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sexta-feira, 26 de setembro de 2025

" PEDAÇOS ... "


Os dias amarelaram. No céu, de um azul pouco convincente, fraquinho, fraquinho, nuvens esparsas vão seguindo viagem. Um vento desabrido pavoneia-se por aqui e arrepia-nos o corpo.  O Outono assoma.  Hoje já cá está.
Num banco da praceta, alguém que tem como protecção apenas um cobertor, aninhou-se.  Visto cá de cima é uma espécie de embrulho que alguém ali tivesse deixado.  Talvez já se prepare para a noite que chega a passos largos apesar da temperatura o não aconselhar.

Esta época do ano, estes dias melancólicos e de silêncio que parecem esconder uma sonolência triste da natureza, não me fazem bem nenhum.  Parece que tudo deitou para dormir.  Parece que tudo fechou os estores para uma hibernação de desamparo.
Do Outono eu adoro as cores da natureza.  A "caça" aos laranjas, amarelos, castanhos e  avermelhados ou até mesmo o início da queda da folhagem das árvores e arbustos que já completaram o ciclo anual de vida, leva-me a procurar nos programas turísticos, lugares por esta Europa fora onde os encontrasse no intimismo de paisagens inesquecíveis. E sonhar ...
Recordo imagens gravadas na mente, há muitos anos, num Setembro norueguês, onde a simplicidade da vida em meio a uma natureza doce e aconchegante, chamava a passeios pelos campos em busca das flores silvestres sazonais e das bagas dos frutos vermelhos a oferecerem-se às compotas da época ...
E era muito bonito mesmo, a paz que se respirava, os cheiros que nos impregnavam a alma, aquela pacatez no meio da floresta ... os abetos e as coníferas duma forma geral, ainda verdes, erectos na espera das primeiras neves que não demora, os enfeitariam ...

Estou a atravessar uma fase da vida em que a saturação do dia a dia e a vida numa cidade horrível, totalmente descaracterizada, sem absolutamente nada de interessante e que nada tem de semelhante com tempos idos, me deprimem ainda mais.
Com uma frequência nas ruas pouco recomendável, sem um espaço verde de valer a pena, sem uma esplanada de um café para ameno cavaqueio ... nada, absolutamente nada ... cada vez mais e mais me isolo em casa, 
A solução seria sair, ir embora, procurar outros espaços, o que só por si já limita qualquer interesse ou entusiasmo de o fazer. Ter que pegar no carro, fazer-me ao trânsito, à confusão das gentes, retiram-me qualquer vontade que possa existir.
Neste momento anseio apenas por paz, silêncio, natureza ... Neste momento adoraria viver fora daqui.
Sinto-me a adoecer ... a sério, sinto-me a ficar com a saúde mental seriamente afectada.

Este post, como o nome indica, aborda apenas pedaços de mim, nada de relevante que acrescente ou retire nada a ninguém ...
Afinal não há muita escolha no registo emocional para as pessoas que, como eu,  estando já profissionalmente libertas, pertencendo a uma determinada faixa etária, e em que as opções lúdicas propostas são pouco ou nada aliciantes ... além de escrever banalidades ou registos vazios de vida, pouco ou nada interessantes !
Não sei ou me interessa tricotar, nem tenho prendas domésticas, fujo das imagens aterrorizantes das guerras que grassam e dizimam os povos, fujo das notícias catastróficas de desgraças naturais quase sempre despoletadas pelas alterações climáticas trazidas pela mão do Homem, odeio as guerras políticas que devastam os países, os continentes, a nossa sanidade mental ... vou lendo, pouco, pela dificuldade de concentração, descreio cada vez mais no ser humano e nas suas reais intenções ... sobra-me o quê?!

A mata ... o único lugar onde ainda há verde, pássaros que pipilam, gatos sem dono ou casa ... e já nem patos bravos nadam nos tanques ... porque novamente o Homem se encarregou de lhes envenenar as águas ... 😓😓

Anamar 

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

" FANTASMINHAS DOS SILÊNCIOS ..."

 



Sempre o ano começava agora.  Agora que as férias objectivamente terminavam, agora que a criançada já povoa de novo as ruas, agora que se reabriam os livros, os dossiers, até mesmo a pasta, dormida que estivera nos meses de Verão. 
Não sei bem explicar este brouhaha interior que chegava como a última onda da praia, e se instalava, feito um frisson inquieto, que ano após ano se anunciava.

Era sempre assim. Havia uma animação no ar que nos preenchia de uma espécie de expectativa inexplicada, de uma espécie de alegria e de ansiedade que não doía, nem cansava, feita de curiosidade, vontade de rever, encontrar, falar, rir, olhar rostos que deixáramos, fechar abraços que interrompêramos ... enfim, sempre havia um objectivo a atingir, um desígnio a alcançar, um foco ...
E começava mais um ano lectivo !

Hoje, olho para trás e parece que esvaziei por dentro.
O cheiro dos livros e dos cadernos já não impregna este meu espaço, sei que as salas já não me esperam, sei que é como se eu tivesse dado um salto apenas, para as prateleiras onde os livros alinhadinhos  repousam sonolentos, imprestáveis, desocupados ... piscando-me apenas os olhinhos meio cansados e inúteis. Apenas fazendo-lhes companhia ... avivando memórias ... 
Hoje, é como se nem na equipa de suplentes eu ocupe lugar ...
Os meus miúdos mais velhos, todos três universitários, alguns iniciando, outros olhando já o mercado de trabalho, pertencem a departamentos que já não domino ...
A benjamim, numa terceira classe com currícula que pouco me diz, também já nada tem que me mobilize.  Agora é a vez de ser a mãe a afobar-se, a inteirar-se, a desdobrar-se na azáfama instalada ...

E no entanto tudo parece que foi ontem, parece ter sido ontem que pela última vez cruzei aqueles portões de entrada, aqueles portões de uma vida !...

Lá, já ninguém me conhece ... "Onde é que a senhora vai ?"... E eu só quereria franquear uma última vez, à sorrelfa, a porta da sala dos professores... naquela ânsia, quase certeza que ainda haveriam de estar ali, todos, no cavaqueio à volta de camilhas que agrupavam os interesses, as áreas, os grupos disciplinares, de acordo com as especificidades individuais ...
Eram os matemáticos, os de inglês ... mais além Português, ou Física e Química ou Biologia , ou ... ou ... ou ...
E já tantos foram embora !... E já tantos deixaram de responder à chamada ... E já tantos estão tão irreconhecíveis, quando às vezes ainda nos cruzamos, em golpes acidentais, que me confrangem o coração !
O tempo , o malfadado tempo brincou com todos nós, de esconde-esconde ... Deixei uns e que é feito deles ?!  Onde raio se perdeu a gargalhada da Tininha ?  A bonomia da Emília ? Os bordados da Alcina ?  O Moisés, o Arlindo, o Sampaio, a Ana Frade, a Teresa Sobreira, a Celeste ... todos ... tantos ?!...
Não os acho além da minha memória, não os escuto a não ser no som do silêncio ...
Fantasminhas que povoam as minhas lembranças ... palavras, cheiros e cores que se vão esbatendo na espuma dos dias ...

Uma vida ! A vida ... a única que detenho.  Até um dia ... quando for ... em que as portas definitivamente se fecharão !

Anamar

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

" DESAPEGO ... "



"Quem se deserda antes que morra, devia levar com uma cachaporra !"

Julguei que isto não existia.  Só ouvia este ditado à minha mãe.  A minha mãe sempre teve expressões que eu acreditava advirem do regionalismo da linguagem.  O Alentejo usa termos e particularidades linguísticas que nunca ouvi a mais ninguém ... mas ela também era perita em neologismos que fui assimilando sem demais preocupações, e que acabei incorporando no meu expressar do dia a dia.
De quando em vez dou comigo a soletrar palavras, frases, ditados ... sei lá ... e depois pergunto-me : " mas isto existe mesmo ??  As pessoas dizem ou expressam-se assim ?"...
Alguns, pesquiso no google, lá, onde se encontra quase tudo, e acho ... às vezes até acho.  Outros, nem mesmo aí , e já não tenho hipótese de lhe "re-perguntar", porque ela já partiu há muito !...
É quando penso quanto tempo eu já perdi na minha vida !...

Pois é, mas este ditado com que iniciei o meu post, afinal existe mesmo ... e o seu sentido talvez também se entenda facilmente.  
Só que o desapego deverá ser a essência norteadora do ser humano, e ele, o ditado, recrimina esse mesmo desapego, apelando sim, à manutenção das nossas coisas, dos nossos valores, dos nossos sonhos até, para sempre, enquanto por cá andarmos ...

Afinal, em que ficamos ?? Afinal, em que fico ??

Vivo só com os meus dois gatos.  Amiúde, falo deles.  Acompanham-me dia e noite.  
Eles, o lugar onde vivo há mais de cinquenta anos, os mesmos objectos, as mesmas fotos, os mesmos livros, a mesma música ... os meus escritos, e depois uns pequenos baús guardadores de memórias.  Memórias de tempos, de momentos, de pessoas.
De uma concha, uma pedra, uma haste floral seca, um tufinho do pêlo do meu primeiro gato que já partiu há muitos e muitos anos, dois ou três miosótis que acompanharam o meu pai, sobre a lápide do cemitério, um guardanapo de uma qualquer esplanada da vida, um bilhete de cinema com uma data inscrita, uma frase largada por alguém num pedaço de papel rasgado no momento, um cheiro impregnado num farrapo qualquer, nunca entretanto lavado ... uma peça de roupa vestida ... ou despida, numa dada ocasião ... de tudo existe religiosamente guardado !

E guardei, guardei, guardei...
Às vezes ... poucas vezes, por carência, buscava-os em tardes de nostalgia, pensando que me sentiria melhor, mais confortada ao revê-los e senti-los.
Desatava-lhes as fitas de cetim que os fecham, olhava-lhes longamente os interiores e repassava cada pedaço, cada coisa, cada objecto, como se os acariciasse, os embalasse nos dedos e no coração ... 
Depois repunha-os de novo no fundo dos baús.  
E de novo os fechava, de novo lhes fazia o laço de fita e de novo os guardava exactamente nos mesmos sítios, como se ali repousasse uma espécie de sacrário inviolável ...
E ficava pior, sempre ficava mais amargurada, mais infeliz, mais triste, como se aquele património emocional e afectivo que estivera nas minhas mãos, pudesse trazer-me de novo consigo, em tempo real, tudo o que cada coisa representava, e pudesse devolver-me nem que por instantes, a ilusão de uma esperança revivida ... E afinal voltava a ir-se, deixando-me apenas um vazio atroz e doído, maior ainda.
Mais pobre, mais defraudada, mais expoliada  ... injustamente confrontada com a realidade, outra vez ...

E pensava : vou ter que dar um destino a tudo isto.  Essa tarefa só a mim respeita, e não suporto a ideia da inviolabilidade não vir a ser respeitada ... não suporto a ideia da devassa, porque todos aqueles pequenos nadas, são muito, porque foram parte integrante da história da minha vida.

Esta ideia tem-me perseguido, mais e mais à medida que os tempos vão indo.  E sempre adio, pois dói muito alienarmos o coração e a alma, é como se estivéssemos a rasgar-nos um pouco, a deitarmos fora pedaços de nós.

Ontem, num ímpeto, abri a gaveta onde guardei durante quase vinte anos o meu enxoval de lingerie. É verdade que as peças já me não servem, nem servirão nunca mais, é verdade que nele gastei rios de dinheiro, é verdade que ele era lindo, com peças de sonho, como os sonhos que vivi com elas.
E olhando a minha filha, disse-lhe : " Leva, se quiseres ... é tudo teu !"
E pra dentro de mim, eu segredei ao coração espremidinho, enquanto uma lágrima teimosa descia : "Eu fico com as memórias e com os sonhos que elas encerram !"...

Sensação estranha, muito estranha aquela que hoje me toma ao olhar a gaveta praticamente vazia.  Afinal pareço começar a desapegar-me, rumo a uma meta que nunca se sabe quando será !
Mas também não tenho, de facto, muito tempo a perder ...

Anamar

sábado, 19 de julho de 2025

" UM PEDAÇO DE TERRA ..."

 


Cheguei há dias de uma viagem que fazia parte do meu roteiro de sonhos, e que como todas as viagens, neste momento em que o fluxo de viajantes pelo mundo é inimaginável, estava marcada há bastante tempo.
Refiro isto, para que se perceba que apesar dela representar uma realização desejada há muito, não foi totalmente usufruída, por razões de ordem pessoal, relacionadas com a saúde.
Mas enfim, dentro do possível, tentei tirar o máximo partido da viagem à Islândia.

A Islândia é aquela ilha perdida no hemisfério norte, no meio do Atlântico, lá bem no "altinho" do globo terrestre, beijando a norte, o círculo polar ártico, o que significa uma latitude de sessenta e tal graus.
É um país relativamente jovem, geologicamente falando ( 20 milhões de anos ), que devido à sua intensa actividade vulcânica, continua a acrescentar "chão" ao seu território.
Por ele passa a dorsal mesoatlântica, com a proximidade das duas placas tectónicas euroasiática e norte americana, o que "conflitua" a "paz" geológica da ilha, com uma imensa e quase permanente actividade vulcânica, com a erupção de alguns vulcões, com regularidade, e bem assim, os associados sismos devidos ao "pote" de magma líquida existente por debaixo dos nossos pés.
É um país com uma população de menos de quatrocentos mil habitantes, para uma área de cerca de cento e três mil quilómetros quadrados.  Dois terços dessa população reside em Reiquiavique, a capital. 
Apresenta por isso uma paisagem inóspita, caracterizada por um relevo muito acentuado, montanhas, campos arenosos nos sopés, formados por areia negra basáltica, glaciares, lagos e lagoas, cursos de água, esmagadoras cascatas e mar, obviamente mar à sua volta, porque de uma ilha se trata.
É um país com características comuns aos outros países nórdicos que conheço, desenvolvido, calmo, organizado e sobretudo, seguro e pacífico!
A sua população é relativamente jovem, os salários são altos, os impostos baixos, mas a vida, caríssima.
A sua História começa no final de século IX, com a colonização feita pelos exploradores vikings.

Não pretendo ser exaustiva, nem que os meus escritos sejam uma página de agência de viagem, ou tragam algo de novo, ao que qualquer curioso e interessado pelo país, não colha nas páginas da internet.
Não !
O que aqui irei destacar e enfatizar, é apenas a minha visão, e a experiência sensorial sobre o que me levou à Islândia ... a sua beleza natural esmagadora, a sua natureza fascinante, as suas cores, os seus sons e até mesmo os seus silêncios ... as suas lendas, a agressividade do seu mar, a dureza das pedras negras que formam as suas areias, a rudeza do seu basalto amontoado a esmo pelas erupções vulcânicas que mal se anunciam ... os espaços amplos parecendo esquecidos, a falta de horizontes que impeçam que o nosso olhar, o nosso coração e até o nosso sonho vá sempre mais e mais além ...
Foi tudo isso que me preencheu, tudo isso que me fez respirar em pleno, a palavra com que defino a Islândia : LIBERDADE !

Já viajei sozinha durante anos.  Hoje, por razões de segurança, e porque os anos foram passando, viajo em grupo, com agência de viagens.
Esta forma actual de viajar tem obviamente vantagens, até culturalmente falando, uma vez que os guias que vou cruzando, verifico serem profissionais cada vez mais competentes, sabedores, cultos e claro ... são uma rede de suporte fundamental, sobretudo em situações imprevisíveis que possam ocorrer.
Mas para mim, as viagens de grupo têm desvantagens incontornáveis.  Não se consegue usufruir de uma comunhão plena com o que se deseja.  Ninguém respeita por exemplo, o silêncio de quem o anseia.  Quantas vezes procuro afastar-me do grupo, da turba de gente que só está feliz tirando fotografias em magotes, fazendo vídeos com comentários absurdos e apalermados que obviamente ficam gravados e que não interessam nada a muitos dos próximos.  Ou passam à frente, despudoradamente ... e pronto, lá se vai o vídeo, que dessa forma macula aquele momento mítico que se desejaria reter pra todo o sempre ... 

A Islândia propicia muitos lugares de paz e de silêncio, onde só a brisa que perpassava na folhagem se escutava.  
A Islândia é um misto de cores, dos verdes aos castanhos e ao negro da  lava solidificada, ao azul do céu que tivemos o privilégio de usufruir todo o tempo ... o som gorgolejante da água que corre por todo o lado, as espécies e cores das flores silvestres que nunca murcham, a fauna autóctone como os ostraceiros, os cisnes, as andorinhas do mar e as cores inesquecíveis dos papagaios do mar, ave marinha que nidifica nas falésias e é o icone representativo da Islândia ... às ovelhas, cabras e algumas vacas, bem como os cavalos de raça islandesa que pastoreiam em total liberdade, pontilhando as encostas e as planícies.
Não existem grandes agregados populacionais.  Não existem torres de apartamentos nas pequenas cidades.  As casas, praticamente todas, quase sempre revestidas de madeira, usufruem de logradouros à volta, sem muros ou barreiras impeditivas do convívio.
Como a população é absolutamente dispersa, as casinhas de cores vivas, espalham-se, uma cá, outra lá, pelas zonas mais planas, no fundo das montanhas, como se fossem miosótis despontados no meio da turfa que pinta a paisagem.  Parecem pecinhas de lego lá longe, onde a vista alcança ...
O ar é puro, leve, sente-se claramente despoluído !

E depois, p'ra finalizar, nesta altura do ano, em pleno solstício de Verão, o sol da meia noite foi uma fantástica imagem de marca absolutamente indelével na minha vida !...

Foi assim a Islândia !  Senti-la ... só indo conferir ... 😉







Anamar

domingo, 27 de abril de 2025

" CATARSE "



Aqui estou num domingo ensolarado, cinco horas da tarde, silêncio total dentro de casa. Da rua chegam acordes de música pimba, em algum palco improvisado desta bendita terra, que distrai as pessoas fiéis ao estilo, de acordo com as datas que transcorrem.  
Hoje certamente trata-se do rescaldo do 25 de Abril ...
Os gatos dormem, cada um para seu lado. O Jonas junto à janela, no sol que não dispensa , a Rita, certamente na penumbra das colchas da cama do outro quarto.  
Não a entendo, veio da mata, sempre viveu na mata onde as madrugadas chegam mais cedo ainda, e onde os dias são claros, luminosos, com verde e passarada até tarde da noite, e só gosta do escuro, ou talvez só nele se sinta segura.  A Rita está comigo há um ano e três meses e ainda não se desarmou por completo face a um movimento mais estranho, um barulho, a qualquer coisa que na sua cabeça de ventoinha lhe inspire cuidados ...

Para amortecer o som da rua que não me apetece ouvir, coloquei agora um CD na aparelhagem ao meu lado.
Sinto-me totalmente vazia.  Vazia e desconfortável como se tivesse perdido por aí, uma parte de mim, como se o meu eu fosse um puzzle inarticulável, um puzzle que perdeu peças pelo caminho... algo amputado e irrecuperável. 
Sinto dentro de mim a confusão de um desnorte em manhã de neblina cerrada.  Sinto-me a viver, só porque respiro, o coração bate, repito gestos, mexo-me, às vezes falo, alto ou baixo, para os gatos ou para dentro de mim ... pouco mais.
Não tenho um foco, um objectivo, uma razão por que ... Nada de importante, nada de valer a pena ponteia a minha vida.  As pessoas têm histórias, vivências, memórias, capítulos a que reconhecem interesse ao lembrar.  Eu sou tomada apenas por três sentimentos ... irresolúveis todos eles : angústia, ansiedade e saudade.

A angústia e a ansiedade apertam-me o peito e a garganta.  Pesam-me quilos sobre as costas, sufocam-me, assomam-me água aos olhos, dor ao coração.
A saudade crava-me garras na carne, quase até sangrar.  A saudade puxa-me lá atrás, exactamente aos lugares e aos momentos que já lá não estão.  A saudade agarra-me pela mão e passeia-me pelas estradas que foram, traz-me as pessoas inalcançáveis porque viraram esquinas, dobraram a folha do livro, sumiram na nuvem que se desfez ...
A saudade acicata-me a alma, porque é a inevitabilidade frente aos meus olhos, porque os caminhos sempre são apenas para a frente.  Na vida não há retrocessos. Reescritas, também não. A vida não tem rascunhos.  Sempre e só o texto definitivo.

O tempo, inexorável, segue adiante.  Há um momento em que são mais os lugares devolutos que os preenchidos e diariamente a vida se redesenha, queiramos ou não, saibamos ou não viver com ela num novo figurino.
De repente, consciencializamos que a realidade que conhecíamos, que nos dava segurança e conforto, que tinha as regras e os parâmetros no meio dos quais nos movíamos, desapareceu, sumiu sem avisar.
Não vale a pena buscar, procurar, tentar reencontrar. 
Pessoas, coisas, lugares, rotinas, as certezas e as  verdades que orientavam os nossos azimutes, os sentires e até a vibração das nossas vivências ... de repente foram, já não estão, escaparam ao nosso olhar.  E de repente também , ficamos numa terra estranha, estrangeiros no nosso lugar, sem pertença ou raiz. 
E tudo deixa de fazer sentido, tudo deixa de ter nexo ou motivo.  Resta o vazio e o silêncio.
A história encerra o capítulo, a agulha percorre a última faixa do disco ...

Anamar

sábado, 12 de abril de 2025

" A AUSÊNCIA ..."

 



Já faz hoje sete anos que a minha mãe partiu.
Foi embora de mansinho, sem estardalhaço, com aquela discrição de pessoa humilde que sempre a caracterizou.
A vida permitiu-lhe fechar o ciclo perfeito, pois noventa e sete anos antes, exactamente noutro onze de Abril, numa vilazinha do interior no Alentejo, haveria de abrir os olhos ao mundo, para o bem e para o mal...

Sete anos que me deixaram numa orfandade que não sei descrever.  A sensação de solidão, de desproteção ... a sensação de ausência de referências, de me sentir perdida, têm às vezes uma dimensão atroz e abissalmente doída.
São emoções que contrariamente ao que imaginava, têm-se instalado em grau crescente na minha vida à medida que o tempo passa.  Costuma dizer-se, sobre perdas emocionais e afectivas, que elas nunca desaparecem, mas que o tempo é um conselheiro mestre no seu esbatimento.  Tal como a terra abate, no chão que as acolhe, assim a dor vai amainando, ficando mais difusa e leve para o ser humano que as suporta.
No meu caso, isso não tem acontecido.  De dia para dia, o buraco na alma deixado pela ausência da minha mãe, bem ao contrário, parece recrudescer e é como se a ferida sangrasse tanto ou mais que nos primeiros tempos.
Comunico-me mentalmente com ela quase em permanência, como se ela por aqui ainda estivesse.  Pareço pressenti-la quando a chamo, a questiono, a suplico.  Pareço perceber-lhe respostas, pareço sentir-lhe o amparo ...

Vivo só.  Na minha casa, sou eu e dois gatos.  O silêncio "ribomba", a ausência de "vida" parece respirar-se em cada canto.  São as noites, são os dias ... são de novo as noites ...
Entrei numa escalada de desinteresse, sem rumo, sem foco ... não vivo, sobrevivo apenas.
E ninguém vive se não tiver metas, objectivos, sonhos ... ninguém vive se por cada manhã não sentir dentro de si uma razão, um valer a pena, um incentivo para reiniciar a jornada.  E esses são exactamente os meus dias.  Nada parece justificar-me o reinício.  Nada é suficientemente importante para me reerguer.
E é quando percebo claramente a falta que ela me faz.
Sempre foi uma pessoa de bem com a vida, sem exigências ou vontades elaboradas. Era feliz com pouco, nunca tinha vontades ou sonhos acima do que considerava o necessário e o suficiente.  Sempre tinha uma palavra de compreensão e conciliação.  Vivia em função da felicidade dos outros ... dos seus ... da família.  E procurava sempre aplacar os desacertos de quem a elegia para amparo e ajuda.

Tanta coisa que hoje, só com ela poderia dividir !...  Tantas angústias que hoje, só ela poderia entender !  Tanto amparo e afecto que hoje, só ela me poderia dar !... Tanto colo que já não tenho !...

As pessoas estão nas suas vidas.  Com as minhas filhas tenho uma objectiva dificuldade em comunicar.  Há uma décalage geracional perfeitamente cavada entre nós.  Hoje, eu estou sempre errada.  Hoje, sou eu a omissa por definição, e aquela que parece nunca ter capacidade ou inteligência para perceber o que acontece, que não entendo, que não sabe fazer pontes, mas sim conflituar.
As outras pessoas, têm mais o que fazer. Cada um vivendo ou apenas sobrevivendo, creio ( às vezes vindo à tona à força de esbracejar ), como pode e dá.  Vão também passando pelos intervalos da chuva,  com a resiliência e a coragem que têm ... Não adianta muito, quando nos cruzamos ...
E por tudo isso, remeto-me ao meu canto, cada vez mais.  A paciência é pouca, a motivação decrescente, o interesse não justifica. E portanto, cada vez mais desaprendo a socialização, cada vez mais emperro na linguagem escrita ou falada ... Não vale a pena !
E um cansaço atroz invade-me.  Sei que estou psicologicamente afectada, sei que nada disto me é benéfico, sei que as forças e o empenho claudicam, tropeçam nos dias enormes... que não tão grandes porque parte deles os passo a dormir ...

É então que vejo a minha mãe sentada no sofá da salinha, é então que a oiço com aquela bonomia que a caracterizava, dizer-me : " Não pode ser, filha ... tens que reagir ..."
E a sua mão encarquilhada acariciava-me o rosto, enquanto que o seu colo se agigantava e me aninhava com a doçura que apagava a dor, que injectava a força e a coragem na minha alma ...

Hoje ela já não está ... hoje, estou irremissivelmente SÓ !...

Anamar

terça-feira, 4 de março de 2025

" MAIS ÓRFÃ AINDA ... "



A minha família no Alentejo ... para mim, a única depositária das memórias do que fomos, de como era e como foi, de quem eram e que histórias foram vividas ... lá, e apenas lá, onde podiam ainda  sentir-se os pedaços e os retalhos das vivências arquivadas, dos fantasmas que por ali se passeiam, e aqueles que fugidiamente nos escapam ... essa minha família, dizia, extinguiu-se ontem, com a partida da última pessoa que me pertencia de sangue e de coração.
A partir de agora, já nada me prende ou me leva ao Redondo !

Àquele cemitério da vila recolheram as últimas lembranças, histórias, alegrias ou tristezas, anos e gerações...
Já pouco estará preservado, penso, e os que lá iam cuidar, limpar, alindar, ocupam agora as campas identificadas apenas pelos nomes e pelos retratos esmaltados incrustados na pedra.  Já não existe ninguém da família, e provavelmente a Câmara terá tomado conta das propriedades ... sim, porque se trata de campas privadas, que se compravam, estando na mesma, muitas vezes, pais e filhos que se acercaram tempos mais tarde. 

Às vezes, anos atrás, quando lá ia, gostava de me passear por aquele "jardim" de silêncios, ouvindo apenas os trinados dos pássaros nos ciprestes e o estalar da gravilha debaixo dos meus pés.
Tinha uma ideia que se foi esbatendo com os tempos, de onde e quem estava aqui ou ali, e quando encontrava, pelos nomes ou fotografia, uma súbita emoção e até mesmo um misto de alegria mergulhada em tristeza, se apossava de mim.
Era como se se operasse um regresso a casa, um retorno à origem, um reencontro, antecipando o derradeiro, que talvez um dia, quiçá, se venha a verificar noutra dimensão.

Eram avós, tios, primos ... apelidos familiares, com sorte rostos conhecidos, ainda lembrados, de quando aquela terra, foi uma espécie de chão emprestado, eu que vivi sem pertencer na verdade a nenhum ...
E depois, ainda que o não quisesse, todas as lembranças, todos os momentos, tudo o que foi experienciado, dito, vivido ... desfilava-me frente aos olhos, como se uma película de filme estivesse a passar em "reprise" ... e os mortos, todos os mortos dançavam uma dança de roda à minha volta, exibindo o sorriso fotográfico, quase sarcástico,  escolhido para a cabeceira da sepultura ... como se dissessem... "acredita, cá te esperamos ... tudo é uma questão apenas de tempo ... "
E já então eu ficava ali, embalada no silêncio, envolvida pela brisa que passava com pés de lã, sem ruído ou perturbação.
Afinal, estávamos num campo santo !...
Costumava fazer estas visitas bem cedo, quase madrugada, para evitar a canícula que o Alentejo garantidamente me proporcionaria, à medida que o sol subisse no firmamento.

E era então que me via com todas as idades possíveis, desde o jogo do pião, aos bailes na Sociedade ... desde os Natais, às Páscoas, as covinhas dos berlindes na terra do largo da minha avó, aos lanchinhos em casa da tia velha, onde eram obrigatórios os bagos da romã e os bolinhos caseiros, guardados expressamente, porque as férias escolares haviam começado e um belo dia a camioneta da carreira, haveria de "desaguar-me", ali mesmo, pertinho de casa.
Era então a vez de eu ser "disputada" pelos diferentes núcleos familiares ... aqui almoçava, ali, lanchava, além petiscava iguarias feitas de propósito, sabendo serem da minha predileção. 
Eu passava diariamente por todos eles, numa espécie de via sacra , e tinha uma tia, inclusive, que exigia que eu me pesasse à chegada, para garantir que no fim das férias eu tinha mais umas graminhas de peso !!!...
Todos me amavam, todos se orgulhavam da miúda afectiva que eu era, da estudante promissora em que acreditavam  eu viria a tornar-me ...
Todos cá, todos vivos ... todos fazendo parte da minha vida ... todos mimando-me e envolvendo-me num colo inigualável ...

Hoje, só existe o que está dentro de mim, e mesmo que quisesse seria incapaz de passar às gerações seguintes, esta história familiar, que não conheceram e nem imaginam sequer como foi. 
O tempo, sempre implacável, acabará por apagá-la, mesmo  das memórias mais velhinhas ... e uma orfandade sentida e palpável percorre-me e deixa-me mais pobre ainda ...

E aquela terra, foi o único ninho, mais ninho que eu conheci !...

Anamar

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

" MEMÓRIAS "

 


Da torre sineira da igreja soam as doze badaladas.
O dia não está famoso.  Não chove, o céu enfeita-se de nuvens errantes, que se deixam atravessar por um sol pouco fiável, mas o vento que sopra lá fora é desabrido.  É Inverno, afinal !...

Há dois dias que não desço sequer, a esta praceta desinteressante, limito-me a subir e descer as persianas a bem das plantas, como o que há no frigorífico, de preferência, se confeccionado. 
Nada justifica ter de me vestir para compras, num dos dois super-mercados que me ficam no rés-do-chão ...  
Não me apetece ! Até um simples pacote de leite e uma torrada ou duas bolachas me chegam para não enfrentar o mundo lá fora.  Não me apetece encontrar rostos familiares, perguntas repetidas, respostas feitas ... Não me apetece !
Afinal eu vivo num mundo de silêncios, em brumas nebulosas, num mundo que não interessa e daria demasiado trabalho a contar aos estranhos ...
Tocam à porta ... não me chateiem aqui na paz da minha toca !
Não estou para ninguém ...

Mas estou para elas ...
A torre sineira solta as doze badaladas, como disse, depois de uns acordes religiosos quaisquer, e eis que o bando se avista ... Todos os dias, à mesma hora não me defraudam ...
Aqui bem por cima e frente à minha janela, dezenas de gaivotas, enfrentando a aragem, exibem um bailado de liberdade ao sabor do vento.
Em tempos, "tive" uma gaivota.  Rasava-me a janela, exibia-me a plumagem e eu acreditava que ela me trazia notícias lá de longe, desde as ravinas abruptas, ao cheiro e ao sabor da babugem das ondas rendilhando os areais.  Eu acreditava que ela era a minha mensageira da paz, da saudade, da memória ...a estafeta das minhas emoções ...
Hoje, em dias e horas incertas, pousa elegante e desafiadoramente uma gaivota garbosa e altiva, na esquina do terraço ao lado.  Meneia a cabeça, alisa vaidosamente as penas, apoia-se criteriosamente ora numa pata ora noutra, bate o bico em chamamento e olha, com aqueles olhinhos espevitados, quem a observa de longe ... eu !
O meu gato, apesar de eu o incentivar a aproximar-se da vidraça ( coisa que suponho, o deixaria muito feliz ), não está para se maçar... Assim como assim, ela está demasiado longe ...

E o bando, impreterivelmente a essa hora, brilhe o sol ou caia água desbragada da abóboda cinzenta aqui por cima, chega, dança, exibe uma performance invejável, asas estendidas, pernas recolhidas como verdadeiras "prima-donas" num ballet invejável e inimitável ...

Eu fico como que hipnotizada, fascinada, solta e liberta, como se fosse eu que deambulasse à boleia de uma delas, nas ondas da correnteza, a tentar ver um mundo melhor cá por baixo ...
Não mexo, não falo ... só olho, só as acompanho com o coração e a mente ...
Até onde irão ? Porque respeitam o relógio dos Homens, se elas são bichos livres e, como eu, sem horizontes, caminhos ou metas?!
Porque não me levam, se aqui por baixo já não há nada de interessante ??!! ?

A melancolia toma-me.  A saudade também... sensação estranha !!!



Anamar

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

" TUDO E NADA ... "

 






E as águas começaram a subir ...

Vivo só, às vezes gosto, outras não gosto.  Não tenho uma forma de ser fácil, penso que ao longo dos anos e dos diversos formatos que a minha vida foi assumindo, me tornei demasiado eremita, talvez arrogante, talvez autoritária.
Em tempos idos, quando a família das quatro pessoas coabitavam, o meu ex-marido apelidava-me a brincar, de "dama de ferro", epíteto que vinha dos tempos da Margaret Thatcher, significando com isso a rigidez e talvez a intolerância perante pequenos desvios, formas de fazer as coisas, enfim ... características de quem vive em comunidade. Talvez prepotência ... seria ??!!
Hoje, e porque fisicamente já estou só há cerca de vinte anos, porque a idade avançou e porque não devo satisfações objectivas a ninguém, aprimorei as manias, as posturas, os desígnios do dia a dia, com requintes de malvadez ... 😁😁 
Dito de outra forma, cada vez me sinto menos "disponível" para muitas coisas.  Não abdico fácil, não me sujeito a decisões "extra-muros" quase nunca ... enfim, estou a tornar-me "pouco recomendável" 😀😀, um lobo demasiado solitário aqui no meu reduto, pouco maleável e disposta.
Devo dizer, que na verdade não gosto muito da "imagem" interior que o espelho me vai devolvendo, diariamente. Não é louvável e até acho que provavelmente esta auto-ostracização não me fará nenhum bem, mesmo à saúde física.
Cada vez convivo menos, cada vez me refugio mais em casa, como se ela fosse o ninho onde me sinto realmente abrigada, como se fosse um bunker de refúgio e de defesa ... da vida.  
Cada vez me escasseia mais a paciência para ouvir os outros, não atendo telefones frequentemente, adio ou recuso convites maçantes, ainda que culturalmente aplaudidos por gente normal ... sim, porque começo a duvidar da minha sanidade mental ...

Olhando atrás, as voltas e cambalhotas que pautaram a minha existência, tornaram-me, creio, execrável.  O tipo de pessoa que ninguém tem obrigação de aturar ou pelo menos de entender.
Sou feliz ?  Não. Sou profundamente infeliz, perdida e confusa num vórtice existencial que não sei onde começa nem onde termina. Vivo labirinticamente, extenuada sem sair do mesmo sítio, enferma dum cansaço interior e de um desinteresse por tudo e todos.

Vivo com dois gatos, tão silenciosos quanto eu.  Gosto de sentir pelas noites de desconforto, o contacto físico do que se aninha na minha cama, nas curvas do meu corpo.  É um calor de aconchego, uma espécie de carinho através dos cobertores.
Oiço Enya e vejo o cinzento lá fora, enquanto o vento desabrido sibila pelos interstícios mal vedados das janelas.
Enya vive, ao que parece, no país dela, a Irlanda, que não conheço, só, num castelo, acompanhada por gatos.  Imagino uma colónia de gatos, o verde contornante, o mar bravio, o vento a soprar nas ramagens... e paz, muita paz !...
Sei lá se será assim... isto sou eu a imaginar ... mas invejo-a...


Ultimamente retornei às fotos, de lugares que conheci, de viagens que fiz ... Invariavelmente a natureza está presente. Não aprecio fotos com pessoas.  Acho que "poluem" os cenários ...
Os lugares transportam-me lá, e carregam consigo as memórias, os sons, os cheiros, os silêncios, as palavras ditas ou recordadas, as cores e tudo, tudo aquilo que preencheu momentos felizes, lá longe, noutro pedacinho de mundo ...

Lembro a subida das águas em dois momentos marcantes.  A Amazónia, exactamente há dez anos, naquele nascer de sol em que os lilases foram dando lugar aos róseos como se um candeeiro fosse acendendo o céu, até que o fogaréu alaranjado irrompesse no silêncio do chocalhar das águas mansas ...
Lembro a chegada das águas, no passado ano de 2024 espraiando-se pelo deserto do Kalahari, vindas dos planaltos de Angola e transportando consigo a vida que todas as espécies aguardam, ano após ano, pululando naquele fantástico delta do Okavango ...
Visto do céu, o Okavango rendilha em braços, enche charcos, inunda a planura onde os animais retomam a felicidade da frescura, naquele tórrido inferno do calor africano ...

E é como se revivesse tudo aquilo.  E é como se lá voltasse, se lá estivesse, eu, e mais ninguém ...

Estarei doente ??
Não, não é uma interrogação ! Estou doente, sim.  Sinto-me profundamente doente, acuada no desinteresse de nada me interessar ...
Cansada, desenquadrada, como numa matemática de exercícios sem solução ...

Desculpem este "tudo ou nada", mais nada que tudo ... sobra-me o papel, e às vezes, necessidade de escrever ...

Anamar

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

" O NOSSO MANDACARU ..."



A vida é certeiramente efémera. Todos sabemos que começamos a morrer mal damos o primeiro vagido ao deixarmos o ninho que nos acolheu durante nove meses.
Também sabemos que enquanto dela desfrutamos, temos mecanismos mentais,  emocionais ou outros que têm a capacidade de fixar em nós para todo o sempre, flashes de acontecimentos, de momentos, de sentires, que não se descrevem, apenas de quando em vez nos visitam com uma definição e uma precisão impressionantes.

Assim, enquanto esquecemos facilmente por exemplo o que jantámos ontem, lembramos com doçura, a quietude mágica daquele dia, daquela luz, daquele som, daquele abraço ou do beijo trocado enquanto o vento nos desalinhava o cabelo.
Lembramos o voo rasante da gaivota pescando junto às ravinas, lembramos o calor abrasador e envolvente da savana africana, o frio entorpecente mas delicioso da neve pendurada em cachos das coníferas árticas ao romper do sol fugitivo.
Assim, eu lembrei agora, e não sei porquê, aquele nascer de sol no sertão, e a afobação com que rompemos o luar sertanejo a tempo de ainda nos maravilharmos com a beleza efémera do mandacaru que floresce durante a noite e encerra para sempre a beleza das suas pétalas aos primeiros raios de sol.
Flor de um dia ... ou melhor, flor de uma noite, de uma madrugada, irrompe do corpo esquálido da planta ( que pode atingir 6 m de altura ), como um sopro, uma gota de orvalho, um adeus ...

Embora seja uma planta que pode viver em ambientes inóspitos, climas semiáridos e caprichosos, vi pela primeira e única vez o mandacaru, aos primeiros raios da alvorada, no Pantanal de Mato Grosso, assim, de repente, como quem chegou e já tem pressa de partir, porque o sol se anuncia ainda pelos alvores da madrugada, quando a escuridão da paisagem já alaranja à chegada do "rei" ...
Quem lhe viu ontem as flores de pétalas esbranquiçadas nascidas de brotos ovalados presos aos caules, que enfrentam ano após ano, secas, chuvas e trovoadas, já as não verá hoje. 
É no escuro e no silêncio da noite que o mandacaru, planta que vive um século inteiro, em meio de sol abrasador, secas devastadoras, promessa de morte na magreza e na secura em que apenas os espinhos permanecem intocados, que o seu florescimento irrompe, no que parecia ser uma morte anunciada ...
Reza a lenda que quando uma flor de mandacaru aparece no sertão, é sinal de chuva, fartura e alegria .

Mas efemeramente... como a vida... num mistério nunca desvendado pela natureza ! 
Flores grandes, prontas, belas e majestosas, nascem já enfeitadas para morrer ... luas cheias no negrume da noite !

E perante o milagre da vida, houve assim uma espécie de encantamento, uma surpresa de gratidão, quando repentinamente os nossos olhos as surpreenderam ... Afinal, um ventre que a gestou face às adversidades, por tão poucas horas dela disporá !...

Assim também é a vida. 
A curta duração do que quereríamos perpetuar, a impermanência dos factos e das existências, o cumprimento duma sina e dum destino ... tempo pra nascer, pra viver, pra ser feliz ou entristecer ...
tempo para amar, para ter esperança e acreditar ... tempo pra morrer ... um mandacaru para cumprir no sertão dos nossos dias !...

Anamar

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

" PESADELO "



O dia faz jus à época do ano que atravessamos.  Está totalmente fechado, cinzentão, húmido, desconfortável. A chuva tem caído impiedosa e de acordo com a meteorologia mais uma depressão a atravessar o país, lembra que afinal é Inverno ... simplesmente !

Tenho estado fora de casa em apoio domiciliário à minha filha, recém operada a um carcinoma da mama.  Hoje vim a casa, onde ficaram sozinhos os meus companheiros de quatro patas, que reclamam naturalmente a minha companhia.  Não falam, mas sabem exprimir-se muito bem e o meu coração fica espremidinho por cada vez que fecho a porta da rua e parto, mas obviamente a priorização da situação assim o impõe.
Mas, como dizia alguém amigo que a conhece razoavelmente, ela é uma força da natureza e tem vivenciado todo este pesadelo com uma normalidade que me impressiona.
A Catarina é intrinsecamente uma "cuidadora" e como todos os cuidadores quase nunca se deixam cuidar.  Cuidou estoicamente da avó em sua casa onde a acolheu até à sua partida, cuida de todos quantos vê que pode ajudar, é enfermeira de profissão, óbvio, e dá-se por inteiro a quem dela precisar.
Mesmo agora, com alguma limitação, socorre vizinhos, pessoas que precisam de cuidados primários, como aquela brasileira que não conseguia quem lhe fizesse a transfusão do ferro de que necessitava ...

Operou as duas mamas embora a direita estivesse felizmente sem problemas ... ainda ... mas num acto de muita coragem e determinação, preferiu cortar o mal pela raíz e acautelar futuras surpresas.
Ainda assim, nunca parou, e apesar das limitações provocadas pela colocação dos drenos e o desconforto das próteses implantadas  ( mas ainda com muito a fazer até se poder considerar terminada essa fase ), nunca foi à cama, tenta ser ela autonomamente a realizar as tarefas possíveis, como as  caseiras, cuidados de higiene e cuidados pessoais, do vestir ao calçar, etc.  
Pergunto-lhe muitas vezes afinal qual o meu contributo, além da companhia, pelo facto de estar em sua casa ?!.... "Deixa, eu faço !  Não preciso de ajuda, se precisar, peço" ... e por aí fora.  Não pára um minuto, e tanto teimou que a fisioterapeuta autorizou-a a conduzir, uma vez que o carro é automático, e sem isso sentia-se enclausurada e dependente, coisa que não é para o feitio da Catarina !

Não somos nada parecidas na forma de encarar e enfrentar as dificuldades que a vida nos larga no caminho.
Ela encara, eu sossobro.  Eu desisto, ela esbraceja enquanto tiver um sopro de força e esperança.  Eu acobardo-me, escondo-me, fujo das pessoas, deixo-me tomar pelo negativismo, pelo maldito copo sempre meio vazio.  Isolo-me, refugio-me na cama, não tenho fibra, coragem ou determinação para lutar.. 
Acredito que nunca terei.
Ela cuida e cuida-me, mesmo no meio da intempérie... e esquece-se de ser cuidada ... Às vezes acho que não sabe mesmo como isso se processa ...

Hoje, nesta tarde escura e fria voltei a ouvir Enya.  Enya que tantas memórias me traz, que tantas vivências me desperta numa cabeça e num coração meio entorpecidos, muito doídos e cansados ...

E pasmo ... pasmo quando penso, quase não acreditando, nas voltas e reviravoltas que a minha vida sofreu em tantos planos, num curto espaço de tempo ... Nada, nunca pode ser tomado como certo, como adquirido, como imutável ...
Um dia adormecemos, para na manhã seguinte já não nos reconhecermos ao acordar ... 
Isto é a vida !!!

Anamar 

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

" ANO BISSEXTO, ANO TRAVESSO "

 


Não sei definir o meu estado de espírito no dia de hoje.  O stress, a angústia, a aflição, o medo que se têm estendido no tempo, acumulando-se e rompendo-me por dentro, hoje, perto de cortar a "primeira meta" desta louca prova de resistência, parecem ter apostado em rebentar-me ... Sinto-os no corpo, na mente, na pele, sinto-os nas veias onde o sangue lateja, nas batidas dentro do peito ... no vórtice alucinado que me desce da cabeça aos pés .

Dia 22 de Outubro uma das minhas filhas foi realizar os exames que qualquer mulher deve acautelar, de rastreio mamário. Também os faço, dantes descontraidamente, agora apreensivamente em crescendo.
Ela havia-os feito um ano e alguns meses antes e tudo foi totalmente pacífico.
Desta vez, o telefone tocou-me às dez e pouco da manhã.
"Mãe, já estás acordada?" perguntava-me sob choro convulsivo do outro lado.  "Mãe, tenho um nódulo na mama esquerda, a médica fez a mamografia, a ecografia e marcou-me de imediato uma ressonância magnética.  Não gosta do que vê nas imagens. "

Não sei bem o que pensei, o que senti, penso que fiquei tolhida, estática, encolhida apenas debaixo do édredão, com o raciocínio parado, como se tivesse levado uma bruta pancada na cabeça ...
Apenas lhe disse :" Tem calma, já vou ter aí contigo".

Não chorei, desta vez estava tão entupida que as lágrimas apertam e sufocam mas não saem, não aliviam ...
Venho a sentir isto há muito tempo. Penso que gastei as últimas lágrimas com a morte da minha mãe.  Desaprendi de chorar, e daí que o meu peito se transforme numa represa que me afoga por dentro e objectivamente magoa, que dói, como se me estivessem a retalhar a seco ... Mas não verto uma lágrima !

Quando cheguei perto dela, havia já outro exame a ser feito a seguir ... uma biópsia ao nódulo, mas já com uma espécie de pré-percepção algo segura, que estaríamos mesmo perante um tumor maligno, o que veio a confirmar-se.
Entretanto muitos e muitos exames têm sido feitos. O estudo da situação tem sido exaustivo.  Está entregue a uma equipa médica referenciada, experiente e muito conceituada.  Os exames levam tempo a produzir resultados laboratoriais.  Por vezes realizam-se em laboratórios ou instituições fora de Lisboa, e requerem o tempo devido ... não se podem acelerar, ao ritmo da nossa angústia.
Entretanto atravessámos um período de desaceleração a todos os níveis : as Festas de Natal e Ano Novo e virámos a página ... o malogrado e maldito ano de 2024 cessou e anseia-se que o novo ano seja menos carrasco e mais esperançoso.
Foi um ano bissexto ( dei por isso não há muito tempo ... já tinha esquecido ). A minha mãe dizia "Ano bissexto, ano travesso !"
A sabedoria popular transmite-se de boca em boca, e fundamenta-se nas vivências experimentadas.  O meu Alentejo é rico em transmitir, geração após geração, o saber de experiência feito, para que nada se esqueça nesta vida. Desgraças, estragos, prejuízos, devastações, doenças, guerras, prejuízos de má memória, reiteram por outro adágio, que algumas vezes já ouvi, estas verdades também : " Deus que o marcou, algum defeito lhe encontrou !
Comigo será seguramente um ano para esquecer ... ou para não esquecer nunca mais, tantas e tão variadas mágoas ele me trouxe !...

Amanhã, finalmente será a intervenção cirúrgica a ser feita.
É o fecho de uma primeira etapa, e o início do ciclo que agora começa, o pós-operatório e toda a panóplia de protocolos a cumprir, bem difíceis e penosos.... Apenas deixámos de estar parados e começaremos a dar os primeiros passos no sentido do restabelecimento possível.
Ou seja, ganhamos uma dose suplementar de esperança no sentido do sol ... 

Continuo sem chorar, continuo entupida por dentro, mas o apoio à minha volta, de todos os que me amam, não me tem deixado sossobrar ... e haverá sempre uma estrela no céu, mais brilhante que todas, que  iluminará o nosso caminho daqui para a frente ... tenho a certeza!
E há uma criança de sete anos a quem um dia, quando eu for bem velhinha, contarei que a mãe terá sido uma guerreira, porque sabia que tinha uma filha que não podia nunca desamparar ...

Anamar

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

" A NORMALIZAÇÃO DO INORMALIZÁVEL "... "

 


Estamos uma vez mais no ritual anual da despedida do ano velho e da saudação do ano novo. 
As famílias ou simplesmente os amigos reúnem-se à volta de uma mesa que continua os despautérios gastronómicos que já vêm do Natal, e em que o avanço da faixa etária vai determinando os que ainda estão e os que já não ... Menos um, menos um, menos um ...

É por isso a altura então de os lembrar por este ou aquele motivo, por esta ou  aquela aventura, normalmente, as gargalhadas das historietas lembradas, animam o serão até que as doze badaladas toquem a reunir. São as passas, o champanhe, a afobação dos brindes, dos abraços, dos beijos ... são os votos e os desejos só pensados e não verbalizados enquanto o relógio dá as doze badaladas.
Nas ruas e nas janelas, a euforia do momento justifica a batida das tampas , das panelas, o estralejar do fogo de artifício, os apitos, as cornetas ... enfim, qualquer coisa que faça barulho e queira transmitir o que se entenda por alegria, graça, felicidade, animação.
E desejo... um desejo incomensurável de abraçar o mundo e que esse abraço, ao menos uma vez na vida a paz a fraternidade, a saúde e o amor com a sua chave secreta, pudesse trazer um resquício que fosse, de felicidade para todo o ser vivente ...

Mas não é nada disso.
As bombas, os mísseis, os raides aéreos destruidores ... a fome, o frio, a miséria, a solidão continuam indiferentes às intenções momentâneas da bonomia do coração de muitos ... e a seguir encolhemos os ombros ... tudo isso já está assimilado na vida do cidadão comum. Seja a Ucrânia, Gaza, Síria, Líbia, Palestina ... sejam os países da América Latina e por aí fora ...

Infelizmente tudo isto são já lugares comuns, tudo isto são realidades demasiado conhecidas, tão conhecidas que quase indoloridas. É sempre assim, temos à frente barbaridades tão impensáveis e incomensuráveis que acabam quase invisíveis, de tão normalizadas se tornam no dia a dia que vamos vivendo. 
Até porque, sobretudo então os rostos das crianças que são permanentes acusações legítimas, os olhos cansados e doídos dos velhos empurrados daqui para ali, sem tecto que os abrigue, são  qualquer coisa de que fujo, cobardemente, eu sei, mas a resistência humana também tem limites. 
 
Costumo dizer que já não pertenço aqui. Este mundo sufoca-me de ininteligível. As angústias, as incertezas, os medos, as ameaças constantes que nos pairam sobre as cabeças, conseguem sempre ser superados por algo ainda mais ameaçador, mais injusto, mais impensável.  Nada é suficientemente  mau que chegue, frente às atrocidades levadas a cabo dia após dia ...

E por tudo isto e muito mais, cada vez menos valorizo dias de calendário, cumprimento de rituais só porque sim, protocolos inventados nas linhas dos show off, em que se exibe tudo menos o que genuinamente se sente. 
Procuro sentimentos, tento auscultar sentires, busco valorizar a simplicidade do que deveria ser e não é mais ... e não tenho p'ra onde fugir ... 
Este mundo já não é para mim ... semeia-me um desconforto que dói, e por tudo isso isolo-me na segurança do meu quarto, qual bunker protector, onde conto com os sóis a porem-se no laranja do infinito,  onde conto com a chuva tamborilante quando é dia dela e onde uma família de dezenas e dezenas de gaivotas aqui por cima, se anuncia como querendo tirar-me da cama a horas normais ...  

Anamar

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

"ASSINO EM BAIXO ..."




Fui muito mimada. Fui filha única de pais não novos, direi assim, pai sobretudo mais avô que pai, pois nasci já ele tinha 48 anos e a mãe, de acordo com o normal nesses tempos , com trinta anos também não era já nenhuma jovenzinha.
Subi rapidamente ao "estrelato" naquela família de três pessoas, quase sempre de duas, já que o meu pai, sendo viajante de uma firma de ferragens, passava muito tempo fora.

Para a minha mãe eu era a boneca que lhe preenchia a vida.  Vivia para mim, viveu para mim e assim foi até que partiu.
Eu era boa aluna, reconhecida e premiada e isso deixava-a orgulhosa e dava-lhe profundo sentido à vida. Sempre fui o foco da sua existência, tornei-me a razão dos seus dias. Primeiro eu, segundo o meu pai, depois ela ... Sempre assim em tudo.
E como os "tesouros" por serem únicos e irrepetíveis, a gente guarda, protege, defende e cuida desveladamente, assim eu me tornei uma ave rara numa gaiola dourada. Nada me faltou, de tudo eu tive em excesso, apenas tiveram o cuidado de me cortar as asas, garantia duma protecção considerada imprescindível à vida. Não aprendi a voar ...
O mundo sempre foi visto por mim com olhos mais ou menos facilitadores, dificuldades materiais ou outras sempre me foram contornadas, os caminhos atapetavam-se de relva, ladeavam-se de flores e o céu era quase sempre azul e luminoso.
Deram-me o peixe ... pouparam-me de o pescar ...
Lido mal com a vida. Desajusto-me das suas dificuldades, ultrapasso os sofrimentos com dores acrescidas ... porque não o sei fazer de outra forma ...
Sou desajeitada no viver, não tenho armas para as guerras do dia a dia, a borboleta que há em mim nunca chegou a sair da crisálida ... 
Tornei-me assim um espécime estranho. Sou acusada de ser egoísta, egocentrada dia e noite, não me transcendo por nada nem ninguém, "sei lá o que custa viver" como me dizem, pagando em permanência o ónus de tudo o que não aprendi, sobretudo porque não me deixaram rasgar a carne nas quedas com que infalivelmente a vida não poupa ninguém ...

Em suma, sinto-me uma inábil por cada dia que desperta.  Sinto-me desinserida e não pertença de uma realidade na qual não me sei mexer.
O que me rodeia não me faz sentido, as coisas e as pessoas não me fazem sentido.  A linguagem que falo parece outra, sinto-me a mais numa realidade que custo a descodificar.  É como se me tivessem largado numa praça duma terra cujas pessoas não conheço, cuja língua não domino, cujas regras desconheço ... Uma estrangeira em qualquer lugar do Mundo !...
Sofrer de Alzheimer  deve ser algo parecido com aquilo que experimento, apenas gorando o entendimento daqueles que sabem que não padeço da enfermidade ...

Sinto-me muito, muito cansada !  
Pareço aquela alga que a maré traz e leva no recuo, para voltar a trazer e voltar a levar, porque afinal a maré sobe e desce e a alga não encontra, nos avanços e nos recuos, uma amarra, um cais, um porto  de abrigo que lhe desse descanso ... 
Uma alga à deriva, afinal !...

Em Agosto passado, Alain Delon, um ícone do cinema da minha geração, deixou-nos aos 88 anos, após ter solicitado uma morte medicamente assistida, permitida na Suiça, onde vivia..
Expressara várias vezes que este mundo já nada lhe dizia, e que era penoso viver nele.
"Envelhecer é uma merda!" ... assim expressou o cansaço interior que o tomava. 
Olhando fotos suas de diversas idades, ele que foi dos actores fisicamente mais belos da sétima arte, realmente, só se pode terminar com essa inequívoca e realista afirmação !!!

Anamar

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

" PERDIDA POR AÍ ... "

 



"Maria, põe aí umas florinhas a Nossa Senhora"
"Maria, manda rezar aí uma missa por intenção ..."

A Maria era a minha tia, irmã da minha mãe que viveu toda a vida no Redondo, terra onde a família em maioria nasceu, viveu e morreu.  De cá, em matéria religiosa, ambas sendo crentes mas estando longe, a minha mãe apenas fazia as adequadas solicitações.
A Nossa Senhora de Ao Pé da Cruz é a Santa Padroeira da terra, cuja imagem está juntamente com a de S.João, na Igreja do Calvário da vila.  É a imagem que conheci toda a vida e em cuja procissão, pela Páscoa  fui vestida de anjinho. 
A Igreja do Calvário fica assim numa ponta da vila, está quase sempre fechada e guarda efectivamente as imagens dos santos intervenientes nos eventos religiosos da vila, mormente o Natal e a Páscoa.
Tem,  lateralmente à porta da entrada, uma janelinha bem pequena, onde por vezes se vêem pessoas de joelhos que ali vão rezar.
Existiu desde sempre uma pagela de Nossa Senhora de ao Pé da Cruz que a minha mãe manteve perto da cabeceira da cama. Não sei onde a adquiriu, sei que já a tentei encontrar nas casas de artigos religiosos, em vão.  Era uma única pagela e acompanhou a minha mãe no caixão que a transportou.
De resto tenho apenas uma ou duas fotos de um domingo de Páscoa, nem imagino há quantos anos quando levei a minha mãe de propósito ao Redondo, para assistir à procissão. Penso que foi a última vez que ali foi ...

Hoje, a minha mãe já partiu há meia dúzia de anos, a Maria  já lhe levara a dianteira, a família rareava naquele Alentejo da minha meninice.
Hoje o dia está uniformemente cinzento, o bando de gaivotas deambula baixo por aqui, anunciando que lá para aquela costa que já foi muito minha, anuncia-se  borrasca, mais daqui a pouco.
Hoje é um dia estranho para mim, um dia em que parece, mais do que nunca, que estou de passagem.
Pareço não pertencer a nada nem a ninguém.  Os sítios já não sãos meus, as pessoas também ganharam outros trilhos na vida, e nada, mesmo nada tem esboços de pertença, mesmo as memórias que parecem querer fugir por aí...
Levantei-me perto das 11 e 20 deste dia lastimoso.  Comi uma torrada e um café e regressei à cama. As únicas palavras que me escutei foram dirigidas aos gatos. A casa é um silêncio absoluto.
Saio o estritamente necessário e rápido, pareço uma fugitiva num campo minado... Não me apetece ouvir o já ouvido, não me apetece repetir o já repetido.
A minha filha será operada dia 9, a um cancro de mama . Nunca fui uma pessoa orientada para dizer o que não sinto, fazer de conta que não tenho o pavor que me sai por todos os poros, fingir que, como dizem... "ah, isso hoje já não tem problema"... quando sabemos que numa intervenção de 6 /7 horas, e dada a especificidade da doença, tudo pode ter problema ...
Sinto-me como se estivesse segura e dependurada dum arame fino e ferrugento, e a solidão é a minha única interlocutora.
E é Natal... que raiva que eu tenho que seja Natal ! Apetece-me fechar-me em casa e não estar pra ninguém, não quero lembrar realidades que já foram, já aconteceram... não são mais minhas ... perdi-as por aí ... porquê lembrá-las ??? Nada mais faz sentido !

"Maria, põe aí umas florinhas a nossa Senhora"
"Maria manda rezar por aí uma missa por intenção "!

Só silêncio ... afinal as Marias já cá não estão ... e eu nem sei bem onde e como estou !!!...

Anamar

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

" OUTUBRO ROSA"

 


 Para mim, sempre Outubro protagonizava a verdadeira mudança de estação.  É aquele mês em que nós dizemos :"pronto, o tempo já virou  de vez", e não erramos, seguramente.
Os laranjas, os castanhos e os desnudos das árvores exibem-se, o sol amortece na luminosidade, os dias parecem começar a encarquilhar rumo à estação que promete chegar mais à frente, o chão atapeta-se dos ocres rodopiantes na aragem, a anunciarem o sono e o silêncio que hão-de vir ...
Outubro sempre me cheirou a castanhas assadas, a "pão por Deus", a dias em que já apetecia vir pra casa mais cedo, a miúdos regressados das tarefas diárias, trabalhos escolares a cumprirem-se, até porque a hora mudada, levaria para a cama também mais cedo.
Era assim Outubro, antecedia o mês dos meus anos, o que também particularmente não me entusiasmava sobremaneira, para mim sempre teve uma cara tristonha, esteve sempre associado à partida de alguns familiares conforme ouvia a minha mãe contar ... mês do cair da folha ... em suma, nunca gostei de Outubro !

E confesso, seguramente por distracção, nunca me apercebera, nunca precisara perceber, que por ano, todos os anos havia um "Outubro rosa", rosa de menina, criança ... mulher ...
Rosa de rosas, rosa de perfume, rosa de doçura, de carinho e afecto ...
Rosa de mãe, de filha, de irmã ... Infinitamente, rosa de esperança !...
E esse Outubro justamente, feminino seguramente, é a campainha de alarme para que nós, as mulheres sejamos por isso e nesse momento pelo menos, levadas a pensar no flagelo que se abate sobre milhares de nós, sejamos filhas, mães, amigas, conhecidas apenas, assim, na constatação de uma máquina, que inesperadamente nos apresenta a "ele", a "isso", que sempre nos pareceu coisa distante, coisa que só acontece aos outros ...
E tenhamos vinte, trinta, quarenta ou setenta anos, e tenhamos adquirido mesmo uma certa tranquilidade de já não nos sentirmos ameaçadas, "ele" aí está, fotografado numa máquina gelada de emoções, indiferente e carrasca, que ignora aquilo que acabou de fazer, ameaçar, massacrar e destruir famílias para o resto da vida ...

Como pode ser rosa este Outubro ??
Como pode ter amenidades se até o sol desaparece, como que envergonhado, no nosso horizonte ?

"Piso -1", informaram-me. Mas não seria preciso, se por cima da porta de acesso ao serviço, as letras eram garrafais ...  Talvez as lágrimas mas embaciassem ...
Uma boutique específica no que vende ... alguns produtos farmacêuticos, lenços bonitos, toucas, gorros, turbantes apelativos ... 
Circulam pessoas que exibem cabeças e rostos totalmente despidos de cabelos que esperam p'ra crescer, na proporção da esperança que teima tanto em não se anunciar ...

Como pode ser rosa este Outubro, se quarenta e seis anos é apenas metade duma vida ?  Se sete anos são os anos que ainda pedem colo, se são os anos em que se aprende, duma forma doce e aconchegante, como poderá ser a vida que nos espera, se os alicerces que nos irão espaldar para o já tão difícil, ameaçam derrocada ??!

E porque já não consigo pintar Outubro com as cores que lhe assistem, porque já não consigo, por cada dia que começa, despir a capa do medo, um medo colossal com rosto de monstro que tem a mania de começar o dia comigo e abençoadamente comigo adormecer, graças aos comprimidos que me mantêm em pé, vivo em silêncio, evito escutar tudo o que generosamente me dizem e que eu sei ser o que diria também ... apenas porque ... não há absolutamente nada a dizer ...
Falo com os gatos, pouco desço à rua, silencio o telefone, saio tardíssimo da cama e recolho cedíssimo, além disso durmo, durmo, durmo ...
Esta noite a minha mãe insistiu nos sonhos. Não sei como foram, mas ela esteve lá.  Em todos, que eu sei.  Deve ser porque a massacro o tempo todo, pedindo-lhe a ajuda que lhe pediria se por aqui estivesse, pedindo-lhe  o colo que ainda hoje me falta.

Enfim ... estarei simplesmente a viver o que milhões de almas já viveram. Não sou mais nem menos que ninguém.  Todo o sempre disse ( quase sempre desinibidamente entre amigos ) : " se um dia tiver um diagnóstico de cancro, ele irá acompanhar-me até ao fim... não acredito na cura !"...
Ontem, ouvi da boca duma médica, neste momento também paciente da doença  ( e já o escutei muitas vezes ) ... "um doente oncológico é SEMPRE um doente oncológico. O cancro não se cura " !

Como pode Outubro ser rosa ??!!...

Anamar

sábado, 12 de outubro de 2024

" DE QUE ADIANTA FINGIR ? "

 


Sou uma pessoa emocionalmente apegada às coisas.  Para mim, todas têm uma história, todas têm uma memória, um cheiro, uma palavra, um silêncio ... A minha casa é um repositório exaustivo de momentos, de cores, de lembranças.  Não é o valor material que encerram, mas é a súmula da significância a tudo a que a vida as foi ligando ... onde, porquê e com quê ou com quem, a minha vida as foi prendendo com pequeninos fios invisíveis de afecto.

À minha casa, com um ar depreciativo, já alguém chamou de "museu".  Reconheço que tenho objectos demais, porque não há efectivamente nada demais que eu não valorize.
Um seixo da praia, uma concha ou um búzio do outro lado do mundo, um guardanapo de papel de uma esplanada ou de um jantar especial, um galho seco colhido do arbusto de um caminho, já não falando em fotos largadas a esmo nas mais variadas molduras disseminadas pelas mesas e prateleiras, tudo são "tesourinhos", porque tudo foi e é Vida !
Chego a lembrar com absoluto realismo perante um determinado objecto, o momento, o cheiro, os sons, as palavras se as houve, com a exactidão de quem parecesse estar a vivê-los de novo.
Sou capaz de lembrar se o vento me desalinhava o cabelo, se o mar batia nos rochedos, se as gaivotas gritavam lá por cima, se era felicidade, mágoa ou dor, aquilo que experimentava então ...

Vivo há cinquenta anos na mesma casa.  Vim estreá-la após a construção e aqui fui ficando.
É um andar alto, o topo do edifício sem construções próximas, o que me permite o privilégio de uma amplitude de visão, do meu ponto de vista, absolutamente invejável.
O casario à volta fica distante e a disposição do prédio, nascente-poente, permite que eu veja nascer a lua e pôr o sol ...

O tempo que não se compadece, foi andando, e eu, andando com ele ...
A casa foi sendo a casa das quatro pessoas que constituíam a família, mas também tudo isso se alterou. Primeiro saíu uma para a sua nova vida de casada, depois saíu a outra que ansiava viver no seu espaço próprio, depois saíu o pai das duas porque nos divorciámos, e concluindo, fiquei eu.  Eu e o tal recheio do tal "museu" ...
Fiquei eu, mas bem acompanhada até hoje por dois gatos de cada vez ...
São, como costumo dizer, os meus companheiros de vida.
E depois, tenho o céu quase à altura da minha mão, tenho o que ainda consigo ver de Sintra, mais o que imagino da Serra que lá está na linha do horizonte, tenho o vento que quando sopra de borrasca me traz a chuva para os vidros da janelona mesmo aqui à minha frente ... e tenho o maior bem precioso deste meu varandim... os inenarráveis e ímpares pôres de sol no vermelho do poente com que se pinta !...
Ah, já me esquecia ... e tive uma ingrata gaivota que me rasava a janela e me trazia notícias das areias desertas e rendilhadas de espuma, quando o Inverno era traiçoeiro e por lá só havia silêncio ...
Foi à vida dela, como quase tudo na minha vida, foi também às suas vidas !!!...

O meu prédio acessa à rua por sete degraus.  Dificultam a vida a toda a gente.  
Vivem, respectivamente no primeiro e no sexto andar, duas crianças cuja locomoção se faz apenas por cadeira de rodas.  Têm-se feito démarches junto da Câmara para que a mesma possa pelo menos contribuir para a construção de uma rampa que permita a acessibilidade, já que o condomínio tem fracos recursos para o efeito.  Em vão !
Depois, a faixa etária dos condóminos poder-se-á dizer ser maioritariamente sénior...
Dito de outra forma, qualquer dia, ir à rua começará a não ser fácil.
A minha mãe faleceu com 97 anos, mas passou os últimos tempos de vida, quando também ela se deslocava em cadeira de rodas, em casa da neta onde aliás veio a falecer, e que vivendo numa vivenda, não tinha nenhuma limitação ao acesso à rua.
Essa casa fica na margem sul, eu vivo na margem norte.  A neta, sendo enfermeira, chamou a si generosamente, os cuidados com a avó, no fim da vida, levando-a pra sua casa.

Neste momento, volta a ser preocupação da minha filha, a minha permanência, só, nesta casa.
Hoje ela tem uma criança de sete anos que na altura não tinha, trabalha em dois hospitais, é também ela sozinha, sendo que o pai da menina trabalha fora do país intermitentemente, o que limita brutalmente a disponibilidade da minha filha, e a leva a dizer-me que temos que repensar a nossa situação.  Ela não poderá prestar-me a mim, obviamente, os cuidados que dedicou à avó !
E portanto ...


E portanto desenhou-se abruptamente frente a mim aquilo que todos queremos adiar "sine die", como escolhemos e como podemos preparar o fim da nossa estrada ...
Não que a questão no meu caso particular fosse premente, fosse para resolução rápida ( a minha idade e condição física não me anunciam por ora nenhum tipo de urgência ), só que mercê de outras questões práticas que não vêm ao caso aqui explanar, teria que ser no máximo dentro de um ano que eu deveria deixar esta casa e ficar a viver perto da minha filha, na margem sul, portanto ...


O impacto e o desgaste que tudo isto me tem provocado foi duma dimensão talvez absurda ... mas é a minha, é como eu sinto, como eu interiorizo as coisas.  E eu que já sou dada às angústias, às depressões, ao desânimo, a ver sempre o copo meio vazio, adoeci.  Neste momento é um anti-depressivo e um ansiolítico que vão comandando os meus dias, e já estive pior ...
É o fim que se anuncia, é a mágoa de uma vida de cinquenta anos nestas quatro paredes, rindo ou chorando, sofrendo ou sendo feliz, deixados para trás, são os objectos a escolher porque irei para um apartamento menor, é ir retomar a vida num lugar que nada me diz e onde não haverá um rosto familiar para dizer bom dia ... e depois ... sendo embora o mesmo, serão sempre outros pôres de sol que surgirão por detrás dos pinheiros !!!

Anamar