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sexta-feira, 18 de maio de 2018

" NIGHT AND DAY "





Há pessoas que têm uma vida extremamente movimentada.
Em tudo o que vivenciam, nas coisas que lhes aconteceram, naquilo que experimentaram, não há um marasmo nem um cinzentismo em ocasião alguma.
Normalmente são pessoas que ao longo da vida conheceram muita gente, percorreram muitos caminhos, viveram as mais variadas situações e sempre têm histórias para contar.
Muitos contactos, muitos locais, muitas etapas da vida, desde a irreverência da juventude ao alcance da maturidade, fazem surpreendentes relatos, alguns mais caricatos que outros, normalmente sempre engraçados, na maioria .  Constituem memórias de  juventude, de tempos escolares, de eventos familiares, de tropa ou ainda profissionais.
Porque mesmo no meio da actividade profissional nem tudo é chato ou desencantatório ... sempre ocorrem acontecimentos que indelevelmente nos ficam, e que vale a pena recordar mais tarde.

Todos  conhecemos pessoas destas, e eu acho-lhes imensa piada, porque  são uns privilegiados animadores de tertúlia, sempre têm a propósito, uma boa história para divertir, um emocionante acontecimento p'ra narrar, sempre estão artilhados para puxar da cartola, um inesperado "coelho" interessantíssimo !
E então, se lhe acrescentarem mais uns "piclezitos" que sempre são tentados a fazer, ou o apimentarem q.b, é um espectáculo !...
Às vezes não se distingue bem onde termina a verdade e começa a fantasia ...

São pessoas com perfis extrovertidos, boas conversadoras, desinibidas e muito simpáticas.
São elas que forneceriam o material mais rico e interessante, para a escrita de memórias ... as suas memórias !

Eu não.
A minha vida, demasiado enquadrada, previsível, com poucas atribulações e desvios do trilho comum, quase sempre expectável dentro do figurino dito de "normalidade", não conseguiu  rechear-se com grande coisa que valesse a pena.
Nunca me relacionei com muita gente, sempre fui pacata, recatada, tímida mesmo, o que me impediu de ter diversificado e enriquecido o meu círculo de relações, por aí além.
Sou portanto, nesta perspectiva, uma pessoa desinteressante !...

Em tempos conheci a Marta.  Já lá vão uns anos.
Era na altura uma mulher só, simpática, cordial, sem ser excessiva nas relações.  Profissionalmente, reconhecida, parece.
Não chamava a atenção, era discreta, sem ser sobranceira tinha um certo requinte na forma como se apresentava. Era pacata, insuspeita.
Adivinhava-se-lhe por isso, uma das tais vidas " enquadradas, previsíveis, com poucas atribulações ou desvios do trilho ". Sem "mácula", digamos.
Por vezes perguntávamo-nos qual seria a real história da vida da Marta ... Inevitavelmente havia especulação e curiosidade ...
Mas não mais.

Entretanto, porque mudei de hábitos diários, perdi-lhe o rasto e deixei mesmo de a ver .

Anos depois, em conversa de café, a propósito não sei bem de quê, a personagem  Marta foi abordada.  Quem falava, parecia estar por dentro e saber o que dizia.  A charada desfez-se.

A Marta, tinha na verdade uma vida dupla.  Muito poucos o sabiam .
Inconformada com uma vivência que não a preenchia, com uma necessidade insaciável de emoção para se sentir viva, farta da tal existência cinzenta, enquadrada, convencional e tradicional, presa a grilhetas morais que a cerceavam, e como um vulcão que a queimava, desenvolveu em si um alter-ego que a transformava noutra personagem.
Os seus dias e as suas noites passaram a ser o avesso e o direito, de uma mulher que inconformada,  procurou o seu destino !

Resolvi apor o título de "Night and day " a este meu post.  Entende-se claramente porquê.
Afinal, ele narra uma  história,  na vida real, da personagem literariamente  fantasiada por Joseph Kessel, levada ao cinema em França em 1967 e interpretada magistralmente por Catherine Deneuve -  "Belle de Jour" !

Anamar

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

" CONTO DE NATAL "





Eu tinha um gato e uma gaivota ...  Já todos sabem.

Há para lá de tempo que eles povoam os domínios que o meu olhar alcança, encarrapitada que estou no alto deste sétimo andar.
Neste meu tempo de silêncios, de muros altos e horizontes distantes, neste tempo de muita gente e poucas pessoas ... habituei-me à janela.
Da janela eu sou dona do mundo!  Salto as casas, os telhados, as chaminés e os muros, que não me interessam nada, e voo lá para bem longe, onde as escarpas da serra se divisam, onde as nuvens se passeiam, onde o sol adormece e onde a lua sempre assoma, engalanada de festa.
Monto a cauda dos arco-íris, quando se desenham e participo das "raves" estelares, quando desbundam na agitação feliz dos solstícios.
Tenho a brisa que me afaga o cabelo, tenho o ouro e o vermelho do plátano que em rituais de adormecimento se despe, preparando o sono regenerador, neste Outono já Inverno.
Tenho o som do mar, ora tempestuoso ora doce, no bater e no estreitar dos rochedos com carícias atrevidas ...
Isto, já sem falar na canção dos búzios, que de lá me contam o vaivém das ondas ...
E tenho os cheiros dos musgos e das carumas, dos azevinhos e da humidade sombria que amarinha os troncos, o cheiro das heras e da folhagem tombada que atapeta os caminhos ... que eu não vejo, não escuto e nem cheiro, mas que adivinho, porque os tenho todos guardados na mente e no coração.
E eu sou livre de querer, de inventar ou só de lembrar !

E depois, tenho a minha gaivota que me liga aos céus, e o meu Farrusco preto lá de baixo, que me prende à terra .
E entre este céu e terra vou vivendo, rica de sonhos e de amores.

Só que ...
O meu Farrusco partiu !  Não sei dele faz tempo !
Bem me esgueiro da janela, bem tento variados e possíveis ângulos da vista o poder alcançar ... ingloriamente !
Se chove, esmiúço os recantos do terraço, cantos protectores e de guarida ... em vão !  Se faz sol, esmiúço os muros de espreguiçamento, os parapeitos de sestas ... em vão !
Eu sei que os gatos são aventureiros e independentes.  Nisso, somos bem iguais.  Eu sei que os gatos são irremissivelmente sonhadores, teimosos e livres.  Nisso, somos mais iguais ainda ...
Mas o Farrusco já há muito que é um gato ancião, que eu sei, e a sua provecta idade deveria contê-lo na aventura e no devaneio.  Seria prudente.

Depois, também não é justo que o Farrusco faça isto comigo em plena quadra natalícia ...
Deixar-me com o coração apertado, o olhar perdido e uma orfandade que me atormenta a alma ... não me parece bem, nem coisa adequada  ao coração generoso de gato !...

Não quero acreditar que ele partiu para a Terra do Nunca, sorrateiramente (com a discrição que só eles sabem ter ),  porque nunca vou poder aceitar que ele se cansou do meu terraço, da Terra dos Homens, dos frios Invernos, impiedosos para um gato cujo único tecto é o céu estrelado das noites escuras ... se cansou da barriga vazia e da incerteza dos restos deixados por uma que outra alma caridosa ... se cansou até do amor que cá de cima eu lhe devotava, em segredo ... sem que ele soubesse ...
Porque afinal, nós tínhamos um pacto silencioso de afecto.  Ele era " pertença " minha, há muito !

Hoje, eu vasculhava uma outra vez o terraço do Farrusco ...
Com um  céu escuro e indiferente, que se debulha em água cá para baixo, com o frio gélido do Inverno que resolveu fazer as honras, o desconchavo que nos envolve é total.  O desconforto impera .
As gaivotas, que há pouco deambulavam em voos incertos na aragem, desapareceram em busca de poiso, longe que lhes ficou o mar alteroso.

Desisti de o esperar...

Os gatos são filósofos, sonhadores e poetas ... que eu bem sei.
A esta hora o Farrusco já deve estar na dimensão dos que conversam com a lua, dos que escutam as estrelas e amam a imensidão do Universo !
A esta hora ele, a quem a dimensão do terraço não chegou, voa seguramente na liberdade do vento, trepa os telhados das madrugadas e espreita-me por entre as nesgas das nuvens ... quando elas, de "carneirinhos", esvoaçam lá longe, no limite do meu horizonte ... encarrapitada que estou no alto deste sétimo andar ...

Porque  nós  tínhamos  um  pacto  silencioso  de  afecto ... e  os GATOS  não  nos  faltam  nunca !...

Anamar

quarta-feira, 21 de maio de 2014

" SERÁ QUE TAMBÉM VOU TER UMA JANELA ?..."



Passo àquela estrada todos os dias.  E todos os dias ela está lá !

De um lado um muro corrido, do outro,  p'raí uma dúzia de casas baixinhas, muito simpes, duas janelas e uma porta, lembrando as casas das nossas aldeias, no Portugal perdido ...
São reminiscências da parte velha da minha cidade, ainda orgulhosamente sobreviventes.
Entre o muro e as casas, uma via com trânsito nos dois sentidos, muito trânsito, nas horas de escoamento da cidade grande.

Passei um dia e a  D. Inácia já lá estava.  Passei dois dias, uma semana, um mês ... um ano ... já anos !

Passava, e os nossos olhares cruzavam-se apenas.
A D. Inácia, com pantufas, xailinho nas pernas, colar de pérolas ao pescoço, estava invariavelmente num dos dois sítios possíveis : ou sentada na rua, numa cadeira junto à porta, nos dias de tempo bom, a espreitar a nesga do sol, ou por detrás de uma das duas janelas ... quando o tempo desabrido, tornava incómoda ou impossível a sua permanência no exterior.
Em qualquer dos casos, a vista de que desfrutava era a dos carros a acelerarem na estrada próxima, a figura fugidia dos passantes silenciosos, o gato livre da vizinha, que vinha espreguiçar-se ao sol ... e o muro cego, do outro lado, impeditivo de o olhar se tornar  invasivo além dele.

A D.Inácia é uma senhora talvez de oitenta anos ... por aí.
Vivia com uma filha que partiu, com doença que sem comiseração,  a não poupou.  Restou-lhe a filha dessa filha, com quem vive na casa baixinha de duas janelas e uma porta.
Esta, não trabalha. Aliás, passa o dia  em pijama e bata de limpeza por cima.  Deve dormir até tarde, vem p'ra rua por pentear, com um ar sujo e totalmente negligenciado.
Vivem de pensões precárias, só as duas, e os cuidados prestados à D. Inácia, são os mínimos.
Esta não comunica. Vive no silêncio. Amorfa, distante, indiferente, anestesiada das dores da alma !...
Diariamente é posta e retirada dos lugares onde a sentam.

O tempo foi indo.
E o tempo atribuíu "estatuto", a esta comunicação surda e muda entre mim e a senhora idosa.
Achei que já era altura de a saudar, ao passar.  Comecei por lhe dar as boas tardes, mas a D. Inácia não reagiu.  Creio que não ouve.
Passei então a acenar-lhe com a mão.  Com o rosto impassível, olha-me, mexe levemente os dedos da mão, parecendo  impossível  poder retirá-la do cólo.

Quando por detrás das vidraças, com o horizonte ainda mais limitado, deixa deslizar o olhar, para longe, sem rumo ou destino,  não interaje com o movimento exterior,  não deixa transparecer emoções ... é um vegetal que ganhou raízes naquele chão ...

Que histórias de vida teria para contar ?
Que memórias guardará de outros tempos, de outras gentes?
O que ocupará o seu coração e a sua mente ?  Será que ainda lembra do riso e da alegria ?
Ou, misericordiosamente, uma cortina de esquecimento, de solidão e desesperança, desceu  e insensibilizou por completo, o espírito da D. Inácia, tão opacizado já, quanto os seus olhos ?!...

Não sei !  Penso que nunca irei saber !...

Hoje, ao atravessar a mata, onde as flores silvestres da Primavera adornam  gratuitamente o manto verde do chão, lembrei o rosto esfíngico da anciã, postado por detrás dos vidros, já que o dia estava frio com chuvas esparsas.
Senti o privilégio da vida ... Da vida e da saúde ... Da saúde e das emoções ...
Aspirei até ao âmago o ar frio e perfumado do campo, o cheiro intenso da terra molhada de fresco, e persegui com o olhar o voo livre dos pássaros, trinando de ramo em ramo ...
Apanhei uma haste de "Bordões de S. José", generosamente florida, e ao passar junto da janela baixinha, deixei-a no parapeito.
A D.Inácia, com o seu xailinho de lã e o colar de pérolas ao peito, como habitualmente manteve-se inerte.
Sem um movimento, sem um esgar, sem um sorriso, sem um aceno ... deixou  apenas  que uma lágrima manhosa se desprendesse  dos olhos distantes e vazios, sem contenção, estou certa, e tivesse escorrido  pelo rosto esquálido e macerado ...

Um nó estrangulou-me a garganta.
Uma mágoa apertou-me por dentro, e queimou-me as entranhas ...

Será que um dia também me vai  restar uma  janela ???...


Anamar

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

" A PONTE "



Estava sentada junto à janela, no rés-do-chão do edifício.
Dali podia ver o espaço circundante, ajardinado, com algumas árvores, por onde os pássaros se atreviam já a pipilar, e sob as quais se abrigavam bancos de madeira.
Sentadas em alguns, até que a temperatura permitia, estavam  mulheres como ela, que como ela partilhavam aquela casa.
Falavam entre si, soltavam monossílabos de quando em vez ... ou não falavam, simplesmente !

Há muito que ela deixara de ir até ao jardim .
As flores, agora que o tempo amainara, haviam começado a rebentar.  As suas corolas, de mil cores e mil formas, exibiam já alguma pujança primaveril.
Contudo, o tempo atmosférico estava longe ainda,  de se aproximar da estação que vinha aí ...
Por acaso, hoje, uns breves raios de sol atravessaram algumas nuvens, às vezes ameaçadoras, outras cordatas em não massacrarem mais os dias, com chuva.

Há largo tempo que estava ali.  Não sabia quanto.
Perdera a noção do passar das horas, dos momentos, dos dias.
Sabia que a seguir ao almoço, a sentavam naquele lugar, junto à janela, com a mantinha nos joelhos, e o livro no cólo.
O livro ... sempre o mesmo livro, aberto na mesma página, da qual, dia após dia, nunca passava.
O seu olhar perdia-se indefinido lá fora... longe, fixado em algum lugar ... em lugar nenhum !
Apático, deixara de transmitir emoções, fazia tempo...  Talvez, desde o tempo em que mais nenhum rosto familiar, dela se abeirava.
O silêncio pairava naquele quarto, com a cama de colcha florida, a mesa de cabeceira com um candeeiro de luz mortiça, uma cómoda encimada por um espelho, um sofá no canto mais afastado, um roupeiro, onde estariam por certo, os parcos pertences, ladeado de prateleiras, nas quais, quando lá a deixaram, colocaram alguns livros ( seguramente os que acharam, que talvez a transportassem mais, ao que fora a sua vida ) ... e aquela cadeira que a aproximava da janela, e do mundo exterior !...

Sobre a cómoda estavam dispersas várias molduras com fotografias ... de adultos, de crianças e até de velhos !...
Se lhe perguntassem quem eram, ela não saberia.  Tinha esquecido qual a proximidade daqueles rostos com a  sua  pessoa, à  medida  que  alguns  deles, deixaram  mesmo  de atravessar  a  porta  daquele  quarto .
Lá para trás, tudo estava nebuloso ...

Sobre a cómoda,  Leonor, que de quando em vez passava pelo seu quarto, colocara uma jarra, e fazia questão, de sempre nela ter flores frescas, apanhadas no jardim ( porque percebera, que pelo menos no início, isso sugeria transmitir-lhe uma certa alegria e paz  ... parecia serená-la, aquietar-lhe as lágrimas, que com o passar dos tempos, e à medida que o distanciamento se lhe colara ao rosto, deixaram mesmo de escorrer ).
As flores eram, neste momento, quase a única ponte visível, ainda, entre ela própria e o seu passado.
Leonor não sabia grande coisa, mas conseguia auscultar que havia alterações no seu semblante, quando as flores  frescas  eram  colocadas na jarra ... Conseguia perceber herméticas emoções, nos seus olhos distantes ...

O mesmo se passava com a música. Costumavam tocar-lhe temas calmos, doces, nostálgicos.
Sorria, quando ouvia os primeiros acordes.  Sorria, mas não emitia um só som.  Há demasiado tempo que parecia ter feito um pacto de silêncio, ou talvez as palavras já não lhe fizessem sentido.
Havia  de  facto  um  claro  corte  com  o  mundo  real, uma  indiferença  instalada, como  se  nada  valesse já  a  pena !

Olhava-se no espelho, quando lhe compunham os cabelos, prateados  dos tempos, e lhos prendiam atrás, conferindo-lhe um certo ar, quase aristocrático.
Olhava-se mas não se via. Ou melhor, via um outro alguém, sem saber quem ...

As mãos descarnadas impediam que o livro tombasse ao chão, apenas ...
Por entre as suas páginas, havia muitas, muitas flores secas, esmaecidas na cor, mas que haviam sido religiosamente guardadas.
O que elas representavam, Leonor também não sabia. Pressentia que elas haviam sido seguramente importantes, no destino daquela mulher .
Dele, tombavam também, papéis amarelados do tempo, com letra desenhada, inscrita a tinta permanente.
Será que ela os saberia ainda ler ?  Será, que lendo-os, eles ainda lhe diziam alguma coisa ... abririam aquele cérebro, aparentemente cerrado ?

A família foi espaçando as visitas àquela casa, e quando as faziam, encurtavam-nas no tempo.
Na verdade, parecia indiferente que lá estivessem ou não. Ela não mostrava dar por eles, e o seu rosto mantinha-se impassível.
Assim, ficava difícil, parecia inglório ... E afinal, cá fora havia tantas coisas a fazer, que o tempo disponível, quase já só para tranquilizar consciências, ia ficando escasso !...

Júlia parecia cada vez mais, apenas vegetar.  Deixaram de se descortinar totalmente emoções, ou algo que lhe alterasse a expressão facial, indiferente, como quem há muito desistiu, e com a desistência, cortou pontes com o mundo e com a vida.
Afinal, parecia apenas, querer confinar-se ao seu eu interior, que ninguém desvendava.

Os dias foram passando, os meses correndo, os anos também.  Uns, após os outros !
Os que deixara cá fora, sempre achavam que ela já ali "não estava" há muito, apesar de, Verão ou Inverno, frente àquela janela, sempre fixar um ponto inexistente.
No Inverno, a chuva açoitava os vidros, no Verão, o sol tentava penetrar a meia penumbra do quarto, que se tornara apenas ante-câmara, de uma partida ou despedida.

Aquele sábado, era só mais um ...  Irrelevante ...
Júlia nem sabia que era sábado ;  parecia pouco saber, ou nada saber do que quer que fosse.
Depois do almoço, uma vez mais, sentaram-na frente à janela.
Era quase Primavera, e os primeiros botões brotavam no roseiral. As árvores começavam a cobrir-se de verde, os jasmins, os narcisos, os amores-perfeitos e os junquilhos, festejavam a renovação da Natureza .
As aves já saltitavam de galho em galho, em promessa de vida ...

Haviam-lhe entreaberto a vidraça, para que os cheiros doces, do exterior,  penetrassem, e a aragem lhe pudesse, quiçá, lembrar, que um novo tempo estava prestes a começar.
A cortina esvoaçava levemente, por isso.

O homem entrou.
De costas para a porta, Júlia não deu por isso.
Era um ancião, com o cabelo completamente branco, periclitante no andar.
Estacou à entrada do quarto silencioso, e olhou longamente, incrédulo, o seu recorte magro, seco, débil, sentada imóvel ... Como se procurasse alguém "lá atrás", talvez outra mulher, talvez outra Júlia ... como se rebuscasse na sua memória ... como se escavasse no seu coração.
Trazia um narciso na mão.  Amarelo, como o sol ...  Um, apenas !...

Chegou perto dela, e olhou longamente a sua palidez, a sua degradação, as suas mãos esquálidas, pousadas inertes, nos joelhos.
Uma lágrima teimosa escorreu-lhe pelo rosto, também macerado pelos anos.
Ajoelhou com dificuldade, à altura dos olhos distantes de Júlia, beijou a flor e colocou-lha, abandonada, no cólo, sobre a mantinha que a protegia.

Júlia estremeceu.  Ergueu os olhos ;  por eles perpassou um esgar súbito, de surpresa, como se tivesse lembrado alguma coisa ...
Um sorriso largo iluminou-lhe o rosto ...
Enorme, doce, grato ... surpreso, quase feliz, dir-se-ia ... envolvido numa emoção transbordante ...

Como se toda a vida, junto àquela janela, olhando o jardim vazio lá fora, sempre, ela não tivesse feito mais que esperá-lo, e apenas tivesse sido capaz de viver até àquele dia, porque  um narciso, amarelo como o sol, haveria de cair no seu regaço ...

Júlia, atravessara finalmente, a última ponte da sua vida !!!...

Anamar

domingo, 1 de dezembro de 2013

" O IMPROVÁVEL ... "



As gaivotas já volteiam por aqui.
O dia está totalmente fechado, a falésia desenha-se fantasmagórica na linha do horizonte, lá longe, no entremeio da ramagem.  Está uma temperatura atmosférica demasiado baixa.

Contei-as ... uma, duas, três, em formação rectilínea, de asas esticadas frente à vidraça, que não convidava a que se entreabrisse.
Há de certeza tempestade no mar, porque elas voam determinadas, em busca de comida, e não em espreguiçamento lúdico, como gostam de fazer, aproveitando os golpes da aragem.
Chove, chove aquela chuva miudinha, que por indefinição, se torna irritante.
Há desconforto à minha volta. Há desconforto dentro de mim ...

É Outono, mas lá fora, apenas algumas das árvores circundantes daquela casinha, com uma porta e duas janelas, de bordadura azul e cortinas de renda no postigo, começavam a amarelecer.
O verde ainda predominava por ali. Afinal, o terreno não regateava a água que escorria das encostas.

Da escrivaninha envelhecida e bichada, da casa dos avós, encostada ao parapeito da janela  ( para que o jarro antigo mantivesse bem vivas as flores frescas, que sempre fazia questão em colocar-lhe, mercê da luz que por ali penetrava ), e onde o candeeiro aceso,  sempre  dava  um  ar  acolhedor  e  intimista  àquela sala,  vista  de  fora ...
da escrivaninha envelhecida, dizia, podia ver a cancela atamancada de velha, com uma aldraba a pedir conserto, que rangia nas dobradiças, aos abanões implacáveis do vento, podia ver o caminho que se desenhava adiante, e lá longe, como disse, a falésia rochosa sobranceira às águas zangadas do Atlântico ... e não mais ...

Aquela casa fora a concretização dum sonho muito recuado, quando o cabelo ainda não lhe embranquecera, o xailinho de lã pelas costas ainda era dispensável, e os óculos de leitura, ainda não precisavam de andar ao peito.
Fora a busca de uma felicidade e de uma paz, que acreditara encontrar na simplicidade dum lugar de verduras não presumidas, de árvores espontâneas, de algumas flores ( não muitas ), com que resolvera brincar de jardim inventado, e de meia dúzia de gatos seus, meio a meio com a natureza.
Todos amigos, todos matreiros, todos espevitados, ronronantes e preguiçosos à lareira.
Um preto, dois amarelos, um "querubim" de olhos invejavelmente azuis ... e mais uns malhados, que surgiam do nada, na hora da janta, e que nos frios e intempéries de Inverno, como  hoje, apareciam  como  pedintes, a  fazer-se  ao  resguardo  do  conforto  do  lar ...

À volta daquela casa de brincar, havia o silêncio, aquela angústia doce de recordações nunca arquivadas, o chilreio franco das aves veranis, ou o piado das corujas lá longe, na serra.
No seu interior, havia silêncios cúmplices, de serões frente a bons braseiros, com mantinhas de lã nas pernas, e boas leituras partilhadas, mantidos na certeza de que outro coração, outra  mente,  outro  colo  e outros  braços,  estavam  de  aconchego,  sempre  presentes ...
Havia a verdade que só as madeiras velhas garantem, as loiças gatadas comprovam, as braçadas de flores campestres e secas, espalhadas pelos jarros,  em coroas dependuradas nas paredes, ou em cestas sobre os arcazes velhos, as fotografias a sépia, ou a preto e branco, despretensiosamente relembram ...
Havia a genuinidade do que é simples e autêntico ... afinal, como o amor que tão curto no tempo, ali foi vivido !...
Àquela casa, batiam-se palmas a anunciar a chegada, o carteiro trazia de quando em quando, notícias dos demasiado ausentes, porque as lembranças dos sempre presentes, já só existiam nos corações...
E já passara tanto tempo !...

Hoje, as gaivotas já volteiam por aqui.
O dia está totalmente fechado ... e nem a falésia se distingue lá longe.
Está frio, chove, há solidão, saudade, silêncio...demasiado silêncio ... a única herança sobrante !

Há desconforto à minha volta. Há desconforto dentro de mim ...
E uma lágrima rolou, quando olhei uma outra vez, aquele papel amarelecido e velho, que os anos adormeceram, que ficara religiosamente sobre a escrivaninha bichada, e onde se escrevera em letra miúda, o epílogo daquela frase iniciada por mim, há que anos ... e interrompida pelo destino  ... " e no entanto eu amo-te  perdidamente  e  tenho  saudades  loucas  tuas,  perco-me  nos  meus  sonhos  contigo ... sempre !..."

" Um sonho sonhado sozinho é um sonho. Um sonho sonhado junto, é realidade ".
Curta, esta nossa realidade ...  Nem sei se chegou a ser sonho !!!...

Anamar

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

" HISTÓRIAS DESTE MUNDO E DO OUTRO " ( a propósito da primeira cremação a que assisti )



Ali logo à passagem, estavam dois anjos.
Não daqueles anjos das igrejas. Esses,  tínhamos dispensado de virem !
Mas ainda assim, eram dois querubins de caracóis louros, bochechas rosadas e asinhas nas costas.
Nisso,  eles  eram  anjos  normais, iguais  aos  outros  todos,  embora  se  pudesse pensar,  serem  de  contrafacção ...

Mas não !...

Um, estava ali para lhe dar a mão.  O outro, para lhe carregar a rima pesada dos livros.
Eram duas crianças, que vieram receber aquele menino que se vestia de ancião !
Mas eu sei que ele era um menino ...  Senão, por que leria ele tantas histórias ?  Senão, por que faria questão de se fazer acompanhar de uma pasta tão pesada de livros ?!...

Percebi que aquilo ali, era um palco, porque de repente, houve uma cortina pesada que tombou, à passagem do menino.
Obviamente estávamos numa peça teatral.  Do lado de cá, estavam os espectadores, que eram muitos e continuavam sem arredar pé.
Não percebi por que tinham rostos tão fechados, mesmo estando uma linda tarde de sol ...
Do outro lado, eram os bastidores.  Lá, ninguém podia aceder, depois do pano corrido, depois da peça terminada ...
E  na  verdade,  quando  o  menino  cruzou  aquela  passagem, a dramatização acabou,  porque  o  pano fechou-se !

Nós bem espreitávamos ...  Bem esgueirámos os pescoços, a tentar perceber, onde é que ficava a cancela do jardim.  Porque eu sei que para lá, ia haver relva, flores, aromas, montanhas, pássaros sem pressa, água corrente a cantar ...
E borboletas, muitas borboletas que eu sei ... andavam por lá, também ...
E havia de haver sol, outra vez ... por que não ??

E eu sei ainda, que o menino ia ser feliz de novo.
Com o vento que ele amava,  com todos os amiguinhos que o esperavam, e que já  brincavam no jardim, fazia tempo, a dançar de roda, e com as histórias sem fim, dos livros sem fim, que levou consigo ... aquele menino não precisava de nada mais ...

Era um sortudo !!!...

Apenas, aquele jardim, no alto daquela colina, deixava que ele olhasse, com a curiosidade da criança que espreita pelo buraco da fechadura. E essa era a única coisa triste, que amargurava o menino.
Na paz e na alegria das brincadeiras intermináveis e soltas, podia ver a angústia, o cansaço, o sonho perdido, e a escuridão, de tudo o que ficara antes da cortina que atravessara ... e tinha pena !...

E o tempo foi  passando, e não havia dias, nem horas, nem noites ... nem mesmo tempo, do lado de lá ...

Por isso, o menino-ancião, que agora também tinha caracóis louros, bochechas rosadas e asinhas nas costas, carregado de livros e histórias no coração, passou a ter uma tarefa destinada :  ia sempre àquela passagem, buscar, também ele,  pela mão, todos os que iam chegando.
E para os tranquilizar, logo ali  lhes contava uma das suas lindas histórias de ninar !...

Daquelas  histórias  que contou e recontou, quando ainda não era um menino de caracóis louros, bochechas rosadas e asinhas nas costas ... histórias essas, que já então, ele amava de paixão !!!...

Anamar

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

" A RUÍNA "



O caminho serpenteava, desde o portão ...

Sempre serpenteiam, os caminhos ... não se percebe porquê ...
Talvez na intenção onírica, do Homem projectar naquela vereda, a sinuosidade de um rio de sonhos e devaneios.
O óbvio, o directo, o despido de mistério, são de evitar.  Afinal, a vida também tem curvas, também tem esquinas, também tem cotovelos que escondem o imprevisível, e que só se desvendam depois de virados ...

Por isso, aquele caminho ondulava pelo meio das terras bravias.
Há muito abandonadas, haviam respeitado a estrada, caminho de pé posto já só, e ladeavam-no de silveiras, amoras bravas cobertas de pó, e flores que não carecem de justificação para nascerem.
Os aloés livres, na agonia da morte, faziam subir aos céus, a haste erecta que lhes garantiria a disseminação da espécie, pela libertação das sementes, ao vento e aos pássaros.
E parecia realmente um grito de desespero e solidão, mas também de resignação e entendimento ... ali, no alto da falésia silenciosa, em recorte no mar ...

As piteiras bravas, carregavam-se de figos coloridos pelo amadurecimento, e saciariam as aves que por ali rasavam.
Os muros de pedra sobre pedra, imemoriais, aguentavam-se como podiam, com desenho aleatório, a esmo pelos campos.
Talvez já tivessem protegido culturas, dos ventos desabridos .  Agora,  já só amparam o mato rasteiro, e acoitam animais selvagens, e caçadores que se atrevam ...

De resto, é apenas a brisa abençoada que corre por ali  ( como uma criança em recreio de escola ), é o zumbido de um ou outro zângão, que pouse nas flores amarelas dos cardos de ninguém, é o volteio de uma borboleta passante, e claro ... é o voo espreguiçado e dolente das gaivotas, que desafiam a mente humana, e levam consigo, presos das asas esticadas na aragem, os sonhos mais insatisfeitos do Homem, que sempre voa com elas, com o olhar que alonga e estica, até onde o horizonte lho permite ...

Lá muito em baixo, o mar, como um luzeiro prateado, acende-se pelo sol, que o pincela de turquesas transparentes, verdes intensos e azuis ...

Da casa, já só existia uma ruína, que o vento destelhara, e as silvas e urtigas dominaram.
As janelas esventradas, ainda exibiam aqui e ali, a caixilharia de madeira podre, pela chuva dos Invernos rigorosos, pela maresia e pelo salitre do mar ...
Ironicamente, alguns vidros ou apenas pedaços, permaneciam nas molduras, lembrando que através deles, os olhos atravessaram de dentro para fora e de fora para dentro, há muito ...
Da chaminé imensa, outrora, restava já só um amontoado de pedras, que servia de ninho aos passaritos, ou talvez a roedores ou rastejantes.
As teias de aranhas adivinhadas, eram cortinas e rendas  pesadas, dependuradas das traves, nos cantos e  nos barrotes do tecto ...

O que fora o pavimento, era agora um emaranhado de ervas, raízes, silvados, musgos e líquenes ... urzes e zimbros, plantas bravias, que espantosamente floriam, no meio do silêncio, do abandono e da morte ...

As divisões ainda se demarcavam claramente.
Agora, sem paredes que as limitassem, caminhava-se de umas para outras, livremente ...
Do quarto para a cozinha, com a lareira definida, da sala virada a poente, para o alpendre das buganvílias, em que  o banco de encosto,  talhado num tronco centenário, ainda jazia, onde ficara adormecido ...
A mó de moinho encostada cá fora, tombara, e fora tomada pelo tempo, também ... a floreira das lavandas era um destroço, e o seu aroma e a sua cor, existiam já só no coração e na mente dela ...

Por que fora até ali ?  Por que percorrera o serpenteado do caminho, até àquela ruína ???...
Não voltara mais,  desde então !  Não passara nem por perto, como se aquele ar e aquele chão, a queimassem por dentro ...

Mas agora que ia partir, um apelo estranho de despedida, chamara-a até lá ... como se quisesse certificar-se, de que embora  partisse, a certeza de perenidade ficava ali ... naquelas pedras, naquele silêncio, naquela morte que rondava ...

... onde pululara vida, onde se construíram sonhos, se ouviram sons, se contaram histórias, se chorou, se gargalhou ... se existiu ... antes do Tempo ser apenas Tempo !...

Hoje, ela sabia que a sua vida era igual àquela ruína ...



Anamar

domingo, 21 de julho de 2013

" E ASSIM SERÁ ..."



Dizia-se baixinho no café :  "Parece que ela se suicidou" ...
Baixinho, muito baixinho, como se houvesse um pudor estranho, quase um temor incompreensível, pelo acto voluntário, mas reprovável, socialmente.

Entrei e havia esse rumor.
O que é facto, é que a mesa habitual estava desocupada, parecendo que, a ser verdade, ninguém ousasse tomar para si, "propriedade alheia".

Estranho !
Por que é a sociedade tão lesta a julgar, a valorar, a decidir ?...

"Ela não tinha direito a dispor do que era seu ?  Ora essa !  Era o que faltava !" - pensava eu.

No entanto, nos outros dias, quando ela ocupava aquela mesa, olhando o vácuo, abafando os ruídos com música nos ouvidos, alheando-se do barulho ambiente ( uns dias, ensurdecedor, outros quase inexistente ), quando fingia enganar a solidão com um livro, cujas páginas nunca viravam ... ninguém sabia, se preocupava, ou sequer se interrogava, se aquela mulher estava em paz.
As pessoas sabiam lá !

Cada indivíduo é um mundo, e a sociedade actual é feita de mundos, cujas fronteiras se tocam, sem que exista no entanto, nenhum Tratado Schengen que permita a livre circulação de dores, mágoas, alegrias, dúvidas, solidões, de uns para outros ...
As células individuais abrem de manhã, por cada dia que começa, jorram pessoas, carregadas com a mochila dos destinos, muitas vezes insuportavelmente pesada ...
Se têm força, robustez, coragem para a carregarem ... nunca ninguém sabe, sequer suspeita !

Trocam-se sorrisos, palavras de circunstância, afloram-se as almas e os corações ...
Só se afloram ...
As pessoas não passam das franjas dos mesmos, não ultrapassam o limbo, a antecâmara, a "babugem" da correnteza ...

E todos somos irremediavelmente anónimos, irremediavelmente estranhos ( sempre estrangeiros em terra de ninguém ... ), irremediavelmente transparentes para sermos vistos ... irremediavelmente nada ... ou muito pouco !...

Neste café, onde a mesa "dela" continua vazia, lembro tantos rostos já, que sumiram, tantas deserções que deixaram lugares vagos, sombras, figuras já esbatidas, que seguiram "rumo" ...
E a realidade de todos os dias, perdura inalterável, insensível aos ritmos de vida ou de morte.
Depois dos Invernos vêm os Verões, voltam os Invernos ...  E as histórias escrevem-se, desenham-se, na cadência de uma página por dia, inapelável, enjoativamente iguais, sem demais colorido, sem demais luz, sem demais esperança ou sonho ...

E assim será ...
... a menos que achemos que já vimos o filme todo, que a sessão terminou, a história foi contada, e são horas de acender as luzes e arrumar a sala ...

E isso, foi provavelmente o que ela achou !...

Aí .... lá vai ficar mais uma mesa vazia, naquele café,  que  parece  adormecido  nos  tempos,  há  décadas  e  décadas ... há  vidas  e  vidas !...

Anamar

domingo, 23 de junho de 2013

" O LABIRINTO "



O sol deu lugar à lua.
Esperou que ela despertasse e se elevasse, imponente, no céu.
Era um sol imenso, uma bola de fogo laranja, a arder no firmamento, descendo lá para onde estará o mar ...
Do outro lado, uma bola de prata erguia-se, desde Monsanto ( uma super-lua cheia em perigeu, neste solstício de Verão, como não se verá nos próximos tempos ), a fazer-me sentir ainda mais só ...

E de repente, o tempo deixou de ter tempo, e sempre falta tempo para sentirmos que afinal há vida ...
As cerejas pousadas na mesa, o vinho esgotado na garrafa, os pratos vazios, o CD ainda na aparelhagem.
Os olhos humedecidos pelas lágrimas que correm ... sempre correm, na impotência de fazer parar o tal  tempo.
O que foi dito, e o que infinitamente ficou por dizer, e nunca será dito, porque o tempo é isto ...

No canto da alma, a certeza do outro, tão perto e tão longe ...
E o rio de permeio, de corrente alterosa, águas agigantadas e revoltas, sem pontes já erguidas, a mostrar onde ficas tu e onde fico eu.
E passarão dias e noites, e sóis e luas ... e o lugar daquela cama, guardará o calor do teu corpo, e a expressão do teu rosto estará para sempre, nos espelhos desta casa.
O contorno das mãos que me passeiam a alma e o corpo, escondem segredos que só elas conhecem ... e vão escondê-los para sempre.

Porque há um "para sempre" entre nós, e há um "nunca" também !...

E os caminhos seguiram-se a outros caminhos, e o emaranhado das veredas da serra, confusas e labirínticas, cerraram-se à nossa volta, com as raízes cobertas de musgo, das árvores centenárias, a sufocarem-nos, como tentáculos de polvos gigantes.
E a luz difusa do fim  de  tarde, coada por entre as ramagens, foi escurecendo os atalhos, e as clareiras deixaram de ter flores silvestres a despontar, porque não havia mais luz que chegasse.
Nem o sol nem a lua, nos iluminaram as vidas ...

E andámos perdidos tempos demais.
Cansei-me de deixar fiapos do meu vestido, nos carrasquinhos, a marcar os destinos ...
Cansei-me de te gritar a minha solidão, como o lobo uiva em noites de lua, no silêncio da penedia ...
Cansei-me de soluçar em estertores de morte, junto às fontes da floresta ...
Cansei-me de pedir às ondas das ravinas, que te acenassem recados, que nunca vinham devolvidos nas marés ...
Cansei-me de apanhar ramos de todas as flores que eu conhecia, perdidas nas falésias sobranceiras ao mar, que era azul e verde e prata e cinza ...

E até as flores amarelas sem nome, as margaridas selvagens, as madressilvas, as pedras e as conchas, definharam nas minhas mãos ... porque se foram esquecendo de como era sonhar ...

E fui adormecendo um sono sem cor ... um sono sem sonhos ... um sono sem desejos, vontades ou creres ...
Porque passou tempo demais, e eu fiquei entorpecida do cansaço da espera, fiquei entontecida da exaustão do percurso, fiquei esgotada do labirinto insolúvel,  desesperançado, sem ar e sem volta, que é a minha existência ...


 


Anamar

quarta-feira, 22 de maio de 2013

"A LENDA DA MOURA"



Atingido o cimo da encosta, já se divisava bem, do outro lado, o que restara ...

As ruínas estendiam-se, abrangendo todo o espaço por ali abaixo, perdidas numa terra que parecia morta.
O mato rasteiro crescia seco, pelo meio delas.  Nunca mais, nada que valesse a pena, conseguira vingar naquele lugar.
Antigamente havia uma estrada que galgava a pequena montanha abrigada, ladeada então, de vegetação frondosa e confortante, na subida.
O alto daquele monte, por onde meia dúzia de casas rasteiras se empoleiravam a esmo, permitia uma vista deslumbrante, donde, em dias de céu limpo, se descortinava mesmo, o mar intensamente azul, em fundo, lá longe ...

Samira viera habitar aquela aldeia perdida em nenhures.
Ninguém a conhecia.  Não conhecia ninguém.
Chegara em silêncio, num dia de muito calor, em que nem o chilreio da passarada, se deixava ouvir.
Viera ocupar a última casa do povoado, a que ficava no fim do caminho, com uma cisterna de água límpida debaixo da tileira de copa generosa e verdejante, e uma figueira como as da sua terra, mais além ...

De pele tisnada pelo sol que castiga os tuaregues no deserto, cabelos longos e crespos, largados pelas costas e envoltos no manto, quase sempre descalça, usava vestidos compridos e soltos, que tocavam o chão.
Por que viera, quem era, o que procurava, o que escondia ... ninguém sabia !

Samira deambulava pelas encostas, prendia uma ou outra flor do campo, nos cabelos, e sentava-se à tardinha, no alto dum penedo, sempre virada para o mar.
Estática, esfíngica, silenciosa, ali se perdia, até o sol tombar na linha azul do horizonte.

A história de Samira virou mistério, naquele povoado ínfimo, encosta acima.
Havia quem garantisse que, pelas noites dentro, ela chorava, num pranto de dar dó ...
Havia  quem  garantisse que ela falava com alguém, numa língua hermética e não perceptível pelas gentes dali ...
Havia quem garantisse que a via bailar como louca, quando a lua subia no céu e ficava imensa, clara e luminosa ...

Naquela noite medonha, as casas foram acordadas por um clarão laranja que acendia o firmamento, e tornava dia, a noite de breu.
Uma fornalha parecia escancarar as goelas, e querer engolir tudo e todos.  Os estalidos da madeira crepitante, as faúlhas incandescentes arremessadas em todas as direcções, e as línguas das chamas alterosas, desenhavam um monstruoso fogo de artifício, num quadro dantesco e alucinante.
As gentes fugiam, e os animais desciam a encosta, em desnorte, enquanto o vento que então se levantou, espalhava mais e mais as labaredas, num prenúncio de Inferno, em total descontrole...
Tudo cessou, apenas quando não restava mais que pedra sobre pedra, quando o negro do desespero cobriu tudo, quando até a terra parecia ter ficado queimada, e um cenário apocalíptico se abateu naquele lugar !

De Samira,  nunca  mais ninguém  ouviu falar ...
A tampa da cisterna jazia no chão ... Porquê ?  Nunca se soube !...

A aldeia das seis casas, amaldiçoada por um qualquer  desígnio inexplicável, tornou-se um lugar fantasma e deserto.
As ruínas ficaram entregues à sua sorte.  Apenas a erva rasteira e seca, persistiu em medrar por entre elas.
O trilho que levava ao topo da colina, sumiu, por indefinição de percurso.  As silvas, os galrachos, os cardos e os carrasquinhos, tomaram conta de tudo.
O mar continuava azul intenso, no limite da terra, lá longe ...
O sol era castigador no tempo do calor.  Não se ouvia um som.
Até os pássaros, pareciam evitar aquele lugar maldito. Apenas os grilos e as cigarras inconscientes, o profanavam com indiferença ... ou o zumbido de uma abelha ou de algum moscardo, em passagem ...

Contudo, apesar de penoso o acesso, havia quem não desistisse de subir ao topo do monte ... às ruínas ...
... lá, onde a lenda dizia, que no resmalhar do mato se ouvia o lamento de uma moura, e no gorgolejar da água cristalina da cisterna, os soluços de uma mulher ... quando o silêncio pesava, ou a lua cheia subia no céu  escuro !!!...



Anamar

segunda-feira, 15 de abril de 2013

" IL TROVATORE "



Baixei a  S.Carlos, naquele domingo, pelas quatro da tarde.
Lisboa, estava tão adormecida quanto o dia.
Um dia de meio de um Abril incumpridor, que há muito deveria estar a festejar a Primavera, e ainda não lhe vira a cor !

A carruagem parou finalmente ... uma caleche azul portentosa.  Dei uns trocos ao cocheiro, alguns mil réis, peguei a sombrinha, calcei as luvas pretas de doze botões, que tirara, porque afinal também não estava frio, e encontrei-me na calçada.
Havia algum movimento, apenas junto ao Teatro, porque os passantes no Chiado, eram avulsos
Uma tira estreita de água e monte, avistava-se entre dois prédios de cinco andares.
No Tejo, uma vela de  barco da Trafaria, fugia airosamente à bolina, e uma galera toda em pano, trazida pela aragem, passava envaidecida.
De resto, apenas algumas tipoias de praça, circulavam pelo Chiado e pelo Loreto.

À passagem, ainda olhei para o Grémio Literário.  Quem sabe estava por ali o Ega ?!...
Mas não ... Aquele malandro deveria estar ainda a dormir, depois de mais uma noite de esbórnia, talvez lá por Sintra.
Afinal, o Lawrence's costumava prendê-los, a ele e a Carlos, naquelas longas reflexões e filosofices, madrugada adiante, sobre a política tão atormentada, dos tempos que se viviam ...

Em S.Carlos, esperava-me "Il Trovatore".
Certamente a élite intelectual de Lisboa, não perderia a Trilogia de Verdi, que corria, na temporada.
Como sempre, eu afrontava as damas da sociedade, e espicaçava-lhes a curiosidade e uma pitadinha de inveja, atrevendo-me a escutar Verdi, sozinha, no camarote recatado, que Carlos mantinha reservado para mim.
Os binóculos e o leque, encontravam-se obviamente, na bolsinha de mão.
Com o   meu vestido de cauda de "côrte", decotado, de seda da cor do trigo, duas rosas amarelas e uma espiga  nas  tranças,  que  me  compunham  o  rosto  ruborizado,  não  passava  contudo,  desapercebida !

S.Carlos estava um "mimo" !
As cortinas pesadas, "marron", com pendentes dourados, os florões trabalhados em talha, as pinturas nos tectos e nas paredes, os lustres e a profusão de apliques fabulosos, com abundantes pingentes em cristal, eram inigualáveis.
O  camarote real, frente ao palco, encimado pela coroa régia, rodeava-se dos restantes, adamascados em rosa  velho. As efígies de compositores, nas paredes,  os baixo-relevos de um bom gosto indiscutível, as estatuetas da "Virtude" e do "Costume",  ladeando o palco , o relógio adormecido nas horas ... tudo era perfeito !
Nas frisas, os cavalheiros, de colete branco, camisa frequentemente adornada com pregadeira a rigor, sob o paletot , os sapatos irrepreensivelmente envernizados, luvas e bengala de cana da Índia, encastoada, davam um toque "raffiné", quando regressavam do "fumoir", nos intervalos . Era vulgar trazerem o seu monóculo devidamente assestado, para a "função".
As damas da sociedade, como convinha, ostentavam delicada saúde, com um quebranto nos olhos pisados, uma  infinita  languidez  em  toda  a  sua  pessoa,  e  um  ar  sonhador  de  romance,  e  de  lírio  meio  murcho ...

Ainda faltava um pedaço para que o pano subisse ... e contemplando a sala, absorta, relembrei as últimas conversas tidas com Carlos, a propósito do país ... a propósito de Lisboa.
"Um navio fretado à custa da nação, em que se mandasse pela barra fora, o rei, a família real, a cambada dos ministros, dos políticos, dos deputados, dos intrigantes ....
Porque, suprimida a cambada, o país ficava desatravancado, e podiam começar a governar, os homens do saber e do progresso, porque estes, não são maus ... estes, são umas cavalgaduras " !... - dissera-me, preocupado com o estado da Nação.

Enquanto isso, Lisboa está um marasmo !
"Aqui,  importa-se tudo.  Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias ... tudo nos vem em caixotes, pelo paquete !
A civilização custa-nos caríssima, e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas "...
"Vive-se em meio de uma choldra ignóbil !
Predomina uma visão de estrangeirado, de quem só valoriza as civilizações que julga superiores. Principalmente os políticos, que são mesquinhos, ignorantes ou corruptos !...
Enfim  ...  um  país  que  se  dissolve,  Maria  ... Incapaz  de  se  regenerar" !!!...

Interessante esta dissertação de Carlos.
Lúcida, sempre lúcida.
Era forjada nos longos serões de cavaqueio, passados no Ramalhete, depois do avô se recostar ( após o seu whist indispensável, na mesa de pano verde, junto à chaminé, onde agora a chama dos carvões escarlates, não brilhava.  Afinal, era Abril, não esqueçamos !... )
Serões onde não faltava, claro, o Ega, o Craft ( um "doido" a conhecer ), o Cruges ( um geniozinho adoidado ), o Taveira sempre muito correcto, o Marquês de Souselas ... todos em cavaqueira prolixa, à volta de um St. Emilion ou dum Porto, puxando o lume ao charuto .

Pena que tais serões não incluíssem senhoras, presentes ...  Isso seria um desaforo seguramente !
Contudo a curiosidade, o interesse, o gosto por essas tertúlias, em que também se tocava Mendelsshon ou Chopin, aguçava-me o apetite desde há muito, e incendiava-me arroubos contra a discriminação social, como se as mulheres, não fossem também cabeças pensantes, e tivessem apenas como "obrigações", os bordados, o piano, as recepções, quais  bibelots decorativos, de "pose" irrepreensível ...
Tudo demasiado entediante !...
Maçante, o perambular pela luz difusa dos palacetes, cultivando a palidez nacarada nos rostos e cólos !!!...

E assim foi !
Despertei deste torpor, quando o Conde de Luna  lamentava,  que a sua amada Leonora preferia as serenatas de um certo trovador ... que ninguém sabia verdadeiramente quem era ...
E a música de Verdi, transportou-me então, em sonho, até ao final do quarto e último acto !...

No regresso, ainda passei pela Brasileira.
Tinha um encontro marcado, anos depois, com Pessoa ... e ele não faltou !
Nas madeiras, nos tectos trabalhados, nos espelhos e nas telas sobre as paredes adamascadas ... nos grandes lustres suspensos, e mesmo nos balcões ... ele escrevinhava por lá ...

Juro que o vi, e trocámos algumas  "impressões" literárias ...
Proseámos um pouco, e ele confidenciou-me que ... virados os séculos, o país continuava exactamente a mesma ignomínia !!!...
Afinal, tinha acabado de escrever o seu "Nevoeiro" ...

Nevoeiro

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.
Ninguém sabe que coisa quere.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ansia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a Hora!






Anamar       

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

" A ESCADA ROLANTE "



De repente tudo à sua volta deixou de fazer sentido.
O Mundo desarticulou-se, e como dizia a Hushpuppy do filme que via naquela sala escura, o Universo existe porque as peças se encaixam.  Basta que uma, mesmo pequena, saia do sítio, e tudo se destrói.

Exactamente isso.
Num suspiro, nada em torno de si, ficou reconhecível ...
Havia o dia e a noite, havia o sol, a chuva e o frio que se lhe entranhava nos ossos, era verdade, porém, na tela negra  não era aquele enredo que desfilava.

Todos os fantasmas da sua existência  ficaram endiabrados, e como num ataque de abelhas enfurecidas, desataram a passar, a passar, numa escada rolante de estação de combóios.
Ela subia lentamente, na cadência da escada íngreme, e eles desciam na escada paralela à sua, bem ali ao lado.
Frenéticos a desfilarem, olhavam-na em silêncio, com esgares cínicos e impiedosos, nos rostos.

Sim, porque estes fantasmas tinham rostos.  Rostos parados, como que fixados pelo flash de uma câmara, num momento qualquer, de um qualquer dia, de uma qualquer hora ...
Porquê exactamente aquela, ela não sabia ...
Mas com emoções "congeladas", todos eles, como os rostos dos manequins nas vitrines ...
De facto, eram expressões sem emoções vivas, porque eram rostos de fantasmas e não de gente vivente, mas uns riam com a imagem em pausa, outros tinham doçura no olhar, também em pausa ... Uns choravam convulsivamente, parecendo em contrição ... outros tinham olhos libidinosos e de cobiça espelhada ...
Havia aqueles que ao afastarem-se, lhe deixavam o olhar preso, e seguiam, inevitavelmente seguiam, porque as escadas rolantes são isso mesmo, rolantes ...
Rolantes como a Vida, como o Universo.

Ela  não  conseguia estender os braços para eles, porque também ela, parecia estar imaterializada, petrificada ...
Mas ainda que o pudesse, não conseguiria retê-los, porque eles eram fantasmas e desfilavam, incessantemente ... imparavelmente !...

Cada um contava-lhe pedaços de história.

Engraçado, que alguns vinham iluminados de muito sol e do verde do mar, e irradiavam calor, muito calor.
Já outros, desciam lentamente, envolvidos naquela penumbra de céu cinzento escuro, de tempestade instalada, aqueles céus que fecham e não abrem mais nesse dia.
E fica frio e desconforto ...
Uns eram rostos muito jovens, nos quais os olhos eram mares de baías mansas, e os cabelos, searas douradas no pino do Verão alentejano ... e carregavam nas mãos, as promessas das primeiras cerejas de cada ano ...
Havia os que apenas a olhavam com ar triste e magoado.  Indiferentes, já indiferentes.
Mas gargalhadas cristalinas embora sumidas, ecoavam enquanto desciam ...
Ela sabia porquê !!
Havia também uma corte de fantasmas sem rosto.
Interessante !...  Eram muitos, mas não tinham forma, perfil definido  ... eram vazios por dentro.
Não tinham o coração que se via a pulsar, nos outros.  Não, não tinham nada !
Só tinham olhos, braços, mãos e sexo.
Eram uma espécie de polvos gigantes.  Tinham olhos esbugalhados, e caía-lhes baba verde e pegajosa, do lugar onde deveria existir uma boca de sofreguidão denunciada.
Eram atordoantes esses fantasmas !  Eram perturbadores !
Esticavam os tentáculos informes para ela ... sobre ela !...
Mas ela continuava imóvel, altiva, espectadora apenas, a tentar encaixar todas aquelas peças, para reconstruir um Universo !...

E a escada rolava, e ela subia e eles desciam ...

Com eles desciam histórias bafientas, que teimavam em tornar presentes, halos há muito apagados, como velas em fim de festa.
Traziam filas de esperanças e sonhos enterrados, fazia mais de tempo !!!

E o coração dela sobressaltava-se.

Havia alguns que ela queria, porque queria, reter, ou mesmo recolocá-los no princípio da escada, para que de novo passassem e de novo lhe segredassem os dias de sol, de luas imensas nos céus de breu, os sussurros das noites de amor ... e as gargalhadas felizes também ...

E por isso, no seu rosto que existia e não existia, escorriam lágrimas, porque naquela sala escura, ela também ouvira Hushpuppy dizer que as pessoas só se comunicam por amor, pelo entendimento das batidas dos corações.
Nada mais importa !
E duas coisas ela conseguia perceber, porque não esquecera : as batidas de alguns corações e a saudade que sentia de os ter nas suas mãos, para aquecê-los ...
Estranho como os fantasmas podem experimentar amor e saudade ...
Ela nunca ouvira falar que isso fosse possível !!!...

Aquela escada rolante, estava a aproximá-la do topo.  Faltava já pouco.
Na escada ao seu lado, aqueles esgares de gente, também quase tinham terminado a procissão silenciosa ;  todos se remetiam ao afastamento do Tempo, todos desciam para os lugares donde não deveriam ter saído : a escuridão da ausência e do vazio !

Uma derradeira figura olhava-a intensamente.
Tinha olhos parados, doces e sofridos.  Exalava um perfume salgado a maresia e caruma fresca, como um ser do mar e do monte ...
Era um misto de criança e de velho.  Transportava um apelo na imobilidade indiferente do rosto.
Parecia querer parar ali, mesmo frente a ela, apenas, sem forças, inevitavelmente, deixou-se arrastar pela escada rolante, como todos os outros, ficando mais e mais distante, difuso, enevoado ...

Ela voltou-se para trás, e surpreendentemente soltou-se do seu torpor patético de vídeo em pausa, ganhou vida, ergueu um braço e acenou ... um longo adeus, um derradeiro adeus ...
E ficou a vê-lo afastar-se, como que empurrado por uma maré contra a qual não se luta, por um vento varredor de encostas e penedias, por uma desesperança de Inverno que veio para ficar ... enquanto Enya se ouvia lá longe ... cada vez mais longe ...

As luzes da sala acenderam-se.
Hushpuppy, com o seu narizinho empinado, de menina-mulher e a sua determinação de sofrimento aprendido, também já tinha ido ...
Fazia-se tarde !!!...

Anamar

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

" CONTO DE NATAL "



Os campos há muito estavam brancos.
Este ano a neve viera bem mais cedo, em jeito dos tempos antigos, que os idosos diziam normais.
Os últimos brotos verdes, ficaram envolvidos no manto gélido, aguardando, em sono retemperador, que os primeiros raios de sol da Primavera, os acordassem, para os dias de céu azul.
As folhas perenes, das árvores, sempre arqueavam para o solo, ajoujadas sob o peso dos floquinhos que nelas haviam poisado.   Havia também as árvores esquálidas que se despiam totalmente, e apenas apontavam aos céus os seus ramos, em arquitecturas elaboradas ;  também essas esperavam o calor de retorno, para se recobrirem dos verdes mimosos, já que as últimas folhas que as haviam abandonado há pouco, se vestiam de castanhos, alaranjados, ocres e vermelhos.
Os azevinhos, arbustos bravios dos bosques, ostentavam orgulhosos as contrastantes bagas vermelhas.
Juntamente  com  os  musgos que trepavam pelos troncos ( como barbas em rostos encarquilhados de velhos ), haveriam de engalanar a Sagrada Família, que constituía o seu presépio.

Monique recolhera a sua vida àquela quinta, propriedade dos avós e depois dos pais, que há muito tinham partido.
Era a sua quinta de infância, onde em menina brincava, corria, apanhava as flores da Primavera com que a mãe lhe fazia grinaldas para o cabelo, o que a tornava uma princesa, no seu imaginário infantil.
Era a quinta por onde, como os seus amigos do bosque, espalhava alegria, vivia a liberdade de potro selvagem, apanhava os medronhos, as amoras e os mirtilos, para as tartes dos lanches.



Crescera, fizera os seus estudos em Paris, e por lá tentara radicar-se, por lá delineara a sua vida.
Sempre regressava em férias ou em alguma pausa de trabalho, para rever as pessoas ... mas sobretudo os sítios, os cheiros, as cores, os sons ... e a liberdade, com que o ar leve e desanuviado da montanha que ficava no horizonte, a presenteava.

Hoje, Monique vivia em definitivo ali, naquele seu chão !

Era Dezembro outra vez .
Lembrava os Natais em Paris, o réveillon, as luzes, os vidros das montras ricamente decoradas, embaciados do gelo que se fazia sentir ...
Lembrava o escuro da noite, as golas dos casacos a protegerem o rosto, as luvas nas mãos, e aquele "fuminho" a sair da boca, como as chaminés da aldeia distante, que também a essas horas, deveriam ter as lareiras a crepitar ...

A vida de Monique não correra feliz.  Tomou a decisão de ficar só ... mas não em Paris.
Regressaria à quinta, lá na Provença.  St. Remis esperava-a ... e perto, os seus campos também !
Resolvera começar de novo ... sozinha. !

Deixara Marcel em "Les Ombres", o "bistrô" junto ao Sena, onde se haviam conhecido, e onde mantinham o ritual de, sempre que possível ao fim do dia, quando ambos regressavam a casa, tomarem um café, um copo, um chá de jasmim ...
Monique fizera de tudo, para ficar com aquele homem na sua vida.
Simplesmente, Marcel vivia preso ao passado, um passado que não cortara, não cortaria nunca.
Um passado que o tornava refém, por valores, princípios, convicções, os quais não sabia gerir.  E essas amarras de consciência, são aqueles nós, que um homem por muito forte que seja, dificilmente consegue desatar.
Por isso, Monique decidiu partir.
E para partir e chegar a algum lugar, ela só tinha de facto, o seu chão, o seu céu, os seus campos, as cores de St. Remis, o calor da fogueira acesa naquela casa desabitada, para a acolher !

Naquele dia de fim de Novembro, Monique deixou Marcel  ao balcão, em "Les Ombres", envolto nas espirais do seu fumo de cigarro ( que sempre começam e caminham pelo espaço, sem nunca terem fim ).
Dali, ouvia-se ainda que abafado, o gorgolejar das águas do Sena, imparáveis.
A tarde estava a fechar.
O dia fora cinzento, escurecido, tão escurecido e angustiante quanto o peito de Monique estava.
As folhas das árvores, de um Outono instalado, espalhavam-se pelas alamedas, imóveis ;
coladas ao asfalto, pela chuva que tombara a espaços, ao longo do dia, pintavam o chão, com a doçura das cores da estação.  Não havia frio. Antes, havia uma mornidão húmida espalhada no ar.
Ao cruzar a porta, parou, para ainda olhar uma vez mais, longamente, a figura sossobrante, derrotada e impressionantemente cansada, que imóvel, se perdia em pensamentos distantes, na meia obscuridade do botequim ...
E saíu ...
Naquele exacto instante virara a sua página,  fechara o seu livro, acabara de ler o último episódio ...

E era Dezembro, de novo.
Haviam decorrido tantos anos desde aquele dia !...
O Natal aproximava-se uma outra vez.
Naquela quinta novamente com vida, todos os anos por essa altura, Monique carregava do bosque, braçadas de azevinhos, ramos de tuías, pinheiro e musgos dos troncos ... e com as velas,  as fitas e as luzes, enfeitava a sua sala, aconchegante.  Simples, mas de bom gosto ... aconchegante no mobiliário antigo, fiel às recordações, nos paninhos bordados sobre os móveis, nas cortininhas de rendas nas janelas, deixando ver os campos a perder de vista,  nas almofadas e mantinhas sobre os sofás.
A Sagrada Família, o seu presépio herdado dos avós, pousava sobre a lareira, que crepitava por todo o dia, até que Monique se recolhia.
Junto dela sempre estava o Rudi, seu fiel companheiro, sombra dos dias e noites, com quem conversava, e com quem caminhava longas horas, pelos campos, até ao rio, lá ao fundo ;
junto dela, sempre estavam os gatos ronceiros e ronronantes, que mais dormiam do que caçavam, apesar de andarem dentro e fora, circulando pela gateira que recortara na porta.


Depois do Natal, viria o Novo Ano ... mais um !
Monique já não se lembrava de uma forma nítida, como era sentir-se "família" de novo, como era sentir o aconchego e o conforto no coração, que o embalo de uns braços transmite, e como a cumplicidade do silêncio ( que apenas olha o vermelho do fogo e as faúlhas da lareira  a subirem no espaço )  pacifica a alma.
Desde que Marcel ficara em Paris e ela ficara "órfã" de afectos ... desde que  os seus dias criaram rotinas ... desde que apenas St. Remis era espectadora dos seus estados de alma, dos seus risos e das suas lágrimas, que Monique procurava apagar no seu  "calendário do coração ", esses dia pungentemente mais "agrestes" !

A noite chegou, as luzes acenderam-se coadas na penumbra da sala.
As chamas das velas, bruxuleantes, criavam sombras fantasmagóricas nas paredes.
Mais um ano ia virar.
Nessa noite, Monique sempre "cutucava" tempos sem fim, as brasas, sempre silenciava, ouvindo apenas os estalidos da lenha a arder, sempre colocava uma toalha alva ( bordada pelas mãos já trémulas da avó ) na pequena mesa junto à lareira, sempre trazia o seu vinho ( um bom vinho, fazia questão ), algumas vitualhas da quadra que se vivia, as passas dos desejos, e dois copos de pé alto, do serviço que vivia adormecido por todo o ano, no guarda-loiças das memórias.
A seu lado, Rudi dormia completamente espreguiçado na carpete de sisal que cobria  o chão, e os gatos, enroscados um no outro, saboreavam o calor próximo, do lume.
Às vezes passava temas de Natal na aparelhagem, baixinho, embaladoramente, embora preferisse outras tantas, o silêncio alto dos seus pensamentos que rodopiavam livres pela sala, transpunham paredes, janelas, distâncias, vontade e tempo, percorriam espaço, venciam eternidades ...

O relógio antigo, de chão, iniciou a sequência das doze badaladas da meia-noite.
Lá fora nevava abundantemente.  Sentia-se, pelo toque leve, nas vidraças.
Colocou um outro tronco na lareira, encheu os dois copos, com o vinho tinto que "respirava" há tempo, e cadenciadamente começou a comer uma a uma, as doze passas, acompanhando-as de um só desejo.
Era um desejo global, que envolvia os doze que pudesse pedir :  ainda poder ser feliz, na vida que lhe coubesse viver !...



Rudi ergueu a cabeça e arrebitou uma orelha, como que perscrutando o silêncio lá fora ;
os gatos também despertaram do sono profundo, e espreguiçaram-se com satisfação.
A argola de ferro ( agora emoldurada por uma coroa de Natal ), na porta da sala, bateu uma só pancada seca.
Monique foi abrir, como se sempre soubesse, que algum dia, aquele som iria ouvir-se ...
Na soleira da porta, recortada no breu da noite e no branco da neve, a figura de um homem, com o cabelo totalmente grisalho, segurava na mão, um vaso de "Estrelas do Natal", espantosamente rubras, contra o verde intenso das folhas ...

" Voltei " !... - disse Marcel .

Anamar

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

" UM DIA, VOLTA !... "



Lembras aquele acordar de madrugada, ainda a luz se coava pela vidraça ?
Quando o frio da noite que começava a findar, trazia de longe os rumores de sonhos antigos ?!

Era  quase Inverno, mas contigo acendeu-se a Primavera no meu quarto ...
As roseiras começaram a florir,
e os pingos de chuva  ao tombarem lá fora, faziam-se cordões dourados, que desciam pela nudez do meu corpo.

Havia uma lareira acesa na memória,
Havia a cor do fogo espalhada por ali,
e havia um frémito doído que passava,  por se saber apenas inventado ...

As tuas mãos, regatos a desvendar caminhos, corriam incessantes, da nascente  à foz ... Lá, onde as águas se misturam com o sal que tempera a minha pele ...
Os teus braços, raízes que prendem as árvores na terra,  tinham a força indomável que liga o carvalho ao solo, ainda que o vento açoite forte ... mas também a ternura da sombra generosa do choupo, que nunca ofusca o sol por inteiro ...

Contigo fui gaivota, de penhasco em penhasco ...
pardal que saltita de poça em poça ...
Fui  águia  altaneira   das  montanhas,  que  dos  picos,  domina  o  Mundo ...
Só que naquela hora, o meu mundo eras tu, éramos apenas nós naquela cama desfeita, aquela chuva lá fora, e a força que então, eu tinha no meu peito ...

O meu sonho ninguém aprisiona, porque é metade de mim,
e a outra metade, é o meu crer, que não conhece grades, nem grilhetas,
nem fronteiras, nem fantasmas,
nem deuses, nem destinos,
nem máscaras, nem medos ...

O meu crer, é o calor-ninho de um sol imaginado
É a luz que se acende no céu em noites de lua cheia ...
que o farol verte na escuridão, do mar infinito ...
É  a  pincelada  de  cor  com  que  a  chuva  e  o sol  acordam  o  arco-íris,  em  dias  escuros,  mascarados de Verão ...

Volta ...

Volta outra vez, trazendo contigo as braçadas das flores que me colheres ...
E nos olhos, as estrelas que conseguires apanhar do firmamento ...

... porque haverá outras madrugadas, em que a luz só se coará ainda, pela vidraça ...
e me tomes nos teus braços, para me dizeres baixinho ...  "Como eu  te  amo " !!!...

Anamar

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

O REGRESSO À INFÂNCIA - " A GOTA DE ÁGUA "- Uma história para a Vitória ler ao Quico



Naquela manhã de Agosto, a Miquelina acabava de poisar na pocinha, que a maré preguiçosa deixara na areia.
O bando viera banhar-se e fazer a "toilette", no espelho que a água fizera na praia, ainda deserta.
Como todas as gaivotas, a Miquelina gostava de ter as penas bem limpas, penteadas e perfeitamente alinhadas.  Por isso, sempre desciam ao areal da maré baixa, a horas em que ninguém as importunava, porque a praia estava vazia.
Nem meninos traquinas, nem cães desatinados, e os pescadores da noite, seus amigos, também já estavam de partida, porque esta findara, e o sol já espreitava por detrás das falésias.
Sentia-se uma nortada fresca, nada que perturbasse, afinal !
Miquelina, depois de revisionar uma a uma as suas penas, com o bico treinado, enfunou-as e sacudiu-se, vaidosa, espreguiçando-se.

Foi aí que aquela gota de água se soltou, e às cambalhotas, meio entontecida e atordoada, sem perceber bem o que lhe estava a acontecer, veio parar ao charco que Miquelina tinha aos pés, ou melhor, às patas ...
Caíu atarantada, mas rapidamente se recompôs .  Olhou à volta, e viu que junto a si, tinha muitas, muitas outras gotas como ela, que o mar, ao recuar, ali deixara.

" E agora " ??? - pensou.

Ainda minutos antes estava aninhadinha debaixo da asa da Miquelina, e agora engrossava na areia, o caudal de muitas irmãs iguais a si.
De um lado tinha o sol que começava a aquecer com força, e do outro, o mar barulhento, que ela só via, quando a Miquelina  abria bem as asas, e planava na aragem lá no alto, bem por cima dele.


E afinal, quem era ela ??
Como poderia distinguir-se daquelas gotas todas iguais a si, que formavam o espelho em que as gaivotas sapateavam ??
Resolveu que deveria ter um nome.
"Mariluz" pareceu-lhe bem.  No fim das contas, ela era a mais pequena porção do mar imenso que gargalhava bem disposto ao seu lado, e luz era aquilo que mesmo pequena e insignificante, espalhava ao seu redor.
Por isso é que aquele charquinho, chegava a encandear quem dele se aproximasse.

Mariluz resolveu então tomar um banho de sol.  Não era o que os turistas todos faziam ??
Foi-se  deixando acariciar pelo calorzinho que lhe chegava ao coração  ( sim,  porque uma gota de água é tão pequenina, que quase é só coração ... ), e adormeceu ...
Acordou estremunhada, porque voltou a não perceber o que lhe estava a acontecer outra vez.
De facto, Mariluz sentia-se a subir, bem mais alto do que quando era transportada na asa da Miquelina.
Tão alto, tão alto, que pouco conseguia ver cá para baixo.
Mas não se sentia nada mal, porque baloiçava aconchegadinha, só que agora numa cama de algodão bem branquinha.
E deslizava ao sabor da aragem ...  Mais p'ra cá, mais p'ra lá ... e cá em baixo, bem pequenina, estava a praia onde adormecera.

Mariluz agora fazia parte de uma nuvem.
E uma nuvem, é uma coisa tão levezinha, tão levezinha, que o vento carrega p'ra onde quer ...
E por isso, Mariluz foi esbarrar no alto daquela penedia da serra ...
Não podia seguir em frente de forma nenhuma, a não ser que subisse no céu, e assim passasse por cima daquela montanha assustadora ...

Mas, " uffa ! ...  que frio " !!!
Quanto mais a nuvem subia, mais gelava ... sem cobertor que lhe valesse.
Foi, quando tiritava de frio e quase não conseguia mexer-se, que se sentiu a descer mansamente, de novo em direcção à terra, donde viera, só que descia bem embrulhada numa capinha, como uma pele de arminho, branquinha e fofa.
E foi descendo, descendo, até que poisou como uma borboleta, docemente, exactamente num ramo de azevinho, que já se enfeitava com as bagas vermelhas, para o Natal que se aproximava.
Mesmo ao seu lado estava poisado um pardalito enrufado, que inclinou a cabecinha, surpreendido, quando Mariluz poisou.

" Olá " - disse ela.
" Podes, por favor, dizer-me onde é que eu estou ?  É que eu sou a Mariluz, que vivia na asa da Miquelina, e estava numa praia linda a apanhar banhos de sol, quando de repente subi a uma nuvem.  E de lá, acabei caindo ... só que venho com outra roupa !...  Não estou a perceber nada " !!!...

O pardal olhou-a de novo, sorriu ( como os pardais sabem sorrir ), e disse-lhe :
" Agora estás numa mata de cedros, azevinhos, plátanos, pinheiros, abetos, tuías, e muitas outras plantas lindas.
Estão todas um pouco a dormir, porque é Inverno e está muito frio ;  e também há poucas flores, porque estas só vão acordar, quando o sol regressar, e for Primavera outra vez .
Tu ... tu não tens frio, porque és um floquinho de neve, e já te habituaste a ter esse casaco " !!!

Mariluz olhou à sua volta, e verificou que realmente  tudo estava vestido da sua cor, como numa festa em que todos tivessem combinado o traje a usar.

Rufino, o seu novo amigo, todos os dias passou a visitá-la, no galhinho onde ela se dependurara.
Contava-lhe do sol, dos passarinhos, dos esquilos, dos coelhos e das flores.
Falava-lhe da tal Primavera, e do Verão, em que o bosque ficava cheio de cores, de alegria dos trinados dos pássaros, que chegavam das terras do calor.
Falava-lhe dos bichinhos que ali moravam, e que começavam a sair das suas tocas, e das borboletas que sabiam dançar bailados, como ninguém ...

E  Mariluz vivia feliz, com todas essas histórias, junto às bagas vermelhas, com que o azevinho vaidoso, se adornava.

E a Primavera acabou chegando.
Os dias começaram a ficar mais quentes, e o floquinho de neve começou a perceber que de novo, algo estranho se passava .
De repente, o ramito de azevinho onde vivera, já não era seguro, e ela sentia-se a deslizar pelo limbo das folhas, como num escorrega de menino ... até que ...
" Plim " !!! - despiu o casaco branquinho, e caíu no chão,  gota de água outra vez !

A  mata  realmente  tomava  outras  cores,  outros  cheiros,  outros  sons ...
A " festa do branco " terminara, e ela pasmava com os verdes, os amarelos e os lilazes, os vermelhos e os rosas, que formavam tufos à sua volta.
Não teve nem tempo para se despedir do Rufino, porque logo começou a caminhar, empurrada cada vez mais depressa, por entre as pedras, por entre os musgos e os líquenes.
A ela, juntavam-se de todos os lados, muitas outras gotas iguais a si, e rapidamente formaram um ribeirinho, primeiro fininho, depois mais forte e largo, que não parava nunca de correr ...

E Mariluz começou uma enorme viagem, nem ela sabia para onde ...

Sempre cantando por entre margens mais ou menos apertadas, à sombra de árvores frondosas, em campos planos ou aos solavancos, lá seguiam, como se tivessem um destino a cumprir ...

Passou por lavadeiras, que riam e conversavam enquanto lavavam a roupa, passou por meninos, que com os pezinhos na água, brincavam com barquinhos de papel, como se estivessem numa corrida ...
viu animais que nunca vira, a dessedentarem-se ...
viu os agricultores felizes, a levarem pedacinhos do riacho, para que as suas terras dessem flores e frutos ...
olhou as andorinhas, que pela tardinha, rasavam as águas para se refrescarem ...
passou pelas quintas, onde os rebanhos de ovelhas, os cavalos ou as vacas, pastavam com um jeito bem preguiçoso, e de quando em vez chegavam às margens do ribeiro ( que agora, de tão largo, se chamava " rio " ), e matavam a sede ...

Por cima de si, Mariluz tinha um céu muito azul, e um sol muito quentinho.
Seguia feliz, agora num caudal tão grande, que atravessou cidades com prédios muito altos, passou por debaixo de pontes, viu barcos enormes, que pareciam casas em cima da água, e que tornavam insignificantes os barquinhos de papel dos meninos, com que se cruzara lá atrás ...
Aqui e ali havia pessoas a tomarem banho e a refrescarem-se ;  havia casais de namorados, que simplesmente olhavam o correr das águas, e sonhavam ;  havia pescadores, que lançavam a linha e esperavam adormentados que o peixe picasse ...  e espanto dos espantos ... havia, planando nos céus, de novo, gaivotas preguiçosas, embalando-se na aragem !...

Quem sabe, Mariluz encontrava a Miquelina ?!...

E o tempo foi passando, os dias foram correndo, como corria também o destino daquela gota de água.

Até que, numa bela manhã, despertou com a voz forte e troante, de rebentação nos rochedos.
O seu caminho não era mais de calma e tranquilidade ;  sentia alguma turbulência no sobe e desce, no avanço e recuo, para que era empurrada.
Verdadeiramente, Mariluz não tinha mais um caminho ...
Fazia parte do que não tinha princípio ou fim, do que tanto era azul, como verde ... ou prateado ou turquesa ...ou escuro, se irritado.
Era "casa" de seres de cores inacreditáveis, de algas e corais, de conchas e búzios, de anémonas e até de sereias, como um imenso e mágico jardim, totalmente florido.
Tanto era doce, silencioso e se deitava languidamente na areia, como se desfazia em rendas brancas, quando zangado açoitava os rochedos ...

Mariluz percebeu que voltara ao MAR, donde saíra um dia, exactamente debaixo da asa da Miquelina !
E percebeu também, que iria começar tudo de novo ...
Talvez igual ... ou com novas histórias para contar !!!...


Anamar