os olhos ainda que operados, não voltaram a ser o que eram e que os ouvidos também me atraiçoam despudoradamente, é falta de senso...
Não caibo nos cólos que já aninhei ... nem posso embalar-me nos braços que já embalei ...
O equilíbrio ... ( Queres o quê ? Tens a idade que tens !... )... é inquestionável, pieguice e exigência absurda, esperá-lo afinado ...
E tudo o mais ... o medo do "escuro", do frio, da dependência ... os degraus da escada ... o esquecimento, a confusão que se gera quando à nossa revelia os neurónios resolvem fazer um baile de trapalhões na cabeça, que até há algum tempo atrás, era finória, esclarecida, decidida mesmo nas curvas do caminho ...

E acontece tudo num piscar de olhos ?!  E de repente a estrada fica caótica no trânsito do raciocínio ?!
E sabotam-nos os pensamentos, esvaziam-nos as ideias, fazem-nos tropeçar nas palavras como se precisassem de bengala para andar ?!
E de repente ficamos estranhos face ao espelho.  Nem fisicamente ele nos devolve a grata imagem que ainda, esbatida, lembramos de nós mesmos ...
E foi apenas há meia dúzia de anos !...

Falar  estes  despautérios,  com  quem ?  Expor  esta  avalanche  de  mágoas  onde  e  para  quê ?  
Desvendar estas ironias tontas, em praça pública ?  Ridículo !  Será que também perdi o senso do razoável, do lógico, do real ?... 
Ou simplesmente conflituo com a inevitabilidade da vida, recuso o percurso inexorável comum a todos, digladio o destino ... escrito sei lá por quem ?!...

E é isto !

É que às vezes a gente só queria um mimo !...

Anamar

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

" IRRESOLÚVEL ... SERÁ ? "



Referi aqui vezes sem conta, como me isolo gradualmente mais e mais, numa indisponibilidade emocional para conviver, sair de casa, cumprir programas, espairecer ...
Argumentando uma real falta de paciência, uma intolerância óbvia para as trivialidades diárias, um cansaço para as minudências do dia a dia, afasto-me, silencio-me, remeto-me ao espaço confinante da minha casa, e consequentemente adio ou remeto para melhores ocasiões, encontrar pessoas, partilhar momentos, dividir conversas nem que seja simplesmente em frente a uma chávena de café.

Telefonar, só em "desespero de causa", ou seja, quando as escapatórias já não existem.
Não recuso nada, digo sempre sim a tudo, ou melhor, não me inibo de prometer qualquer coisa, só que ... sempre sem data marcada.
"Ah sim, claro, temos que tomar um café ..." , "vamos, afinal já passou tanto tempo ... ", "havemos de almoçar ... quando agora o tempo melhorar" ... etc, etc.  Tudo com a mais séria intencionalidade.  Quando prometo e me comprometo com a disposição, até tenho intenção de cumprir, e até pareço já saborear a pequena felicidade dessa promessa.  Só que, depois, desinvisto totalmente, e o passo seguinte é ou fazer-me de desentendida ou inventar uma súbita impossibilidade para me fazer presente.

Sinal de envelhecimento, disse-me assim de caras, frontalmente, uma conhecida que já não via há algum tempo e que é, ao contrário de mim, toda gaiteira.  Eu ri-me, achando que ela estava inteiramente certa.
Acho que o imobilismo que me domina, a inércia que me envolve e esta espécie de "paralisia" onírica, conduz-me a um estado de letargia muito pouco saudável.  Pareço atascada num lamaçal que me está a limitar na vida diária.
Deixei de me entusiasmar, deixei de me empolgar com o que quer que seja, estou remetida a um "silêncio" interior, a um torpor desmotivador, em relação ao mundo.  É como se estivesse numa hibernação emocional doentia, como se estivesse por aqui esperando apenas que o tempo passe.  E isso em termos de saúde física e mental não é positivo.
Faço esforço para interagir, à conta de não ter paciência.  Fico indiferente e pouco disponível face a quase tudo, num abandono patológico.  A verdade é que a realidade pouco me motiva ou entusiasma.  Notícias terríveis pelo planeta, que já não sei se é melhor conhecê-las, se não.  Que me martirizam e penalizam profundamente, sem remédio à vista, deixando-me com o peso da impotência ainda maior sobre o coração.
Até as viagens que não há muito tempo atrás sempre eram motor de arranque para eu ficar feliz, não conseguem alavancar-me para novos sonhos, desejos ou vontades.  Nada. Vibro, mas não como dantes me acontecia.
"Velhice" ... martela-me os ouvidos ...

Esta terra que habito está descaracterizada.  A Covid deu conta do convívio, da partilha, dos encontros entre as pessoas.  Deixámos de sair tempo demais, confinámo-nos em períodos demasiado longos, os espaços nossos conhecidos alteraram-se fisicamente, uns fecharam, outros vocacionaram-se de outra forma.  As pessoas, afastadas umas das outras não conseguiram reabilitar os hábitos, os laços, os interesses.  Morreu muita gente, outros saíram das grandes cidades e rumaram à terra, onde por vezes possuíam casa, deixámos de saber dos destinos de muitos ... e fomos ficando mais sozinhos.  Nós e os nossos novos esquemas de vida, numa readaptação às exigências dos tempos.  
Em suma, tudo mudou, muita coisa, irreversivelmente !
Eu entristeci ...

Não consigo engendrar uma estratégia remediadora que me impelisse para diante, que me iluminasse de novo os olhos, que me acelerasse as batidas do coração, que me tirasse desta podre zona de conforto e me restituísse o sorriso ao rosto.  Nada que me fizesse acreditar que a minha alma afinal ainda é jovem, ainda arrisca, que ainda ousa, como dantes... que ainda tem rasgos de loucura ... Uma estratégia que me faça de novo pular as baias, mergulhar no impossível sentindo-o possível ... que "me livre da morte em doses suaves" ...

O cansaço é progressivo, e vou ficando por aqui ...
Talvez, como diz Pablo Neruda ... irresoluvelmente, a "morrer devagarinho ..."

Anamar

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

" REVISÃO DA MATÉRIA "

 



O dia está profundamente cinzento.  Uniformemente escuro.  Ainda não parou de chover, chuva grossa, agressiva, forte.  Bate nas vidraças com ímpeto, não facilita a vida a quem, nas ruas, tenta cumprir as rotinas diárias.  Corre-se, procuram-se abrigos, porque a inclemência do temporal não deixa margens ...
Queiramos ou não, a interioridade a que este tempo nos remete, leva a uma introspecção incontornável.  
Afinal será Dezembro dentro de horas, o Inverno está por dias e consequentemente, o caminho que percorremos nas nossas vidas está claramente a par do ciclo da Natureza.

É já uma estrada em que o que andámos bate objectivamente o que temos para andar, em tempo e em qualidade, e em que à nossa volta, as pessoas, as conversas, as preocupações que nos tomam, os sentimentos e até a forma como respondemos emocionalmente ao dia a dia ... são em tudo muito próximos, senão idênticos, às vivências daqueles que nos cercam.
Uns mais optimistas, outros menos, efectivamente todos de uma maneira geral partilhamos similitudes sensoriais.  
Convivemos preferencialmente com pessoas da mesma faixa etária, que já cessaram a actividade profissional, com famílias dispondo de uma lógica autonomia, com as independências naturalmente adquiridas, pessoas que ou têm uma vida familiar cujo desenho se mantém desde sempre, ou se encontram sós pelas mais variadas razões.  De qualquer forma, temos todos obviamente uma linguagem muito próxima, posturas e reacções comuns.  Quase todos nascemos e crescemos nas mesmas décadas, passámos por experiências semelhantes, crescemos em figurinos com forma e linguagens comuns, habituámo-nos a olhar o mundo de forma parecida ... até os sonhos e os trilhos percorridos para os alcançar, foram formalmente próximos.
Portanto, não será estranho que as nossas conversas sejam idênticas, as preocupações também, as angústias e as incertezas idem, até as sensibilidades se tornaram indiferenciadas.
As doenças, as limitações de natureza física ( mas não só ), que diariamente nos vão surpreendendo, as dificuldades materiais que indistintamente se experienciam fruto da sociedade e dos tempos que atravessamos, a falta de paz com a conjuntura sócio-política universal que nos rodeia, a insegurança e as incertezas que diariamente nos surpreendem ... em suma, o dia de amanhã ... ponteiam as nossas conversas, assombram os nossos sonos.
Os filhos quase sempre estão longe, física e emocionalmente muitas vezes.  A vida corrida, exigente, de competição, com valores e interesses diversificados já bem distintos dos nossos ( afinal, outra geração, outra visão e foco ), não lhes deixa folga, disponibilidade ou mesmo vontade para se fazerem presentes.

Nós, os do costume, já nos rimos às vezes, porque na verdade, andando andando, e reclamando, ainda assim lá vamos parar às doenças, lá vamos parar à solidão, ao isolamento, à resistência a sairmos de casa, de convivermos, de combinarmos programas.  Falta de paciência para ouvir, falta de complacência para entender e aceitar ... intolerância mesmo...
Antes ficar em casa, o telefonema amanhã se devolve, o chá fica para outro dia ... Saturação mesmo ! "Pachorra", nenhuma !

E vive-se, vive-se muito do que era, como era, como foi, o que foi, nos registos do passado.  Revisita-se vezes sem conta esta data, este acontecimento, estes dias ... num saudosismo que dói, que objectivamente amachuca, pois nos flashes que nos descem, o cenário está lá, apenas nós hoje somos apenas meros comediantes duma peça cujo pano já fechou ...
E fica estranho. É uma brutal sensação de desconforto ...

Hoje estou melancólica, ou melhor, mais melancólica.
Talvez o dia ... talvez o telefonema ou a tentativa de chamada a uma grande amiga com demência profunda, com quem já não consegui trocar mais que duas ou três palavras ... talvez um livro fantástico que estou a ler ... talvez ... talvez tudo isto e apenas isto, me tenha encapsulado no silêncio que acabou a envolver-me nesta tarde cinzenta e chuvosa.

Anamar

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

" OUTRA VEZ NATAL ... "

 


São pouco mais de quatro horas e a noite espreita.  O dia fechou completamente e até já chove lá fora.
As gaivotas recolheram.  Andava aqui por cima um bando em desnorte, rodopiando na aragem, como se sem rumo estivesse. Ouviam-se claramente os gritos que emitem ... não sei interpretá-los.  
Uma coisa é certa, parece terem recuado da orla marítima, prenúncio de tempestade.  Ou não seja verdade que "gaivotas em terra" sempre denunciem borrasca lá longe...
A meteorologia bem a sinaliza.  Parece que as próximas anunciadas chuvas que aí vêm, se devem à aproximação de "rios atmosféricos", uma nomenclatura recente, creio eu.
Pelo menos tem sido nestes últimos tempos que esta "novidade climatérica" surgiu no nosso léxico.  Antes, ou eu andei distraída, ou ainda não tinha dado por tal, na linguagem comum ... 

Entretanto é quase Natal.  Novembro, o "tal" mês para mim, encerra as portas já amanhã.

De ano para ano, esta quadra mais me cansa.  Aliás os únicos Natais que recordo com doçura e alegria foram os Natais da minha infância, aqueles que eram vividos com a família nuclear ainda intocada, em casa dos meus avós.  Até aos meus treze anos sempre esta quadra era passada no Alentejo, na casa grande, com pais, avós, tios, primos ... enfim, todos para quem estes dias de lazer eram pretexto para uma confraternização que reunia até os que lá não viviam.
Morávamos então em Évora, a escassos trinta e cinco quilómetros de distância.  As aulas haviam terminado, estávamos em férias, o meu pai em período de balanço na firma, e como tal o trabalho que desenvolvia permitia que fosse feito naquela mesa baixinha, dentro da grande lareira de parede a parede, que ocupava o fundo da cozinha dos meus avós.
A seu lado, de manhã à noite ardia o madeiro imenso que vinha rebolando pelo quintal fora, já que não havia viva alma que pudesse arrastá-lo de outra forma.
O meu pai, cutucava o lume, mexia as brasas, usava incansavelmente o abanico, e consequentemente enchia-se de cinza da cabeça aos pés ...  Mas isso, que importava ? Era o preço do consolo que representava o calorzinho com que eram aquecidas as noites gélidas do Alentejo !
As chamas bruxuleavam e o seu luzeiro era cúmplice dum conforto inigualável.  Os chouriços, as linguiças e as morcelas, como roupas num varal, dependuravam-se por cima das nossas cabeças, num fumeiro que reunia os enchidos da matança anual.  
Ao jantar, numa mesa que aos meus olhos de criança parecia não ter fim, quase sempre era o perú a fazer as honras, enquanto que os doces de tradição, arroz doce, aletria, leite creme, bolo de buraco ... do que me lembro... completavam o cardápio.  Lá pela meia noite, depois da Missa do Galo, a carne de porco frita, as filhós, as azevias, os mexericos e a pinhoada, aguardavam-nos, feitos pelas mãos de quem não fora à igreja.´
E os cantares ao menino Jesus, soltavam-se das bocas de quem, com a barriguinha cheia, entrava na desgarrada.
E eram de uma paz e de uma cumplicidade os sentimentos que ali se partilhavam.  Contavam-se histórias, lembravam-se pessoas, ríamos, assinalávamos os faltosos e mesmo aqueles que noutra dimensão haveriam de estar a ver os que ainda tinham lugar cativo na mesa da consoada ...

Eu era uma menininha de seis, sete, dez anos ... pra quem, uma roupa nova para estrear, umas sombrinhas de chocolate, uns lápis da Regina, umas libras igualmente de chocolate, brilhando do ouro que fingiam, já estavam de bom tamanho e chegavam bem para na manhã seguinte me transbordarem  de alegria, quando já, de olhos arregalados, descia ao sapatinho ...
E era assim, não me lembro sequer de um livro ou um brinquedo, juro que não lembro !...

Há memórias que se nos colam à pele sem que façamos o mínimo esforço para tal.  Há outras que "deletamos" mesmo sem querer ... novamente não carecendo de qualquer vontade ...
Há momentos que ficam, com cheiro, som e cor para sempre. 
 
Eu ia com a minha avó à Missa do Galo.  Só as duas e o frio daquela noite gelada.  A Igreja da Saúde resplandecia com uma luz clara, onde a talha dourada reflectia a luz dos círios acesos. Cheirava a cera, lembro claramente que cheirava. O xaile da minha avó era macio, fofinho, tinha uma cor azulada escura como veludo.  A minha mão pequenina cabia nele na perfeição.  O lenço adamascado cobria-lhe a cabeça totalmente branca.
Os cânticos ressoavam , amplificados pela abóboda bem alta da Igreja e o Menino Jesus na toalhinha de linho era dado a beijar no fim da cerimónia.  
E era tão lindo aquele querubim róseo, de caracóis dourados !!!
Cá fora o céu estava escuro.  A vila tinha poucas luzes nas ruas e por isso a luz das estrelas piscava lá no alto.  E o ventinho, aquele sopro cortante que corria e nos gelava a ponta do nariz, lembrava que era Dezembro, que nos esperavam lá em casa as iguarias e as doçuras, o calor aconchegante do lume aceso, a magia da noite que havia de nos envolver, a união familiar, o afecto a pingar dos corações ... e que era Natal outra vez !...

Anamar

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

" VIAJAR ENTRE VIAGENS "

 


Parece uma coisa meio absurda ... Afinal, viajar entre viagens é o quê?

Já tive um post totalmente escrito, pronto a publicar, e eis que num passe inesperado de mágica, foi o mesmo "comido" pelas tecnologias que não domino o suficiente, das quais não me defendo e me exasperam profundamente !
Golpe rude para quem já anda a escrever tão pouco, tendo em conta que o que havia a explanar a propósito, sucumbiu no que fora escrito ...
Incapaz de refazer aproximadamente o texto elaborado, a fúria subsequente zerou-me toda a capacidade de o retomar.
Assim sendo, com algumas semanas de permeio vou hoje tentar deixar aqui, certamente apenas um simulacro da abordagem que havia feito, não mais !  Sempre assim sucede quando se perde qualquer coisa que até nos havia satisfeito razoavelmente ... Tudo o que se tente posteriormente, não atinge a fasquia desejada !

Ora bem, "viajar entre viagens" é o que normalmente mais faço, quando ao chegar de uma acabadinha de fazer e da qual venho invariavelmente sempre plena e feliz, recomeço da estaca zero, que é como quem diz, recomeço a pensar no próximo destino ...😁😁, que poderá pertencer simplesmente ao domínio  do  real  ou  ao  dos  sonhos ! O gozo  é  o  mesmo !... 😃
É um período de tempo, mais ou menos longo, dependendo dos condicionalismos, e em que tudo é permitido.
É um período de lazer absoluto, em que tanto posso pensar numa viagem futura com muitos dígitos, como numa mais modesta ... pela simples razão de que nesse timing, não existindo disponibilidade económica absoluta e obviamente nenhuma ... tudo se resume portanto a uma mera diversão.
Sonhar é gratuito, inventar também, "passear" pelas propostas tentadoras das agências, idem ... analisar, esquematizar, recolher informação sobre lugares apetecíveis, sem compromisso ... sempre me levam por aí fora, sem limites ou barreiras, a "viajar" sem sair do sofá.
Leio a propósito, busco a propósito, escolho, planeio, defino estratégias ... itinerários fascinantes, paisagens únicas, paragens aliciantes e irrepetíveis, melhor altura do ano... chego a analisar o clima mais propício para o efeito ...
Enfim ... divirto-me e deixo o espírito ir, ir, como aquela ave rumo ao horizonte ... E eu, com ele !...

Sou um espírito inquieto.  Sentir-me confinada a um espaço, a uma rotina, aos dias que se repetem, aos mesmos rostos, às mesmas conversas, à mesma realidade - afinal todos temos inevitavelmente as nossas - deixa-me neurótica, desanimada, entristece-me, cansa-me, satura-me.  
A vida vivida nas cidades, com os muros, as casas, o betão, sem escapatórias ou alternativas, os ruídos desinteressantes e fastidiosos como companhia, as casas encavalitadas em edifícios de gente maioritariamente desconhecida e indiferente, isola-nos, larga-nos mergulhados em nós mesmos, apenas em nós mesmos.
O casulo que acabamos por construir à nossa volta, creio que por defesa, porque na verdade os dias são vividos num mergulho doentio não aberto ao exterior, mas num vórtice concêntrico de silêncios e desinteresse, passa a ser um reduto estranho em que nos fechamos, e não mais ...
E nada disto nos dá saúde, sequer alegria.  Nada disto nos ilumina os dias, ainda que das janelas se perscrute um céu azul e se adivinhe um sol generoso lá fora ... Porque cá dentro as luzes vão sendo reduzidas e outonais ...

Lembro que o meu pai, viajante de profissão, qual pardalito de ramo em ramo, que não considerou nunca a hipótese de ficar em trabalho fixo na sede da firma ( apesar da mesma se sediar em Lisboa e esta ser a sua cidade de coração ), quando teve que parar mesmo ( passando a ir diariamente para o escritório resolver apenas questões contabilísticas, burocráticas e enfadonhas ), entristeceu, desinteressou-se gradualmente de viver, envelheceu, perdeu todo o gosto pela existência e passou simplesmente a arrastar-se, em cada dia que começava.
Parecia um prisioneiro sem cela, um pássaro de asas cortadas em gaiola aberta ... O seu olhar perdeu o brilho, ensimesmou, silenciou por dentro, começou aos poucos a cortar laços de comunicação à sua volta ... definhou e partiu, não muito tempo depois ...
Em suma, o meu pai deixou simplesmente, sequer, de poder "viajar entre viagens" ... e esse era o seu oxigénio ! 

Parece uma coisa meio absurda ... Neste momento acredito ser uma característica genética... talvez uma questão de sobrevivência !
A  interpretação  alternativa, é  que  não  estarei  bem  de posse das  minhas  faculdades  mentais ! ... 😁😁😁

Anamar

quinta-feira, 27 de julho de 2023

" UM OUTRO DIA ... A VIDA A RETOMAR O RUMO ... "


Hoje no "Dia dos Avós" ao que parece, a Teresa quis falar comigo em Face Time.
Já há algum tempo que não nos víamos, pois a mãe teve uns dias de paragem laboral, depois chegou o pai para o habitual período em Portugal, e com tudo isso, a Teresa não veio cá para casa.
Entretanto ocorreu o desenlace triste com o Chico, o gato bonacheirão que ela adorava e a quem podia fazer todo o rol de brincadeiras, festas e tudo o que lhe ocorresse, porque o Chico nunca soube o que eram garras ou dentes.
Agora, eu que sempre fui chamada de "avó dos gatos", já só coabito com o Jonas que sendo igualmente dócil e muito manso, é medroso, o que o torna arisco e distante.  A Teresa, o melhor que consegue é fazer-lhe uma festa fugidia quando ele passa por ela meio a correr, e esse facto, mesmo assim deixa-a exultante e eufórica.  "Avó, consegui dar uma festinha ao Jonas !"- diz-me feliz da vida.

Pois antes de falarmos o que quer que fosse, a Teresa tinha uma pergunta "séria" a fazer-me: queria saber se eu tinha feito o funeral ao Chico.
Não consigo descortinar qual o contexto mental em que na sua cabecinha se insere esta preocupação ...
Tentei desmistificar a questão, e garanti-lhe que tinha dado ao Chico tudo o que ele merecia, lhe tinha dado muitos beijinhos dela e lhe tinha dito que nós gostávamos muito dele.
A Teresa olhava p'ra mim com uma dificuldade imensa em conter as lágrimas que teimavam assomar-lhe aos olhos.  Estava, como costumamos dizer, "embaçada", entupida com a emoção que a tomava e quase a denunciava.
Perguntei-lhe : " Estás  triste,  meu  amor ?  " Que  sim ... ( só com a cabeça ).   "A  avó  também !"💔💔

Acho que lhe poderia ter dito muito mais, para a consolar, sei lá ... coisas do tipo "ele estava doente e agora já não sofre mais" ... ou, a imagem poética com que sempre reconfortamos uma criança na hora duma perda difícil : "foi para a estrelinha onde tu sabes que está a Bi e tu vais olhar para o céu à noite e descobrir, de certeza, a estrelinha mais brilhante que lá está.  É essa, tu já sabes ..."

A realidade e a dureza da vida, que sempre tentamos escamotear ... o sofrimento, que sempre tentamos poupar a quem amamos, também me bloqueou e emudeci.
Terão tempo por certo, para que a inocência seja perdida, e a idade adulta seguramente não os poupará dos escolhos que inevitavelmente terão que enfrentar.  E assim tentamos proteger como podemos, sobretudo as crianças.

Felizmente, facilmente o seu foco de atenção mudou.  
O  cão de que gosta muito e o gato preto também, diabético também ... o "gordo" como lhe chama ... que provavelmente será qualquer dia o novo desgosto da Teresa, pois a sua saúde é precária e a idade também já lhe pesa ... chamaram-lhe a atenção à chegada a casa.
O meu embaraço desfez-se, finalmente !

Por aqui, voltei-me de novo para Enya.  Já há tempos não escutava a sua música, ela que foi minha companheira em permanência, anos e anos.
Mas parece que Enya me está destinada quando busco conforto, interioridade, silêncio, cumplicidade.  Enya representa anos da minha vida, foi imagem de muitos momentos marcantes, e continuará por certo a sê-lo.
A sua voz liberta-me, apazigua-me, transporta-me a uma dimensão celestial, velada, ao silêncio e à penumbra dos claustros de uma catedral onde, no meio da loucura e da adversidade, nos reencontramos connosco mesmos !...

Anamar

terça-feira, 25 de julho de 2023

" O DAY AFTER ... "


O dia seguinte é o pior dia !
Acordar e perceber que nada daquilo foi um sonho mau, foi apenas um pesadelo que nos assombrou a noite, e que tudo o que julgámos ser verdade, o era de facto, e não se tratou simplesmente dum daqueles sustos que se desfaz em nada, quando finalmente abrimos os olhos e consciencializamos que um novo dia começou ... é alguma coisa duma dureza e duma crueldade sem tamanho !
Quando o torpor do sono nos abandona, e somos chamados a raciocinar, a reagir ... a voltar a viver com a realidade que nos cai em cima, aí sim, as forças objectivamente faltam e uma vontade louca de retroceder no tempo, toma conta do nosso espírito.

Depois duma noite de sono pesado induzido por uma droga qualquer tomada para que os olhos começassem a fechar, na renitência de se manterem abertos, acordei realmente vazia.  Vazia de esperança, vazia de vontade, vazia de vida. 
Fiquei quieta naquele limbo irreal duma realidade nova para lá daquela porta do quarto.  O silêncio era total, nem o Jonas nem o Chico vieram miar-me à cama, com uma precisão matemática, parecendo terem um qualquer relógio biológico, certo ao minuto.
Todos os dias eu vociferava irritada, por não haver uma margenzinha de tolerância para a dorminhoca da casa.  Mas o horário da insulina era religiosamente respeitado ...

Hoje não havia insulina a ministrar, ontem também já não, e amanhã e depois e depois e depois ... e nunca mais será necessário fazê-lo, porque, de quem a recebia, já nada resta ...

Revi tudo outra vez.  Fiz rewind das últimas horas da minha vida, das nossas vidas.  
O Chico foi internado na madrugada de domingo, em hipoglicémia declarada.  Aceitou entrar na caixa transportadora, ainda os primeiros raios de sol não haviam despertado.
O Jonas, em cima da minha cama desfeita, acompanhou com o olhar, na penumbra do quarto, as voltas anormais a essa hora do dia ... mas nem se mexeu, resolveu ficar, talvez já sem entender.
Ao transpor a porta e aceder à escada onde o Chico, sempre que podia gostava de ir, escutei os seus miados baixinhos e doloridos.
Um mau pressentimento assolou-me ... Voltaria o Chico a transpor aquele umbral, de regresso à sua casa ?
Mas segui, decidida, enfrentando o que viesse, o que estivesse pra chegar.  Afinal, sem comer há vinte e quatro horas e numa prostração total em que nem os olhos abria, não poderia continuar.  
A noite fora vencida, apesar de haver momentos em que julguei que ele ia desistir.
Eu, nauseada, com vontade de vomitar, só ansiava conseguir vencer a estrada e chegar rapidamente às urgências.  O percurso fez-se em silêncio.  O Chico não reclamava, sequer reagia .
Depois da observação prévia, foi-me comunicado ser preciso colher sangue, urina para análises, e fazer uma ecografia abdominal para observação de órgãos vitais associados obviamente à patologia diabética instalada.

Uma longa e ansiosa espera na sala onde ninguém mais estava, num hospital vazio e sonolento àquela hora, aguardando a saída dos primeiros resultados, parecia não terminar nunca.
Finalmente o Chico voltou a ser trazido para junto de mim, mas já com um colar isabelino no pescoço e as patas anteriores enfaixadas para a fixação de cateter com acesso.  
O médico anunciou que já viria falar comigo.
Sem posição e logicamente impaciente e em desconforto, o Chico procurava aninhar-se para deitar a cabeça na mantinha que cobria a transportadora.  Eu metia os dedos por entre as grades da porta e falava-lhe  baixinho ...  "É a  dona ... está  aqui  a  dona.  Não  tenhas  medo !"...
Finalmente chegou o veredito: o Chico tinha as análises totalmente alteradas. Uma glucose a menos de metade do normal, potássio mais do dobro, creatinina e toda uma série de parâmetros descontrolados.  Eu já nem ouvia as explicações do médico, só retive "tem que ficar internado, tem que ficar internado, tem que ficar internado ..."- uma espécie de ribombar de trovão nos meus ouvidos.
"Vamos tentar estabilizá-lo ; através do soro vamos fazer-lhe um choque de glucose, imediatamente. Dos resultados do estudo ecográfico ainda não há notícias.  É a médica ecografista que os fornece e provavelmente só amanhã".

Regressei a casa.  Do trajecto lembro pouco. Sentia-me um zombie. Uma sensação de frio, de solidão e de medo tolhiam-me.  Mas vim e cheguei a casa.
Comi uma torrada e um café e fui caminhar.  Precisava esvaziar a cabeça, se pudesse, deixar de pensar.
O que sentiria o Chico por lá ?
Notícias mais concretas, tê-las-ia ontem, segunda-feira, pela hora de almoço.

A noite foi de "apagão", pois a anterior tinha sido em claro, e aguardei ansiosa as informações que a médica me daria.
Por volta das duas da tarde, o telefone tocou e lembro-me de ouvir a médica dizer : "Venho dar-lhe notícias do seu príncipe.  Conseguimos estabilizá-lo e já trouxemos a glicose e o potássio a valores normais ( não sei se outros valores foram referidos ), mas não tenho boas notícias a dar-lhe.  O estudo ecográfico mostra um pâncreas alterado, o que indicia uma pancreatite e os rins, sobretudo um deles ( também já não sei qual ), mostrando sinais de falência.
Isto indica termos um animal numa situação muito grave que terá que ficar em internamento por tempo indeterminado e carecendo de vigilância permanente e sem qualquer qualidade de vida.  Não esqueçamos que tudo isto é potenciado pela diabetes de que sofre.
Portanto, de acordo com a equipa médica, deixamos e acatamos inteiramente o que venha a decidir !"

Sentia-me perdida, como se uma violenta paulada me tivesse atingido em cheio.  Uma decisão hedionda que me cabia agora tomar. 
Não podia ser egoísta e permitir que o meu companheiro de tantos anos continuasse limitado e a sofrer. Afinal eu defendo a eutanásia, e tenho esperança que também para o ser humano, lá haveremos de chegar.
Mas decidir, dizer "é agora", retirem-lhe o último sopro de vida, chegou a hora para o Chico ... é duma violência atroz, que infelizmente muitos de nós já experimentámos.  Eu própria já passei por vários destes momentos, e lembro cada um deles como a ante-câmara dos horrores ...

Mas havia que seguir adiante.  Voltei ao hospital e resolvi.  
Por ele, por mim, por todos nós que com ele privámos e que tanto o amámos, que com o maior amor e carinho possíveis, chegara mesmo a hora ...
Embrulhado numa mantinha, o Chico esteve no meu cólo, numa sala privada, alguns minutos só nossos.  Falei-lhe bem baixinho, falei-lhe do Jonas, da Teresa que o adorava, disse-lhe como a nossa casa, agora lá longe, ficaria vazia, triste e escura ... pedi-lhe que me perdoasse, disse-lhe como o amei, registei-lhe o olhar em meia dúzia de fotografias que farão parte do meu espólio enquanto viver ...
E deixei-o ir ... 
Será que me sentiu até ao fim ?  Será que confiou que eu o protegeria ... ou terá sentido que o traí ?

E hoje ... bom, hoje é o "day after", o tal dia dos horrores. O tal dia em que nem acredito ... o tal dia em que o espaço é demais, o vazio se instalou e a luz se apagou...
É tudo isto o que eu sinto, sem empolamentos, sem preocupação de medida ou proporcionalidade, sem receio que me achem exagerada, tonta ou piegas ...
Afinal, foi "alguém" muito meu que me deixou e partiu ...

Mas juro que ainda há pouco o vi passar por aqui ... 

Anamar

segunda-feira, 24 de julho de 2023

" MAIS UMA LUZ LÁ POR CIMA ... "



                                                                2012  -  24 Julho 2023


Primeiro são os olhos.  Sempre primeiro são os olhos e a ternura que passavam ao olhar-me. 
Até ao fim ...
Depois, as mãos.  As mãos são sábias.  Não precisam de voz p'ra exprimir o que sentem. As mãos ou as patas, tanto faz.  E era assim ... ele não saciava nunca a ânsia de um afago, quando nos puxava pelo braço, uma e outra vez. 
Era uma festa, e outra, e mais outra ... porque não sabia dizer "mais"... não aceitava que eu lhe dissesse "chega" ... e ronronava deliciado...
Finalmente vem o cheiro, o nosso cheiro que sempre buscam nos nossos lugares, nas nossas coisas, nos espaços que deixámos vazios ...
O cheiro que nos identifica, o cheiro que nos deixava ao roçar-se ... no cumprimento, na marca ... na saudação, e também na ternura e no reconhecimento .

Vazio está tudo agora.  Profundamente vazio ... pesado de vazio ...
Já não me vens esperar à porta, sempre com ar de aceitação e alegria, mesmo quando eu havia dito "a dona já vem ... espera só um bocadinho !"... e esse bocadinho tinha sido uma semana, dez dias ...
Não importava.  Eu já estava de novo, para passares pelas brasas chegadinho ao meu corpo, quando dividíamos o enfado da televisão.
Já não corres atrás da vassoura, ou me pedes água no poliban.  As gotinhas, uma a uma, eram um fascínio para um gato brincalhão ... 
E os teus passeios à escada, quando a porta se abria e a tua curiosidade te convidava à liberdade do lado de fora, também já não vão mais repetir-se...
Estou aqui a pensar se te despediste do Jonas, que agora anda meio perdido à tua procura, por certo sem perceber grande coisa. 
Da Teresa, que te adorava, sei que não te despediste.  Afinal, não houve tempo.  Ela passará a olhar-te, por cada noite, lá longe, na estrelinha ... a mais brilhante que o céu agora tiver !...
A Teresa, afinal, já vai coleccionando algumas "estrelinhas" lá por cima ... infelizmente ...
A esta hora, com o calor da tarde, estarias aqui no cantinho da secretária, deitado preguiçosamente, bem relaxado no sono profundo que fazias com gosto.  Eu, no computador, escrevia, ouvia música, ou simplesmente vagueava por aí ...
Percebia-se claramente que já sonhavas, e só contemporizavas em abrir um olho e arrebitares as orelhas, quando o teu nome era proferido bem mais alto ... "Chico, oh Chico" ... e era assim todos os dias ! 
Olho para lá e não te encontro. Só o tal vazio pesado e um silêncio tonitruante que me trespassa a alma ! 

Os teus ritmos, as rotinas, tudo aquilo que nos desenha a vida, todos os sinais, as memórias ... o que fizemos, dissemos, com que marcámos as nossas existências e as de todos os que se cruzaram connosco, são de facto o que fica, sempre ficará, e constroem as nossas histórias ... Até um dia ...

Partilhámos um pedaço delas, Chico.  As nossas estradas são feitas de parcelas, de pedaços indeléveis, pelo bem e pelo mal.  Acompanhámo-nos, dividimo-nos, "dialogámos" ... até chorei contigo, algumas vezes, em marés mais alterosas. 
Eras o meu gato XXL ... como eu dizia e como o eras, no princípio, antes da maldita doença te devastar.
Hoje, pelas quatro da tarde, no meu cólo adormeceste rumo a outra dimensão.  E eu fiquei mais pobre, muito mais pobre, porque um imenso pedaço de mim, do meu coração e da minha alma, também foi contigo.
Contei-te uma história. Falei-te do Jonas, da Teresa ... de mim ... e sussurrei-te que era injusto deixares-me por aqui ... tremenda deslealdade ... nem parece teu, Chico !!
  
Um dia talvez nos encontremos.  Acredito que vocês todos, os que foram adiante, hão-de esperar pelos que ficaram um pouco para trás.  Até é uma ideia esperançosa que me agrada e ajuda, nesta hora em que tudo é triste e escuro à minha volta ...
Havemos de fazer uma grande festa e eu prometo-te levar os "baguinhos" gulosos com que te aliciava quando queria que viesses atrás de mim ...  

Adeus Chico, obrigada por teres iluminado o meu caminho.  Sem ti, nunca nada mais vai ser igual !
Onde estarás agora ?  Será que nos vês daí donde estás ?  Já estou cheia de saudades ...
Descansa em paz !

Anamar

terça-feira, 7 de março de 2023

" NUNCA DIGA ..."




Do baú das memórias do Facebook, hoje, dia 4 de Março "saltou-me" uma dolorosa recordação de há dez anos atrás.  Nesse dia também cinzento e triste, partiu da minha vida uma amiga que partilhou comigo a sua, talvez por uns treze ou catorze anos.  Uma amiga muito especial, com quatro patas, olhar manso, doçura infinita ... companheira, mais que muitos, em momentos particularmente difíceis com que me cruzava então.
A Rita que me veio parar a casa de forma enviesada e inesperada, foi o animal que mais me marcou para todo o sempre.  Na realidade tratava-se de um gato, e chegou com a baralhação de sexo, provinda da residência universitária que a havia acolhido, onde, entregue exclusivamente a rapazes traquinas e irresponsáveis, era tida como um mero brinquedo para gáudio das suas brincadeiras e travessuras, quase sempre meio atoleimadas.  A Rita vivia apavorada, metida num roupeiro, seu reduto preferido de segurança, até que acabou vindo viver comigo.

E comigo ficou, fazendo companhia ao Óscar, outro bichano, esse mauzinho, que nunca nos poupava duma valente arranhadela ou dentada, quando muito bem lhe comprazia.  
Bem ao contrário, a Rita era o cúmulo da doçura, era a companhia sempre presente, era a partilha de amor sempre disponível.  Tinha a ternura de um bebé em forma de gato !
Contudo sempre tímida, medrosa, assustada, com as marcas deixadas de um início de vida problemático, ela que já havia sido encontrada no motor de um carro, em pleno Inverno.
Com um destino figuradamente pouco promissor, a Rita usufruiria finalmente duma existência em paz, quando veio viver em minha casa.
Talvez por tudo isso e pelas memórias pregressas, sempre foi um gato assustadiço, hesitante, inseguro. Só que também, duma humildade, duma dedicação, duma entrega sem limites a todos aqueles com quem vivia, demonstrando assim uma gratidão ainda maior, se possível, que a gratidão e o afecto incondicional e desinteressado que os bichos sempre dedicam a quem com eles convive.

Por tudo isto a Rita foi um marco afectivo e emocional indelével para todo o sempre na minha existência !
Partiu em 2013.  Acabaram de passar dez anos exactamente, quando pelas cinco da tarde desse 4 de Março ela se tornou mais uma estrelinha no meu firmamento ...

Estrelinhas que foram sírios nos nossos caminhos enquanto por aqui nos acompanharam ... estrelinhas que se tornaram memórias doces quando o destino delas se apropriou ...
Estrelinhas ... é assim que procuramos amenizar a dor da sua ausência.  É essa a imagem ternurenta com que respondemos às crianças quando interrogados sobre o significado da morte, da ausência, da partida dos seres que nos foram tão queridos e que nunca mais sairão das nossas histórias ...

Jurara não ter mais gatos.  Jurara atravessar a dor sofrida com uma incapacidade futura de voltar a ter outra Rita na minha vida.  Quase sempre juramos !  O vazio deixado mata-nos tanto por dentro, que parece secar qualquer futura possibilidade de nos darmos outra vez.  A ausência sentida no luto experimentado, remete-nos para uma negação que parece insuperável ...
"Acabando esta geração, não voltarei a ter mais gatos " - verbalizei há dias à veterinária, quando o Chico, aguardava a "sentença" que o esperava - uma diabetes crónica com valores de açúcar muitíssimo elevados, e obviamente uma previsão anunciada de um futuro ameaçadoramente precário, pela frente.
"Não diga isso !"  foi a resposta.

Neste momento, não sei.  Não sei se virei a ser capaz outra vez de reescrever uma nova história, não sei se serei capaz de iniciar mais um novo percurso ... de voltar a atravessar tudo aquilo que, nunca esquecido, já me ficou para trás, com todos os animais que me atravessaram a vida.
O Óscar, a Rita, o Gaspar, o Nico, a Dalila, a Nicas, a Concha ... por todos eles já chorei lágrimas de sangue, por todos eles o meu coração se espremeu de dor ... com todos eles, também eu morri um bocadinho por dentro ...


Anamar

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

" QUANDO AS AZEDAS VOLTAREM ... "

 


E elas já aí estão ! 
Pintalgam a mata atestando a continuidade da vida, a resiliência dos seres.  Num ano totalmente atípico como o estão a ser cada vez mais, mercê da anormalidade das condições atmosféricas, fruto claro de alterações climáticas que já não têm disfarce possível, tudo na natureza se transformou numa conversa de surdos, com árvores a darem frutos mas já a florirem de novo, com a Primavera a ocupar os espaços de um Inverno que ainda não começou sequer ... enfim, com a Natureza a baralhar-se no meio desta baralhada toda, de facto !

Deveríamos estar às lareiras, deveríamos vestir lãs quentinhas, golas altas quiçá ... e não, como continua a ver-se, gente com mangas curtas na rua, sem um resquício de sacrifício ou penitência, porque efectivamente não está frio nenhum !  

E por isso, e à conta disso, as azedas voltaram.
Os campos bem verdinhos, com todos os arbustos rebentados já, beneficiando da amenidade térmica que persiste e da quantidade incontrolável de água que tem caído, propiciaram que este Natal que se avizinha tenha mais cara de Páscoa do que de um Dezembro que o calendário exigiria ...
E é lindo verem-se cobertos dos verdes mesclados de todos os cambiantes, e salpicados do amarelo viçoso da promessa primaveril que se antecipa !
Não fora a lama, e seria absolutamente convidativo perambular pelos caminhos, agora desertos, da mata. 
Com os céus plúmbeos, ameaçando mais chuva, a penumbra descida e o silêncio que impera, são para mim preferenciais companheiros de caminhadas.  Acresce que quase ninguém se propõe ... e por isso, as veredas desertas, o silêncio levemente entrecortado por trinados meio dormentes, ainda de alguma passarada que ficou ou passa mesmo por aqui a próxima época, criam uma ambiência fantástica, de paz e recolhimento ...  não fora a lama ...

Bom, detesto esta época.  Não sou única, cada vez mais, muita gente por aqui mo transmite.  Se calhar é coisa de estados de espírito para quem nem a profusão das luzes e das cores, nem a magia que parecia envolver esta quadra, conseguem recriar ainda, o sortilégio de que estes dias se revestiam.
Se calhar é coisa de idade, de realismo, de pragmatismo ... de frieza ou mesmo de incapacidade já, de "acreditarmos no pai Natal", nestes tempos que vivemos.
Não sei !

Lembro que neste primeiro dia de férias natalícias se rumava à Beira.  De armas e bagagens, com filhas, mãe, cão e gatos aí íamos nós demandando umas férias merecidas, findo o primeiro período escolar.
A Beira oferecia-nos o friozinho esperado, os campos livres e cheirosos, a lareira acesa de manhã à noite ... e quase sempre varando a noite mesmo, as luzes que aconchegavam, com a doçura da semi-obscuridade, a sala de pedra e madeira ...  
A Beira oferecia-nos os vizinhos que o eram apenas intermitentemente quando a casa abria portas e janelas, e franqueava a entrada de quem aparecia.      
A Beira oferecia-nos o musgo na cesta da avó, o pinheiro colhido no pinhal ( "jeitozinho ... nem grande nem pequeno " ), o presépio que haveria de armar-se ... as pequeninas luzes a piscarem, e o azevinho e as pernadas da cameleira vindas do jardim ... 
Enfim, a Beira prometia e oferecia a despreocupação da garotada, o descompromisso de nada fazer, a displicência da inexistência de horários ... o gorgolejo das águas do rio quase sempre impetuosas entremeio às fragas, ao fundo das terras ...
E o cheiro, o cheirinho que persiste até hoje na minha memória, da caruma, da terra molhada, do fumo que evolando das chaminés, lembrava que os fornos já coziam ... o pão, a broa, os bolos da consoada, as iguarias que viriam para a mesa daí a poucos dias ...
E como era doce e aconchegante, quando à saída da porta, com os cachecóis e os casacos de golas levantadas e bolsos em prontidão, o bafo da respiração se transformava  num "fuminho" simpático à nossa frente ...
"Mãe, acenda o lume ! "
E o fogo subia, e o calor entranhava-se ... as luzes da Árvore de Natal cantavam ... as crianças gargalhavam só porque sim ... e todos, ainda todos então, comungavam da partilha de ser outra vez Natal !!!





Anamar 

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

" APENAS MEMÓRIAS ..."


Perguntaram-me se eu estava a ouvir música ... não estava, agora já estou.  
Richard Clayderman num CD que ganhei de presente da minha mãe no recuado Natal de 2001, toca na aparelhagem ao meu lado ...
São temas imortais, transversais aos tempos e às vidas ... melodias calmas, dolentes, embaladoras, como gosto de ouvir quando escrevo.
Temas doces, preguiçosos, envolventes ... como o dia lá fora, indefinido entre o sol e a chuva que de quando em vez despenca convicta, quando uma nuvem mais decidida se atreve.

Estou triste, profundamente triste ... não sei porquê.  As lágrimas estão mesmo aqui por detrás dos olhos húmidos ... Incompreensivelmente, talvez.
Nada motiva ou justifica este meu estado de alma.  Nenhum tormento me inquieta, nenhuma preocupação ou angústia acrescida me toma, nesta tarde beirando o Outono.  Talvez seja apenas este recolhimento que ele sempre me traz, este abandono estranho, esta sensação de perda, de ausência ... de lugares vazios ...
Fiz a caminhada, aproveitando a promessa de que não choveria entretanto.  A mata estava totalmente vazia de gente. Não cruzei uma só pessoa pelas veredas silenciosas.  Apenas os pássaros continuavam as rotinas  habituais.  Os patos nos tanques, uma ou outra borboleta esquiva, um ou outro animal residente, que mais se pressentia do que se avistava, eram os sinais de vida ... além do gorgolejar da ribeira, agora com o caudal bem mais abundante depois da intempérie dos últimos dias.
Adoro a mata exactamente assim.  A Natureza e eu, num solilóquio abençoado ! 

Mas eu dizia que experimento um misto de sentimentos tão herméticos que os não sei explicar, um desconforto interior, um coração espremidinho dentro do peito, onde parece não caber ... pesado, que só ele ... e uma saudade também, não concretizada, sem rosto ou nome.
Mas uma saudade que dói.  Objectivamente dói, como se fosse um espinho impiedoso a enterrar-se, cada vez mais fundo. Acho que se conseguisse chorar, as comportas deixariam escorrer esta avalanche que me tira o ar, e um almejado alívio atenuaria esta angústia que me maltrata.

"Viajo" pelos anos que foram, pelas pessoas que passaram, pelos sonhos que se sonharam, pelos projectos que se desenharam, pela esperança que iluminava os caminhos da vida ... 
"Viajo" pelos rabiscos que fui escrevendo na junção de letras que formavam palavras, construíam vontades, decidiam rumos, faziam escolhas, arquitectavam ideias ...
"Viajo" pela trilha que ficou para trás ... Vejo-me e vejo todos os que, de esquinas e travessas se me juntaram no percurso, me enriqueceram a marcha, me desvendaram paisagens que eu nem sabia que existiam ... Todos os que me engrossaram a súmula dos dias.  
Estiveram comigo uns tempos, percorreram comigo pedaços da existência, dividimos estórias das nossas histórias ... e depois, porque é assim que sempre é, foram ficando parados na sombra protectora das árvores  da estrada, foram saindo para caminhos alternativos, de mansinho, sem aviso ou alarde foram-me deixando aos poucos mais sozinha, no cumprimento do destinado ...
E foram vozes, rostos, corações que partiram e se diluíram na distância.  Foram momentos, instantes saboreados, trocados, divididos, guardados ... Foram coisas tão incríveis e irrepetíveis que até nem sei se foram reais de verdade !

E depois, como tudo é efémero, tudo é precário, tudo verga sempre sob o peso inelutável do tempo ou pelo cansaço da rota, fica-nos apenas o buraco vazio cravado no coração, os braços órfãos das ramadas  de flores que havíamos colhido ... e um horizonte cada vez mais curto em que as cores do arco-íris, de tão esbatidas, já não iluminam ...

... e memórias ... apenas memórias ...

Anamar

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

" É SEMPRE ASSIM..."



Setembro chega e uma ténue película de nostalgia parece agarrar-se a tudo que me rodeia.
O sol perdeu a virilidade dos meses anteriores, brilha morno e adocicado e o Outono já espreita no virar de mais alguns dias.
É a época do ano em que uma sonolência mansa parece descer sobre a Terra, em que mais experimento uma solidão corrosiva, mas disfarçada.  O ano lectivo acena, a mexida entusiasta dos que irão começar, anuncia-se.  As férias inevitavelmente terminaram e já não teria a mesma graça assistir-se ao esvaziar dos areais ... Tudo isso ficará aguardando novo ano, novo Verão, novos sonhos e projectos.

Sinto-me mais do que em qualquer outro momento, na rectaguarda da vida.  Como se já só assistisse a um jogo, da arqui-bancada, sem grandes sobressaltos, euforias ou aplausos. Sem participação ou interveniência ... pouco mais que atenta mas irrelevante espectadora ...
É como se, duma esquina qualquer eu ficasse apenas acenando aos meus netos que demandam as escolas, os livros, os amigos ... a Vida !  Vendo-os ir com os rostos esperançosos, com a alegria rodopiando-lhes os olhos, com o gargalhar da juventude inundando-lhes os corações ...
E é estranho ... como se eu estivesse sobrando num filme a desenrolar-se, como se eu já não pertencesse bem a este acto, da peça que se vai desfocando em distanciamento ...

Énya toca ao meu lado.  Quem mais tão bem traduziria o que sinto ?... a mesma nostalgia ...

O meu ano sempre se partia por Setembro.  Não se dividia pelo fim de Dezembro ou pelo começo de Janeiro. Não ! O ano era agora que começava à séria.  Era agora que a urgência, a afobação, os preparativos inadiáveis e meticulosamente calculados, se faziam.  Era agora que o "frisson" do recomeço fervilhava dentro de mim.  Era agora, tal como as crianças demandam a busca dos novos materiais, os livros, os cadernos, os estojos, os lápis e as canetas, que também eu recomeçava tudo, outra vez, quase com o "cheiro" a tinta fresca retocando-me os miolos e a ponta inquieta dos dedos !...
E esse borbulhar intempestuoso e imparável era isso mesmo ... o borbulhar da Vida a chamar-me à equipa, novamente ... com tanto tempo diante de mim, parecia ... e uma estrada tão longa quanto o afastamento do horizonte, lá longe ...

Tudo isto flui como doença crónica, no sangue.  Como aquelas maleitas que volta e meia despertam duma letargia roçando o eterno. 
E por mais que eu pense o coração adormecido, lá vira a folha do calendário, e lá vem Setembro a sorrir, desmentindo a insensibilidade e o esquecimento acreditado ... Como se pudesse !...

Os livros ainda repousam silenciosamente nas prateleiras, quase a tocarem-me.  As canetas secas ainda estão nos estojos de fechinho corrido, dentro da pasta que já se encarquilhou um pouco, como velha desocupada e desleixada ... dormindo a um canto.
Pareço ter um respeito inviolável, um respeito religioso que sacraliza tudo o que foi e que ainda paira por aqui ... 
Porquê ? - pergunto-me.  Porque não dou um fim ou destino a tudo isto, por desnecessário ?
Não sei.  Sei que adio, sei que recuso, como se cometesse um crime qualquer, como se recusasse fechar a última porta de um lugar que me foi caro e imprescindível ... como se com isso cortasse amarras a um cais distante, deixando o barco à deriva ...
Como se com tudo, eu perdesse o norte e o rumo, orfanizasse um pouco, esvaziasse, como se uma onda me varresse a alma ... e fosse ...

E foi apenas ontem ...

Anamar

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

" O TAL SÓTÃO ... "




Sensação estranha.  Muito estranha mesmo.  Uma sensação de circular por um espaço abandonado, escuro, desactivado, em que a poeira, a ausência de luz, a falta de circulação abundante de ar, o remete a um espaço meio moribundo.
Parece-me ter devassado um ambiente sonolento, ter entrado num sótão, numa cave, numa arrecadação pardacenta, bafienta e húmida ...

Tudo isto porquê ... pergunto-me ?  Porque experimento, aparentemente do nada, este surpreendente estado de alma ?
Percebo que uma série de coincidências ou situações meio paralelas convergiram para me fazer sentir assim :
uma amiga de há algum /razoável tempo, sem que contudo sejamos de contacto absolutamente estreito, "desapareceu-me" dos radares, inexplicavelmente, eliminando todas as tentativas de contacto através dos dois únicos números telefónicos que possuo, o dela própria e o da filha.  Não sei morada nem outra forma de aproximação, além da que tem funcionado entre nós.
O telefone estabelece a ligação, assume um estado de linha ocupada e desliga-se subitamente.
Trata-se duma pessoa com uma saúde frágil, sobretudo a mental, o que me acresce uma maior inquietação ainda ...

Também de uma familiar, aliás a única familiar que ainda tenho no Alentejo, já bem idosa e paciente de Alzheimer, nada sei, faz imenso tempo.  Sempre fomos como irmãs, no bem-querer.  Relações complicadas criadas por um filho, pessoa muito mal formada e inqualificável, inviabilizaram praticamente a comunicação existente.
A doença que lhe retirou toda e qualquer possibilidade de autonomia, cavou, por outro lado, um fosso inultrapassável e injusto entre nós as duas.  Assim, infrutíferas são as tentativas de contacto.  
Parece que já se fechou portanto também, a porta daquele lado ...

Hoje confrontei-me, como toda a gente, pela notícia do falecimento do Jô Soares. 
Vale o que vale, não era nada meu, nunca o vi sequer ao vivo e a cores ... contudo, este êxodo de figuras públicas que por isso, são sempre um pouco "nossas",  dado que atravessaram connosco uma época à qual também pertencemos, sempre me deixa com uma sensação desconfortável de orfandade.
Fizeram parte das nossas histórias, povoaram o nosso quotidiano, emolduraram duma ou de outra forma, as nossas realidades.  Habituámo-nos ao seu convívio ... e já foram tantas !!!
Por isso, parece que foi só mais um que fechou a porta e arrepiou caminho também ele ... apenas antecipando-se ... nada mais ...

Há pouco resolvi percorrer este meu espaço, acedendo a outros blogues e a outros conteúdos que de quando em vez gostava de seguir, em tempos idos.
Nada de muito exaustivo ... cinco ou seis blogues cuja leitura e conteúdos apreciava.
Pois bem, todos eles exibiam postagens que remontam a mais de cinco anos atrás ...
Não mais voltaram a ser mexidos !
A Covid rebentou de facto com tudo, e esta sensação de abandono reflecte bem o desinvestimento e a desmotivação dos seus autores.
De alguma forma, este é o sentimento que gradualmente tenho vindo a auscultar em mim própria, o que aliás se reflecte no tão pouco escrito nos últimos tempos.
Um dia destes, pressinto que encerrarei definitivamente o espaço que me acompanha há já catorze anos.

Relatei quatro situações que não sendo coincidentes me transmitem o mesmo tipo de sentimentos.  Uma sensação de portas a serem fechadas, uma sensação de ampulhetas a esvaziarem-se nas vidas, de silêncios e dormências a instalarem-se, de estradas com fim de linha a  chegarem-se mais e mais ...
Uma sensação de já não pertencer integralmente a isto por aqui, de o prato da balança  já  pesar  mais daquele  lado  que  deste ... de  qualquer  dia  já  ser  quase  somente  uma  estranha !...
Um desconforto de já não entender bem os valores, não saber já os códigos ou os requisitos p'ra viver com satisfação.  Um não saber já descodificar as linguagens e entender os sinais que me cercam ... Uma ausência crescente de sensação de pertença por cá ...
Uma falta de oxigénio, do "meu" oxigénio que me permita inspirar até bem ao fundo ...

E daí o cansaço, o desinteresse, a imperícia para viver dia após dia, como se na verdade eu esteja a mexer-me apenas no limbo de uma fronteira hermética e cerrada ...

Anamar

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

" DESABAFO "


Porque quem não se sente ...

Aquela que "foi a minha Escola" aniversariou no passado dia 17, comemorando o seu meio século de História !  Não é coisa pouca ...

Entrei na mesma, como professora, no seu segundo ano de vida, no ano de 1974.
Constituía ela então, a única oferta no âmbito escolar, aqui na Amadora.
Anteriormente o Liceu Nacional de Oeiras era a alternativa.  Eu própria o frequentei enquanto aluna.  Assim, o Liceu Nacional da Amadora concretizou portanto, o sonho e a necessidade de uma população discente, num concelho com uma dimensão demográfica esmagadora.

Deixei-o, para a aposentação, 36 anos passados de actividade docente, no ano de 2010.
Cheguei no verdor da juventude, carregando comigo uma pasta de sonhos, de projectos, de esperança, de vontade e com o ânimo e a coragem que caracterizam uma fase da vida em que tudo parece possível, por nisso acreditarmos.
Naquela que "foi a minha Escola", hoje a Escola Secundária da Amadora ( ESA ), passei portanto, os melhores anos da minha vida.  Mais tarde, nela, as minhas filhas cumpririam igualmente o seu percurso escolar.
Nela ensinei, nela aprendi, nela investi o melhor de mim, do melhor que sabia e do que fui capaz.  Em suma, nela, sobretudo cresci !  
Com a entrega e a dedicação a que a noção interiorizada da docência me impunha, nela desenvolvi um trabalho sério, honesto, continuado e isento.
Como destinatários prioritários, sempre os alunos ocuparam a minha determinação, preocupação e esforço.  Num espaço que além de pedagógico privilegiava o companheirismo, a partilha, a entreajuda ... em suma, o afecto, semeei e colhi até hoje, boas memórias, boas amizades, boas histórias recheando a minha própria História.
Mas porque o trabalho do magistério não se faz, nunca se faz sozinho, tive sempre ao meu lado companheiros, pares, colegas ... irmãos.
Nos 36 anos, na ESA, foram muitos e diversos aqueles com quem dividi trabalho, ansiedades, preocupações ... muitas alegrias, êxitos e também obviamente algumas frustrações.
Por isso, guardo até hoje, no coraçao, um punhado de amigos daqueles que nos enchem a alma, amigos de "valer a pena", que sempre presentes, me ajudaram a percorrer a estrada, que me deram a mão se o momento de queda era iminente, que me insuflaram ânimo se o cansaço começava a dar sinais.
E creio poder garantir que, grosso modo, este meu texto poderia ser escrito por qualquer um deles.

Lembro todos, desde os que ocupavam lugares de topo na hierarquia organizativa da Escola, a todos os que foram dividindo comigo, ano após ano, as diferentes tarefas que além da leccionação, nos cabia desempenhar.
Mas porque mais de metade da minha carreira foi desenvolvida no período nocturno, guardo obviamente um carinho muito especial, um apego de afecto e gratidão sentidos e uma memória bem viva dos que, hoje também na aposentação, mais perto ou mais longe fisicamente, não posso esquecer !

Este meu texto não pretende de nenhuma forma ser, nem uma prova documental da minha actividade profissional, menos ainda a apologia narcísica da minha pessoa.
Não ! Nada disso encaixaria no meu perfil personalístico.

Só que ...
aquela que "foi a minha Escola" fez, como dizia, 50 anos de existência ao serviço de toda uma comunidade educativa, geração após geração.
E para promover a efeméride, uma comissão organizadora decidiu e bem, criar um programa criterioso e diversificado de eventos, para a festejar.
Entre outros, a montagem de uma exposição documental do percurso de vida da Escola, patente nas próprias instalações, o descerrar de uma lápide assinalando a data, pelas mãos da presidente da edilidade Dra. Carla Tavares ( ela que também foi aluna da Escola, quando jovem ), assim como o espectáculo " 50 anos da ESA ao serviço da Educação ", com lugar nos Recreios da Amadora e com entrada limitada a convites.

A divulgação deste exaustivo programa das festividades foi contudo restringido, lamentavelmente, à rede social FB ( que obviamente dispensa demais apresentações em termos de idoneidade, categoria e credibilidade ).
Acresce que a generalidade das pessoas ( professores e empregados ) que, já não estando no activo, não estavam em contacto directo com a Escola, não mereceram portanto nenhum outro tipo de informação privilegiada sobre o mesmo, e sem que tal pareça ter constituído alguma preocupação ou acautelamento por parte dos responsáveis.
Só podemos pois lamentar, que tão irresponsavelmente tenhamos sido tão facilmente dispensados e descartados !
Também questiono o critério que terá presidido por exemplo, à distribuição dos convites para o acesso ao espectáculo nos Recreios da Amadora.  Quais foram os "filhos" e quais os "enteados" ?  A quem couberam os "bilhetes premiados" ?  E porquê ?...

Argumenta-se com a Covid e suas restrições.  Não sejamos ingénuos.  Ela explica muita coisa mas não justifica tudo ... escusamos de escamotear responsabilidades !
Penso que o sentimento que nos envolve neste momento, é genericamente de mágoa, tristeza, desilusão e mesmo de indignação !
Afinal aquela que "foi a minha Escola", já não parece ser a "minha Escola" !!!

Não vou alongar mais este meu desabafo.  
Termino afirmando apenas que não me senti nada confortável por ( espero que com razoável antecipação ) parecer ter integrado já, o obituário da Escola !...

É que ... um Homem apenas morre quando é esquecido !!!

Anamar