Mostrar mensagens com a etiqueta Ficção. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Ficção. Mostrar todas as mensagens

domingo, 25 de dezembro de 2011

"NEVOEIRO DE VIDA" ...


Abateu-se um imenso nevoeiro frente à vidraça do seu quarto ...

Estranho ... o dia até estivera ensolarado, embora com aquele sol envergonhado de um Dezembro que preverica.
Anoiteceu ... as últimas aves da tarde recortavam o céu, em busca de abrigo para a noite ... e subitamente, como tempestade que se anuncia, um breu, uma cerração, começou a baixar e fechou o firmamento.

A surpresa "chamou-a" à vidraça ...
Esborrachou bem o nariz contra ela, como se assim conseguisse divisar melhor alguma coisa.
Alguma coisa que Ana não sabia bem o que seria.
Por ora, apenas as folhas de plátano profusamente espalhadas pelo chão outonal, jaziam lá em baixo.

O horizonte tinha ficado curto ... melhor, parecia-lhe não ter mais horizonte à sua frente!...
Deixou perder os olhos por ali ... Nada do que conhecia, e há pouco ali estava, surgia, ainda que fosse difuso ...
Ana sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo, sentiu o sangue a fugir-lhe das veias, teve uma sensação estranha de estupefacção e medo ...
Como um cego que tacteia, ficou de repente perdida, surpreendentemente sem rumo ou destino, como se o chão também tivesse sumido debaixo dos seus pés, com a neblina cerrada.

Desenhou um sol no embaciado do vidro ... desenhou um coração ao lado do sol ... desenhou uma gaivota perto do coração ... e sorriu tristemente, achando-se louca !

Por que fora embora o sol, mesmo envergonhado, neste Dezembro prevericador?
É certo que Dezembro combina mais com chuva, cinza e névoas ... mas disso ela já tinha que chegasse !...
É certo que o coração precisa de luz para ter esperança e sonhar ...
É certo que o sonho precisa de "liberdade" para crescer ...
É certo que as pessoas precisam de horizontes para viver ...

Mas aquela cerração que lhe fechara a tarde, fechara-lhe também a vida ... outra vez !
Sim, porque Ana já vira muito nevoeiro da sua janela ... mais ou menos denso, mais ou menos fechado, mais ou menos desesperançoso !...
Sentia-se como quem tem que saltar de uma ravina e não sabe o que a espera lá em baixo!
Sentia-se como atravessando um tronco, entre duas margens de um desfiladeiro !
Sentia um pavor a crescer-lhe nas entranhas, à medida que as asas da noite a tocavam ...
Havia morte por ali ...percebia-se! Havia dor por ali ... ela sentia-a claramente!

Ficou letárgica, quieta, álgica ... Quase continha a respiração, para não perturbar o silêncio e a penumbra ameaçadores ...
Não se perscrutava, não se sentia ... seguramente, Ana suspendera a Vida entre dois parêntesis!

O sol continuava desenhado, o coração continuava sem luz ... o sonho perdera-se porque a cerração naquele fim de dia de Dezembro, fora implacável! ...
                                                                                         
Anamar

sábado, 14 de maio de 2011

"AO ALCANCE DE UM CLIQUE"

Todos os dias àquela hora vestia o seu melhor vestido, maquilhava-se a rigor, perfumava-se, abria as portadas e esperava.
O Mundo estava à sua frente....Espantoso, como as pulsações se aceleravam, como por vezes um calor gostoso lhe subia...

Procurava uniformizar os diálogos. Não podia ter versões frágeis ou menos convictas. Regredia mais de década na idade, mudava de emprego, passava a ter metas, projectos...sonhos.
Punha-se noutra pele, "montava-se" noutro rosto...
Apenas, porque o coração era o mesmo, o "ar" sofrido, a nostalgia interior de alma, acabavam atraiçoando-a, denunciando para o "outro lado", à sua revelia, um pouco da imagem real que desejava apagar.

Esse era um lado, daquele "dois em um", que atraía muita gente, porque muita gente se identificava com ele, porque muita gente andava sofrendo por aí, andava em silêncio e em solidão pelas esquinas...

Quando soltava sem comportas essas "torrentes" e se punha a nu, deixava suspenso quem lhe admirava o "verbo" fluente, desinibido, quente e cativante, eco de vozes e vozes das noites sem fim...
Porque ela falava do que muita gente não conseguia verbalizar, embora sufocada até à garganta;  porque ela punha dúvidas, inquietações, mágoas, duma forma simples, procurando identificação do lado de lá, miscigenação com os "zombies" das noites sem lua...mas também aconchego, ombro, cólo, calor...

Pelas madrugadas não se regateia o cólo, não se questiona o companheiro de travesseiro, não se escolhe em demasia o ouvinte...sobretudo se o ouvinte nem tem rosto visível...apenas aquele que ela criara na sua cabeça.

Aquela varanda tinha dessas coisas : a construção de imagens sobre imagens, de rostos, de sons, de hálitos, de timbres de voz, de mãos, de cheiros, como num caleidoscópio alucinante, num fractal maravilhoso!
Aquela varanda deixava  que flutuasse pelo éter, sem limites ou fronteiras, apenas regida pelo sonho, apenas comandada pelo instinto, apenas impelida pelo coração!
Era, mas já não era mais ela, anonimamente saltitando de nuvem em nuvem, de estrela em estrela, rodopiando num baile lúgubre, de mãos dadas com os esfomeados de afecto, com os desencantados dos sonhos, com os cépticos dos amanhãs...
 
Por isso, àquela hora, ela sempre vestia o seu melhor vestido para ali assomar.
Jamais sairia dessa varanda...
Se o fizesse, destruiria o fantástico, o imaginário, o extraordinário e incrível que era, ter o Mundo apenas ao alcance do clicar de uma tecla!!...

Anamar

quinta-feira, 5 de maio de 2011

SONHAR ACORDADO ! ! ...

Olhava há tempo perdido para uma revista de viagens, daquelas que no sonho, se buscam nas Agências, sempre a pensar que se arranja dinheiro para se ir por aí...concretizar o que prende nas brumas do sótão, no nevoeiro do coração...
Olhava da direita, da esquerda, sublinhava, calculava os recursos cada vez mais parcos que a crise instalada lhe deixava.

Quem diz que não se viaja assim, numa mesa de café, entre um pão e uma chávena, com uma revista à frente, ou numa cama, com o "Travel Channel" aos pés a fazer "negaças"...ao deitar??!!

Anda por aí e já tem "barbas",  um e-mail humorístico, negramente humorístico, que se denomina : as "férias dos portugueses"...
Tristemente humorístico, diria, quase macabro!
Nele, está um "português", deduz-se, devidamente equipado em traje de praia, óculos escuros, chinelas nos pés, uma bebida de palhinha à frente, refastelado numa poltrona, frente a um PC que lhe mostra imagens de ilhas paradisíacas do imaginário de todos nós.
E o portuguesinho, de charuto na boca, deixa voar o sonho por aí fora, até ao Índico, ao Pacífico, às Caraíbas...e fica sempre por ali, naquela sala ou naquele quarto...

Num filme revisto um destes dias - "Colisão" - um taxista tem consigo, na pala do tabelier do carro, um postal com uma vista das Maldivas, e nos momentos de repouso, entre dois clientes, visualiza, ao jeito de carregar baterias, aquela paisagem onírica...
Também ele sonha, também ele se deixa ir para lá daquelas viagens, nas noites escuras de LA...

A mente e o seu "vaguear", o sonho, a liberdade individual de ir....o Governo, a Crise, o FMI...ainda não conseguiram penalizar, tributar, "cortar".....já que os jornais, esses, todos os dias são mais pequeninos, quase minúsculos...se os avaliássemos pelos "cortes" com que nos infernizam a vida!!!...

É um crime não poder de facto amarinhar para as asas da sua gaivota, "acertar" com ela o preço da "corrida" ( se calhar só de ida ) e simplesmente ir com o vento de jeito, numa "emigração" sem retorno...que este país não está para nada!!! - pensava.

Se pudesse, deixaria de comer...hibernava...até poder deitar a cabeça de fora e seguir...
Tantos destinos a visitar, tantos pores e nasceres de sol à sua espera, tanto mar de águas mansas e quentes, tanto verde esbanjado, tanto céu de turquesa, tanta natureza pródiga e gratuita, essa sim, ao alcance de uma mão...ao alcance de tantos euros....

Pensava em como curta era já a "viagem"...para desejos tão compridos....em como os sonhos eram do tamanho do Mundo, com o Mundo a encolher a olhos vistos!!!....

Anamar

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

"AQUELES JARDINS..."


Marta ficara ao sol.
Também ela tinha um jardim em frente à casa, com bancos, com relva e com árvores. Se bem que agora despidas de folhagem na sua generalidade, lá estavam, à espera que a Primavera as tornasse de novo árvores...
Aquele jardim e os seus utentes não lhe faziam bem, mas havia o sol, hoje um sol que já lembrava quase o de Verão, aberto que estava, quente que estava...
O sol era realmente uma fonte de energia poderosíssima para a alma!
Mas ainda assim, aquecia-a por fora, lembrando-lhe que talvez tivesse roupa demasiado quente para o dia que estava, mas o coração continuava gélido e escuro...

Marta perguntava-se quando terminaria aquele luto, e que mais fazer para o terminar...
Afinal havia mais de um ano que aquela perda se instalara dentro de si, e de então para cá poderia dizer que deixara de viver, arrastava apenas dias uns atrás dos outros, num somatório desencantado e esgotante.
Acordava com aquela pena, deitava-se com ela. Se a meio da noite se levantava, lá estava ela, feito urubu sobre a carniça.
Sentia-se demasiado cansada, esgotada, na eminência de desistir.
Por isso, ficara ao sol, ao lado de todos quantos também não tinham mais horizontes, nem esperança, nem ânimo, nem incentivo...Daqueles que viviam por viver...

Os dias sucediam-se...sempre iguais, sempre repetidos.

Não se lembra há quanto tempo não soltava uma boa gargalhada...daquelas que esvaziam o coração dos "fluidos negativos".
Não se sentia nem com razão, nem com vontade para isso.

Marta nunca tinha passado por uma "onda" tão devastadora na sua vida.
Nunca tinha sabido antes, o que era perder alguém tão chegado, alguém tão seu, e ficara absolutamente sem norte, como que perdida no meio do nada, como que perdida num deserto sem guia, ou no alto mar em tempestade aberta, de leme destruído.
E pensava como levar a sua vida adiante dali para a frente.
Sabia que tinha que sobreviver, e sobreviver ainda era mais penoso que viver...

Lembrava-se da expressão que ouvira num filme visto há pouco tempo:"Tu és o único empecilho para a tua própria vida...solta-te...vive!"
Teria que o fazer, com forças arranjadas não sabia bem onde, criando novos mecanismos, novos nortes, novos azimutes, como também lera: "pintando o mundo com as suas próprias cores", e essas teriam que voltar a ser bem matizadas, magistralmente matizadas, equilibradamente matizadas, como é a Natureza construída, ela não sabia por quem...

Vira um conteúdo programático do National Geographic Channel, que não a deixara afastar os olhos do écran...Onde há maior equilíbrio do que nos jardins das profundidades marinhas?
Aquele mundo surreal que mescla uma flora e uma fauna absolutamente indescritíveis, aquela cor de corais, anémonas, peixes e outras espécies, misturado com o silêncio de "outro mundo" que se sente lá em baixo, aquela coloração da água cristalina que vai do turquesa translúcido, onde o sol ainda penetra, ao sombrio e escuro dos desfiladeiros marinhos, convida a ficar, porque aquela paz não tem comparação no mundo dos Homens...

"Amazing"...não se cansava de repetir o mergulhador...asolutamente "amazing", repetia ela, de imagem para imagem, à medida que se sucediam...
Ela já espreitara um pouco isso, quando fizera "snorkeling" em determinadas ilhas do planeta, ilhas de águas quentes, onde efectivamente se pode desfrutar deste cenário. Mergulho em profundidade nunca fizera, e se a sua experiência já a extasiara, imaginava o que seria poder ir mais e mais fundo e perder-se por lá, mundo de quietude, beleza, equilíbrio e paz!...
Cada ser magistralmente colocado, em contraste com outro; cada precipício, com areias macias, "canteiros e canteiros" de "flores" dos mares, numa Primavera perpétua...um jardim à disposição do olhar do homem, que talvez o não mereça...

Tudo isso trazia à mente de Marta a insatisfação crescente pelo mundo em que vivia, por aquele cenário rudimentar, que dia a dia lhe era oferecido, por aquela realidade "fria" e vazia que tinha que partilhar com milhões de outros "fantasminhas" movidos a cordéis...

O sol continuava a aquecer-lhe a cabeça, quente, se calhar demasiado quente...o seu pensamento dançara por muitos "becos", levara-a a muitas paragens, tirara-a daquele banco...mas agora tinha que voltar...
"Que injustiça!" - pensou - "Que injustiça!"...

Afinal, o jardim que tinha à sua frente, nada tinha a ver com aqueles em que se "perdera" nos últimos momentos da sua vida...

Anamar

domingo, 16 de janeiro de 2011

"UMA ROSA..."


Isabella estava junto à vidraça e olhava o cinzento uniforme que tinha à sua frente, por onde bandos de pombos voejavam.
O seu olhar estava mergulhado no seu pensamento, e o seu pensamento fixado no nada...

"Por que não pode haver um terapeuta que abra um coração com um bisturi e tire lá de dentro, como um coelho da cartola, o intruso que o ocupa?? Por que tem alguém que percorrer uma via sacra de dor, desespero, angústia e abandono, para que consiga simplesmente o desiderato de passar esponjas com lixívia nesse coração magoado??
A lixívia esbate, esbate, mas há manchas que nunca se conseguem apagar..." - tantas vezes já ouvira a empregada reclamar!!

Isabella estava por demais cansada.
Era uma mulher cheia de potencialidades a muitos níveis - era o que diziam - mas não as explorava.
Não dava um passo, não se mexia. Parecia anestesiada, apática, incapaz de qualquer reacção.

A sua vida decorria entre o que fora e o que era, entre o analisar e o decidir, entre o entender e o aceitar...num marasmo tão grande que lhe tolhia até o discernimento, a vontade e o orgulho próprio, imobilizando-a.

Era inteligente o suficiente para ter capacidade de dissecar tudo o que fora a sua vida, conhecia os caminhos de fuga, mas na eminência de um "tsunami", deixava-se ficar à espera de ser engolida pela onda...
Parece que abdicara de viver!!
Que "poção" pegadiça e imobilizante tinha ingerido!!

Isabella era assim. Não era uma mulher pragmática, objectiva, prática, pronta a arregaçar mangas e reagir às adversidades. Sempre o coração lhe havia comandado a razão.
Não...Isabella queria, porque queria, voltar ao útero materno; ali estaria defendida; cá fora, era uma criança largada só, no meio de uma grande cidade...

Olhava os pombos, olhava o céu e pensava: "quando alguém muito querido parte e nos deixa, acompanhamo-lo, sabemos onde o deixamos e onde o "encontraremos", se precisarmos ainda "senti-lo", falar com ele, dar-lhe uma rosa!...
Onde se deixam então as flores dos morto-vivos que perdemos por aí??...
Onde será que as podemos deixar, para sufragar essas memórias, que nem com lixívia no coração, desaparecem??!!..."

Anamar

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

"NO OLHO DO FURACÃO"

Verónica seguia junto à janela daquele comboio.
O seu destino, Paris, gare de Saint Lazare... ou melhor, o seu destino, uma incógnita.
Havia sido convidada a leccionar na Sorbonne, e nem pestanejara. Não quis, sequer pensar muito, nas alterações que a sua vida viria a ter, a partir dessa decisão.

Era uma mulher jovem, quarenta e poucos anos, fisicamente atraente, mas simultaneamente distante...com um hermetismo que deixava curiosidade.

Ia iniciar uma nova vida, tentando deixar bem arquivada a que abandonava.
Levava um livro largado no regaço, que tentara ler por duas ou três vezes, mas a desconcentração que lhe provocava a existência daquelas rugas entre as sobrancelhas, traíam-na, e impediam-na de iniciar a leitura.
O olhar perdia-se no desfilar da paisagem, dos campos, dos bosques, dos vinhedos, dos verdes aos castanhos, a uma velocidade vertiginosa frente aos seus olhos.
Verónica olhava, mas não via. Percebia-se que estava e não estava ali, percebia-se que se rebelava contra si mesma por não conseguir deixar de remexer naquela arca, que ficara atrás de si e que tinha experimentado enterrar...

Uma frustração de alma destruía-a.
Como pudera fazer da sua vida um saco de lixo, por causa de um homem?!

Verónica amara aquele homem por demais. Ele fora tudo em troca de muito pouco, para ela.
Por ele cometera as maiores loucuras, mas dera um sentido real, fosse lá qual fosse, à sua vida; Muitas vezes pensou em desistir, em pôr fim àquela ligação destrutiva, ingloriamente. Não fora capaz, não tinha querido ser capaz, se calhar...

E entre o nada ter e o ter alguma coisa, fora ficando, fora imaginando que a vida era assim mesmo...

Até àquele dia. Nesse dia, fora ele, que com um pragmatismo e uma frieza total, pusera um basta no pouco de que Verónica dispunha. Um basta, irredutível, um basta sem retorno, um basta que a deixou a vacilar como abanada por uma forte ventania..."Não podia ser verdade!...Porquê aquela invernia, justo num momento em que parecia que havia flores primaveris a despontar entre os dois?"...

E Verónica viu-se sozinha, completamente sozinha, largada no "olho do furacão"...
Ficou perdida e não conseguiu lutar contra os elementos duma natureza que era ácida, que queimava,que corroía, que só lhe cheirava a traição destruidora.
Deixou-se tomar pelo ódio, pela raiva, pelo azedume, pela desconfiança que subtilmente sempre lhe amarinhava ao coração. Jurou para si mesma uma espécie de vingança, vingança que ela não sabia pôr em prática, que ela sempre punha em prática contra si própria, esquartejando a alma, demolindo o carácter, os valores, o trilho que sempre fora o seu...

Era vulgar querer morrer quando um dos seus "amigos", saía, depois de um último beijo envenenado, e a deixava a vestir-se, no quarto daquele hotel de luxo... "A gente depois fala-se....foi muito bom!"
E sempre partiam, e sempre tinham pressa, muitos nem a "conheciam"....

Ele batia a porta, ela ainda nua naquela cama larga demais, olhava nostalgicamente pela janela...e normalmente chovia muito lá fora!!!....

Verónica ia para Paris....ia fugir de quartos de hotel, ia fugir de memórias, ia fugir da solidão...ia tentar reencontrar a "velha" Verónica!...
Saint Lazare esperava-a, a Sorbonne também....talvez ainda não fosse tarde para começar de novo...

Anamar

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

"A ÚLTIMA AULA"...

David era professor na área das Tecnologias, em Harvard.
Era um homem bem apessoado, quarenta e poucos anos, uns óculos no rosto sem armações, o que os tornava como que inexistentes, e permitia ver claramente através deles, uns olhos intensamente azuis, risonhos, uns olhos de paz e afabilidade.

David fizera investigação durante alguns anos da sua carreira académica, mas era o magistério que o apaixonava. Estar fechado num laboratório, era sufocante, para alguém que gostava de se dividir com jovens plenos de sonhos e curiosidade pela vida.

Era muito mais que um professor; era um amigo, um companheirão...sempre disponível, sempre atento, sempre solícito, sempre com disponibilidade para qualquer aluno que o abordasse para a resolução de um problema, para a explicação de qualquer dificuldade, na mesa de um café, à sombra de uma árvore cá fora no relvado...para qualquer conversa pessoal e informal....

Ao chegar de manhã, sempre a horas, com o seu sobretudo e cachecol, pasta na mão, distribuía cumprimentos e sorrisos, com a naturalidade de quem está ali para servir, para se partilhar por todos os que o procuravam. E eram todos, porque David era na verdade, admirado , respeitado e querido, por todos quantos tiveram a felicidade de cruzar os seus caminhos com o dele...

Naquela manhã, como sempre, David chegara à hora habitual para a sua primeira aula do dia.
Passo estugado, a vencer o frio gélido que se fazia sentir.
Tinha um tema interessante, empolgante, preparado cuidadosamente para essa aula, para uma classe, que ficaria "suspensa", como habitualmente, das suas palavras, claras e concisas.
Sempre conseguia transformar os temas mais aborrecidos das matérias, tornando-os aliciantes, como o faz, quem de facto é um sacerdote da sua profissão, quem de facto, ama e vibra com o que transmite.

As suas aulas estavam sempre repletas de alunos, os anfiteatros plenos. Aquele dia, também não foi excepção.
David cumprimentou a classe, fez aquele seu sorriso de boa disposição de quem quer dizer: "Vamos lá a isto!"... e começou a aula.
Tinha por hábito, muitas vezes, sentar-se na secretária, ou até no estrado, frente à turma, porque o informal era o seu natural, e porque a proximidade física transfere "calor humano".
Também assim fez naquele dia; começou a exposição do tema que preparara cuidadosamente, frente àqueles rostos que lhe "bebiam" as palavras, sentando-se na beira do estrado, baloiçando as pernas...com o seu sorriso aberto no rosto, e os olhos de céu carregados de entusiasmo...

E repentinamente, e sem qualquer explicação lógica, aconteceu.
David tombou para o lado e não mais se mexeu, apesar dos esforços infrutíferos de socorrê-lo...
Tombou e ficou inerte, com os olhos cerrados, com o sorriso desertor...
A vida traíra-o; a ele, aos seus alunos e a todos os que pela manhã o viam chegar pela alameda da universidade, com o seu sobretudo, o seu cachecol, a sua pasta e o seu coração gigante dentro do peito...

Na manhã seguinte, à hora costumeira, o anfiteatro estava de novo lotado; os alunos estavam em pé, as lágrimas traíam os rostos, os nós apertavam as gargantas dos mais resistentes...o silêncio era total; e só na secretária, uma rosa vermelha abandonada, assinalava que o professor David continuava por ali....

Anamar

quinta-feira, 17 de junho de 2010

"NADA DE NADA"

Vénus estava no seu auge, que é como quem diz, estávamos naquela fase do dia/noite, em que é apenas ele, que domina um céu ainda um pouco aceso da luz do dia que está a findar...
Céu completamente limpo, mais nenhum ponto luminoso, e ele, Vénus, bem de frente da sua janela.

Isabel viera fumar, por forma que o cheiro do tabaco não conspurcasse o seu espaço, as suas plantas, bem verdes, como quem quer plantar a Natureza dentro das suas quatro paredes.
Já jantara...voltou à janela, e agora a lua, em quarto crescente também já ali se postara.
Pensou que mais um dia findara, pensou que o ano estava exactamente a meio, e o estado de espírito inexplicável que ultimamente a assaltava, começava a cansá-la já.

Acorda como quem tem esse dia para celebrar, não sabe bem o quê, mas dentro de si há um entusiasmo, uma excitação de dia de anos, antes de se receberem as prendas...

Ela espera, espera alguma coisa que não identifica, acredita em alguma coisa diferente para esse dia, como quem está convicto que o prémio da lotaria lhe vai sair logo à noite, quando "andar à roda"...

E espera, espera, espera....obviamente de uma forma inglória...porque o dia é tão comum como os demais...(embora Isabel finja que não irá ser assim...)
E aquela agitação de criança face aos embrulhos de Natal, vai decaindo, decaindo, decaindo, junto com a luminosidade da luz do sol, que passa de clara e ofuscante de manhã, para cálida e sucessivamente mais apagada, à medida que o tempo passa, e nada acontece na vida de Isabel, em mais um dia...

Apagou a "beata"...olhou o céu agora já completamente escuro, com uma poalha de "pirilampos"a piscarem lá em cima e pensou: "até quando?..."

Amanhã Vénus voltará a mandar nos céus, a lua estará um pouco mais cheia, o cansaço de Isabel também terá aumentado, porque nada de nada lhe terá trazido mais um dia...

Anamar

domingo, 14 de março de 2010

"POR ESTAS E POR OUTRAS É QUE ADÃO COMEU ( OU MORDISCOU ?) A MAÇÃ...."

Fiz a maior burrice que se pode fazer: às 8 da noite pendia de sono sobre o teclado do PC e pensei..."não dá, não dou uma p'ra caixa...Que se lixe o jantar, mas como tenho medicamentos a tomar, uma fatia de bolo, um copo de leite substituem a refeição; a Rita, o saco de água quente e o mundo que desabe..."

Claro que nestas circunstâncias e com lençóis térmicos, em quaisquer 5 minutos e já estava do outro lado....
E assim foi, até que às famigeradas onze da noite, tinha a noite feita. Olho arregalado e vá de Morfex 30mg....quais 15 que o médico prescrevera!!!!
Aninhei-me, anichei-me o mais comodamente que pude, e dispus-me a contar carneiros, visto que nem vislumbre de sono. São estas lindas horas, (três e meia da manhã) já "encroquetei" na cama, dez vezes para a direita, outras dez p'ra esquerda e como....nada de sono.... pensei:"vou levantar-me e contar uma história" que estava mesmo aqui debaixo da língua...

Então é assim:
Pedro e Heloísa mantinham uma relação afectiva, com os seus altos e os seus baixos, como todas as relações afectivas. Durava há largos anos, mas tinha a pecularidade de Heloísa ser bem mais velha que Pedro. Ela já se habituara aos olhos gulosos dele, que do seu quintal, catrapiscava sempre a fruta do quintal alheio, naquela de "a galinha da minha vizinha..."

Tudo corria aparentemente duma forma calma, quando Pedro achou que já perdera muito tempo na vida, que já estava na gare daquela estação sempre a ver os comboios passar, passar, e não apanhar nenhum...enfim, os desígnios insondáveis da natureza humana.
Reencontra uma ex, temporária...qualquer coisa, amiga, lá de trás, a Alexandra e desencava-a para uma nova vida a dois.

Claro que Heloísa foi às urtigas e Pedro iniciou o maior "love" com Alexandra.
Apenas, os anos não trazem só rugas e cabelos brancos, e Heloísa arquitectou uma frente de combate.Vestiu-se "p'ra matar", de acordo com as circunstâncias, claro (que era um "departamento" a que Pedro sempre fora vulnerável, uma mulher discreta, bem vestida, com presença...)

E dirigiu-se a uma sala de espectáculos, para ver um filme estreante, com um, senão o melhor actor que Pedro apreciava. Era altamente provável o encontro a três.
E assim foi.
Heloísa pôs um ar distraído e distante, de quem vê montras num Centro Comercial, e de repente, como quem não quer a coisa, olha p'ro lado e diz: Olha que giro, há quanto tempo, Pedro! É a tua nova namorada?
Pedro apanhado de surpresa diz: "Sim, é a Alexandra e esta é"..... "a Isabel", respondeu rapidamente Heloísa. "Muito gosto"!
"Bem me tinha alguém dito, que acabaras aquela relação longa, com uma pessoa bem mais velha que tu.....Agora, para contrabalançar, arranjaste uma namorada que podia ser tua aluna....rsrsrs"
Vim ver este filme que estreou com aquele actor imperdível!... Vocês se calhar, também!"
Bem, tive muito gosto, não vos roubo mais tempo.
Eu, também terminei recentemente uma relação....que coincidência!...Então, namorem muito, e boa sorte! Eu costumo sempre dizer (dirigindo-se com um largo sorriso à Alexandra), que é preciso ter sorte com os homens...com uns, mais que com outros...rsrsrs"

E com o Pedro? -  perguntou a franganota. - o que me diz, Isabel, você que já o conhece bem???

Heloísa/Isabel fixou  Pedro bem nos olhos, intencionalmente, e dirigiu-se à Alexandra....."O Pedro? (como quem pára para se concentrar...)....o Pedro, será a sua sagacidade (duvido que soubesse o que era...), inteligência (outro calcanhar de Aquiles), e perspicácia, que lhe responderão a isso ao longo dos tempos!!...."

Pedro que já "os" estava a sentir entalados disse: "Então e com as mulheres, não é preciso ter sorte?... - perguntou com ar de quem diz : pago p'ra ver....

Heloísa/Isabel fez uma pausa estudada, e respondeu: "Com as mulheres.....é sobretudo preciso é... saber escolhê-las!!..."

O sorriso de Pedro ficou amarelo...e cá p'ra mim o pastelinho de feijão comido pouco antes, começava a entruviscar-se-lhe no estômago

E afastaram-se.
Heloísa não aguentaria muito mais tempo aquele skecht teatral....as lágrimas estavam já a rebentar....
A franganota sentia que havia ali qualquer coisa que não jogava....mas não percebia o quê, e limitou-se a dizer , só p'ra não ficar calada: "Simpática esta tua amiga!"....
Pedro estava calado, fechado, não podia "dar bandeira", mas só dizia p'ra dentro de si: "Filha da p.... ; agora é que eu percebo por que não se deve minimizar a inteligência das mulheres maduras!!..."

Não sei, mas acho que o filme não lhe assentou muito bem!....
E acho também que as mulheres são umas "cascavéis"!!!!!......  rsrsrs

Nota: Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência

Anamar

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

"Miau-miau"




Faz toda a diferença ter um amigo....

Ontem encontrei um, que de certeza era jardineiro....
Ele disse-me que tinha um malmequer, mas cá para mim, também havia de gostar de ter margaridas e girassóis...
Tinha uns olhos de menino traquina, arregalados, olhos puros e crentes...
Que engraçado, lembrei agora que ainda há olhos puros e crentes....

Era um amigo tão amigo, que até pediu para que eu não chorasse mais...eu, que estava tão triste;
conseguiu que por instantes eu esquecesse o que me havia feito correr aquele "caudal", pela cara abaixo...e passou a haver sol no meu quarto...

Ele não tinha, mas já o vejo com um macacão azul, um avental, um chapéu de palha e um regador, de joelhos em terra, a caçar às flores, sorrisos, como fez comigo....

Aquele meu amigo, tem o nome de "miau-miau" (ainda não apurei bem porquê...), e desatou a mimar-me desde então.... (ele deve ter percebido que eu continuo a ser o tal saco roto de afecto, que ainda ninguém costurou), e deixa-me sonhos de arco íris, beijos recheados de sol, diz que eu sou uma fada linda do bosque encantado,  onde em sonhos nos conhecemos, manda-me beijos com chocolate quente e doce de ameixa....enfim....cá para mim ele só pode ser a simbiose de duas pessoas especiais, uma  real e outra não.

Ele é um sósia impressionante, do nosso Solnado, e como nunca falei com ele, a voz que oiço no meu espirito, é aquela que saía daquela cara de menino crescido e bem  "levadinho"...
Depois, tenho a certeza absoluta que ele é aquele príncipe que todos deveriam conhecer, e que viveu num asteróide, estão a ver??....

Não estou nada enganada, tenho a certeza.     

E se calhar, porque nada acontece por acaso, e eu estou a atravessar um daqueles "acasos" da vida, que nos matam aos pouquinhos e pouquinhos....o meu pequeno/grande príncipe, "miau-miau", parou por aqui, vindo nas asas duma borboleta, para me lembrar que "as coisas realmente importantes, não se vêem com os olhos, mas sim com o coração".... e que de cem mil pessoas iguais, apenas podemos chamar de "amigas" àquelas que cativámos....este o  caso do meu amigo "miau-miau"...

Anamar

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

"CONTO TRISTE DE NATAL..."

Sinto-me triste pela forma magoadamente alvoroçada que tenho por dentro ...
É um pouco parecido ao estado de espírito dos miúdos, em noite de Natal, quando esperam com alguma impaciência recolhida, a hora da distribuição das prendas, sabendo de antemão que qualquer um dos embrulhos lindos, que estão junto da árvore, contem um presente, seja o seu ou não....

No meu caso, o cenário é igual, o alvoroço de alma, o mesmo...
Existe naquela árvore da VIDA, um presente para mim, um presente sem o qual eu não vivo...um presente, que dei anos da minha vida, para  alcançar...
Só que um lapso na distribuição das prendas, fez com que aquele brinquedo sem o qual eu "morria", não era afinal para mim, e o  equívoco foi corrigido...
Aquele brinquedo, que eu já sentia meu por direito, foi parar às mãos de outra menina..
Eu é que acreditara poder merecer aquele presente!...

Deixaram que eu o usufruísse por breves instantes, e quando convictamente brincava em paz com ele....arrancaram-mo das mãos...
Eu era feliz, ou julgava que o era, na posse daquele presente, que eu escolhera e me escolhera...
Mas essa felicidade foi ilusória, efémera...e fiquei a vê-lo ir noutros braços que não os meus, para outro mundo, que não o meu...E vi-me sozinha, junto a uma árvore de promessas, no meio da vida, e eu, magoadamente alvoroçada, percebendo que a festa acabara, e as minhas mãos ficaram vazias...

Este é um conto de Natal, triste, com uma árvore já de luzes apagadas, uma sala já vazia, repleta dos papéis rasgados que enfeitaram  mistérios e  ilusões, as fitas e os laços já sem brilho...e comigo, apenas uma lágrima teimosa, de uma dor  indisfarçável, de uma ilusão perdida... de um desgosto que nunca se perderá...

Anamar

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

"A VIAGEM..."





Eu estou com ideias de ir de viagem..."eu", quero dizer "ela".
Temos que fazer uma viagem grande, porque isto aqui "já não está com nada"!!...
Só que as viagens grandes dão cá uma trabalheira!... Já estive a pensar : desta vez, a mala é que vai leve e não vai ser necessário aquele tormento para a fechar e para a transportar...não vou precisar de grandes coisas.

As que transporto comigo, vão bem acondicionadas em dois sítios : na cabeça e no coração. E aí é fácil...são porões enormes...

Antes de ir é que não posso esquecer nada, e isso é difícil. "Eu", quero dizer "ela", já pensámos : aquelas continhas diárias de multibanco, que sempre têm prazos, convém pagarem-se... óbvio!

As janelas não precisam ficar fechadas...afinal virão muitos verões, invernos, primaveras e outonos, e as plantas precisam de sol...e nós também não sabemos a duração da ausência...

Deve dar-se uma faxina àquelas coisas mais empoeiradas do tempo. Não vão servir a ninguém mesmo, durante este período...
Outras, aquelas que a gente gosta de ver, aqui ou noutra galáxia qualquer, aquelas que só a gente entende, "ela" é de opinião que a gente leve. Organizam-se, põem-se numas caixas maneirinhas, ata-se-lhes umas fitas de laço e não mais as perdemos de olho...
Essas sim, têm um peso lixado, porque têm eternidade lá dentro...mas não há como fazer...essas têm mesmo que ir.
Pelo menos, uma não vamos precisar, porque conseguimos esvaziá-la antes de partir...essa, é a dos sonhos...Fica para quem precisar...

Há depois uma tarefa...ui!!!...Essa é exaustiva, cansativa demais, que é deixarmos cá, bem explicado (o que não é fácil), por que tivemos urgência em aproveitar esta chance de viajar.

Porque cada um vai entender à sua maneira e ninguém acerta, porque ninguém consegue perceber a canseira que vai aqui deste lado. É um lufa-lufa igual todos os dias, e nunca acertamos em nada do que se devia.

É tanto para pensar, com os neurónios a "desmiolarem-se", coitados...

É o espelho todos dias que não consegue acertar na imagem..."eu", ou melhor, "ela", pomo-nos frente a ele, e o safado nunca dá a mesma imagem : sempre outras, mais desfocadas, riscadas, com pele que não era nossa a sobrar; os olhos pequeninos mais e mais... Que raio! Houve dias em que "eu", ou melhor "ela", perguntávamos se a parede estava mais para a frente, ou o que era que se passava...

E depois, o diabo dos sapatos ou das botas, desataram a encalhar nas pedras da calçada...ou estas já não estavam tão bem postas como antigamente...Já não se faz trabalho perfeito como dantes!...

E então o "saco" que a gente tem de por nas costas, sempre, ao levantar da cama, e que como a uma besta, nos carrega o dia inteiro?!...
Tenho p'ra mim que Alguém anda a divertir-se às nossas custas...

Alguns vão dizer que esta partida foi puro egoísmo (parece que já os estou a ouvir), aproveitar este excesso de liberdade, e pronto, "eu", ou melhor "ela", agarrarmos nos bilhetes gratuitos e ala...aqui vamos...deixando cá os outros, continuando a trabalhar para a loucura.
Lógico que também não é bem isso!

Às vezes é mesmo preciso fazer-se uma "fugazinha" (os jornais de fim de semana estão cheios de sugestões) e mudar...mudar tudo...deixarmos de ser "eu", ou melhor, "ela"...
Mas digo-vos.....também, nesta altura do campeonato, quando já não há condições de reverter o jogo, os espectadores costumam começar a abandonar as bancadas; nos cinemas, ainda as luzes não estão bem acesas, ainda o elenco desfila na tela, e já o pessoal está cheio de pressa, não é?... Afinal as pessoas têm sempre pressa...

Por isso é que se calhar, nunca conseguiram encher uma "arca dos sonhos", como "eu", ou melhor, "ela"... lá, estão os pores-de-sol com os roxos, os rosas, os plúmbeos, os laranjas; lá, está a chuva tropical da Jamaica ou de Sta. Lucia a envolver-nos em bênção, por inteiro; lá, está o vento que sempre aproxima os corpos antes que arrefeçam; lá, está a espera doce duma promissora noite de amor; lá, estão raminhos, colhidos com calma, seixos de praias desertas, corais ou conchinhas...lá, está Sting, Jean Michel Jarre, George Michael e os seus temas...lá, está tudo, tudo, tudo!

Mas, de qualquer modo sempre convém deixar para alguns a explicação da urgência da viagem : não é porque não os amemos mais que tudo... Não é!...

Não é porque não carreguemos connosco a culpa do tamanho do Mundo, por não poder adiar a viagem, porque o normal seria ficarmos para assistir ainda ( já de bengalinha, óculos na ponta do nariz, um braço sempre grudado em nós - para que não aconteça nenhuma desgraça e se estrague a festa- tendo quem nos ponha o guardanapo ao pescoço e nos diga como comer, como e onde sentar, nos limpe a boca...),aos eventos todos que hão-de acontecer pelo tempo fora, mesmo que nós não estejamos...

Não é!...

É porque o destino da viagem é mesmo aliciante, e "eu", ou melhor "ela", já não podemos esperar mais...estamos mesmo muito cansadas...

Continuámos então a pensar alto, "eu", ou melhor "ela" : "há que deixar códigos e orientações económicas, porque lá não precisamos dessas coisas...e por cá sempre se vão entretendo.
Ah!...é verdade, e o PC...O PC é uma chatice...é assim uma espécie de cofre violado; lá temos coisas que iam "mofar" durante a nossa viagem...Não vale a pena!
Então há que limpar de lá tudo o que só valia a pena para nós, e "eu", ou melhor "ela", somos um bocado "nabas" nestas coisas da Informática. Então, há que tirar o lixo. A gente não deixa a porcaria para os outros varrerem...

Cansativo, já viram?
Tão difícil partir, seja lá para onde for!...
Deixem lá!...Pode ser que para vocês seja mais fácil, quando os vossos bilhetes de ida, chegarem, e que também não tenham tantos preciosismos como nós...

Assim, "eu"...quero dizer "ela", pensamos que teremos de deitar mão a estas tarefas quanto antes, até porque depois do Inverno que está aí, terá de vir uma Primavera e um Verão para todos os que por cá ficam!...

Anamar

sábado, 3 de outubro de 2009

"MULHER-LUA"






Chegou à janela e levou aquele "soco no estômago" bem seu conhecido.
Inevitável, sempre assim sentia, e o que sentia sempre a fazia esboçar um sorriso.
Uma espécie de cumplicidade trocada...não sabia bem explicar...

Eram sete da tarde de um Outono em crescendo, o céu preparava-se para se recolher em mais uma noite, e ela, a lua cheia, quase completamente cheia, só, imponente, isolada, sem que nenhuma pontilha de luz mais, bordasse o firmamento já escurecido, estava ali, provocadora, bem defronte de si.
Extasiava-se sempre, sempre dizia a meia voz para si mesma:"Que espectáculo!"...Sempre se sentia "esmagada"...

E depois havia aquela coisa, aquela corrente de magia que passava...
Ela e a lua cheia tinham de facto um diálogo endiabrado de mulheres no cio...
Tantas luas cheias já na sua vida, tantas quantos os amores, tantas quantas os homens que atravessaram a sua existência...

Isabel olhava para trás e pensava: "Que coisa louca, a sua vida hoje!"
Muitos acham que os seus percursos dariam bons filmes. Isabel estava segura que o seu daria um, absolutamente inigualável.

Uma mulher madura, ou melhor, uma mulher cuja idade convencionalmente se desajustaria do seu "figurino" de vida actual.
Isabel procura paginar-se e não repaginar-se, inventar-se e não reinventar-se, construir-se e não reconstruir-se, apenas porque só agora "desencantou", ou seja, só agora saíu de um deserto que a manteve cativa e dormente, e pela primeira vez tomou consciência do que era a vida real, as dificuldades reais, os afectos reais.

"Olha que loucura..." sempre pensa, quando confronta as rugas, os fios brancos que tenta encobrir, algum cansaço que a todo o custo desvaloriza, com a adolescente que sente dentro de si, qual borboleta solta espreguiçando as asas ao deixar a crisálida que a albergou e protegeu.
Isabel tem uma ânsia de compensar todo o desperdício de vida, todos os sonhos que não passaram disso mesmo, tudo o que quereria ter sido e feito e não foi e não fez...
Sente que veste um "fato" que não é o seu, sente que não pode mais haver peias, amarras ou convenções que continuem a espartilhá-la, porque essa "factura" já pagou há muito e não tem já tempo útil a perder.
Sente direito à vida, como direito ao oxigénio que lhe cabe respirar, sente direito a uma liberdade desenfreada, como cavalo a quem foi tirada a sela e largado no prado.
Sente direito a concretizar todos os sonhos, por mais sonhos que sejam, só porque já os sonhou e então não eram adequados ao seu estatuto.
Quer dar-se ao luxo de saltar do rochedo ainda que se quebre na chegada; quer dar-se o privilégio de viver no fio da navalha porque isso fá-la sentir viva e não morta, como em três quartos da sua existência; quer permitir-se sorver até à exaustão o bom e o mau, as certezas ou as dúvidas, o sofrimento ou a alegria, as expectativas e as desilusões, a paixão ou a morte...porque tudo ISTO é que é a VIDA.
Precisa correr riscos...o desafio de viver, é em si o maior risco que pode experimentar. Não vira a cara para o lado, não quer mais isso.
Que lhe interessa que a achem louca?!...

A lua feiticeira, sua aliada, que a inunda quando lhe oferece nus, o corpo e a alma, fá-la sentir cada centímetro da sua pele na efeverscência e na sensualidade do sangue a correr e a pulsar...

Isabel sente-se plena, transbordante, prenha de um vulcão interior de emoções e sentires, cuja lava alastra à sua volta e envolve os que ousam "tocá-lo"...
Nesses, normalmente deixa a sua marca...
É uma mulher furacão dos zero ou dos cem, não pega nada pela metade; agarra a vida que detém, pelos cornos, e jura que nunca mais a deixará fugir; pela primeira vez ama-se um pouco e valoriza-se também.
Descobriu que, como a lua cheia que volta pujante todos os meses, altiva no céu escuro, com o mesmo brilho misterioso extasiando aqueles que a sabem olhar, também ela, como uma Fénix renascida, se ergue e erguerá todos os dias, doa o que doer...
em todos aqueles que ainda lhe couberem por destino...

Anamar

quinta-feira, 16 de julho de 2009

"OS CORDELINHOS INVISÍVEIS"



Teresa estava na porta daquela igreja.

Era uma noite de Junho, de um Junho quente como são os Junhos em Lisboa.
Lá dentro, na luz difusa duma capela, velava-se um corpo.
O cheiro misto da cera das velas e das flores, impregnava o ar até à entrada.
Deveria haver um silêncio profundo e pesado, mas havia um "brouhaha" de vozes que fingiam estar em surdina mas não estavam.

Teresa estava estática, gélida, hirta e morta também, só não estava a ser velada ainda...apesar do seu coração e da sua mente, estarem naquele esquife lá dentro, partilhando já aquela tumba, com quem fora o amor da sua vida.

Sempre o respeitara, o venerara quase, por isso jamais quebraria ali o juramento feito a um pedido seu.
Se algo lhe acontecesse, um dia, ela não deveria estar presente, apesar de a sua vontade a impelir para o interior daquela capela, apesar do seu sentir lhe dizer que deveria ser ela quem havia de estar à sua cabeceira, deveria ser ela a aconchegar-lhe o último leito, a por-lhe a última flor nas mãos, a dizer-lhe as últimas frases de amor ao ouvido (sabendo que ele a escutava, já do outro lado, que ele a via já do outro lado e que também já a amparava e aquecia num sopro de força e coragem).

Conheceram-se havia longos e longos anos.
Ela, quase uma menina ainda...ele, homem feito, com responsabilidades assumidas na vida.
Amaram-se, partilharam-se, entregaram-se...
Dos sonhos aos projectos, das vontades às esperanças, do possível ao impossível...tudo dividiram, em tudo acreditaram.
Viviam com sofreguidão cada minuto que usufruíam, cada tarde passada nos sítios que se tornaram por isso, "seus", cada pôr-de-sol que os extasiava, cada música que os inundava, cada gesto de afecto que os preenchia e lhes tornava plena a vida, quando se separavam e de novo sós, enfrentavam os respectivos caminhos.
Ambos sabiam pertencerem-se, ambos sabiam que "os cordelinhos invisíveis" do tudo que os ligava, falariam sempre do outro, mesmo na sua ausência física.

Fora um amor tão completo que bastava, tão bonito quanto generoso, tão forte e seguro que nunca fora exigente, de uma aceitação do possível, por saberem que a Vida lhes reservara um quinhão apenas...no entanto, com o tamanho do Mundo!

E decorrera uma vida...

Os anos acrescentaram a cada um, menos vigor, menos frescura, um cansaço acumulado de uma esperança que se ia desvanecendo aos poucos e poucos.
O futuro parecia começar a fechar-se, sobre algo que parecia não "querer" realizar-se nunca...
Contudo, Teresa sempre acreditara, que nem que fosse por um dia, havia de partilhar com aquele homem, por inteiro, a sua vida.
Nesse dia, deixaria para trás tudo e todos, dobraria aquela esquina sem nada nas mãos, carregando apenas consigo, todo o amor que lhe preenchera o coração...e não olharia para trás sequer...

E era Junho, um Junho quente como são os Junhos em Lisboa.
Na porta daquela igreja, naquela noite de um Verão que era um Inverno profundo dentro de si, Teresa estava morta...e ninguém ainda dera por isso!!...

Anamar

sexta-feira, 15 de maio de 2009

"A QUEDA DE UM ANJO"



E dizia-me ela de soslaio, entre dois tragos de café, na remota esperança que o sol desse as caras:
"Há fases na vida em que não bastando tudo aquilo a que temos "direito", ainda mais uns acrescimozitos nos povoam as mentes.
E mesmo lutando por vezes contra a indisponibilidade temporal, lutando contra a correria ou a má distribuição dos "que fazeres", chegam, instalam-se e não desgrudam"...

Levantei os olhos de uns pardais desafiadores que "penicavam" migalhas, cada vez mais perto, e olhei-a...curiosa já.

"Eu nisso, sou perita. Acho mesmo, que especialista!
Seja Inverno, porque chove e está carregado, seja Outono porque os dias são introspectivos e pesados, seja Verão...já não sei bem porquê...não consigo achar a mínima piada a "isto", e como tal, alegria, satisfação, plenitude, não são o meu "bilhete premiado!!!
Devo ser um espécime insuportável, intragável, "indigerível", sem solução à vista, sem terapia previsível, sem cura provável...uma "chata de galochas"...isso sim, como dizem os brazucas"!

Não entendia ainda aquele discurso de rajada, mas pressentia que vinha lá "chumbo grosso", pois os olhos dela vidravam de lágrimas próximas.

"Desta vez, trata-se da queda de um anjo...estás a ver??"

Embora cada vez visse menos, dei-me um ar sério e disse:"hum hum...claro" - e esperei.

"Um anjo, como o nome indica, é algo etéreo, algo perfeito, algo sem mácula, algo acima, muito acima de tudo o que esperaríamos, desejaríamos, sonharíamos...
Um anjo, como o nome indica, é uma figura irreal, conceptualizada normalmente por alguém sofredor, uma mente carente, por um ser que está na vida..."de menos"...entendes?
Um anjo realmente não passará de um sonho, quantas vezes criado, alimentado, inventado por quem o criou...
Assim uma espécie de um Pinóquio criado por um Gepeto crédulo, que o tornou gente e o amou, sabes?"...

Apurei os instintos, esqueci os pardais, esfriei o café e prendi-me àquela "torrente" que não parecia poder parar.

"Todos mais ou menos, por necessidade, dependência, afecto, desejo, paixão, razão de vida...sobrevivência, criamos os nossos próprios "anjos", que descem de um qualquer paraíso, e se tornam gente no meio em que vivemos (ainda por cima, querendo fazê-lo de uma forma normal e lógica), a quem passamos a amar, e pior, a quem passamos a imputar uma responsabilidade que não têm, nem podem ter...que é, serem efectivamente "anjos" perfeitos, completos, tal como os concebemos, os acreditámos, tal como a "obra" é olhada desveladamente pelo criador...

Aqui, já se descortinava na totalidade, o nó que lhe sufocava a garganta e as lágrimas também desciam sem nenhuma contenção por aquele rosto misto amargura, raiva, cansaço, desânimo...sendo ao mesmo tempo um rosto infantil de criança, surpresa por algo que não entendia...
Aqui, já eu tinha a cabeça em rodopio, já me "embrulhava" toda, em busca do que dissesse, do que pudesse dizer e a não saber dizer nada...
Nos meus ouvidos ecoavam - "entendes?" "percebes?" "sabes como é?"...
Fungando, soluçando, esquecida de tudo o que girava em torno de nós, esquecida da rua, das gentes, dos carros, da cidade...terminou:

"E quando constatamos a utopia que foi, ver a ficção que criámos, quando apercebemos a revolta que sentimos (sem razão), quando sentimos a fraude que experimentámos (que o não foi, mas acabou connosco), quando sentimos uma injustiça atroz, até por injustiçar quem não nos pediu para ser anjo nas nossas vidas, quando sentimos a agonia que é acordar finalmente, e perceber que o sonho não era sonho, mas se aproximou mais de um pesadelo...e que daquele "anjo", nem as "asas" sobraram...aí sim, é que percebemos que só podemos estar profundamente doentes"!!!...

O meu silêncio era sepulcral...
Como eu entendia!! Como eu percebia!! Como eu sabia como era, essa coisa de quedas de anjos!!...

Anamar

quinta-feira, 16 de abril de 2009

"DIVAGANDO...a las cinco de la tarde!..."

Pelas cinco definiu o resto do dia...
Enconchar-se, hibernar...fazer-se morta!
Quando o céu cinzento, indefinido, é mais aconchegante do que um sol castigador que traz ao de cima tudo...as olheiras, o rosto de expressão baça e distante, as toneladas que lhe passeiam pelo corpo e lhe pisam a alma...bom, então algo está realmente mal!

Olhou para a tela que há dias já, se lhe despejara à frente.
Numa tela branca sempre se projecta tudo...a cores, a preto e branco, o enfoque no que se quer esquecer e a desfocagem dos sonhos que o foram...
Uma tela branca por vezes incomoda, cola-se-nos à pele, e as sombras chinesas, insistentes, adoram as telas brancas.

A tarde virou cinzenta, da cor do cansaço. Virou rubra da cor da raiva e nunca mais foi verde da cor da esperança que fugidiamente a preenchera.
Apercebeu-se que não é mais a mesma. Apercebeu-se que a crisálida nunca mais soltou ao mundo, as cores, a liberdade, o sonho... das asas da borboleta.
Apercebeu-se que o arame não tem nunca rede por baixo, que a lotaria da vida não há mesmo forma de a presentear...

Apercebeu-se com mágoa que começa a moldar-se aos tempos de passagem.
Apercebeu-se que a inocência pagou juros demasiado altos, e foi embora.
Apercebeu-se que o acreditar no que seja, já não enriquece o seu léxico.

E "a las cinco de la tarde"...desistiu de se sentir viva...

Anamar

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

"O TALISMÃ"



Isabel vagueava por ali há largo tempo.

Absorta, olhava aquele espaço agora sem vida, deserto, solitário…uma espécie de paisagem lunar, com terra revolta, pedras espalhadas a esmo, desde que as minas haviam sido desactivadas.
Os operários já não circulavam, o ruído das máquinas já se não fazia ouvir, o “brouhaha” das vozes silenciara…uma espécie de “day after” de um qualquer cataclismo.

Isabel não sabia porque voltara àquele lugar, porque voltara a procurar aqueles terrenos para passear, sem destino, ausente nos pensamentos, distante na alma…
Talvez o silêncio, aquele silêncio audível que por ali pairava, misturado apenas com um leve sussurrar de uma brisa abençoada naquela tarde de Agosto, convidando-a à introspecção, a tivessem arrastado até às minas de pirite.

Isabel retroespectivava a sua vida, os últimos dias, os últimos anos, antes dele partir.

Sentou-se no que já fora uma cancela, puxou um cigarro, protegeu o rosto do sol impiedoso que lhe feria a vista.
Baixou-se para apanhar um fragmento rochoso que parecia ter caído do nada, aos seus pés.

Era um pedaço pequeno, cinzento, ou talvez dourado…era compacto, pesado, com cristais sabiamente desenhados e esculpidos, embutidos numa massa informe, porém totalmente reluzente, como se totalmente polvilhada a ouro estivesse.
O sol, ao bater-lhe, tornava-a fosforescente e cada face de cada cristal exibia um brilho que o tornava só por si, uma jóia irisdicente.

Pedro atravessou-lhe a mente com uma intensidade tal, que não soube explicar;
o amor que os unira “caiu” ali, de repente, na palma da sua mão, lado a lado com a pirite que segurava.

O efeito daquela pedra era magnetizante e à medida que a olhava, mais e mais as suas ideias se aclaravam e o coração se pacificava…

Agora entendia tudo…

O amor que haviam vivido era um pouco como aquela pedra...
Fora um amor sem regras, sem talhe, à margem de padrões ou figurinos convencionais, porém tão bem desenhado quanto os cristais daquela pirite.

Fora um amor sólido, primário, rústico e rude como aquela massa sem forma…porém tão iluminado quanto ela, tão “poderoso” quanto o seu brilho, tão fascinante quanto o mistério nela encerrado…um universo de luz, bem na sua frente, na concha da sua mão…

Por que o deixara ir??...

Agora Isabel sabia…
Aquela pirite ali, caída aos seus pés, numa terra de ninguém, só podia ter sido um “talismã” à sua espera…

Anamar

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

"A CIDADE DE TODOS OS REENCONTROS"...




( DEDICADO A ALGUÉM QUE O NÃO LERÁ )





As luzes da "cidade das luzes" estavam mortiças e envolventes, a anunciar uma "daquelas noites"...
Aquele Março em Paris, a cidade do amor, convidava ao romance, à magia, ao sonho e também à recordação.

Estava há dois dias na cidade; fora, expressamente para um encontro. Um encontro calendarizado havia muito, um encontro muito, muito importante na sua vida.

Os dias tinham amanhecido sorridentes, luminosos, com um sol meio primaveril e envolvente, a prodigalizar algum calor.
As tardes, à boa maneira de Março, tombavam sonolentas, embrulhavam-se num manto de neblina e numa chuva miúda que não chegava para lhe estragar a ansiedade gostosa e impaciente do coração.

Passeara ao acaso por Montmartre, pelos Champs Élysées, perdera-se em preguiça pelo Sena...o Quai d'Orsay continuava a esperá-la...
Deambulara por cada esquina, bebera em cada "bistrot", vasculhara cada alfarrabista, deliciara-se com cada aguarela, óleo ou retrato, pelas ruas...
Sorvera o sol nas Tuilleries, ouvira música pelas praças, a fazer tempo...varara as noites, nostalgicamente com Aznavour, Bécaud, Piaff, Mireille...Montand...até que chegasse aquela hora...

Decidiu vir a pé desde o hotel, lentamente, com muita antecedência, demasiado cedo, como se quisesse alongar o tempo, esticar a noite, perpetuar o momento.
Como se numa espécie de sortilégio, pudesse deixar suspensa a ampulheta do destino.
Ela não queria que aquela noite acabasse nunca, na sua vida. Ela não queria que aquela página terminasse de ser escrita!

Haviam-se encontrado dez anos antes, também num Março...Certamente num Março de sol e chuva como este, em Paris.
Viveram uma paixão avassaladora, sem limites ou barreiras, transgressora; uma paixão sem convenções ou ditames, uma paixão de loucura, de mergulho, bem física, carnal, sanguínea...como são as paixões...Uma história de livro...uma história de filme!
Ela, uma mulher madura, independente...porém, uma menina-mulher ainda. Ele, um jovem.
Uma relação quase proibida, quase censurável, quase inimaginável; uma relação de "quatro paredes", de mistério, quase de secretismo (e também por isso, mais marcante, mais indestrutível, mais tactuante).
Uma relação de química, de pele, escaldante e arrebatadora, que viveu até se esgotar, até estiolar, sorvida como um ópio, a desnorte, no "vale tudo", na aposta do tudo ou nada...

Terminou um dia, como tudo termina na vida...porque, simplesmente teria que terminar...porque o amor é efémero e a paixão mais que tudo...feita onda gigante a desfazer a grandiosidade da sua espuma pela areia.
E nesse dia, juraram que nesse outro Março, dez anos depois, estivessem onde estivessem...se vivos fossem, fosse qual fosse o "trilho" das suas vidas...voariam para Paris.

A cidade do amor acolhê-los-ia, no intimismo do mesmo banco de pé alto, daquele bar "Nouvelle Époque", rés-vés ao Sena.
A poalha dourada desse fim de tarde estendida sobre a cidade, certamente ressuscitaria as emoções contidas, apertaria mais ainda o nó difícil nas gargantas, testemunharia um frémito viajante pelos corpos...

Como estaria ele? Agora, dez anos depois, um homem de meia idade, calmo, sem sobressaltos, insatisfações, ou as dúvidas que o verdor da idade lhe conferira?
Ela, a mesma postura de sofisticação, requinte e determinação, que o levaram a apaixonar-se, então...
O seu olhar hermético, perdido lá longe...uma mulher-mistério, apaixonada ainda e sempre, pela vida.
Os olhos conservavam a mesma vivacidade e brilho de outrora. O rosto sereno e pacificado, guardava sem mágoa, uma recordação doce de uma felicidade vivida e religiosamente arquivada na sua alma, agora envolvida já pelas calmas outonais...

Quem chegaria primeiro? Quem esperaria por quem? Será que ambos lembrariam esse dia de Março?

Na sua mente, ao longo dos anos, "encenara" vezes sem conta, aquele reencontro; projectara, como numa tela de cinema, vezes a fio, aquele "take".
Tanto teriam a dizer-se, ou quem sabe, o coração em desmando, lho não permitiria...
Tanto para se contarem, tanto para recordarem...ou talvez não, por pudor, num tomar de pulso às pessoas que hoje eram, sem esquecer as que haviam sido e ficaram lá para trás...
Tudo previsível e tudo inesperável!...
"Conhecer-se-iam" ou seriam já dois estranhos, frente a frente, por cima de quem, a vida correu implacável?!

Procurou manter-se calma frente a um "Black Russian"...Estrategicamente "alinhou" as primeiras palavras que lhe diria, tentando não passar emoção excessiva, saudade que a traísse, felicidade incontrolada, pânico que a tolhesse...
Um frio desconcertante dominava-a; uma leve tremura apossava-se do seu corpo.

E aquela porta do bar, ao fundo, entrabriu-se e deixou então ver as águas calmas do "rio dos namorados", com os "Bateaux Mouches" vogando silenciosos e imperturbáveis...O olhar dele deslizou ansioso e emocionado até ao balcão...

"Sempre vieste"!!..."Tinha a certeza que virias"!!...

Aznavour e "La Bohéme"...Paris sempre igual a si própria!!...


Anamar

segunda-feira, 28 de julho de 2008

"EL VINO PUEDE SACAR COSAS QUE EL HOMBRE SE CALLA"...






Isabella voava a muitos pés de altitude, algures sobre os Alpes...

A viagem já decorria há algum tempo, mas ela, totalmente desligada do relógio, do local, das pessoas, continuava absorta, meio adormecida, meio entorpecida nos seus pensamentos.
Revia a sua vida nos últimos anos, retroespectivava o que ela fora globalmente...

Rumava à Itália, à Toscânia da sua juventude, ao verde dos campos, aos prados, às vinhas, à grandiosidade de Florença ou Siena, ao intimismo de Livorno.

Precisava limpar o sangue e a alma, precisava limpar o coração, precisava renovar a mente, se fosse capaz.
Precisava rever amigos, dividir com eles serões sem tempo, jogar "conversa fora" sem pressas, com a inconsequência de quem saboreia uma vida em que quer voltar a acreditar (como um doente milagrosamente saído de um período comatoso de doença quase incurável).
Precisava voltar ao aconchego genuíno do "ninho"...
Desejava ansiosamente mergulhar no calor dos corações, frente a calores de fogueiras acesas, saboreando sem culpas um cálice de Chianti pelas madrugadas...



Saíra de Itália quatro anos antes, atrás de um grande amor. Um amor fulminante, que lhe merecera tudo, um amor com o romantismo de quem o vive adolescentemente pela primeira vez.

Certo que a correspondência não era igual, certo que a partilha e a entrega eram mais unilaterais, certo até que o afecto não era totalmente gratificante...
Mas ela amava por dois, dava por dois, via por dois pares de olhos, acreditava no que precisava, para viver.
Um amor no fio da navalha, uma relação ciclópica, fatal, louca, de abismo...

Mas para Isabella, mulher adulta em coração de criança, mulher de um tudo ou nada, não valia a pena questionar-se, não valia a pena confrontar-se, porque uma coisa afinal ela nunca perdera: a lucidez, a objectividade, a análise correcta de tudo...
Apenas negava esse "tudo".

Experienciava algo duma intensidade que a assustava mas necessitava para viver, sem muito sentido, quase doentio talvez...raiando o grotesco de uma anulação crescente.

E foi vivendo como pôde, num país estranho, uma relação que aos poucos e poucos se tornava ainda mais hermética, ilógica para a sua compreensão, uma relação de parâmetros duvidosos e injustos.
Calou dores, aquietou penas, sufocou dúvidas e desconfianças, esmagou sofreres, engoliu lágrimas e lágrimas...

Quando as forças lhe faltavam, não era Chianti da sua Itália que a mitigava, que a adormecia, que a anestesiava, que a "travestia" de outra pessoa, em que esquecendo toda a angústia, se transformava...





Não era Chianti, mas era qualquer outra doce "morfina", que de novo a tornava aparentemente alegre, exuberante, feliz, solta, louca (como quando se conheceram), capaz de tudo para não perder o tão pouco que possuía.

Quando os pés de novo assentavam na terra real, quando a cabeça saía do doce torpor da inconsciência do "milagre" operado, o mundo desabava-lhe então em cima...
Aí a dor era mais dor, o confronto com a pessoa em que se tornara e com a vida que detinha, era devastador; o julgamento sobre si própria, absolutamente
destruidor!

Mas ainda assim, "karmicamente", como num hipnotismo que lhe retirava as forças, a decisão e o querer (qual libélula rodopiante entontecida e cega em torno de uma luz na noite escura), procurava que as horas felizes apagassem as outras, deixando-se mergulhar até ao inaceitável, quase indiferente, incapaz, como quem não encara o sofrimento e masoquistamente se precipita para o abismo...
Aquela paixão arrebatadora e destrutiva ao mesmo tempo, era o que a fazia viver...

Até àquele dia...

Nesse dia fatídico (ou libertador?), à frente dos seus olhos tudo ficou final e inapelavelmente claro.
Isabella afinal só recebera pedaços de amor, dividido que sempre o havia sido por outros "alguéns", por outras vidas, por outras camas, por outros corpos...

Um "raio" atravessou-a, fulminou-a, toldou-lhe a vista...matou-a subitamente...
A paixão, o amor, toda a nobreza dos sentimentos acalentados ludibriadamente...lhe caíram aos pés...
O mundo rodopiou num vórtice, que lhe parou o cérebro e lhe trouxe vómitos de fel à garganta...

Naquele momento, aquela mulher sucumbiu para a vida.
O sentido de injustiça, ódio, manipulação... a dor do punhal de uma traição ignóbil (como o são todas as traições), o sentir-se cruel e ingenuamente usada, o buraco imenso que se lhe abriu aos pés e a fez vacilar...tomaram-na e aterrorizaram-na, face a um futuro que não acreditava mais poder já existir.

O seu Chianti, nesse dia teria de ser a misericórdia que a "salvasse"...

E o seu Chianti, não degustado, saboreado, usufruído...mas engolido de um trago, sorvido, despejado para dentro de si num desespero louco e incontrolável, num sofrimento sem medida, foi de facto a "tábua" a que deitou mão, na eminência do naufrágio que já sentia na pele...

A madrugada encontrou-a gelada, inerte no chão de mármore, donde já não conseguira erguer-se.
Junto de si, apenas estilhaços do último copo e a garrafa totalmente vazia...


Isabella voava a muitos pés de altitude algures sobre os Alpes...

Isabella era uma mulher destruída...





Anamar

terça-feira, 22 de julho de 2008

"THE STORY..."



Brandi Carlile...
Até a ouvir e sentir este inexplicável arrepio, esta melancolia que o seu olhar traduz e este "mistério" que sempre são as histórias de cada um...uma desconhecida para mim.
Agora "grudou-me" na pele, a dela, a minha, as histórias que todos teríamos p'ra contar, que ninguém sabe, ninguém conhece, ninguém desconfia...
Simplesmente histórias...as nossas...


Era madrugada, um calor que não abatera, um céu talvez estrelado, uma lua quase cheia ainda, como um fogaréu lá no alto.

Ana ainda estava impregnada do cheiro, da pele, do misto de veludo e áspero daquelas mãos sábias que sempre a percorriam.
Naquela cama desfeita permanecia o desenho dos corpos que nela se haviam perdido, estava a marca dos sonhos que ela por ali espalhara a esmo, acreditando que o não eram, que eram antes verdades que a madrugada e o sol da manhã não se atreveriam a desmantelar.

Ana era uma utópica sonhadora...
Sempre criava sonhos, sempre idealizava histórias... e sabendo que o eram... que apenas o eram, neles acreditava, deles vivia, com eles se alimentava.

"Criara-o" também..."talhara-o" como precisava que ele fosse..."pintara-o" a cores pastel de aguarelas indecifráveis, que só ela via, que só ela sabia, em que só ela teimava em perder-se.

Ana amava a sua própria "criação", apaixonara-se pela sua própria "obra", idealizava o que concebera.
E como uma adolescente desafiadora, como quem quer obrigar a vida a desviar o seu rumo (como se o rio invertesse a marcha apenas pela vontade de alguém)...sentada semi-nua na beira da cama sorriu quando a porta bateu e os passos se afastaram p'la calçada, perdendo-se no silêncio da noite...

Ele não partira...Aquele beijo de despedida fora apenas um "até amanhã" tinha a certeza;
a mala que levara consigo voltaria no dia seguinte, ou numa nova madrugada de calor e suor, em que se amariam outra vez perdidamente, feito loucos numa alucinação de entrega, dor e prazer... até caírem exaustos naquela cama;
as palavras definitivas não o podiam ser;
a dureza que se lhe estampara no rosto ao partir, o frio gélido que descera daqueles olhos de menino-homem, que a trespassou qual corrente de ar traiçoeira, açoitando-lhe o corpo como canavial em dia de tempestade, fora mais um pesadelo da madrugada...

Porque "esse", simplesmente, não fora o final da história que Ana escrevera...


Anamar