Mostrar mensagens com a etiqueta AO CORRER DA PENA .... Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta AO CORRER DA PENA .... Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

" SOBRE TUDO E SOBRE NADA ... "

 


Acho que já escrevi sobre quase tudo.  Por "tudo", entenda-se aquilo que me mobiliza, sejam acontecimentos do dia a dia, sejam perfis humanos que me tocaram, sejam experiências que no fundo do meu ser me acompanham, me empolgam, me assustam, me emocionam ... enfim, o mix de sentimentos que ao longo dos tempos vão recheando a minha vida !
Talvez por isso sinta em mim, nos últimos tempos, um vazio de necessidade de escrever.  Sempre acho irrelevante, sempre acho que não acrescento ou retiro nada de importante a qualquer tema, sempre me parece redundante qualquer posicionamento meu, por o considerar insignificante, sem interesse justificativo, ou mesmo desnecessário.
E o que tenho escrito, do que já escrevi, raramente rebusco para lembrar, raramente releio achando que vale a pena, raramente tenho paciência para revisionar, anos decorridos, uma outra vez,  o que quer que seja !
Isso aqui neste espaço, mas também em memórias mais longínquas.  Até porque desinserindo de contextos aquilo que se escreve, correm-se graves riscos de avaliações erróneas ou interpretações falsas.
Ontem, falando com uma pessoa conhecida, dizia-me esta que relê com frequência os diários que ao longo das décadas e décadas da vida, tem escrito.  Referia ter vinte e tal diários escritos, desde a juventude, quando ainda se passeava pelos bancos da faculdade, aos quais acede.
Acho isso fantástico e até interessante.  Eu não tenho paciência para tal !

Precisava dar uma virada na minha vida.  Está demasiado monótona e cinzenta, sem nenhuma ou pouca emoção, está cansativa, sem graça, totalmente rotinada, sem colorido ou loucura.
Contudo, embora tenha esta clara visão sobre o estado das coisas, falta-me totalmente o "combustível" para atear uma labareda interessante ... e o motivo prende-se exclusivamente ao óbvio peso do tempo que, como a minha mãe dizia , tudo dá e tudo leva ...
Não será, é claro, uma questão exclusivamente minha.  Muita gente, ou quase todos, referem exactamente queixas semelhantes, uns com mais, outros com menos capacidade reactiva, coragem e fé para apostarem na reversão possível deste lastimoso estado de coisas.
Eu, sou das mais tristes, das mais desistentes, das mais revoltadas ... acabando também por ser ironicamente, das mais acomodadas ... como se a minha insatisfação fosse na proporção daquilo que a vida me deu, daquilo que vivi, dos sonhos que criei, dos filmes que inventei ... Tudo proporcionalmente grande, tudo inevitavelmente irreversível, tudo em excesso, tudo imenso, como a pessoa extravasante e intensa que sempre fui. 
Fui ... e que não consigo ser mais !... "tudo dá e tudo leva ... "
Tudo  suficientemente  "dramático",  como  já  me  disseram ... tudo  astronomicamente  pesado !...
E como acho que falar destas queixas, destas insatisfações, deste cansaço é verdadeiramente uma "pepineira" que não interessa a ninguém, remeto-me mais e mais ao meu silêncio, ao meu canto, ao meu lugar.  As pessoas, individualmente, nesta vida tão conturbada, já têm chatices que cheguem, problemas que lhes tirem o sono, preocupações que as acabem, e vão-se também isolando, vão também encontrando pouco espaço ou disponibilidade nas agendas diárias, vão procurando formas construtivas de viver e sobreviver, e de não se deixarem sucumbir pelo cansaço, pelas angústias, pelas preocupações e pelo cinzentismo de vidas, quase todas já, crepusculares !  E fazem muito bem !

Entretanto ando cada vez mais irritada, com uma postura noticiosa, dos mídia, no relato de acontecimentos que vão ocorrendo na nossa realidade diária.  Trata-se fundamentalmente não dos conteúdos, mas da forma de abordagem das questões.  
Passo a explicar :  a terminologia adotada passou a ser de "um idoso, uma idosa ... " sofreu isto, aquilo, aconteceu-lhe isto ou aquilo ... etc, etc.
Deixou de ser "um homem, uma mulher ..."
Uma criança, está perfeitamente identificada, um jovem, também.  Até aos cinquenta continuamos como  "homens ou mulheres", designação de imediato extinta dos sessenta para cima !  
Aí, não há safa, adquirimos automaticamente o rótulo do idoso ... do "velhinho", do "empata", do "cota" pejorativamente falando.  
E é um desespero, porque ainda que provavelmente bem escorreitos física e mentalmente, quantas e quantas vezes, caímos em desgraça e passamos a fazer parte da turba cinzenta do pensionista, do desocupado, de quem não tem nada p'ra fazer, do que está cá para onerar o sistema ... do que "empata" ... finalmente, do sujeito passível de uma qualquer desgraça a engrossar a estatística do "idoso" !!!

Bom, isto foi apenas um desabafo, ironicamente aqui abordado para aliviar o peso da malfadada conotação ... da incómoda injustiça social !
Que saudade do tempo em que em última análise, eu era apenas "uma mulher de tantos anos "... etc, etc, etc !!!...

Anamar

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

" UMA LUFADA DE AR FRESCO "


Hoje acompanhei uma amiga de toda a vida a um cartório notarial onde ela foi fazer a escritura de um apartamento adquirido há cerca de dois meses. 
Tem ela talvez mais uns três anos que eu, e há tempos atrás essa mudança na sua vida seria impensável.  Ou talvez ela a não quisesse verdadeiramente questionar.
Tendo contraído poliomielite em criança, e tendo ficado com sequelas da doença, o que lhe conferia em permanência  algumas restrições motoras, sofreu, em acréscimo, um acidente grave fará exactamente um ano agora em Dezembro, com uma consequente lesão na coluna, que a atirou para uma recuperação longa e difícil, e uma perspectivação diferentemente obrigatória da sua vida futura, no dia a dia. 

A  Fatinha que sempre viveu exclusivamente com a mãe, teve uma vida com a normalidade possível.  Era e é totalmente autónoma, viveu em pleno a sua vida profissional até à aposentação, com sucesso absoluto e competência reconhecida, e depois da mãe ter falecido passou a aproveitar essa liberdade imposta, para viajar, com um grupo de colegas de profissão.
Sem dificuldades económicas, deambulou, de leste a oeste, pelo mundo inteiro.  Aproveitou portanto, o melhor que pôde, a disponibilidade que a vida lhe ofereceu.

Havia um senão.  A Fatinha viveu e vive ainda num prédio antigo, num segundo andar sem elevador, o que, se até aqui ia dando, melhor ou pior, para ir levando, depois da fatídica queda sofrida há um ano, as dificuldades aumentaram substancialmente, e ela passou a ter uma vida praticamente confinada ao espaço habitacional, limitada portanto na sua liberdade de movimentos.
As amigas insistiam que ela deveria encarar a sua realidade e mudar de casa o quanto antes, alertando-a para o normal avolumar das dificuldades face à implacabilidade do decurso dos tempos, o que parecia não fazer muito eco junto da Fatinha, ligada sobretudo emocionalmente ao espaço adquirido pela mãe e sempre com ela partilhado.

Até que,  um qualquer clique inesperado, fez eco na sua cabeça.  Acho que, da noite para o dia, decidiu que o rumo seria não pactuar com uma aparente negação da realidade, encará-la de frente e decidir a vida.  Assim o fez, e desencantou o imóvel à medida dos desejos em velocidade de cruzeiro.
Em dois meses, a Fatinha encontrou um apartamento fantástico, localizado num lugar de excelência, com todos os requisitos necessários e mais ainda.
E hoje foi então realizada a escritura do mesmo.

Fui buscar esta história, porquê ?
Porque, à minha frente estava uma Fatinha decidida, resolvida, com a felicidade de objectivos cumpridos, que alimentou sonhos e está a realizá-los.  Uma mulher que sempre aparentou ser dependente, até meio atrapalhada face à vida, com uma experiência pouco desenvolvida, já que sempre viveu com excessiva rede protectora enquanto a mãe foi viva, surge agora já neste timing  com disposição, vontade, confiança e fé ... sem fantasmas ou medos, parece ... pelo menos com a coragem necessária a iniciar mais um ciclo, ou a recomeçar uma nova estrada !
De alma aberta a novos sonhos !

Mexeu comigo este episódio, um destes dias explico porquê ...

Anamar

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

" POR ESTES DIAS ..."

 


Por estes dias fui e vim de viagem como relatei, entretanto contra minha vontade, aniversariei ...😉😉, coisa que me irrita profundamente não poder controlar ...😁😁 
Enfim, retomei as rotinas de sempre, porque a vida faz-se todos os dias .
Este ano o dia caíu em cheio num domingo ( também nasci num domingo de acordo com as informações maternas ), e como tal, estava mesmo a pedi-las que eu juntasse a família toda, não só porque há séculos me não propunha partir para um evento desta envergadura, mas porque sendo domingo não havia desculpas por parte dos participantes de se demarcarem da respectiva presença. 
Dessa forma, a minha filha mais velha calar-se-ia com as acusações habituais de que sou uma egoísta e comodista, que nunca me disponho a tais confraternizações como as matriarcas das famílias "normais" fazem ... e patati e patata ...
Reconheço-lhe de facto alguma / bastante razão, pois fujo abissalmente ao paradigma da família funcional, e como também a afectividade e a proximidade entre os elementos da nossa micro-estrutura familiar não são a marca reconhecida, pautando-nos bem ao contrário, com uma imensa falta de partilha e cumplicidade  ( sobretudo com o referido núcleo ... ), desde que nos saibamos com saúde e sem particulares contratempos, mantemos o distanciamento prudente para que alguns conflitos não possam eclodir mais violentamente.
Devo referir que as maneiras de ser e pensar entre mim e ela são totalmente opostas, os valores que defendemos também, os interesses e preocupações raramente se afinam, a forma de estar na vida, e ver o mundo ao redor, igualmente. 
Como tal, existe potencialmente uma mistura explosiva iminentemente pronta a deflagrar à mínima fricção, que se deve evitar a todo o custo.
A fórmula "familiarmente correcta" de convivência pacífica, passa portanto por nos sabermos bem de saúde, sem problemas significativos de outra ordem, sem grandes ondas, perturbações ou turbulências.
E assim vamos andando !...

Entre as duas irmãs, e porque a mais nova é substancialmente parecida comigo, logicamente o "status quo" é idêntico, e portanto a situação é paralela.
O relacionamento é feito "com pinças", sempre num equilíbrio ameaçado. O que uma entende não entende a outra, o que uma defende nada tem a ver com os objectivos da outra, e assim sucessivamente.
Não foram poucas as vezes em que ao longo do almoço eu espetei beliscões na mais nova, ou lhe dei pisadelas por debaixo da mesa, por iniciar caminhos "suicidas" nos temas abordados.  Já sabíamos onde iriam dar, e sinceramente, não tenho pachorra ou folga emocional pra grandes embates que de nada valem a pena e a lado nenhum, nos levam ...

Como se vê, uma verdadeira e interessante animação, foi o meu almoço de anos !

Chegados ao fim, apresta-se a necessidade das arrumações.  Tudo sai dos lugares e tem que voltar, tudo se suja e há que limpar, etc, etc, etc.
A minha realidade diária é de uma pacatez total. Sou eu e o meu gato, com um esquema de vida e rotinas que preservam os espaços e as coisas, pelo que os dias se passam sem grandes afobações ou tarefas exaustivas.  Cheguei portanto à noite, totalmente feita em fanicos.  
Pude constatar claramente o que o avanço do tempo nos causa, em capacidades, resistência, frescura.  Há alguns ( não necessariamente muitos ) anos atrás, estas tarefas eram realizadas com uma perna às costas, a frequência com que se promoviam por ano estes convívios, era largamente maior, e o grupo que desta vez se sentou à mesa era bem mais alargado, por evento.
Pois, mas o tempo é carrasco e não se compadece !...

O cansaço físico e a falta de disposição que me confina grande parte dos meus dias à casa, sem que me anime a grandes outros programas, é acompanhado igualmente dum exasperante cansaço mental e emocional.
Hoje em dia, o nosso mundo alargado, as realidades doídas que se vivem lá fora, o horror que nos aturde de todos os lados, a dor que dói mais porque não se entende ou justifica, são um "ruído" assustador, deprimente e mortal !
Há uma "poluição" emocional tão desestabilizadora que nos mata aos poucos.  A impotência experimentada, o cansaço da dor das imagens sem alívio, de duas guerras a grassarem em simultâneo, a cegueira e a surdez do Homem que parece ter-se transformado numa espécie amputada de sentimento ou emoção, num estado de alucinação ou loucura, deixam-nos também a nós em desvario, petrificados, gélidos, anestesiados ... em choque !

No nosso universo estrito, que é como quem diz, na nossa realidade diária, num país que estrebucha mergulhado em corrupção, compadrio, desonestidade ... crime ... e em que cada um procura tirar o melhor quinhão para si, apenas para si, mesmo que tenha que pisar, trucidar, levar na avalanche todos os que se meterem à frente ... a vida é feita a pulso, tostão por tostão, degrau a degrau, subindo um e descendo quantas vezes, dois ... num esforço e num desencanto sem tamanho.  
Numa competição feroz e doentia, num oportunismo descarado,  numa insegurança tormentosa, as esperanças fenecem, os sonhos estiolam, o cansaço torna-se patológico ... o reconhecimento e a compensação quase nunca acompanham as competências, o esforço e a dedicação ... 
Bem ao contrário !...
E tudo isto derruba, esgota, instala o cansaço, exponencia a incerteza e adoece a alma.  E atrás de uma alma doente, é fácil um corpo desistir ...
Afinal, fica difícil, muito difícil costurar os pedaços !...

Enfim, já me alonguei neste mix atordoante a preto e branco ...
Só que ... foi assim por estes dias ...

Anamar

sexta-feira, 24 de março de 2023

" SONHO BOM "

 


A Primavera entretanto chegou.  A Teresa já me vinha dizendo, nos seus convictos cinco anos, que ela "estava à porta".  Os dias ensolararam, sem dúvida as temperaturas subiram e já começamos a sacudir os casacos invernosos.
Ainda assim, friorenta como sou, o saco de água quente e o édredon continuam a ser meus amigos pela noite dentro.
Agora tenho quase todo o tempo também, a presença do Jonas que se aninha aos pés e até faz boa companhia, pois não é muito chato no desassossego.  Uma nova logística teve que ser criada em consequência do grave problema de saúde do Chico que, tal como eu vinha a suspeitar, está diabético.
Assim, alimentação distinta para cada um deles, a necessidade da areia estar em permanência disponível para que resolva as sucessivas urgências pela madrugada fora, implementaram um esquema algo complexo aqui em casa.
Põe comida, tira comida, acrescenta a água no bebedouro, dá insulina de doze em doze horas, a que se segue como importante que ele tenha comido quando o açúcar começa a baixar, para acautelar uma perigosa hipoglicémia ... são apenas pormenores que não podem / devem falhar na pacatez do dia a dia nesta casa.
Afastar-me daqui por excesso de horas, também não é muito possível, uma vez que só comem quando eu desenvolvo os consequentes episódios  que referi.
A ideia é controlar a doença, já que sendo uma patologia crónica, a diabetes dificilmente é passível de reversão.
Depois coloca-se outro filme de terror que é exactamente a quase impossibilidade de me afastar aqui de casa, por dias.  Desta feita, a garantia da administração da insulina tem que ser completamente assegurada, e se a D.Leonilde que é o meu "anjo da guarda" quando viajo, já que sempre assegurou a manutenção alimentar diária e bem assim a higiene dos bichos, não pode obviamente proceder à inoculação da mesma.  Não daria conta do recado, ou melhor, é o tipo de coisa que jamais eu lhe poderia solicitar.
Assim, se não quiser dar em doida e não me deprimir mais do que já estou, terei que inventar, não sei que solução para obviar ao problema.
E terei que o fazer duma forma bem resolvida, já que conviver com problemas de consciência intranquila, é uma questão fora do aceitável.  A minha cabeça tem que estar em paz e não arranjar soluções que venham a culpabilizar-me futuramente.

A Primavera chegou, como disse.  O sol, às vezes tímido, outras mais atrevido, faz sentir o seu calor e a luminosidade dos dias é um fascínio.
Na mata tudo floresce.  São as mimosas já bem engalanadas, são as azedas que alcatifam o chão, as pervincas que mesclam o seu azul com o amarelo daquelas ... são os folhados e outros delicados arbustos com pequenas florzinhas brancas como grinaldas ... são as chagas ... e é a passarada que numa fona, saltita de ramada em ramada, os melros, as rolas, os periquitos de colar, os pombos e os patos bravos que iniciam os processos de acasalamento ...  Voam, cantam, trinam e numa afobação imparável parecem ter pressa.  
O tempo climatérico, tipicamente primaveril onde nem sequer faltam os borrifos habituais de chuvinha mansa que volta e meia nos surpreende, renova, pinta, enfeita uma paisagem que aviva as cores, intensifica o brilho e renova a promessa de renascimento que assoma em qualquer canto.
A natureza sempre é um bálsamo para o coração, uma bênção para a mente e uma esperança que os dias vindouros generosamente levem para longe o cansaço, as agruras e o desalento.  Tudo volta a parecer auspicioso, possível de acontecer ... feliz !



Anamar

domingo, 8 de janeiro de 2023

" UM INVERNO FANTASIADO DE PRIMAVERA "

 


Cinco e meia e anoiteceu ...
Menos mal que anoiteceu alaranjado na linha do horizonte, o que prevê tempo mais cordial do que temos tido.  O primeiro dia do ano primou por ter os rigores da estação a que pertence ... uma invernia de chuva e frio, de desconforto e silêncio, espelhados no cinzento agreste com que se vestiu.
Hoje, o sol resolveu iluminar o dia, fazendo jus ao ditado que garante que "depois da tempestade sempre vem a bonança"... Pudéssemos ter isso como certo, e as tormentas da vida parecer-nos-iam menos penosas, por temporárias.

De manhã resolvi fazer a caminhada, numa espécie de determinação contra a calaceirice instalada nos últimos tempos, de que as tropelias atmosféricas são as principais responsáveis.   
E voltei à mata no intuito de avaliar que estragos por lá se sentirão e a viabilidade ou não, de por ali retomar o programa habitual.
Também ali se fez sentir o efeito devastador da violência atmosférica. Também ali a erosão nos caminhos motivada pela força da escorrência impetuosa da água e das pedras arrastadas, traçaram configurações anormais na paisagem.  A ribeira transporta um caudal barulhento de zangado, a velha cisterna seca no Verão, transbordou e vaza, caminho fora toda a água sem contenção, desenhando e cavando no solo, verdadeiras linhas que nunca ali existiram. Uma árvore respeitável no tamanho e na longevidade tombou, sucumbindo à força dos elementos.  Muitos caminhos mntêm-se quase intransitáveis, os pássaros pouco soam, não há patos nos tanques, abelhas não zumbem ... cigarras também não.  Tudo parece ter fechado p'ra balanço.  A natureza assim o determina !
Duas borboletas voavam em "casamento" brincalhão.  Pareciam crianças no recreio da escola.  Vinham, cruzavam-se, abraçavam-se, soltavam-se de novo. Não sei, em termos biológicos, a que timing de vida poderá corresponder, nesta altura do ano, esta dança frenética de duas borboletas na mata ... 

Mas, porque do frio mesmo, pouco se dá conta, e porque a vida das espécies não sucumbe fácil, surgem, descaradamente, as primeiras flores por lá.  As azedas já se espalham ensolarando o verde das veredas, as mimosas começam a encorpar, promissoras, ao longo das ramagens, o folhado já abriu flor nos ramos mais expostos ao sol, e o aloé vera coroou-se do laranja enrubescido das flores erguidas ao céu como verdadeiros troféus ... Um Inverno fantasiado de Primavera !...
A renovação indesmentível e certa aí está, assegurando sempre a continuidade e a vitória da vida sobre a morte !

Anamar

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

" O VERÃO DOS MARMELOS "


Novembro chegou.  O característico tempo cinzento instalou-se, como seria de esperar.  Ainda não está frio, mas também já não temos o aconchego das temperaturas da estação anterior.  
O S.Martinho parece fazer cara feia contra aquilo a que sempre nos habituou, e o "Verão dos marmelos" que coincide segundo a minha mãe dizia, com o S.Mateus cuja comemoração em Viseu implica a realização da grande feira anual, já terá terminado.  

Quando o tempo azulava de novo e o sol persistia em brilhar brincando connosco de um Verão de fazer de conta, numa aparição fora de época, todos nos preparávamos para o S.Martinho que ainda haveria de nos ensolarar a vida, antes do escuro e do desconforto que aí vinha.  
Tempo de magustos, castanhas e água-pé, pretexto enviesado para algumas paródias, sobretudo se estivéssemos na aldeia, eram momentos sempre inesquecíveis ...
Afinal é uma época de doçura nas despensas e no tempo.  Àquelas, descem as compotas, os doces, as marmeladas ... a este, descem as tardes alaranjadas de sol manso, descem as cores duma natureza que se embrulha  num manto com restos de folhagem nas árvores e nos arbustos, e tapetes fofos a restolhar pelo chão à frente da aragem quando sopra ...

Mas antes, como disse, a minha mãe afirmava . "Ainda aí vem o Verão dos marmelos" !   
Comprados na Feira de Outubro no Redondo, os marmelos, amarelos, cheiinhos, com ar promissor, eram comprados aos quilos ... muitos ... para a desejada marmelada, feita em casa dos meus avós e que tinha à sua espera, as prateleiras da despensa, na nossa casa de Évora.
Colocada em travessas fundas adquiridas para o efeito na Feira do S.João, e cobertas com papel vegetal, iria durar o ano inteiro até que nova "safra" se anunciasse.
"Bem docinha", exigia o meu pai, sempre guloso além da conta ... 😆😆
E assim era !...

Hoje, resta-me a memória desses dias idos.  
Os marmelos continuam nos mercadinhos, ou nas grandes superfícies, amarelos e cheiinhos. As travessas fundas ainda existem na minha casa ... o doce que barrava o pão está-me ainda na boca ... Tudo o mais se esfumou no tempo ...
O cheiro das castanhas assadas sobe da rua, se a vendedeira escolher o recanto do meu largo pra fazer negócio ... Marmelada, às vezes oferecem-me uma ou outra tacinha, p'ra matar saudades ...
O meu pai não poderá já opinar sobre a medida do açúcar a usar, a minha mãe também já não anuncia mais o "Verão dos marmelos", e as prateleiras daquela despensa permanecem vazias da remessa que todos os anos as haveria de adoçar !...

Anamar

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

" ANTES QUE ME ESQUEÇA ... OU, ENQUANTO ME LEMBRAR ..." ( 6º EPISÓDIO )

 


O meu caminho para o liceu era fácil.  Embora morasse um pouco longe, com aquela idade tudo era uma festa !
Assim, subia a avenida, passava pelo pátio do Agnelo de que já falei, "apanhava" a Teresinha que morava algumas casas adiante, seguia frente à mercearia e drogaria do sr. Acácio, do outro lado da rua, continuava junto às Escolas Primárias em pleno Rossio de S.Brás, mais adiante o Regimento de Infantaria 16 e por aí fora, voltava à direita, atravessava frente ao Chafariz das Portas de Moura e derivava para a rua que me levava então, lá ao fundo, ao largo de acesso ao liceu, numa rua a descer ...
Os nomes das ruas já não consigo dizer.
Havia um autocarro que circulava ao cimo da minha avenida, que em dias de muita chuva os meus pais faziam questão que eu apanhasse.  Mas eu gostava bem mais de ir a pé.  Assim, às vezes chegava ao liceu molhada que nem "um pinto" ...😂
Nesses dias de Inverno a sério, a minha mãe pegava então num par de meias minhas e lá ia a caminho do liceu entregar a uma contínua para que eu pudesse trocar as meias encharcadas, por um par sequinho.  Entretanto, ela própria apanhava uma molha e tanto, nesta operação !...  Mas mãe é mãe , claro !!!...

Os meus pais eram oriundos de famílias muito humildes. O meu pai nascido numa aldeiazinha na raia de Espanha, no Baixo Alentejo, provinha duma família de cinco irmãos dos quais ele era o mais velho.  Não conheci os meus avós.  Ele era sapateiro, pouco amigo de trabalhar, tanto quanto sei, a minha avó tinha a seu cargo a penosa tarefa de criar os filhos em dificuldades extremas.  Assim, com sete anos já o meu pai era moço de recados, para ajudar como podia, ao sustento da casa.  Mais tarde, marçano de armazém.  Creio que terá feito (ou não ) a quarta classe.  Pelo menos não era analfabeto.
A minha mãe, igualmente alentejana, desta feita duma vila do distrito de Évora, era a terceira duma família também de cinco.  Os meus avós maternos tinham um pequeno negócio de restauração, com que faziam face ao sustento da família. 
Em casa, de muita labuta, as filhas ( duas para três rapazes ), tinham que trabalhar tanto ou mais que as criadas.  A minha tia casou muito nova e saíu portanto muito cedo, da casa dos pais.  Ficou a minha mãe que era uma escrava de trabalho, sem descanso ou regalias.
Foi para a primária, era excelente aluna, mas ao fim da segunda classe teve que abandonar a escola, para ajudar em casa, no tratamento dos dois irmãos que entretanto nasceram.
De nada serviram os pedidos da Sra. D.Ressurreição ( a professora ), para que o meu avô a deixasse continuar os estudos.  Tudo em vão e portanto, pela vida fora a escolaridade da minha mãe, para grande mágoa sua, ficou por ali ...
Anos mais tarde, casada e já mãe, quis tirar a carta de condução.  O meu pai entendeu que lhe seria útil, uma vez que ele próprio a não queria tirar.  Só que, necessitava para o efeito de possuir como habilitação, o exame da quarta classe. 
Para a minha mãe, não havia obstáculos.  Sempre enfrentou tudo na vida com denodo, esforço e muita aplicação.  Assim, deitou mão aos livros e preparou-se para as provas, como adulta, claro.
Eu já frequentava o segundo ano do liceu e também fui protagonista na coisa.
Conforme ela dizia, enquanto cozinhava e fazia os trabalhos caseiros, tinha ao lado os livros e os cadernos e repassava vezes sem conta as matérias.  Eram as dinastias na História, eram os rios, as serras, as linhas férreas na Geografia e por aí adiante ... os exercícios da aritmética, os problemas mais elaborados ... etc.
O meu papel era então, quando regressava a casa, conferir o sucesso ou não, do estudo desse dia ...
E dessa forma, a minha mãe alcançou o desiderato perseguido ... fazer com aproveitamento o seu exame e com ele, inscrever-se na escola de condução para aprender a conduzir na complicadíssima geometria da cidade de Évora.  As suas ruas estreitas, becos e outras dificuldades no Centro Histórico, tornam a obtenção da habilitação à condução, como das mais difíceis de alcançar.  Era pelo menos assim !
A minha mãe não era, contudo, muito expedita nessa área ...😁😁 Extremamente nervosa, descontrolava-se  sem nenhuma calma e só à terceira tentativa alcançou a aprovação !... 😁😁😁 
A carta foi passada, existe até hoje, neste momento nas mãos da neta mais velha que a quis guardar como memória da avó.
Esteve toda a vida arquivada numa gaveta, pois carro nunca houve, e assim sendo, nunca a minha mãe se sujeitou à aventura de dirigir por conta e risco, o seu próprio carro !...😓😓
Coitada !...

Anamar

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

" ANTES QUE ME ESQUEÇA ... OU, ENQUANTO ME LEMBRAR ..." ( 5º EPISÓDIO )

 


Quando a escola primária terminou, completados os quatro anos normais de escolaridade, fiz o exame de Admissão ao Liceu Nacional de Évora, hoje a sua Universidade, instituição absolutamente icónica na cidade e no país.  

A universidade de Évora foi fundada a 1 de Novembro em 1559 pelo Cardeal D.Henrique  ( Arcebispo de Évora, mais tarde rei de Portugal ), a partir do Colégio do Espírito Santo, como a Universidade do Espírito Santo e entregue à Companhia de Jesus, que a dirigiu por dois séculos. 
Por isso, esse dia, é considerado até hoje, o Dia da Universidade.
No século XVIII foi a mesma encerrada por ordem do Marquês de Pombal, aquando da expulsão dos Jesuítas.
Voltou então a ser reaberta em 1973 como o Instituto Universitário de Évora, e só em 1979 este Instituto deu lugar à nova Universidade de Évora.
Foi a segunda universidade a ser fundada em Portugal, depois da de Coimbra, a mais antiga do país.

Assim, quando nela entrei a mesma detinha o pelouro do Ensino Secundário, desde o primeiro ao sétimo ano, com que este grau académico encerrava.  Paralelamente, na cidade existia também em opção, a Escola Comercial e Industrial, vocacionada p'ra saídas profissionais e não para o  prosseguimento de estudos.
Logo aí estava criada uma clivagem social entre quem frequentava o Liceu, a classe economicamente mais favorecida, e quem frequentava a Escola Comercial e Industrial.

Bom, mas lá fui fazer o exame de admissão ao Liceu, com a prestação de algumas provas de que me saí muito bem.  Lembro que numa das provas orais me foi feita uma pergunta na área do português, creio, à qual, precipitadamente respondi errado.
A professora olhou p'ra mim e do alto da sua cátedra disse : " Pensa ! A cabeça não é só feita para usar caracóis !"...
Não me atrapalhei e retorqui : " Eu sei, e daqui a pouco já respondo !" E assim foi.  Passados minutos dei a resposta correcta, o que fez rir o júri.  Bem pequenita que era,  tive o rápido discernimento de contornar a situação de forma airosa ...😁😁

O Liceu era misto, embora houvesse separação de géneros no espaço físico que o constitui.  As raparigas podiam ocupar determinadas zonas e os rapazes outras, embora na saída todos convivessem sem problemas.
Quem já visitou a actual Universidade sabe que ela é um monumento com uma arquitectura fantástica.   É composta por um conjunto arquitectónico austero, dos finais de século XVI, englobando vários edifícios - igreja e colégios - de construção maneirista de Estilo Chão, empregando o granito regional. A entrada desenrola-se a partir de um pátio interior totalmente contornado por claustros, quer no rés-do-chão quer no primeiro andar, o Pátio dos Gerais, exibindo rica azulejaria de época, e o interior das salas de aula dispostas ao longo desses claustros, possui púlpitos decorados com madeiras exóticas, bem como azulejos quinhentistas e seiscentistas.
No centro desse espaço existe um chafariz.  A fachada da antiga capela do Colégio do Espírito Santo é marcada por um enorme pórtico de mármore do séc. XVIII, encimado por uma pomba, símbolo do Espírito Santo e também da Universidade.
A Sala dos Actos do Colégio ( estilo barroco setecentista ) é um dos espaços mais imponentes de todo o edifício.  Tem azulejos e estuques do séc. XVII em tons verdes, azuis e rosa, alusivos às matérias leccionadas ( Matemática, Astronomia, Física e Belas Artes ).  No topo da sala podem ver-se os retratos a óleo de D.Sebastião e do Cardeal-Rei D.Henrique.
A Sala dos Actos era o lugar mais nobre do liceu, onde se realizavam os eventos mais importantes, como as sessões solenes de abertura de cada ano lectivo.
Os alunos merecedores de alguma distinção em cada ano, eram premiados no início do ano que se iniciava.  Por isso lá, recebi, das mãos do Reitor, um prémio, como contarei posteriormente, e bem assim menções honrosas por não ter dado faltas nos anos escolares cessantes.

O liceu cultivava certas tradições semelhantes às existentes na Academia coimbrã.  A entrada para as aulas anunciava-se pelo badalar do sino que existia nos claustros.  Penso que era o Sr. Almas, o contínuo a quem estava atribuída essa tarefa. O chefe dos contínuos era o inesquecível sr. Francisco,  uma figura ímpar ... Com alguma idade, mínimo de estatura, tinha o cargo máximo de responsabilidade na hierarquia do pessoal auxiliar.  Era muito querido e respeitado, e em cada ano, era figura presente e "obrigatória", na fotografia solene tirada nas escadas do pátio, por cada turma com a presença de todos os alunos e dos respectivos professores, bem como do Reitor, como figura máxima de prestígio.
Usava-se o traje académico no liceu, se e quando o desejássemos. Também o tive.  Saia-casaco preto, camisa branca, gravata e sapatos igualmente pretos, e claro, a capa de estudante. 
Dava ela um jeitão, nos frios invernos de Évora !

Iniciei o meu percurso escolar no Secundário com alguma atribulação.  
Na madrugada de 1 de Outubro  ( dia oficial do início de cada ano escolar ), exactamente no meu primeiro ano do liceu, a "bendita" serração de madeiras, sita paredes meias com a minha residência, que havia ardido alguns anos atrás, como relatei, voltou a sofrer outro incêndio. Um novo curto-circuito criou o pânico em minha casa, onde só eu e a minha mãe dormíamos.  Nunca podendo esquecer tudo o que havíamos sofrido anteriormente, a minha mãe entrou em choque, sem conseguir agir com a rapidez exigível a chamar o socorro.  Tentou telefonar para os bombeiros, mas chorava tanto num descontrole total, que fui eu, que deitando as mãos ao telefone pedi a ajuda necessária.
Lembro-me claramente que saltando da cama, ao fugirmos para a rua, agarrei num pequeno guarda-jóias que existia no toucador, em metal, vazio de jóias ou do que quer que fosse e o transportei comigo como se ali transportasse o tesouro mais valioso da casa ... nunca mais o largando !...😆😆
O mesmo faz parte do acervo da casa dos meus pais, que ainda hoje está comigo ...

Coisas de criança ... 


Anamar

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

" ANTES QUE ME ESQUEÇA ... OU, ENQUANTO ME LEMBRAR ..." ( 4º EPISÓDIO )

 


Até ir para a escola, sem horários a cumprir, ia muitas vezes com a minha mãe à praça, o mercado municipal, para nos abastecermos dos géneros alimentares.
Fica o mercado no Largo de S.Francisco, pertinho da igreja com o mesmo nome.
Ano após ano fomos sendo conhecidas pelas vendedeiras, algumas das quais nos tratavam mesmo, familiarmente.  A minha mãe, uma boa conversadora era uma pessoa bastante empática e depois, comigo pela mão sempre bem vestidinha, cheia daquelas mariquices que só as mães sabem fazer às filhas ... trancinhas, rabos de cavalo, laçarotes na cabeça, etc, parecendo uma bonequinha, era um motivo acrescido de muito apreço e brincadeira. 
A Sra. Mariana que vendia os produtos da sua própria quinta, situada perto do Degebe ( onde viríamos a passar uma bela tarde de Verão, a convite ), era particularmente, um doce de pessoa.
Deliciava-se com a minha performance, de cesta na mão como gente grande, e todas as vezes me punha lá dentro uma cenoura pequenina, uma ou duas batatinhas miniatura, um feijão verde e duas ou três ameixas amarelas ou roxas que nunca mais encontrei  iguais.  Eram umas ameixas fantásticas, com um sabor muito peculiar, absolutamente único ...
Como sabem, estávamos no tempo em que a fruta era a da época, nascida e criada de acordo com as condições generosas da Natureza, em que sempre sabíamos em que altura vinham as cerejas, as favas, o melão, a melancia ... e por aí fora.  Estávamos no tempo em que os produtos eram "nossos", portugueses, cultivados com o desvelo dos agricultores que os semeavam e os colhiam ... e isso era a sua vida !  Tudo tinha sabor, nada era "plástico", congelado, artificial ... Os produtos vinham do campo para a mesa, podíamos dizer !
A minha cesta das compras é mais uma das peças que existe na minha casa, até hoje ...

O tempo passou e era a hora de iniciar a vida escolar.  
Tinha ainda 6 anos quando ingressei na primária, sendo que a vida escolar começava então aos 7.
Existia na cidade, ao tempo, um colégio feminino particular, muito afamado em termos de resultados alcançados pelas alunas que o frequentavam.  Se houvesse à altura os benditos "rankings" de qualificação escolar, o Externato Conde de Monsaraz estaria seguramente em lugar de destaque.
Não era fácil ingressar no mesmo, porque a procura era grande.  Acresce que era frequentado pela classe média-alta da cidade.  A Elisinha, filha do Presidente da Câmara à altura, era, a título de exemplo, uma das alunas, de quem me tornei amiga. 
A minha madrinha de batismo era ainda familiar da dona e professora, a Sra. D.Maria Ramalho Prego, e foi por esta via que consegui entrar.
A professora era uma senhora esguia, seca de carnes, alta, creio ( embora em crianças tenhamos uma proporção diferente das coisas ), com o cabelo apanhado na nuca em banana ou coque.  Vestida de escuro e com saias até meio da perna, era uma figura austera, com um rosto fechado e respeitoso, encarnando na perfeição a figura das perceptoras dos filmes ingleses.
Leccionava as quatro classes ao mesmo tempo, sendo que na totalidade os alunos não iam além de vinte ... por aí.  O colégio situava-se no rés-do-chão do prédio de que ela e o irmão eram proprietários, e onde residiam, no Largo de S.Francisco, frente ao mercado.
A sala de aula tinha uma única janela, com uma rede fina para evitar a entrada de insectos.  Aproximavam-se dela, as mães na hora da saída.
As carteiras eram de dois lugares, frente à secretária e ao quadro negro.  Por cima, ficavam as fotografias de Salazar e Craveiro Lopes, o Presidente da República em funções, e um crucifixo.
Penso que algures ( já não tenho a certeza desta questão ), ainda existiam um mapa de Portugal e um Globo Terrestre, num lugar que já não identifico.
A sala tinha ao fundo um pequeno acesso ao vão da escada da casa principal, e esse esconso funcionava como casa de banho totalmente rudimentar.  Lembro que lá dentro havia uns quantos bacios altos, com tampa de madeira, e lembro também da lógica relutância que eu tinha em utilizá-los ...
Penso como os tempos tiveram mudanças inimagináveis ... Hoje em dia, que encarregado de educação aceitaria uma situação como esta ?  E como seguramente as entidades fiscalizadoras de saúde jamais concederiam um alvará de exploração dentro destes contornos ...
Recreio, também não havia.  Íamos almoçar a casa e retomávamos as aulas no período da tarde.
Muito de vez em quando, quando a Sra. D.Maria Prego estava muito bem disposta e o nosso merecimento era considerado, tínhamos por algum tempo, ordem para usufruir de um quintal da zona familiar da casa, para então brincarmos ao ar livre.
Mas isso era muito de vez em quando ... 😀😀

Mas aprendia-se, e muito !
Não havia historial de insucessos na admissão ao liceu e as alunas quase sempre eram aplicadas, já que o ensino era bem exigente.
A disciplina era total.  Bagunça, barulho, confusão dentro da sala de aula, eram inadmissíveis.  
Havia ainda a régua para as "palmatoadas", se fosse o caso, o ponteiro e ainda as "orelhas de burro", inevitavelmente estigmatizantes pra quem fosse "premiado" ...  Mas também havia medalhas de mérito penduradas ao pescoço, que nos enfeitavam o peito ufano ao regressarmos a casa, se as merecêramos por qualquer prestação digna de reconhecimento...

As orelhas de burro, p'ra mim, foram particularmente "devastadoras" 😔😔 como método pedagógico pouco aceitável, creio.  Passo a contar ...
Entrei para a primeira classe, como disse, com seis anos, e porque já ia adiantada e aprendi rápido, facilmente acompanhei as outras meninas de forma normal.  Assim, chegado o mês de Dezembro, findo o primeiro período escolar, transitei para a segunda classe e passei obviamente a ter as responsabilidades das meninas mais crescidas.
Lembro-me que nos ditados, a falta de pontuação ou a pontuação errada, eram consideradas um quarto de erro.  Excedendo os três erros, éramos passíveis de penalização, com as orelhas de burro...
Assim, num belo dia, num belo ditado 😏eu dei três erros e um quarto.  Reinou o silêncio na sala  na altura da entrega dos ditados corrigidos, até que uma das meninas, minha colega, disse : "Senhora Professora, a Guida deu três erros e um quarto ..."
Suspense total, com o meu coração disparado ... Acho mesmo que só as suas batidas se ouviriam ... 
De imediato a professora lavrou a sentença ... "Leva orelhas de burro !"
Bem dito, melhor feito e lá dei eu a cabeça ao cepo ... Ahahah 😭😭
Aquilo, pra mim era uma dor sem tamanho, eram os meus brios de aluna excelente, caídos em desgraça ... 
Sei que fui para o canto da sala, chorando todas as lágrimas do mundo, numa dor sem tamanho ...
A Sra. D.Maria Prego viria a manter o castigo por pouquíssimos minutos, pois teria caído em si e percebido ser de alguma injustiça a penalização que me havia atribuído.  Eu era a mais novinha, colocada indevidamente  numa classe que não seria legitimamente a minha, com responsabilidades que talvez exageradamente me não fossem exigíveis ... e retirou-me de imediato, as benditas orelhas ...

Mas o "estrago" estava feito, e confesso que, apesar da amizade que já existia até em relação à minha família, apesar de ter transitado de classe todos os anos conforme atestam os meus boletins de aproveitamento, com vinte valores ... apesar da Sra. Professora vir a ser posteriormente minha madrinha de Crisma, na Igreja do Carmo ... nunca mais esqueci este episódio, por toda a minha vida, por ter sentido seguramente no meu coração, uma injustiça imerecida.
Engraçado como há coisas que por vezes não valorizamos e que podem marcar indelevelmente uma criança, como sendo coisas inapagáveis nas suas memórias.  
Essa mágoa, em relação à minha professora, a bem dizer, nunca foi digerida, e ainda hoje sempre que olho uma pequenina chávena de café, Limoges, no escaparate da minha sala ( que me foi por ela oferecida exactamente como lembrança aquando da cerimónia do Crisma ), além de lembrar com clareza a sua imagem, logo me assoma ao espírito o famigerado e infeliz episódio das orelhas de burro !,,, 😁😁

Fico por aqui, neste já bem longa narração...
Tentarei continuar, antes que me esqueça ... ou, enquanto me lembrar ...



Anamar

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

" ANTES QUE ME ESQUEÇA ... OU, ENQUANTO ME LEMBRAR ..." ( 3º EPISÓDIO )


Cheguei àquela casa apenas com dois anos.  E digo "cheguei" porque não foi ali que vi pela primeira vez a luz deste mundo que me acolhia... 
Não, eu nasci numa pequena aldeia alentejana, na raia de Espanha, terra de origem do meu pai e família paterna, Aldeia Nova de S.Bento, onde nunca mais voltei e donde, obviamente pouco sei e de que não guardo nenhuma memória. 
Os meus pais rumaram então a Évora, talvez por ser um destino central para as viagens do meu pai, que como "caixeiro viajante" ( chamava-se assim ), percorria os Alentejos em trabalho.

Sou filha única, de pais "velhos".  Sou fruto de um segundo casamento tardio do meu pai, que sendo viúvo e já com 48 anos, casou em segundas núpcias, com a minha mãe, de 29 anos.
Talvez por isso, a relação dos meus pais comigo tenha sido sempre demasiado focada.  O meu pai, com um desvelo, uma preocupação e um amor quase mais de avô do que pai, era assim que me tratava.  O proteccionismo era total, nunca me ralhava ou sequer castigava ...
Acrescia o facto de ter um filho do primeiro casamento que aos catorze anos adoeceu irreversivelmente, com uma doença do foro psiquiátrico, vindo a ser internado numa instituição onde passou toda a sua vida, o que assustava brutalmente o meu pai, que assumia uma vigilância permanente e extrema com a minha saúde.
Pelo facto também de, por razões profissionais não poder ser uma figura muito presente na família, tentava compensar-me, tratando-me como prioritária, sempre.
Consequentemente,  a minha educação recaíu fundamentalmente sobre a minha mãe, que tinha por isso, o ónus da mesma.
Com responsabilidade máxima, apesar de me adorar e de sempre eu estar primeiro que tudo na sua vida, tinha uma presença permanente, excessivamente exigente e vigilante, pouco dada a cedências.
Escudada no facto de, estando o marido fora grande parte do tempo, chamou a si a intransigência de quem não pode vacilar nas directrizes pedagógicas.  Lembro que muitas vezes me dizia : " não podes dar desgostos ao teu pai.  Ele não pode arreliar-se, não venha a ter algum problema de saúde.  Eu sozinha, não teria condições de te criar !"
E pronto ... com esse "peso" sobre os ombros, essa chantagem emocional iria funcionar pela vida fora !...  
O meu pai viria a falecer com 90 anos ...😔😔

Fui portanto uma criança muito só, isolada e ensimesmada.  Convivia pouco, pois não me era permitido ir para casa de ninguém, e a minha mãe, ciosa com a limpeza e organização da casa, também não era muito aberta a "bagunças" infantis no nosso espaço, ela própria com uma personalidade muito individualista.
Tive alguns brinquedos ... duas ou três bonecas, não mais, e umas tralhas variadas, quase todas miniaturas de utensílios culinários, em barro ou em madeira. Em barro, provindos do Redondo onde se vendiam frente à casa dos meus avós, e em madeira comprados no Minho, em Caldelas, onde no mês de Setembro os meus pais iam a termas. 
"Residiam" dentro de um caixote de madeira, arrumado no rés-do-chão, no vão da escada, e nem sempre a minha mãe estava de "catadura" para mos ir buscar ( eu brincava na cozinha, atrás da porta ou às vezes, na varanda ).  Nos dias em que o caixote subia ao primeiro andar, passado algum /pouco tempo, a ordem era de arrumação de novo.  Afinal, não se queria desalinho pela casa ...
Certa vez, uma vez, a minha mãe cheia de bonomia convidou-me p'ra brincarmos ao "Dia das Comadres".
Nas quintas-feiras que antecedem o Carnaval, no Alentejo era tradição muito antiga festejarem-se os "Dias de compadres e de comadres".  Eram lanches ou outras refeições em que os amigos ( só masculinos e só femininos, respectivamente ) se juntavam a pretexto de celebrarem a amizade.
Desta feita, "ressuscitaram", vindos do andar de baixo, as panelinhas, frigideiras, pratos e talheres.  Na varanda acendeu-se o fogareiro que também era de barro e ali inventámos um lanche de Comadres ... neste caso, eu e a minha mãe éramos as únicas protagonistas !... 😂😂
Dizia-se  então : " O que  come  a  comadre ??  O que  a  comadre  comer ... Seremos comadres até morrer !"...  😁😁😁😁
Tempos esquecidos ...

Guardo até hoje a memória da chegada da Lolinha à minha vida, a boneca de porcelana com cachinhos loiros e olhos azuis que o meu pai me comprou, numa das suas vindas a Lisboa.
A Lolinha tinha uma mola na barriga e "chorava" quando se abanava para a frente e para trás.
Foi uma felicidade e tanto esse dia em que, regressado de viagem, o meu pai entrou pela cozinha adentro com uma caixa grande, embrulhada num papel branco com florzinhas azuis.
Sem nada dizer balançou o embrulho e frente aos meus olhos estupefactos, a Lolinha chorou ...
Essa imagem não desgrudou nunca mais da minha vida, e a alegria que senti também foi única e eterna, dentro de mim !
Hoje, a Lolinha que já baixou uma vez ao Hospital das Bonecas para reabilitação ( não porque eu a tivesse estragado ... aliás, quase não brincava com ela porque sendo de loiça, podia partir-se ... ), ocupa na minha casa um lugar de honra dentro de uma vitrina ... como uma das memórias mais gratas que tive na vida !

Já vos dei uma panorâmica de como eram os meus anos despreocupados, em que as responsabilidades escolares ainda não existiam.
De qualquer forma, forjei a minha personalidade dentro dessa realidade.
Quando comecei a ler e a escrever, canalizei-me muito para os livros de histórias e aventuras, com os quais passava longas horas dos meus dias.  A televisão haveria de chegar quando eu já completara 7  anos e ainda assim, na minha casa não existia.  Na avenida, conhecíamos duas famílias que as tinham, e sendo pessoas amigas, sempre nos convidavam para irmos assistir um pouco.  Mas a minha mãe entendia que isso era uma intromissão na intimidade de cada um ... e muito poucas vezes aceitámos o convite.
Eu gostava de desenhar e pintar.  Mais tarde fui ocupando os meus momentos de lazer, desenhando, alindando os cadernos da escola com apontamentos que fazia com esmero e perfeição e ... foi então que comecei a escrever ... Rabiscos, pequenas frases, textos insignificantes, declarações de amor à minha mãe ... papeizinhos que por ali ficavam ...
Na pré-adolescência, fase de normal desajuste em qualquer jovem, em que o intimismo, o sonho, a ansiedade ... todas as dúvidas e medos, todas as insatisfações e incertezas nos povoam ...  quase sempre os mesmos falando de sentimentos, de tristeza, de solidão ...

Retomarei ...  antes que me esqueça ... ou, enquanto me lembrar ...

Anamar

terça-feira, 11 de outubro de 2022

" ANTES QUE ME ESQUEÇA ... OU, ENQUANTO ME LEMBRAR ..." ( 2º EPISÓDIO )

 

                                                                 Tó Quim Barreto

Bom, eu fui para aquela casa com dois anos apenas.  E sendo assim, nem por obra e graça do Espírito Santo me lembraria do que quer que fosse, obviamente.

Dizem que as nossas primeiras memórias remontam aos três anos de idade, não sei.  Mas talvez não tivesse muito mais, quando um acontecimento me ficou gravado para todo o sempre. 
Não sei exactamente que "maldade" teria eu feito, que deixou a minha mãe furiosa.  
P'ra grandes males, grandes remédios ... "Não me queria mais pra filha, "sua má" ( dessa expressão, eu lembro )... 😁😁E se bem o disse, melhor o fez.  A Margarida, tesa que só ela, a vida toda, pegou num pano, fez uma trouxinha, supostamente com os meus pertences, pôs-ma na mão e encaminhou-me para a porta da rua, assegurando-me não me querer mais p'ra filha .  
Já eu me lavava em lágrimas e soluços, escada abaixo, vendo a minha vida a andar p'ra trás.  Abriu a porta e pôs-me na rua, fechando a porta em seguida.
Lembro-me  que  me  sentei  no poial, de trouxa  ao lado, num  profundo  desgosto incontrolável ...
Passaram minutos, não terá sido mais.  A minha mãe, do lado de dentro sofria tanto ou mais que eu.  Carregou esse arrependimento pelos anos fora, contava então.  Não teve mais coragem de alongar o castigo e num gesto magnânimo, abriu a porta e "re-assumiu-me" como filha ... 😆😆😆
Nem ela nem eu esquecemos nunca mais este episódio !
Hoje, estes métodos "pedagógicos" seriam altamente censurados... e conotados por certo, com maus -tratos.  Nunca o entendi desse modo.  A minha mãe adorava-me, e essa foi a forma que entendeu como eficaz, na correcção da dita "maldade" ... 
Eram outros tempos !!!

Lembrei aqui ontem onde era a localização da minha casa, e bem assim a sua descrição por dentro.
No rés-do-chão, e situada por debaixo da casa, ficava, como referi, uma garagem, simultaneamente estação de serviço, incluindo posto abastecedor de combustível, tanto quanto lembro.
Por interessante coincidência, e porque dizem elas não existirem de facto, achei curioso retomar essa referência exactamente hoje, porque se prende a essa garagem a memória duma figura pública eborense, nacional e também internacional que hoje, 11 de Outubro faria 91 anos.
António Joaquim Barreto, conhecido por Tó Quim Barreto, nascido em Évora em 1931, foi o primeiro piloto português a integrar os quadros da Ferrari, competindo em Fórmula 1.
Morreu num acidente brutal em 30 de Maio de 1957 com 26 anos apenas.  Era um desportista promissor, dedicado e premiado em várias competições.
Nesse malogrado dia, corria o Grande Prémio Automóvel de França em Saint Etienne. Tó Quim, como carinhosamente era conhecido em Évora, ia em 3º lugar quando o colega de equipa Piero Carini se despistou embatendo violentamente no Ferrari do português, tendo os dois sofrido morte imediata.
Ao seu funeral, relatam as notícias da época, compareceram milhares de pessoas demonstrando admiração, carinho e gratidão por este eborense que levaria também ao mundo, o nome de Portugal .
No Livro de Pilotos da Ferrari está registada a seguinte Homenagem :
"Aveva coraggio e passione : e morto a soli 26 anni ..."

Mas tudo isto também, e particularmente porquê ?
Não só porque, inesperadamente esta minha narração coincidiu com o aniversário de nascimento do Tó Quim, mas porque também eu, bem menina, sem que o soubesse, viria a conhecer "o alentejano que a Ferrari idolatra".  E como ?
Lembro com total clareza que o Tó Quim acedia à garagem com frequência, ao volante do seu carro.  Descia a avenida a altíssima velocidade e entrava com o carro, portão adentro, com a mesma performance.  O barulho era inequívoco ... lá vinha o carro de corridas ... o Tó Quim estava a chegar ...

Um dia, deixou de vir e a cidade chorou este seu filho querido ... o Tó Quim partiu !

Na mescla das histórias que lembro, há outro acontecimento que também fez notícia na cidade, sendo que muitas das pessoas que viviam então, o não esquecerão. Tudo se deve ter passado talvez num qualquer Setembro, não tendo eu sequer ainda dez anos.
Setembro era um mês bem quente, propício para férias de praia. Assim, eu e a minha mãe usufruíamos de uns dias na praia de Sines, antes que o ano lectivo começasse. 
Ao lado da minha casa ficava uma serração de madeiras já antiga e conhecida na cidade.  Nessa famigerada noite, devido a um curto-circuito, pela madrugada deflagrou-se um incêndio brutal.  Chamados os bombeiros, cujo quartel até nem ficava muito longe, logo o primeiro tanque de ataque se fez ao caminho, o mais célere possível.  Não estando completamente cheio, ao fazer uma curva a grande velocidade, o auto-tanque, capotou tendo morrido de imediato, um bombeiro.
O atraso da chegada de mais socorros permitiu que o fogo tomasse proporções alarmantes.  Quem assistiu, dizia que o fogo se via de qualquer ponto da cidade, lembrando fogo de artifício. 
Foi então accionado o pedido de intervenção da tropa.  A manutenção militar ficava também nas traseiras da minha casa e os soldados foram prestes a chegar.  Não havendo ninguém em casa e receando que a mesma fosse atingida pelas chamas, arrombaram a porta e iniciaram o esvaziamento indiscriminado e totalmente anárquico, da habitação.  Até as loiças da casa de banho foram arrancadas e retiradas, os móveis danificados, muitas peças partidas ... o pote do azeite, comprado para todo o ano e guardado na despensa, foi deixado aberto tendo-se perdido todo o seu conteúdo.
O recheio da casa foi sendo colocado em frente, na avenida, e muitas coisas desapareceram.
Enfim, muita confusão, muito atabalhoamento, muita precipitação.
Quando, contactadas em Sines, eu e a minha mãe regressámos ... o nosso pequeno mundo parecia ter ruído !...

Alguns anos depois, na madrugada do dia 1 de Outubro, meu primeiro dia de aulas no primeiro ano do liceu, a serração viria de novo a arder.

Mas isso e mais algumas outras coisinhas, recordarei ... e contarei ... antes que me esqueça ... ou, enquanto ainda me lembrar !...

Anamar

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

" ANTES QUE ME ESQUEÇA ... OU, ENQUANTO ME LEMBRAR ..." ( 1º EPISÓDIO )

 



Eu vivia numa avenida, no número quarenta.

A bem dizer isto não interessa a ninguém, mas sinto que devo escrevê-lo, porque qualquer dia posso já ter esquecido tudo, não é verdade ? 
E a minha mãe também já cá não está para me refrescar a memória .

Era uma avenida com árvores a ladeá-la.  Bem direitinha no traçado, ligava o Rossio de S.Brás à estação dos caminhos de ferro, lá ao fundo.  Quando as cancelas estavam abertas, podia atravessar-se a linha e seguir-se, estrada fora, em direcção ao Bairro de Almeirim, pelo meio dos campos, das oliveiras e sobreiros, das searas ...
Era caminho de passeios pela fresca da tarde, nos dias sufocantes de quarenta graus à sombra, era pretexto para a apanha das giestas com que os Maios nos brindavam ano após ano ... era destino da apanha da espiga, no adequado dia ...
Esqueci de dizer que era Évora, que eu era criança ainda, que o tempo corria manso e ronceiro e a vida fazia-se pacata.
Vivíamos, quase só eu e a minha mãe, já que o meu pai, que era viajante de profissão de um armazém de ferragens, pouco estava, perambulando pelos Alentejos, a negócio.
A casa, que ainda lá está, com rés-do-chão e primeiro andar, era demasiado grande apenas para nós as  duas.  Tão grande, que eu me assustava com o escuro dos espaços à noite. 
Da "casa de entrada" a que se seguia o vão da escada e mais duas divisões interiores  contíguas, uma delas funcionando como a "despensa", saía uma escada que perto do cimo virava à esquerda e seguia com mais alguns, poucos degraus.  No patamar havia um bengaleiro para os casacos, chapéus de  chuva e o chapéu da cabeça do meu pai que nunca o dispensou, mas quase sempre estava vazio, com uma jarrinha com flores de plástico frente ao espelho, já que a minha mãe achava inestética a roupa "ali pendurada" ...
A escada tinha uma passadeira vermelha escura dum material de cordoaria chamado"cairo" e que continuava por aí fora, pelo corredor onde no cimo a escada desembocava.
 Este era ladeado pelas portas das outras divisões : à direita a cozinha ( frente à sala de estar que tinha um fogão de sala que nunca funcionou na vida ), o escritório do meu pai de novo á direita, com a mobília de torcidos e tremidos ( que ainda hoje tem lugar de honra na minha casa ), frente à "casa de jantar".   Seguiam-se depois os quartos de cama, o dos meus pais à esquerda, o meu à direita, sendo que o corredor se encerrava com mais uma volta à direita, terminando na casa de banho.
As três divisões do lado esquerdo da casa tinham janelas viradas para a avenida, duas eram "sacadas", como se dizia, e a do meio era "de peito" como também se dizia.
Às sacadas chegavam as ramadas, às vezes floridas, das árvores da avenida, e como as flores eram adocicadas, os mosquitos, em descuido, também não me poupavam ...
As dependências da direita confinavam com um terraço, a que chamávamos varanda, onde existiam as cordas da roupa, o tanque de lavar, e muitos vasos de flores com privilégio para as sardinheiras, pelas quais a minha mãe sempre nutriu um desvelo especial.  A cozinha, em vez de janela, tinha uma portada de vidros para o exterior, forma utilitária de acesso à varanda.
A vista que se desfrutava dessa varanda, que como talvez tenham percebido virava para as traseiras da casa, era apenas de telhados intermináveis parecia-me na altura, que cobriam, lateralmente uma serração de madeiras e que encimavam, também a perder de vista, uma garagem de manutenção e guarda de veículos automóveis, com uma pequena bomba gasolineira acoplada.  O acesso a esta garagem fazia-se pela avenida, por um portão largo, situado por debaixo da casa.

Lembro-me que adorava ir para a janela da sala de jantar com a minha mãe, ver o pouco movimento da avenida.  Em frente ficava o Fomento, empresa que eu sabia confeccionar pelo menos rebuçados, e em dias de vento a favor, o cheirinho dos mesmos impregnava gulosamente o ar.  Tinha uma chaminé de tijolo, cilíndrica, muito alta, na qual residia uma família de cegonhas, que findo o Inverno, de regresso do exílio africano, num belo dia amanhecia no ninho vitalício, até aí desabitado.
Quase sempre eu acordava de surpresa, com o característico bater dos bicos, iniciando a tarefa de reabilitação da "casa" que ficara do ano anterior, porque a época da nidificação chegara.
Eu ficava literalmente siderada, fascinada com o seu regresso, sabendo que a partir daí tinha bem frente à minha janela, o recomeço de mais uma "história de amor", em sucessivos e fantásticos episódios.

A avenida era cruzada, já perto do Rossio, por uma transversal ... a Rua Diana de Liz, onde se situa a Igreja de S.Brás, lugar das minhas missas dominicais quando me portava bem, porque às vezes, à sorrelfa, "driblava" o controle da minha mãe e ia namorar para a "Fonte Nova", mais à frente ... um inofensivo fontanário com uma espécie de jardinzinho a contorná-lo ... nada de mais ... 
Com os meus treze anos e hormonas aos pulos, eu e o João, já com dezasseis, filho de um revisor dos caminhos de ferro a viver também na minha avenida mais perto da Estação, aproveitávamos os encontros enquanto podíamos.  O resto eram olhares trocados do alto do meu primeiro andar para a rua, quando ele regressava das aulas ( eu estudava no Liceu e ele na Escola Comercial e Industrial ).
O João Augusto Alegrias Almeida, deu comigo os primeiros passos no amor.  Tudo muito naïf, muito ingénuo, muito doce ... muito romântico !...
A minha mãe lá estava de atalaia, e quando me via na sacada logo desconfiava, e a ordem de "recolha" era imediata !... 😁😁

Na Rua Diana de Liz ficava um pátio, aquela tipologia antiga meio estranha, de habitação precária em que as famílias com dificuldades económicas viviam em comunidade, em casas baixinhas em torno dum espaço comum, como uma praça de terra batida, que comunicava com a rua através dum portão.  Eu gostava de ir até lá, até porque ali vivia a Micaela, uma das miúdas com quem eu convivia.  Na minha avenida, um outro pátio, um pouco acima da minha casa abrigava mais uma dezena de famílias no limiar da pobreza.  Também lá eu tinha amigos.  Nas noites de Verão brincávamos na rua, às escondidas até que a mãe chamasse p'ra dormir ... 
Invejava-lhes a liberdade e a ausência de controle tão apertado que eu tinha.  Eram miúdos que brincavam descalços se calhasse, quase sempre sem brinquedos e em que a rua e a ausência de horários os tornavam pássaros livres e soltos ...
Às vezes calhava  estar na casa da Teresinha Alves Martins à hora da refeição.  Batatas cozidas regadas com um fio de azeite e azeitonas ... E como eu gostava que me oferecessem do repasto !  Nada de peixe, nada de bacalhau ... nada dessas coisas chatas que eu era obrigada a comer na minha casa !...

Memórias inesquecíveis ... histórias avulsas que só quem as viveu as sabe contar ...

Amanhã continuarei ... enquanto me lembrar ...

Anamar

sábado, 8 de outubro de 2022

" A VISITA "


As gaivotas recuam ... 
Andam por aqui soltando aqueles gritos estridentes, voando ou pousando nos candeeiros ou mesmo sobre os carros.
Eu vivo no interior, ou seja, longe do seu habitat natural e espectável ... a orla marítima, onde são senhoras e donas das falésias, seja Verão ou as tempestades já açoitem os rochedos.
Há muito tempo atrás, aqui nas imediações e penso que não só aqui, existia uma lixeira municipal, espaço de vazamento dos lixos, a céu aberto.  Era a lixeira de Boba que de quando em vez empesteava a cidade com um cheiro fétido insuportável.  Bastava o vento soprar de feição para que lhe sentíssemos a presença.
Nessa altura, quando os bandos de gaivotas cortavam o firmamento, desalinhadas ao sabor da aragem, já sabíamos que procuravam comida porque seguramente haveria tempestade no mar.  
Recuavam portanto, buscando-a na cidade.  E Boba funcionava então, como a despensa que tinham à mão...

Felizmente que os tempos evoluíram, as regras de higiene e protecção dos espaços urbanos e da comunidade em geral beneficiaram de outras formas de abordagem e reconversão dos lixos, com a instalação dos aterros sanitários e estações de tratamento no âmbito da preocupação com a protecção ambiental, dos sólos e das águas subterrâneas.  
A reciclagem dos materiais, beneficiando da separação dos lixos urbanos, é uma das prioridades ecológicas dos diferentes governos, e um dos ensinamentos implementados em termos educacionais desde cedo, nas nossas escolas, como se sabe.  O sentido de responsabilidade, de cidadania, e consciencialização das populações, é vector determinante nos tempos actuais.

Contudo as gaivotas continuam a recuar.  Pergunto-me o porquê disso acontecer...
Às vezes, ainda estou recolhida e no silêncio do dealbar do dia, já as oiço e já as imagino cortando o céu aqui por cima ...
Os pombos, aves do betão, e agora também bandos de periquitos de colar que parecem começar a procurar espaços verdes próximos, povoam sem surpresa o nosso firmamento.  
Os pombos são obviamente residentes e estão totalmente aculturados, enquanto que os periquitos estão, ao que parece, em processo de instalação e integração nos nossos hábitos.  Passam normalmente em grupos familiares, acelerados, parecendo ter um objectivo determinado a atingir, quase sempre ao fim do dia.  Identifico-os pela forma característica da silhueta, mas sobretudo pelo som que emitem e que lembra um gralhar atabalhoado ...
Quase sempre os persigo com os olhos e sigo com eles de rota batida, lá para onde quer que eles vão ...
As andorinhas também já partiram.  Afinal o Outono instalou-se, no calendário apenas, é bem verdade, e vai estando manso até que qualquer dia fique de candeias às avessas e dê uma reviravolta neste calor que ainda nos atormenta.

Porque recuam então as gaivotas ?
Entediaram-se lá pelas escarpas marinhas, onde os areais finalmente em paz da balbúrdia estival, estão agora serenos e silenciosos ?  Cansaram-se da toada das ondas açoitando os rochedos, quando as noites  dão lugar aos dias e os dias dão lugar às noites ?  Vêm dar uma espiadinha bisbilhoteira à urbe, para fazerem história junto daquelas que já não se atrevem ?

Em tempos eu tive uma gaivota ...
Já falei muito dela por aqui.  Era outra época !
Ela vinha, voava rasante à minha janela, empoleirava-se no topo dum edifício próximo e olhava-me com aquele olhar miudinho, perspicaz e desafiador que parecia provocar o ar desalentado de quem só a olhava de baixo e a não podia seguir pelos céus fora, rumo ao almejado horizonte, lá longe ...
Sempre achei que entre mim e ela se gerou uma conivência secreta e uma cumplicidade de mulher.
Ela contava-me do mar que eu sabia nos areais distantes, falava-me das suas zangas que entreteciam rendilhados nas areias, dizia-me das algas e dos búzios, das conchas, das marés e dos segredos que ele sussurrava em cada rebentação ...
Eu contava-lhe das correntes que nos pés me pesavam, feito grilhões de prisioneira, falava-lhe do sol que tombava na linha desenhada no céu em cada fim de dia, das luas que me desafiavam nas noites escuras, dos meus sonhos que nunca voavam porque não tinham asas, como ela ... e das estrelas, punhados de estrelas que ainda assim povoavam as minhas noites ... 
E ela levava-me os recados ... era estafeta dos meus silêncios, partilhava-me as angústias, as nostalgias e as solidões ... 
E partia ... voltava para as praias desertas, onde era dona e senhora !...

Em tempos tive uma gaivota ...
Vinha visitar-me ... agora eu sei ... tenho a certeza ...
Era outra época !...

Anamar

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

" A CHUVA ..."

 


Já quase não sabia o que é chover.  Quase já não lembrava como é agradável apanhar uma boa carga de água, sobretudo se os dias estão quentes, abafados, ardentes, como estes que vivemos há tempos infinitos.

De facto, o calor exorbitante que nos tem flagelado há tempo demasiado, em que embora sendo Verão, as temperaturas e a seca sem fim à vista  têm trazido ao território do continente situações extremas verdadeiramente preocupantes ... mesmo verdadeiramente angustiantes, não dá sinais de abrandamento.
Obviamente são situações anómalas, drasticamente agressivas,  mas a que, cada vez menos teremos alternativa de fuga, já que são fruto das alterações climáticas a nível planetário, clara e progressivamente acentuadas ,
É mesmo uma situação catastrófica a que se vive nos campos onde a água escasseia, reduzida a precários charcos quase inexistentes, e em que a vida dos animais periga pela ausência também da comida, em campos calcinados pela canícula.
Os incêndios aterradores que nos últimos meses deflagraram e consumiram tudo o que lhes fez frente, destruindo reservas naturais de fauna e flora, um bem inalienável cuja reposição já não será para a minha geração, foram mais um factor evidente de que o futuro do Homem e de todos os seres vivos que com ele dividem na Terra o direito à vida, corre riscos reais, incontidos e irreversíveis, de sua inteira responsabilidade !

Pois bem, anunciada como a tempestade Danielle, inicialmente um furacão vindo do lado das Américas, que atravessou o Atlântico e rumava à Grã Bretanha, refez a rota e depois de ter atravessado ilhas dos Açores enfraquecendo no grau de agressividade, decidiu-se por Portugal Continental, caminhando de sul para norte até varrer todo o território.
Anunciava-se muita chuva, algum vento e temperaturas um pouco mais baixas.
E hoje choveu, de facto, mas nada que me convencesse.  Parece que a chuva anda tão arredia que não se fixa.  Não encontra o caminho esperado !
Caem uns pingos, a bem dizer,,. pára ... o dia faz cara feia ... mas só !
E que falta nos faziam uns bons e insistentes aguaceiros, concedo mesmo alguma trovoada, direi até que um ventinho desde que não fosse excessivo e puxasse as nuvens pra cima de nós ...😏😏
Mas qual quê !  A chuva já veio e já foi, parece.  O sol brilha outra vez, quente, por aqui, num céu que aos poucos faxinou e se tornou limpo e azul !... Descaradamente !
Estou decepcionada !  Estava eu tão contente, com aquela alegria infantil que leva a criançada a chapinhar de qualquer modo, nas pocinhas que ficam pelas ruas, depois da queda duma boa chuvada !...
Eles bem sabem porquê ...

Dentro de dois meses conto estar por uns dias num país tropical.
Deles guardo sempre memórias inapagáveis de fortes e cálidos aguaceiros, daqueles que encharcam o corpo e lavam a alma. Chuvas a sério, essas que vêm e vão rápido, mas que são tão intensas que nos tocam o coração !...
Da Jamaica, a Bali ... às Maldivas ... Santa Lucia, entre tantos outros destinos, a sensação doce e indescritível da profanação do meu ser, do devassar do meu corpo entregue, do abandono silencioso à chuva que açoita e afaga, sob um calor escaldante, uma febre sem nome, é um abraço da natureza inóspita e excessiva, é uma subtil carícia pra não mais esquecer ...

Assim, espero voltar de novo a mergulhar nessa onda crescente de emoção e paz !

Anamar

domingo, 21 de agosto de 2022

" QUINZE ANOS NÃO É COISA POUCA ... "

Hoje é mais uma data especial.  O Kiko completa os seus quinze anos !

Já muito escrevi sobre o Kiko, o terceiro irmão de uma equipa espaçada de três em três anos.
Quer isso dizer que a Vitória acendeu dezoito velinhas, o António vinte e uma e o Kiko então, as tais quinze que referi.
Assim, 2022 é o ano em que todos eles completaram datas importantes nas suas vidas, datas carismáticas e seguramente inesquecíveis.  Teria sido engraçado que a mãe tivesse completado o meio século ... mas não, ainda lhe falta um ano.

Ouso afirmar que sobre o Kiko já disse tudo, ano após ano, quando chega este vinte de Agosto e de longe o parabenizo.  Pois é sina ... caindo em época de férias fora de Lisboa, nunca festejo com eles estas efemérides.
E mesmo com o transcurso do tempo, aquilo que distingue o Kiko de hoje do Kiko de há já largos anos atrás, respeita apenas às alterações físicas inerentes à adolescência instalada.
Cresceu imenso no espaço de um ano apenas, encorpou como costumamos dizer, ganhou músculos que começam a definir-se, e espanto meu  ( não sei porquê, afinal ), a voz começou inevitavelmente a mudar !
Engraçado que tive exactamente a mesma surpresa quando foi a vez do António.  Ontem, à meia noite, quando o dia vinte abriu a pestana, lá estou eu a telefonar, para lhe dar o meu primeiro beijinho de felicitações.  Sempre  tenho  esta  mania  com  todos  eles ... fazer  o  quê ?!... 😂😂
E lá me apareceu o Kiko com respeitosa voz de homem ... ihihih
Levo  sempre  um  soco  no  estômago,  pois  é  então  que  a  realidade  nua  e  crua  me cai  à  frente :  o tempo já passou, depressa demais, e os putos já são gente grande a fazer-se à estrada !
Esta inevitabilidade da vida, este retrocesso impossível dos anos sempre me deixam então nostálgica, apreensiva e balançada ...
Mas nada a fazer.  Haja saúde, paz, alegria ... que a vida se faça mansa, que os sonhos e os projectos se vão concretizando, que os esforços desenvolvidos vão valendo a pena e que por aqui vamos estando, os que por aqui têm a sorte de ainda estar, pois mesmo um pouco afastados, nunca verdadeiramente o estamos no coração uns dos outros !

De resto, o Kiko continua a ser aquele miúdo feliz, alegre, sempre sorridente e bem disposto, aquele puto desinibido, resolvido e rodeado de um clube de amigos de todas as faixas etárias ... aquele que exprime um carinho e uma preocupação muito especiais comigo, que o levam a envolver-me no seu abraço enquanto me pergunta : " E a avó como está ?"

O Kiko vai iniciar o décimo ano e escolheu a área da Economia.  Brinquei com ele ontem, exortando-o a estudar muito, bem e depressa, pois careço de um gestor financeiro à altura, para endireitar os meus  inexistentes aforros ... 😁😁
Soltou uma gargalhada ... "pois é, a avó anda sempre em viagem !"...

Este, é o Kiko !

Anamar