Mostrar mensagens com a etiqueta Ficção. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Ficção. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

" TU SABIAS ... "



Tu sabias
que lembro a que eu era, e não a que eu sou ??

Sabias que lembro o tempo das tranças, e de correr descalça na praia, na hora da maré baixa ?

Que lembro os sonhos que embalei,
e não os pesadelos que vivo ?

Que lembro o tempo em que a minha mãe cantava para mim, eu cantava para as minhas filhas ...  e não lembro o silêncio obscurecido deste quarto ??

Sabias que recordo os seixos da praia, empilhados nos rochedos, a marcar presenças ...
e lembro do cheiro da caruma, e da mata molhada pela sombra das árvores eternas ??
E  escuto  ainda  o  passar  do vento  no  meu cabelo,  que  me  levava  sempre as nuvens carregadas, do coração ??

Sabias que sinto com nitidez, o calor das mãos que me escaldavam o peito, e o fogo que me incendiava os lábios ??

E sabias que eu sinto saudade  do laranja dos pôres-do-sol, de sol que nunca se punha, porque sempre estava aceso dentro de mim ??
E as luas, então ... quando tornavam o mar de prata, e faziam as estrelas corar de vergonha ??!!...

Tu sabias que acolhi, deixei germinar e crescer num coração que já não tenho, sonhos de que também já não sei ??...

E que esqueci as tardes sem horas, porque as horas paravam para mim ??
Será que tu sabias ??...

Será que tu sabias que eu era real, tinha carne, sangue a pulsar nas veias, uma alma que aprendeu a chorar bem baixinho, e asas nos olhos ( que eu nunca acorrentei, porque eram livres ), e que partiram com as aves de arribação, em viagem ... só que ... sem destino ??

Tu sabias que um dia podias ir, mas eu ficar ...
... ou que um dia eu iria adormecer na concha da tua mão, e tu me deixarias fugir !...

Tu  sabias que haveria um dia, em que ao acordares, eu já teria partido nessa noite, na madrugada ... que de tão escura, não teve estrelas, nem lua, nem Vénus, nem ocasos, nem nasceres de sol nas alvoradas da Vida ... e que por isso me perdi no caminho !!...

Tu   sabias,  sim !...    Tu,  sempre  soubeste !...   Tu,  sempre  esqueceste ...
 ... porque  tu,  simplesmente ... NUNCA   ACREDITASTE !!!...

Anamar

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

" GRILHETAS "




Ontem...algures em Lisboa ...


" Falta-me a coragem !... "

Estas palavras ecoam-me, com som de tristeza e desalento, nos meus ouvidos ...

Mas a Vida é feita de coragem !
Coragem para nascer, desde logo, tendo à espera o desconhecido, que é o pior que nos pode esperar em qualquer circunstância, do nosso caminho.
Porque o desconhecido assombra, angustia, faz o coração disparar.
Ter coragem para acordar, encontrar o sol ou a chuva lá fora, e na vida ... e saber dançar nela, é coragem pura !

É preciso coragem para o amor ...
Pôr um filho no Mundo, é um acto de coragem .
Perder alguém muito nosso, que nos abandona, sem que nada possamos fazer ( porque o destino sentencia implacavelmente ), e mesmo assim conseguirmos continuar em frente, é um acto de coragem !
A resistência às injustiças, à indignidade, ao abandono, ao esquecimento ... são actos de coragem ...
A luta pela sobrevivência diária, o combate pelo direito a ser-se Homem, a força de erguer a cabeça na incerteza da tempestade ... também ...
O desespero que nos leva a alcançar o tronco que flutua, no último minuto, quando o sopro da vida ameaça deixar-nos, é coragem ...  É não desistência !...
O reunir forças, sabe-se lá de onde, e pensar que elas são candeia que nos ilumina a estrada, quando tudo está  escuro  à  nossa  volta, e  não  se  vislumbra  mesmo  estrada, sequer  um  atalho ... é coragem !...
Continuarmos a reclamar-nos gente, quando nos sentimos meros farrapos humanos ... o que é, senão coragem ??!!...

Há atitudes e decisões, que só se conseguem tomar, se a tivermos.
A coerência, a honestidade, a lisura, a verticalidade, a humildade até, neste Mundo corrompido e doente, são exemplos disso.
Há escolhas que só quem a tem, admite ...

A renúncia é dos mais surpreendentes actos de coragem.
Confunde-se com cobardia às vezes, pode confundir-se com falta de ética, pode confundir-se até com estupidez ou burrice ...
Mas abdicarmos de nós mesmos em função de outrém, merecedor ou não, em função de princípios, valores, convicções, obrigações morais e outras, é um suicídio antecipado, é uma eutanásia praticada e assumida, para os quais é precisa suprema coragem !

Porque coragem, como muitas vezes levianamente se confunde, não é ausência de medo ... não é conseguir entrar no quarto escuro sem saber o que lá se vai encontrar.
Para mim, só seres de eleição a possuem na sua essência, e a praticam, porque ela é de nós para os outros, com prejuízo e anulação de nós mesmos.
Ela é saber sair de si, é o oposto do egoísmo, do egocentrismo, do autismo de interesses e conveniências ;  é abnegação total, é dádiva, muitas vezes não reconhecida, valorizada, menos ainda agradecida !...

Escolher abandonar alguém no caminho, se esse alguém nos for razão de vida ... escolher dobrar a esquina, deixando para trás apenas um derradeiro olhar comprido, lágrimas e dor, e levarmos em frente um coração feito em pedaços, só porque conseguimos esquecer-nos e anular-nos ... porque tem que ser assim, ou sentimos que tem que ser assim, não é mais que aquela coragem que poucos detêm ...
Fazermo-nos eterna e definitivamente prisioneiros de arames farpados, ou de grades de masmorras, cujos cadeados nós próprios trancamos e de que deitamos fora a chave, e com ela a felicidade um dia sonhada ... bom, se não é coragem ... então o que é ???!!!

Talvez eu seja utópica na análise de tudo isto.
Talvez eu seja "naïve" ...  Talvez eu arranje justificações para atitudes que tenham tudo menos nobreza, e seja tonta ... apenas porque preciso acreditar que não sou tonta !...
Talvez a destituída ou pouco clarividente seja eu, ao abonar benefícios, para posturas, que se calhar os não deveriam merecer ... talvez eu precise acreditar que há ainda seres humanos assim ... despojados, altruístas, superiores, em suma ...
Não faz mal se ainda consigo ver o Mundo com alguma cor, se ainda tenho alguma capacidade de aceitação, benefício de dúvida, ou de creditação àcerca do Homem !...

Falta-te coragem ... confessavas ...

Não falta não !  Tens sim a coragem que eu não tenho !...
Vai restar-te talvez uma tranquilidade de consciência e uma paz de espírito ( dizem que se dorme com elas na almofada ... ), que não terá preço, suponho, que representará dever cumprido e sossego de coração.
Só desejo que consigas viver o resto dos teus dias, alimentado por essa convicção, aconchegado pelo altruísmo de te teres tornado, por "moto próprio", um ser que se supõe vivente, mas na realidade não o é, um ser que não existe, apenas atravessa a Vida, invisível da sorte, enjeitado do destino ... um "zombie", nos dias e nas noites que te couberem ainda , espalhando a felicidade, a paz e a esperança, nos corações que vão supor "ad eternum", que lhes coube o mérito de efectivamente o terem merecido !...

Perto de ti, sou de facto um arremedo de gente, uma aprendiza imperfeita, egoísta e sempre lutadora pelos MEUS sonhos e convicções ... porque tenho consciência absoluta de que a Vida é só uma, já  me sobra pouca para o conseguir, e de facto, não tenho o que pensas não ter ... CORAGEM !!!...

Se  me  leres ... sê  feliz !!!  
Talvez  o  mereças  mais  que  ninguém !!!...




Anamar

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

" A DESTEMPO "




Já  chegaste tarde ...

Tarde demais, porque até o sol já foi.  Sabes, o sol agora dorme mais cedo, porque afinal já estamos naqueles dias dourados, castanhos e vermelhos,  em que de certeza os castanheiros já perderam as folhas.
Eu apenas imagino ... porque aquele caminho também já não é mais meu ...
Talvez agora seja o tempo dos ouriços ... não sei !

A areia despovoou-se, e agora são as gaivotas que reinam.   Têm o areal por sua conta, para o seu bailado de início de dia.   Até porque o mar atroa lá atrás, e não está satisfeito nesta época.
Deixou de ser azul ou verde, e vestiu-se daquela cor que é e não é ... cinzenta, apenas rendilhada pela profusão de espuma branca, com que galga os rochedos.
As algas, essas são perenes.  Deixam-se vestir e despir, por cada maré que sobe ou desce.
A brisa, mais fustiga do que acaricia, e não demora a tornar-se vento.

Já chegaste tarde ...

Énya já não canta "Amarantine", nem "Only time", naquela aparelhagem sincopada.
Eu, esqueci as palavras, esqueci o calor, esqueci-me de mim.  Sei lá quem sou !!...
Já sou outra, outra vez, nestas mil outras que sou ao longo da minha vida.
Não há farol por aqui.  Não há sequer um pontinho luminoso, como o que brilha às vezes, na janela de um monte, perdido em nenhures, no isolamento do montado interminável, no meu  Alentejo ... e que sempre fala de gente, de família, de candeeiro aceso na mesa da janta ...
Aqui, até as estrelas ficaram por detrás dos castelos de nuvens, ameaçadoras.
Não tarda começa a chover, e a chuva sempre nos empurra para a "concha" !
Não é como a chuva abençoada de Samaná, da Jamaica ou de Sta. Lucia.  Essa, era doce, era quente, e vinha embrulhada em papel de presente, e laço de fita.
Essa, puxava-nos para dançarmos alucinadamente, abandonando-nos à sua carícia ... lascivamente, pecaminosamente !...  Mas essa tinha segredos !...
Aqui a chuva chama-se silêncio, solidão, cansaço ... escuridão ...

Já chegaste tarde ...

Os caminhos e os sítios já te esqueceram.
As minhas taças ficaram plenas de rosas secas, antúrios antes de morrerem, e alfazema dos montes.
Não sobrou nenhum espaço ... e isso era um sinal.  Um sinal que eu não percebi ...
Logo eu, que sei ler os sinais todos !...
Já pouco sei ;  e o que sei está muito enevoado, demasiado enevoado, como um tule envolvente de leito nupcial, como uma teia tão bem tecida, que quase se opacizou ... como as tais "nieblas" que me apavoram, mas que sempre atazanam a minha vida, como um determinismo ou um karma que não entendo ...
O que sei, parece um anátema nos meus dias, que "Alguém" entendeu eu merecer viver !

Pouco sei, de facto ...  Não me movo ... plano ;  Não saboreio o ar ... deixo-o entrar e sair em mim ;  Nada me dói ... estou anestesiada de vida ;  Não durmo ... perambulo pelas madrugadas, nos sonhos, como um sonâmbulo perambula na noite ;  Sou como uma folha tombada na correnteza, que avança, recua, encalha, dança, rodopia, sem ir a lado nenhum.
Mas também não tenho lugar para ir, não é ??   Que importa !!!...

Já chegaste tarde ...

Agora já não consigo achar-te mais.  Já não sei como se faz.
Perdi os rumos, esqueci as marcas, não tenho referências, os meus pontos cardeais são falaciosos.
Os caminhos que me levavam até ti, enganadores ;  sempre desembocam em rotundas que me deixam entontecida, e como a roda do hamster, intencionalmente incapaz.
Eu acho mesmo, que é essa coisa vaga que chamamos destino, que feito um diabinho brincalhão goza à minha custa, como um menino extasiado num parque de diversões, que enlouquecido, travesso, quer experimentar todas ao mesmo tempo !
Mas aos meninos a gente perdoa tudo, não é ??!!...

Agora, ainda que eu quisesse ...

... tu já chegaste tarde demais !!!...

Anamar

sábado, 22 de setembro de 2012

" IN MEMORIAM "

Já morri ...

Já morri e não deste por isso ...
Não percebeste que te gritei por socorro ontem, quando o sino da igreja batia as três, e já são três outra vez, e tu não percebeste que entretanto eu morri ??!!...

E como vais então trazer-me as margaridas selvagens que me prometeste, quando a estrada dos castanheiros nos era caminho traçado??
E as violetas das pedras, nas sombras das árvores que esqueceram as suas histórias, porque tiveram princípio mas não têm mais fim ??
Deixaste secar, das encostas, as flores amarelas sem nome ;  como também deixaste o sol ir embora ... e o vento que despenteava os meus cabelos, também partiu já para outros horizontes ...
E por isso, não mos podes trazer ...
As gaivotas já não se empoleiram no alto dos postes, porque nós não estamos mais lá, e o Inverno chegou mais cedo ...
E  as  gaivotas  têm  coração  e  memória,  e  recordam-me ... acreditas ??!!

Foi tudo partindo, só na praia, no topo dos rochedos da maré baixa,  a desafiar a eternidade, continuam as pedras com que brincaste, como um código mudo, apenas para quem o sabe ler ...

Já morri e não me deixaste ver antes os teus olhos outra vez, ouvir a tua voz, ou escutar a tua gargalhada desbragada, com que aligeiravas as horas más.
Não me deixaste repousar no teu regaço uma outra vez, ou aquecer-me no teu corpo, naquele chão que guardou os contornos deixados por nós, em tardes felizes ...

E deixaste-me ir vazia, completamente vazia, simplesmente porque me deste e foste tirando, as rosas vermelhas que sempre me aqueceram o coração ...
Tal qual como me deste e tiraste também  ( com as palavras ), o querer, a esperança, o sonho e a juventude.
Foste tirando, porque sabias que eu ia partir e que tu não tinhas mãos para me agarrar, e não me deixar ir ... mesmo quando às três da tarde te gritei por socorro !

E  agora,  os pôres-de-sol  atrás  da  serra,  lá  para  os  lados  do mar ( porque ele sempre adormece no infinito, não é ? ), vermelhos de fogo, não têm quem os admire e se deixe perder em sonho, a olhá-los ... porque os olhos que os viam e os amavam, cegaram, fecharam, porque não conseguem ver mais ...

Já morri ... afogada ... submersa ...
Não nas ondas salgadas que me adocicavam o corpo, e que,  com o sol, me temperavam a pele com aquele sabor que amavas.
Mas afogada pelas lágrimas que nunca conseguiam escorrer-me pelas faces, e que o coração foi guardando, guardando, até que ... quando o sino da igreja ontem batia as três da tarde, e tu não me ouviste uma vez mais ... eu desisti ... e morri, meu amor !



Anamar

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

" A ESTRELA CADENTE "



A noite estava completamente escura.
No pico da encosta, lá, donde se divisa o Mundo, viam-se longe alguma luzes das últimas casas da aldeia, via-se a luz do farol, que varria sincopadamente e em ritmo certo, 360º de espaço à sua volta ( por certo era uma luz aconchegante e tranquilizadora, para quem vinha dos lados do mar ), e viam-se as constelações no céu de breu.
Era o privilégio e a maravilha que sempre a extasiavam, quando subia ao cimo daquele cume, onde só ali havia escuridão suficiente para ver, admirar e "contar" as estrelas.

Quando era miúda, nas férias passadas na aldeia, era vulgar o avô levá-la a passear após o jantar, quando já corria aquela fresca abençoada, na canícula do Alentejo.
Sempre iam até ao campo, e subiam àquele pico, que afinal era logo ali.
A iluminação precária e pobre da povoação, desaparecia totalmente logo no virar da primeira esquina, e a escuridão espalhava-se e envolvia tudo em seu redor.

Os grilos e as cigarras "desgarravam" sem se cansar ; os chocalhos dos rebanhos, que no Verão não recolhem aos estábulos, soavam de quando em quando nos pastos, e a voz sincopada do avô, uma voz calma, doce e sapiente, sem pressas, contava-lhe histórias ...
Histórias não daquelas que se lêem nos livros, de fadas, coelhinhos e lobos ferozes ... mas histórias de vidas, histórias de gente, histórias reais, em linguagem infantil, que não esquecera até hoje.

Havia uma cumplicidade imensa entre os dois, uma partilha de saberes e de emoções.
Ambos ensinavam, e ambos aprendiam um do outro, porque os adultos ensinam, mas aprendem sempre muito com as crianças.

Se mais não tivesse sido ( e foi muito mais ), o repositório destas memórias e deste afecto que se partilharam, perdurava quase cinquenta anos depois ( e por certo, por toda a vida que ela ainda vivesse ) ;
ficara indelével, gravado, ajudara à sua formação como pessoa, como um adulto íntegro.
A transmissão dessa sabedoria, que nenhum livro, nenhum filme, jamais conseguem fazer, é afinal a memória dum povo, é a sabedoria das gerações, é a experiência de vidas, é  o  legado  das  tradições,  é  a  história da  Humanidade que  passa  através dos séculos ...

A primeira "estrela" que descobriam no céu, era Vénus, que o avô lhe dissera chamar-se a "estrela do boeiro".
Vénus era um planeta "mascarado" de estrela, e por isso não "piscava", como pisca a luz das estrelas "à séria".
Era do "boieiro", porque subia no céu ao cair do dia, exactamente quando o gado recolhia aos estábulos.
"O sol vai dormir, quando Vénus se levanta" - dizia-lhe o avô.

Depois era a brincadeira de qual dos dois descobria primeiro, no céu escuro, a Estrela Polar, a última estrela da cauda da  Ursa Menor ; e a Ursa Menor  era encontrada a partir da Ursa Maior, um "quadrado" desenhado por quatro estrelas, e bem mais fácil de encontrar.
Multiplicando por cinco a distância entre as "guardas" ( duas das estrelas dos vértices desse quadrado ), íamos então encontrar a Ursa Menor, e daí à Estrela Polar, era um pulinho ...
Lá estava ela, bem mais brilhante que as outras, mais visível ... parecia maior !
O avô explicara-lhe que o tamanho com que as viam, tinha a ver com a distância a que elas se encontravam de nós, e contava-lhe que naquele preciso momento, poderiam estar a ver a luz de estrelas que já haviam morrido há muito, luz que levara muito, muito tempo a chegar à Terra ...

Isso era um mistério insondável e mágico para a menina ...
Como era possível ver-se uma luz que brilhara numa estrela que já não existia, se ela só veria a luz do farol, se o faroleiro não se esquecesse de o ligar ??!!...

O avô contara-lhe também, como muitas e muitas gerações se haviam orientado pela Estrela Polar, que sempre indicava a direcção do norte.
Daí, à bússola e aos pontos cardeais, era outro pulinho de pardal ...
E as histórias continuavam ...

-"Avô, e só existem estas constelações?  Porque eu não vejo mais "desenhos" feitos no céu !!! - inquiria Isabelinha.

E aí, vinha o hemisfério norte e o hemisfério sul ( as duas meias laranjas ), a cassiopeia, o orion, o cruzeiro do sul ... e daí vinham os pólos, e o equador, e a forma da Terra e de como ela se movia e rodava em torno do Sol, a estrela que todos os dias nos aquece, e que, quando ela também morresse, a Terra  morreria  junto !
Contou-lhe dos dias e das noites, e como a essa hora, em terras distantes, as pessoas estavam a começar o seu dia ...
E contou-lhe também, que há muitos anos atrás, um senhor chamado Galileu ( um cientista que estudava muitas coisas ), fora condenado e preso, por ter afirmado que a Terra girava em torno do sol, o que nessa época da História, foi considerado uma blasfémia e uma heresia, porque o que os Homens viam diariamente, era o Sol a levantar-se e a pôr-se ; portanto, quem "andava" era o Sol e não a Terra, e Galileu não passaria de um trapaceiro, e de um impostor aldrabão ...

- "Como os homens eram ignorantes, avô !! ....
E  a  forma  da Terra, como descobriram que era uma "bola" ??

Veio então a história do horizonte. O avô chamava a atenção de Isabel, de como, do alto daquele cume onde se sentavam, a menina podia ver uma linha curva e não recta, a limitar tudo o que os rodeava, tal qual como na praia, olhando o mar, lá ao fundo ...
Apanhava do chão uma pedrinha esférica, e mostrava-lhe como afinal era lógica a conclusão !...

Nas noites em que a lua cheia se pavoneava no firmamento, obviamente que as "fases" eram questionadas.
Até hoje se lembrava como o avô lhas ensinara tão intuitivamente, arranjando uma laranja, uma uva e a luz de uma vela ... que ele dizia fazer de conta serem a Terra, a Lua e o Sol, respectivamente.
E contara-lhe um segredo :  "Olha, Isabelinha, para saberes sempre em que quarto está a lua, lembra-te que ela é "mentirosa" !...   Quando desenha um "C" no céu, está em quarto decrescente, e quando forma um "D", está em quarto crescente ...   Assim, nunca te enganas !..."

- "Avô, e aquelas manchas que a gente consegue ver tão bem na Lua ... o que são ??"

E os temas nunca terminavam, e variavam de noite para noite.
Sempre a partir de palavras adequadas à sua idade, sempre de uma forma bem simples, aprendeu muito do que não esqueceu pela vida fora ...
Histórias da vida no campo, das sementeiras, das colheitas, das mondas, da ceifa ... das estações do ano ...
Histórias da gente pobre da sua terra, quando a pobreza era muita, e a açorda de pão "dormido", quase só o  que  havia  para  pôr  na  mesa !...
Histórias das chuvas, das geadas e das neves, que há muitos anos atrás, contava o avô, num Inverno muito rigoroso, pintaram de branco a sua aldeia !...
Histórias dos meninos que não podiam estudar, porque os pais não tinham dinheiro que o permitisse, e mal aprendiam a ler, a escrever e a contar, abandonavam a escola, porque havia que ajudar no sustento da casa, trabalhando muitas vezes acima do que uma criança poderia fazer ...
Contava-lhe que na escola escreviam numa ardósia, que era uma pedra de lousa, com um giz branco ...
Contava-lhe que a sacola da escola, era feita em casa, de burel, um tecido bem resistente, para que durasse para todas as crianças da família, sem se estragar ...
E que eram poucos os meninos que tinham calçado, e por isso, a maior parte andava descalça, até nos Invernos mais gelados !
E quando lhes era comprado um par de botas, na feira, estas eram cardadas, e levavam "protectores" nas biqueiras, para que não se estragassem facilmente ...
E depois havia também que explicar o que eram "cardas", e o que eram "protectores", porque felizmente Isabel nunca os vira !...

Passadas mais de cinco décadas, Isabel ficaria ali, uma outra vez, no cume da encosta, lá donde se divisa o Mundo ... certamente até de manhã ... e ainda assim não lembraria a globalidade de todo o tesouro inestimável, que por certo, sem se aperceber, na sua pouca / muita cultura, o avô lhe transmitiu em menina ...

Deu por si meio adormentada nessas memórias, deu por si a ver as luzes distantes e pobres do casario da aldeia ( não havia mudado grande coisa ), e deu por si a ver o varrimento da luz do farol, que não se havia cansado até então ...
Mas deu também por si, inconscientemente, ao olhar o céu e ao ver uma estrela cadente ( aquelas que o avô lhe  dissera que tinham  sempre  muita  pressa  de  caminhar ), a  pedir,  como  em  menina,  três desejos ...   " porque se os pedires, a estrelinha, na sua corrida pelo céu, vai depressa buscar-tos " - dizia-lhe ele ...

Que saudade desse tempo, que saudade da figura do ancião que tanto amou, sempre venerou, e nunca esqueceu ...  que saudade de si, em menina !...
Hoje, na sua vida, na sua realidade, na mulher que ela era, pensou que lhe bastaria pedir UM só desejo ... se a estrela cadente fosse capaz de lho trazer !!!...

Anamar

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

" A CASA DE MADEIRA "


Aquela casa fora o sonho da vida de Marta.
Uma casa simples, quase uma cabana, em madeira por dentro e por fora, aproveitando a tanta que existia por ali.
Térrea, um quarto, e uma sala ampla, essa sim, que privilegiara em tamanho.
Era virada ao sol poente ; escassos metros apenas, a separavam do mar, aquele mar que era um mar de brincar, porque nunca batia, sempre só brincava no areal.
Aproveitava a frescura concedida pela sombra do coqueiral, uns palmos de relva à frente, onde cabiam duas espreguiçadeiras, uma rede para horas de sonhos e recordações, e nada mais, além do que a Natureza generosa oferecia ... e era muito ... era demais !...

Tinha como companheiros os cães vadios que viviam pela praia, e eram amigos fiéis nas caminhadas diárias ;  tinha a garça que aos primeiros alvores do dia, debicava na rebentação, e tinha a família de "carpinteiros" que fizeram ninho num tronco de coqueiro já moribundo.
Marta era muitas vezes despertada para o dia que começava, pelo seu ritmo cadenciado, a picarem a madeira envelhecida.
Muitas madrugadas eram eles que a situavam no tempo e no espaço, naquele meio tempo em que ainda não sabemos bem que estamos vivos.

Porque muitas noites sonhava que estava em Portugal, sonhava que vivia a vida que deixara, sonhava com os que haviam partido de muitas formas, e também com os que lá estavam, e nunca esquecia.
Era o recuo no tempo permitido pelo sono, pelo entorpecimento e pela magia que ele tem, de nos transportar onde quer ... "Pena que não seja onde nós queremos" - pensava Marta muitas vezes.
Se isso fosse possível, quantas viagens no tempo e na vida, ela faria, quantas histórias, quantas vidas, quantos amores, quantos locais ela revisitaria ??!!...

A casa em Portugal estava fechada ... ( Portugal já não tinha mais para lhe contar, já não havia mais sonhos cabíveis nessa realidade ;  esgotara-os todos, até à exaustão, vivera todos os possíveis ;  e quando as esperanças, os desejos e  as  paixões começaram  a  ceder, deixando  lugar  apenas  a  mágoa,  desilusão,  vazio e recordações  -  essas sim, quase todas doces ... mas recordações, apenas ), decidiu cerrar janelas e porta, e partir, acreditando ir encontrar pelo menos paz, numa vida que seria o avesso total da que vivera até então.

Sonhou ter uma vida despojada, no meio da Natureza, num lugar que tivesse o sol, o mar e o céu, que sempre adorou e havia procurado ao longo dos tempos, nas viagens que ia fazendo ;
um lugar que tivesse os cheiros, as flores e os frutos que rebentavam sem pedir licença, que tivesse todos os pássaros do Mundo, que tivesse os sons do silêncio, e a areia branca e doce para pisar, e se envolver, como em lençóis de cetim ...

Consigo transportou o que achou realmente importante : os livros mais determinantes na sua vida, a música, sem a qual não viveria, papel e caneta ( porque continuava fiel aos registos à antiga ), o computador, como porta aberta ao Mundo, como veículo de ligação aos seus, lá longe, como arquivo do que ia escrevendo, aleatoriamente, sempre aleatoriamente como o fizera toda a vida, o mínimo indispensável de roupa e objectos pessoais com valor afectivo ( calções, t-shirts, "pareos" e trajes de praia, chapéu e chinelos, era mais do que suficiente ), e depois, um monte imenso de fotografias particularmente significativas, com registos de momentos, de vivências, de acontecimentos relevantes na sua existência ... e uma arca pesadíssima ( porque pesava o Mundo ), de recordações, as mais insondáveis, das mais remotas às mais recentes, das que a faziam sorrir sozinha, e das que a faziam chorar também sozinha ...

E nada mais ...

Fizera questão que o recheio da casa fosse o mais simples possível também.
Um estrado em madeira, rés-vés ao chão, com um colchão e uma rede mosquiteira por cima, era a cama ; os móveis eram artesanalmente construídos em madeira, com troncos e alvenaria ; jarras com flores, que não eram mais que garrafas trazidas pelas marés, e catadas na praia ;  estantes de livros feitas com tijolos e prateleiras em madeiras velhas e pouco trabalhadas ( algumas, antigas viajantes dos mares ) ,  tecidos manufacturados na região, a alindar das janelas às cobertas, dos tapetes no chão às almofadas espalhadas em desalinho ...  conchas, búzios, pinturas dos artistas locais, aqui e ali ;  alguns esboços feitos por si, de rostos que pertenciam à sua história, e da paisagem que desfrutava da sua rede no coqueiral ...

Sentia-se  rica ...   Rica  e  abençoada,  sem  dúvida  muito  abençoada !...

Aquele dia, era um "daqueles" ...

Marta tinha alguns rituais que precisava cumprir, que lhe estavam sob a pele, dentro do coração e do espírito.  Rituais só seus, que só ela entendia os seus "como" e "porquês" ...

Nesses dias vestia-se como para uma festa ;  alindava o rosto, perfumava o corpo e a alma.
Espalhava velas pela sala, a esmo, tornando-a à sua luz mortiça, intimista e mágica ...
Punha a mesa com dois pratos frente a frente, dois copos, frente a frente, uma garrafa de bom vinho tinto  ( comprado expressamente para o momento, já que o do seu Alentejo estava lá tão longe ... ),  a taça das azeitonas ... metia no forno as tostinhas de fatias finas de pão, chouriço e queijo, a gratinar ... e colocava Énya na aparelhagem, baixo e docemente ...

Numa bandeja, dois cálices e uma garrafa de Amarula, bem fresca, abria a refeição.
No pequeno frigorífico, a mousse de maracujá que preparara na véspera, aguardava.
Duas ou três flores de hibisco ( as flores de um dia ), ladeavam os pratos.

Sentava-se então, como quem espera ...

De facto Marta esperava, esperava que as recordações descessem, a envolvessem, a aquecessem no coração gelado, apesar do calor que se sentia ...
Nessas noites recuava no tempo e na vida ... nessas noites voltava lá atrás, escancarava o baú das memórias, chamava à sala os mortos-vivos que nunca a tinham abandonado, e dançava livre e alucinadamente com eles, entre uma ópera de Mozart e os acordes de "Amarantine" ... entre Vangelis e Sting ...

Cá fora a noite descera, há muito.
O mar prateava à luz de uma imensa lua cheia, que atravessava a folhagem  despenteada dos coqueiros ;  os insectos e as aves que nunca se calam dia e noite, faziam coro com o beijar da maré rasa na areia ...

Se alguém passasse à beira-mar, veria o vulto de uma mulher vestida de branco, de cabelos soltos, descalça, a dançar, louca, aparentemente louca ...

Dizia-se que nessas noites, na casa de madeira do coqueiral, onde vivia aquela enigmática mulher portuguesa, desciam espíritos ausentes e distantes ...
E havia mesmo quem garantisse, que os vira a dançar com ela, à luz das velas, das estrelas e da lua !!!...



Anamar 

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

" O PRIMEIRO PASSO "

 

Mónica estava sentada no banco improvisado, no alto da arriba, sobranceiro ao mar.
Dali via o céu, via o agitar constante das ondas, via o areal, algumas aves planando na brisa, contra um céu laranja-salmonado, divino ... e via o sol a descer, a descer devagarzinho, rumo ao ocaso.

Via, mas não via ...

Mónica sentia-se inerte, morta, anestesiada.  Os seus olhos olhavam apenas, não mais ;  perdiam-se longe, e com eles arrastavam o seu pensamento.
O olhar, por assim dizer, opacizara-se, e o sangue, poderia afiançar, interrompera o percurso.
A única sensação que tinha bem nítida, era um aperto de profundo mau estar no peito, lá no lugar onde garentem estar o coração, que se estendia à garganta e a fazia sentir com um nó, que lhe dificultava a respiração !
Aliás, a Mónica, naquele momento, faltava o ar e faltava o chão.
De repente, haviam-lho tirado, como a um tapete de debaixo dos pés.
As mãos também lhas haviam soltado, largando-a num equilíbrio instável de vida.
Parecia estar numa travessia sobre um abismo, procurando tão somente sobreviver ... alcançar a outra margem, atingir um qualquer lugar seguro !

De repente, as coisas à sua volta pareciam desenquadradas,  retiradas de contexto,  como fotografias a que tivessem tirado as molduras.
Pareciam sem sentido, sem lógica, sem razão ... pareciam desarticuladas, como que arrancadas dos lugares certos, e misturadas "contra-natura", como peças de um puzzle, que depois de armado, caíra ao chão ...
Dir-se-ia que alguém tinha andado a divertir-se, a baralhar todas as pedras de um dominó já jogado ...

Esta catalepsia que a parara no tempo e no espaçp, cheirava à solidão e ao abandono de uma antecâmara de morte, porque afinal há muitas formas de se matar e de se morrer ...
À sua frente tinha o tal caos, entre o que aconteceu e o que virá a acontecer, em que não se entendia, e onde não se sabia mexer.
À sua frente tinha o antes e o depois, tinha a bonança e a tempestade, tinha a luz e a escuridão, e pronto, estava tonta no rodopio alucinado da sua cabeça, como se tivesse sido jogada no rápido de um rio, ou derrubada pela rebentação sucessiva de mar forte ... como se os miolos se guerreassem e a fizessem sentir perdidamente ébria !...

Mónica estava numa estrada sem direcção, sem sinais, sem mapa ... sem GPS ... Tanto lhe fazia ir adiante ou recuar ; tanto lhe fazia procurar caminho, ou deixar-se petrificar ali  mesmo, para todo o sempre ;  a indiferença, uma indiferença total a tudo, mantinha-a ausente.

Havia feito um interregno de vida ... sentia ...
E o pior é que não encontrava forças, nem para se debater, nem para se rebelar, nem para se indignar, nem tão pouco para chorar ...  Estava seca por dentro !...

Cada caminhada começa com um passo, cada castelo começa com uma pedra ...
Mónica sabia-o.  E sabia também que hoje era o primeiro passo, de uma caminhada para a qual estava sem força  e  sem ânimo ...

Não entendia por que estava naquele trilho, não percebia por que chegara àquela encruzilhada, àquele caminho labiríntico e escuro, como as veredas nas matas, que deixamos de reconhecer depois de as percorrer, tão parecidas se tornam !...

Havia luz, muita luz no início da marcha, que ela lembrava-se bem !
Era uma estrada, estreita é verdade, de terra batida como são as estradas no meio do campo, tinha pedras como todas têm também, mas ficava no topo de uma ravina, com a vegetação rasteira bem florida a ladeá-la, com os pinhais de pinheiro manso marítimo, em fundo, algumas mimosas douradas de aroma inebriante, com muito sol, céu sempre azul, com brisa fresca no rosto, desalinhando-lhe os cabelos, como gostava.
E mar, muito mar cá em baixo, no seu vai-vém, no arrendado imaculado da espuma com que se desfazia nos rochedos, com as aves que sempre pertencem ao mar, ali por cima, em voos dormentes, sem pressas, como quem se extasia, tal como ela, com o mundo cá por baixo !...

Mónica  fora  forjada em  terras sem mar,  mas  também sem horizontes ;  terras de grandes planícies a perder de vista, terras de solidão, abandono e silêncios.
Ela própria tinha esse mesmo espírito de solidão, de isolamento e de silêncio !
Cultivava o ensimesmamento, a introversão, o intimismo.
Não falava muito de si.  Preferia sentir apenas, e "conversava" consigo mesma, todos os minutos dos dias e das noites também.

Contudo a sua alma e o seu coração eram rebeldes, soltos, saltavam as cercas, rompiam as correntes, e Mónica tornava-se mulher de grandes espaços, de espaços sem limites, sem horizontes, sem "sentidos proibidos", sem muros ...
Ela achava que era uma espécie de compensação que não se explica, a completar o seu "Eu", como pessoa.

E por tudo isso, Mónica morreria em encruzilhadas, em caminhos labirínticos e escuros, em percursos delimitados e sem saída ... em estradas sem direcção ...

E por tudo isso, buscava o mar por companhia, a amplidão dos espaços largos, o céu por aconchego, os campos para berço.
A liberdade sentida, aliás como tudo o que sempre sentia na vida, era por excesso, era por arrebatamento, era em "TODO" ... tinha que a embriagar, para valer ...
Era a resposta do seu ser ao confinamento, ao pequeno, ao curto ...   Nunca podia ser por metade !...

E por tudo isso se sentara  naquele banco  improvisado,  no alto daquela arriba, sobranceiro ao mar, naquele pôr-de-sol em céu laranja-salmonado ...

Percebia que naquele momento, tinha que dar outra vez na sua vida, um primeiro passo, antes que anoitecesse, o mar adormecesse, e as luas e as estrelas subissem no céu ...

... porque ela sabia bem que cada caminhada começa sempre com um primeiro passo ... cada castelo, com uma primeira pedra !!!...



Anamar

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

" SE EU MORRESSE AMANHÃ..."

 


Se eu morresse amanhã, tenho a certeza que o céu estaria tão azul quanto hoje, por cima deste mar batido, que se desmancha em espuma na areia.

Os penedos da falésia, como equilibristas de arame sem rede, continuariam a ver as marés a subir e a descer todos os dias, de todos os anos, e haveria muitos Invernos e muitos Verões, para que o vento de tempestade os açoitasse, ou a brisa mansa os acariciasse ... ouvindo-lhes histórias de vidas ...

As gaivotas também poisariam no areal como malmequeres brancos a salpicar a areia plana, inviolada de pegadas ainda ...

O sol, estranhamente continuaria quente, a escaldar os corpos, excepto o meu que estaria gelado e indiferente.
Mania do Mundo seguir em frente,  e atirar-nos à cara a insignificância do nosso existir !...

As pessoas transformar-me-iam em alguém bem louvável de recordar ... algumas horas, de alguns dias, talvez de escassos meses ... porque aquela mesa de café ficaria vazia de mim, e porque todos se tornam "heróis" na vida, só porque tiveram a sorte de morrer ...
Horas, dias, meses ... nacos mais ou menos generosos com que o Homem "fatia" a eternidade.
A eternidade é a estrada de sentido único, que nem rotundas tem.
Se as tivesse, sempre dava para rodopiar, rodopiar e "empalear" a caminhada.
Mas não!
A eternidade está lá ao fundo, e sempre espera por todos ...

É certo que aquela camisa continuaria dependurada no estendal onde ficara, mas também quem me mandou lavá-la na véspera??!!...

Se eu morresse amanhã, tenho a certeza que dos "meus", haveria quem soluçasse à luz do sol, mas também quem só soluçasse, na solidão mais recôndita de um quarto.
E também haveria quem quisesse, na hora, tomar a minha "boleia" ... que eu sei !

Os homens da minha vida, os meus amores, os meus afectos, espalhados pelo Mundo em cada pedaço que por lá fui perdendo, nem sequer saberiam se eu existia ainda, ou não !
O que se dá, dá-se com o coração, com o corpo e com a a alma, e não carece de retribuição ...

Havia um sítio, sim, onde eu ficaria para sempre e onde sempre me podiam encontrar ... Este mar imenso, que também ele copia a eternidade ... começa, mas não finda nunca !
Lá, naquele verde, azul, turquesa, cinzento, ou na mescla de todos os tons, conforme os olhos que o vejam, eu estarei, juro !
Darei guarida a todos os seres que me quiserem ;
Virei ao areal, zangada ou mansa, embalaria as gaivotas, as andorinhas do mar, os corvos marinhos, as fragatas, as garças da maré baixa ...
Mas também as conchas, as algas e os corais, e todos, mas todos mesmo, me poderiam escutar ... na melopeia embaladora de um búzio.
Bastaria pô-lo ao ouvido e saber ouvir ... não apenas escutar !...
Nele reconheceriam a minha história, sussurrada baixinho ...

Mas do alto das arribas, onde os rochedos se equilibram em malabarismos espantosos, também me poderiam ver ...  Basta que saibam olhar e que conheçam o código da linguagem do coração !
Aos nasceres e aos pôres-de-sol, lá estaria ... morta, homenageando a VIDA !

E nas noites de lua cheia, quando a poalha prateada acende o mar, e as sereias entoam cânticos de chamamento, os meus cabelos serão algas largadas na areia, por cada onda que vai e que volta ... e ao largo, os pescadores saber-me-iam, porque também eles são filhos do mar !!...

Se eu morresse amanhã, só queria que me colocassem nas mãos, o saco das letras, aquelas todas com que construo os meus castelos de sonhos, com que invento as minhas histórias de ninar, com que confesso os meus desejos mais ardentes que não realizei, e ficaram, juntos com a camisa, pendurados no estendal !!!...

Anamar

sexta-feira, 8 de junho de 2012

" LOCAIS DE PASSAGEM "


NOTA : Esta história é baseada num caso verídico


Entrei naquele espaço meio atordoante, meio desesperado, meio sufocante.
Eu próprio também o estava.
A cada tentativa que fazia mais, o coração sempre me disparava no peito, porque a esperança é a última que morre, creio.

DIVA desaparecera na Serra.

Nunca se sabe por que um cão procura a liberdade ... tendo connosco tudo o que nos parece ser o bastante ...
Mas a liberdade é a liberdade, os cães são animais nobres, e a nobreza de um animal, como a nobreza de qualquer ser vivo, deverá exigir-lhe a sua busca, sempre ...

Por isso DIVA não tinha sido ingrata ... simplesmente procurara a sua própria liberdade naquele dia.
A minha "via sacra" começou então ; o anseio de voltar a ter o seu convívio, a esperança de a retomar, era tudo o que me dava força para alucinadamente ter percorrido todos os caminhos prováveis e improváveis, ter solicitado todas as ajudas, ter movido todos os meios ao meu alcance, para que DIVA fosse recuperada.
Nesse dia era apenas uma tentativa mais, talvez a última, de que por um golpe do destino, ela pudesse ocupar alguma das boxes daquele canil, sinal de que estava viva, existia, tinha sido encontrada.

Mas os canis - quem já os visitou, sabe bem - são locais de agonia, de uma agonia atroz, corredores de morte.
Não daquela morte que o Homem cumpre por determinação dos seus pares ( senhores e donos do que acham ser justiça ), mas locais de condenação de seres indefesos que a esperam ( não porque tenham cometido um crime, ou tenham lesado a sociedade ), mas porque o Homem, por leis absurdas, arbitrárias e monstruosas, assim o decide.
São celas de espera ... locais de passagem, simplesmente.

E também aí, como nos humanos, cada ser tem a sua individualidade própria, a sua forma de ser, estar, de sentir ... de se rebelar ou não, de sentir raiva, medo, ou simplesmente impotência e desistência ...
Tenho absoluta certeza que atrás daquelas grades, naquela contagem decrescente, cada cão, cada gato, "sabe" exactamente que o seu destino foi aleatoriamente traçado, injustamente decidido pelos que deveriam ter sido os seus melhores amigos, os seus companheiros de percurso, e que pouco ou muito pouco, há já a fazer ...
E por isso também as suas posturas mostram claramente o seu carácter.

Os meus olhos bateram no azul-lilás glaciar do olhar daquele "husky", aparentemente distante, indiferente quase, deitado no chão da box que ocupava.
Penso  que "sorria" com  a  mesma  complacência  com que  Cristo  quando  na  hora da Sua  "passagem"   ( elevando o espírito ao Pai ), terá intercedido pelos Seus algozes : "Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem "!...  diz a Bíblia.

Os sons daquele "inferno" eram indescritíveis, aterradores ...
A movimentação dos animais em desespero, nos espaços exíguos que ocupavam, dantesca, irrazoável ...
Havia um uníssono pedido de socorro que ecoava, ribombava, fazia estremecer, como tempestade a aproximar-se ...
Havia um clamor angustiado e doído de abandono e de terror.
Havia uma dor pungente, que era impossível não nos assaltar o coração, fazendo-nos sentir pequeninos, medíocres, incapazes, fazendo-nos assumir vergonha até na alma ...
O ser humano no seu pior !!!...

A postura altiva daquele animal chamou-me a atenção.
Era inusitada, não era espectável, era superior.  Sem dúvida reveladora de um particular carácter.

A minha visita ao canil mostrara-se uma vez mais infrutífera.  DIVA também não estava por ali ...
Sentia-me atordoado, meio "adormecido", derrotado, meio "morto" por dentro.
Segui até ao fim dessa rua de jaulas.
Os cães em alvoroço ensurdecedor, saltavam o quanto podiam às grades, chamando, apelando, parecendo pedir clemência, analisando possivelmente o "facies" dos visitantes, como se cada um pudesse representar um possível salvador, um possível futuro, uma vida outra vez, uma derradeira "chance".
Cada pessoa, e eram sempre excessivamente poucas, não era mais que o limbo entre a Vida e a Morte, naquele mundo aterrador e fantasmagórico.

No regresso teria que passar de novo junto àquele cão que me fascinara, desafiara de certo modo ... me enternecera e me "tocara".
O meu coração havia acelerado ;  uma sensação estranha invadiu-me, uma "ordem" interior, martelava-me a cabeça.
Qualquer coisa que dentro de mim já se tornara distinta e irreversível, instalara-me um nó na garganta, comprimia-me o peito ...
Ele mantinha-se imóvel.  Apenas me olhava no azul cristal líquido das suas íris distantes, gélidas ...  Aparentemente impassível ... derrotado, não creio ...
Apenas "morrendo de pé", com a altivez e o orgulho das árvores, seguramente ...

Abeirei-me, olhei-o nos olhos e sussurrei-lhe ao ouvido :  "Se a DIVA não for encontrada, venho buscar-te na próxima semana" !...
( Estava marcado que esse animal seria abatido dentro de dias ).

A DIVA não mais fez parte da minha vida.
O destino decidira que seria assim.  Da  DIVA nunca mais tive rasto..
Apenas, também o destino decidira que as minhas lágrimas por ela, seriam secas pela partilha do amor que se iniciara nesse dia.
Assim é a vida ... Não se descreve, não se explica ... aceita-se e vive-se ...

ZEUS viveu comigo os anos que a saúde lhe permitiu.
Foi um dos maiores AMIGOS que tive o privilégio de possuir, um dos maiores companheiros, cúmplices ... um dos maiores, incondicionais e magnânimos afectos da minha vida., um dos seres mais "inteiros" que cruzaram o meu caminho !!

Deu-me um amor como só os animais sabem oferecer.
Uma grandeza de alma ( que eu sei que ele tinha ), num "rosto" e num coração de cão, que nenhum ser humano jamais alcançará !!!...

Anamar

quarta-feira, 6 de junho de 2012

" O RAPAZ DAS AMORAS "




Não se precisa do que não se conhece.
Sofre-se com o que se conhece, queríamos, podíamos ter e não temos ...

Ontem perdi estupidamente um casaco de malha de que gostava muito.
Estupidamente como afinal acontecem todas as perdas, e particularmente as que ocorrem por desatenção, falta de cuidado, ausência de concentração ... dispersão de espírito, da nossa parte.
O tal casaco foi pertença de uma das minhas filhas, creio, ou pelo menos, tanto quanto sei, ela ofereceu-o à avó, não sei se por "prenda" mesmo, se porque não o vestindo e pretendendo aliená-lo, entendesse que ele era adequado, e ficaria bem, no corpo da avó.
Contudo, sendo embora muito bonito, de uma malha de seda e um cair clássico impecável, não correspondeu ao entendimento estético da minha mãe.
Deixara-o portanto "adormecido" no roupeiro.

Aqui há uns tempos, não muitos ( creio que só tive o privilégio de o vestir talvez duas vezes ... tão curto o tempo que o detive ), a minha velhota resolveu sugerir-me que o trouxesse, para que o usasse ... "Uma pena estar ali enfiado" !...
Assim fiz, e achei-me sortuda por ter uma peça "nova" no meu guarda-roupa.
Ontem, pela tarde, indo para fora de casa talvez até à noite, e tendo-se instalado uma aragem meio desabrida, resolvi prevenir-me e levá-lo comigo, para o "que desse e viesse".
Coloquei-o entre as asas da mala, em tão má hora, e num daqueles gestos que fazemos quase mecanicamente sem que os consciencializemos, que terá caído sem que tivesse "gritado por socorro" !...

Essas posturas do ser humano, em que a cabeça se "despega" do corpo, sempre dão "bota".
As coisas tornam-se como que invisíveis, estão lá onde as colocámos, mas nós é que já lá não estamos ... e pronto ... fácil, fácil, deixam também de estar ...
Cresceu-me uma raiva imensa contra mim própria, pela incúria, desatenção, falta de previsibilidade ... tontice.

Contudo, perante alguma coisa que por mais que eu quisesse reverter não mais seria possível, pensei : " Não tinha que ser meu !  Por portas travessas veio ter-me às mãos, sem que tivesse estado inicialmente destinado a ser propriedade minha.  Aconteceu algo que foi absolutamente inalterável.  Nada a fazer !...
Neste momento, a sua história continua ... noutras mãos, alindando outro corpo ... abrindo certamente um sorriso noutro rosto " !!

Deixou de me fazer falta.
Não se precisa do que já não é nosso !  Não se deve sofrer por já o não termos, embora o tivéssemos amado.
O ser humano um dia parte, e pouco ou nada leva.
O desapego é uma virtude.  Quanto menos temos, menos ansiamos, menos sentimos falta ... mais completos nos encontramos, menos infelizes, porque menos insatisfeitos !
Como referi num post anterior ... assim disse Pessoa !!!

Devíamos treinar a simplicidade, a ausência de ambição desmedida pelo material, a ausência de prolixidade em que sempre tendemos a submergir-nos.
Em suma, devíamos ser como o "menino das amoras", da história que uma amiga mais ou menos me contou ...

Pedro e Samuel eram dois meninos da mesma idade, que haviam nascido no mesmo dia e viviam realidades opostas.
Pedro vivia num mundo de sonho, de super-abundância, de ostentação, de excesso ... de facilidade.
Habitava uma casa maravilhosa, rodeada de jardins mais maravilhosos ainda, com relvados perfeitos a perder de vista, flores cuidadosamente dispostas em ornamentação estudada, com lagos pejados de peixes vermelhos.
Pedro tinha as melhores roupas, os melhores sapatos, os melhores brinquedos, uma alimentação privilegiada, empregados a rodearem-no.

Samuel era um menino muito pobre, solto nos campos, entregue a si mesmo, tendo como únicos tesouros, os pássaros, as plantas, o sol e o vento que lhe desalinhava os cabelos, nas brincadeiras livres.
Do topo das érvores onde amarinhava ( rasgando os pés descalços e esmurrando os joelhos ), tinha o Mundo ao seu dispor ...
Samuel não conhecia para lá dos horizontes da sua aldeia.  Conhecia de  cór o nascer e o por do sol, e as poças de água, de chapinhar em dias de chuvadas insistentes.
Tinha o ribeiro para os mergulhos nas tardes quentes, e como brinquedos, a sua flauta de cana e o pião de guita, que o sr. Chico da mercearia lhe oferecera, num dia de boa disposição.
Tinha as fisgas que construía para fingir que apanhava pássaros, brincava com as rãs nos charcos e metia-as nas calças, para pregar partidas matreiras às irmãs ;  era o maior a caçar os grilos e os gafanhotos, e também jogava com os berlindes que cerravam os pirolitos da loja do sr. Chico.
Bolas, tinha quantas queria ... das meias muito rotas lá de casa.
Samuel ainda não ia à escola ; comia as maçãs das árvores altas, as maçarocas do milho, que tomava à socapa dos milheirais da vizinhança, e assava numa fogueirinha ...
Comia uvas das latadas, o prato de sopa ao dormir e o leite que sobrava da venda ... quando sobrava ...
Ah, claro ... e as amoras selvagens que apanhava  nos caminhos, e que não eram de ninguém ...

Por sobre os muros dos jardins da mansão onde Pedro vivia, conheciam-se através de conversas trocadas.
Tinham vidas completamente diferentes, corações infantis iguaizinhos, olhos puros, a ingenuidade e a nobreza das crianças.
Pedro era um menino triste, sem sonhos, sem horizontes, sem vontades.
Samuel era um "potro" livre, que inventava de ser feliz, que se comprazia com o nada de que dispunha, e com as amoras silvestres que apanhava às mãos cheias.

No dia dos respectivos aniversários, Pedro quis que o seu amigo vivesse um dia surpreendentemente diferente.  Por isso convidou-o a passá-lo consigo, desfrutando da sua casa e dum lanche, na sua "gaiola dourada".

Tudo foi oferecido a Samuel, que extasiava incrédulo, curioso, com os olhinhos amendoados, arregalados, no rosto bem vermelho pela surpresa e emoção.
Comeu até fartar, de tudo o que conhecia, não conhecia, nunca vira ou sequer sonhara.
Brincou com brinquedos que jamais imaginara, ouviu outra música que não a dos pássaros, fez corridas de bicicleta, assistiu às séries infindáveis de desenhos animados que preenchiam o tédio das longas tardes de  Pedro.  Pasmou com as figurinhas lindas e coloridas, dos livros que povoavam o imaginário do menino ...
As bolas de jogar, estranhamente eram de borracha.  Não tinham a "sensibilidade" das suas, inventadas, de trapos ...
E os soldadinhos não tinham fisgas nas mãos, mas fusis e espadas ...
Não sujou os pés na terra, porque estava obviamente calçado com as únicas botas que possuía.
Não caçou pássaros, nem apanhou grilos ou gafanhotos ... menos  ainda rãs, porque na casa de Pedro não havia charcos.
Não ficaria bem subir às árvores do jardim, e por isso, os joelhos foram poupados.  A emoção, também !...

O dia chegou ao fim, e com ele chegou a hora de regresso de Samuel.
Cansado, eufórico, com o "João Pestana" a pesar-lhe nos olhinhos e o coração ainda aos saltos, o menino despediu-se do amigo.

Como última gentileza, os anfitriões procuraram saber da satisfação de Samuel pelo dia que passara na sua casa, inquirindo da sua alegria e sugerindo à criança que comesse  algo mais, antes de partir ;  alguma coisa que ainda fizesse gosto ...

O rapaz ficou repentinamente sério e circunspecto, como que analisando no seu interior, o que poderia faltar-lhe, no meio de tudo e de tanto.
Instado a responder, arqueou as sobrancelhas, elevou os ombros, e depois de uns minutos em silêncio, disse, timidamente baixinho :

" o que realmente me apetecia ainda ... eram só umas AMORAS " !!!...

Anamar

sexta-feira, 20 de abril de 2012

" O HOMEM DAS ROSAS "- PARTE II



Maribel sempre continuava junto ao portão.

Já não lembrava há quanto tempo esborrachava o narizito na cancela.
Pelas cinco, mais coisa menos coisa, esticava o pescoço, alongava o olhar até ao fundo da estrada ;  até lá onde os seus olhitos enxergavam, ela perscrutava atentamente.

Maribel não percebera, se aquela rosa branca havia sido uma despedida ou antes, uma promessa de regresso.

O "homem das rosas", que passava emudecido pelo caminho, sempre apressado, sempre silencioso, sempre fechado em pensamentos, aquele que carregava o mundo nas costas ( que Maribel bem via ... ), deixara de aparecer.

Ele já estava na sua vida, mesmo que o não quisesse ; era ele que a levava ao portão pelas tardinhas, depois da rega !
Habituara-se à sua presença ;  afinal, ela enchera-lhe a vida ;  afinal, ela dera-lhe um significado ;  havia uma razão para que o seu coração pequenino disparasse, quando o dia  começava a tombar e a fresca se instalava .

Aquela personagem era um mistério. 
Era uma personagem hermética, com o seu cabelo branco, o seu passo urgente, aquele olhar miudinho, aquele silêncio desalentado, aquela rosa que sempre levava consigo ...

Todos os mistérios têm o poder de espevitar a curiosidade, fazem cócegas nos miolos.
E afinal, Maribel era uma criança e as crianças ainda são mais "espevitadas", mais criativas, mais sonhadoras .

A menina "decidira", que fosse quem fosse, o "homem das rosas" já era seu !!!
E era-o  porque já lhe entrara na vida, pelas palavras mais sábias, mais profundas e mais doces, que se podem dizer ... as que constituem a linguagem do coração.
Essas, são as palavras que não precisam pronunciar-se para se entenderem, não precisam balbuciar-se para se sentirem ...
Basta o olhar ... e esse, sempre que o "homem das rosas" o trocava com Maribel, deixava-lhe uma mensagem, fazia-lhe uma promessa, aquecia-lhe a alma.
O sorriso tímido que esboçava e com ela partilhava, era também um afago, um embalo, um carinho ...

E "decidiu" uma vez mais, como todas as crianças sempre decidem, que, se entrara, também não sairia nunca mais, porque o que é das crianças normalmente é para toda a Vida!
Ele era o seu segredo, era o seu "tesouro", era o seu mistério a decifrar ... porque,  era por ele que ela esperava todos os dias ... cada dia !!!...

E passaram dias, e mais dias, muitos dias ...

As cameleiras voltaram a adornar-se de rosa, as magnólias abriram as campânulas aos colibris atrevidos ... os castanheiros encheram-se de folhas, de flores, e depois, de ouriços, no seu caminho.
Aos Invernos seguiram as Primaveras, e de novo as Primaveras e de novo as Primaveras !...
Depois das chuvas, veio o sol, as primeiras flores amarelas sem nome, reabriram na falésia ...
E tudo sempre recomeçou.

Recomeçou, como o sonho recomeça todos os dias, sempre que o quisermos.
E os sonhos, nas crianças, são os mais legítimos sonhos, porque  são sonhos  puros, não sonhos serôdios, cansados, improváveis, como o são os sonhos esquecidos  de  gente grande, que já se desiludiu muito, que já sofreu muito ... gente a quem  tiraram o luar da cabeceira  da cama  e a quem apagaram as estrelas no céu ...

Algo dizia à menina, que valia a pena esperar ...
Uma andorinha tinha-lho sussurrado ao ouvido, assim que chegou da ausência sazonal.  As borboletas, recém-saídas dos casulos, dançavam voluptuosamente ao seu redor, e Maribel pressentia mais que nunca, que aquela rosa branca, que inesperadamente  um dia  lhe aquecera o coração, não tinha sido realmente uma despedida ... mas sim, uma promessa de regresso !...

Naquela tarde, como em todas as tardes da sua vida de menina, pelas cinco, mais coisa menos coisa, esgueirou-se uma vez mais até à cancela.
O caminho por entre os pinheiros  alongava-se silencioso, rumo à curva próxima, completamente vazio ... absolutamente vazio.
A amenidade da fresca já descia ... a tarde declinava ... e seria só mais uma tarde, se não se tivesse iluminado repentinamente, se o aroma das glicínias em flor, não tivesse subido no ar, perfumando intensamente o jardim, se os pássaros não tivessem saído inesperadamente do silêncio letárgico pela aproximação da noite, se um imenso arco-íris não se tivesse desenhado no céu ( mesmo não havendo sol nem chuva ) ... se o "homem das rosas" não tivesse dobrado o cotovelo da estrada ...

... finalmente com um sorriso rasgado no rosto, finalmente não ensimesmado, finalmente não carregando mais em si, a imensidão do Mundo, finalmente "saboreando" cada pedra do percurso, lentamente, sem pressas, como quem tem finalmente um destino determinado na sua estória, a cancela onde Maribel sempre o esperava ...

Tinha-o esperado  tarde após tarde, dia após dia ... Primavera após Primavera ... sem cansaço, sem desistência, simplesmente porque já era feliz só por "saber" que ele chegaria um dia, só por acreditar que, tal como no seu sonho, ele lhe iria depositar nas mãos, não uma, mas uma braçada de rosas vermelhas ...

Tinha valido a pena !!!...

Anamar

sábado, 31 de março de 2012

" A VISITA "


O meu " pequeno príncipe" esta noite aterrou-me na almofada.

Com os seus olhos doces de menino grande, trazia na mão uma rosa amarela, da cor do sol.
Conversou longamente comigo, com cuidados de não me tirar do sono, e sussurrou tantas coisas aos meus ouvidos, que embora continuasse dormindo, acredito ter acordado.

Coisas de menino ... coisas de príncipe ...

Vinha do país do sonho, do asteróide do amor ( que eu julgo na verdade já só existir num asteróide ).
Trazia consigo uma rosa dos jardins que plantara, mas contou-me dos miosótis azuis que lhe povoavam a vida.
Como todas as crianças, o rosto era iluminado, os olhos riam, as palavras bailavam-lhe nos lábios como diabinhos à solta, e as histórias saltavam-lhe da boca, à medida que o coração se lhe abria.
Sim, porque o "pequeno príncipe", ao contrário de nós, não tinha cadeado no coração ... o que aliás eu achei profundamente estranho !

Falou-me da beleza das histórias nas primeiras páginas, e de como elas também levam os príncipes pelo mundo da fantasia.
Disse-me como era feliz, por brincar de roda com as raposas, os gansos e os estorninhos, e como a alegria lhe inundava a alma, quando de manhã, de regador na mão, tinha mais madressilvas a despontar pela relva !

O meu príncipe não era exigente.
Pequenas coisas enchiam o seu reinado.
Coisas de "criança - príncipe de asteróide" ... e não coisas de Homens ...

As crianças sorriem todos os dias, basta que o sol nasça, que a lua enfeite o escuro pelas noites, ou que o grande arco de todas as cores, desenhe no céu um trampolim de salto ...
Claro que a chuva ou até mesmo o orvalho, nos musgos das montanhas, também as fazem rir em gargalhadas, rebolando-se neles displicentemente ...

Os Homens são demasiado sérios.  Carregam pesos que não suportam, nas costas e no peito, e julgam que podem ... Mas não !...  E por isso sempre choram ... choram muito !...
Também não têm tempo para os jardins de rosas e miosótis.
Correm o tempo todo, sempre de olhos fechados, e por isso vêem pouco à sua volta !
Sempre de cadeado nos corações, nunca deixam que os primeiros raios de sol, em cada manhã, lhos aqueçam !...

Os Homens já não acreditam em muitas coisas.  Não acreditam mesmo em quase nada !...

Não acreditam em recomeços, em estradas largas com horizontes, em marés que vão, mas que voltam de novo.
Não têm mais esperança sequer, que por cada Primavera, os pássaros cheguem, ou que as tamareiras voltem a ter frutos, primeiro verdes, depois laranja, de maduros ...
Não sabem mais ouvir histórias ...
Esqueceram todas as que lhes contaram à cabeceira, quando crianças ... e histórias novas, não fazem o seu estilo !...
Os Homens já não sabem onde ficaram as crianças que outrora foram, e não querem voltar a sê-lo outra vez !...

Os Homens têm medo, muito medo ... coisa que o "meu príncipe" não sabe bem o que é !
Afinal, ele tem Amigos, e com os amigos a gente divide o riso e o choro.
O medo não deixa que os Homens caminhem, para-lhes os movimentos.
O medo não deixa os Homens serem felizes, porque sempre desconfiam que o não serão ...
E faz com que fique escuro no seu planeta, tão escuro que não enxergam sequer, como é bonita a aurora que se espreguiça no firmamento, ou como o seu jardim se engrinaldaria de alegre, com uma simples palavra ou carícia !...

Contei-lhe da minha gaivota ... o que não o surpreendeu.  Afinal, como ele, eu "cativara-a", e "sempre se é responsável pelo que se cativa " - lembrou-me !
Falou-me de como as rosas sempre o esperam para lhe contarem as novidades, de como a raposa o espreita na curva do caminho ... descontando por cada batida do seu coração, cada instante que está sem ele !  E como já fica esfuziante de felicidade, só por saber que ele virá, ou pelo menos por saber que ele está lá, que ele existe e a ama ...

Os Homens não entendem nada destas coisas, de batidas de corações, de risos e gargalhadas, só porque se tem AMIGOS ou se sente AMOR ...

E o "meu príncipe" foi ficando.
Eu ouvia-o e não o ouvia.  Eu, não o ouvia, mas sentia-o !...

E a Rita sentou-se ao lado dele, na minha almofada.
Essa, é bicho ... e bicho entende lindamente coisas de crianças, e mais ainda, de "crianças - príncipes sábios" !...
A Rita percebia tudo, porque também ela às vezes não me entende.  Afinal, eu pertenço ao tal mundo dos Homens, seres esquisitos, feios e doentios!...
Esses são os dias em que ela chega em silêncio, muito séria, sorrateiramente, fica perdida a olhar-me, com os bigodes franzidos, e com um ponto de interrogação em cada olho.
Deita-se coladinha a mim, como se quisesse aquecer-me o coração, visto que ela o sente absolutamente gelado ... E abana a cabeça quando as lágrimas  me descem, como quem diz :  "Vá-se lá entender esta gente " !!!...

A Rita não fala como o "meu príncipe",  mesmo na calada das madrugadas.  Não fala, mas conhece !...

Também ela é sábia, também ela é mágica, também ela sabe miríades de coisas ... mesmo não tendo jardins  de rosas e miosótis azuis, não dançando danças de roda ...

... mesmo não vivendo nem no país do sonho, nem no asteróide do Amor !!!...

Anamar

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

" É A VIDA !!!... "


As torres cónicas do palácio da vila, sobranceiras ... a Regaleira lá mais para cima ... o Paris, na esquina com a esplanada amena ... A "Periquita" ... claro, a "Periquita", sem a qual Sintra não seria Sintra ...
Em ângulo mais feliz, a Pena ou o Castelo dos Mouros a dominar as vistas, e sempre sol regateado, porque Sintra só é generosa em amenidades no roçar de Primaveras e Verões, e a Primavera ainda não chegara nesse ano.
Os coches da romântica subida ao alto, parados, a aguardar hipotéticos clientes ... Eça a pairar por ali ... sempre !

Ela "vestira-se" de "turista" ociosa nesse dia.
Decretara feriado para si, e de mochila nas costas, ténis nos pés e câmara fotográfica ao pescoço, decidira que Sintra era o destino mais adequado para o seu espírito meio melancólico, meio cá, meio lá ... ausente que estava em pensamentos.
Não conseguiria definir-se, se o quisesse.  Sentia-se "pairar" meio "amodorrada", como o silêncio da Serra, que era a embalagem mais que perfeita, para o tanto que era aquela terra, uma prenda com que resolvera presentear-se nesse dia !

Por muito ... presente, passado ... a sua vida colava-se indiscutivelmente àquele chão.
Destino de muitos fins de semana, Verão ou Inverno, sempre as "propostas" que lhe eram oferecidas, inegavelmente aliciantes.
O Inverno, de neblinas cerradas, de frio "molhado", convidava a luvas, cachecóis, gorros e golas empinadas. E convidava também a mãos em bolsos trocados, na busca de conforto quente, e por quente, doce ...
No Verão, nos dias ensolarados de ar leve, era a frescura que descia da penedia, o convite generoso a pausa, a café, a leitura preguiçosa de livro ou revista.

E revisionava a sua vida nos últimos anos.
Tinha-a emoldurada, cativa, como o Palácio Real o está, em ângulo particular de Seteais ... passem dias, passem anos ... passem séculos !
Há muito que a tinha retida em caixilhos inventados, que a tinha "congelada", como o que aguarda fim de prazo de validade, que a tinha em hibernação como frase deixada entre parêntesis.

Era e não era ...

Tinha dias que caminhava em estradas amplas, decididas.
Tinha outros em que os caminhos estreitavam, eram de terreno irregular e titubeante, entre encruzilhadas, veredas confusas, trilhos sem saída.

Uns eram ladeados de prímulas, lírios roxos, macelas, violetas selvagens, chorões, miosótis ...
Eram penhascos, arribas, falésias, donde sempre se divisava um mar azul, que no horizonte se confundia com um céu igualmente azul.
E ambos, quer céu, quer mar, tinham dias de "carneirinhos", ou dias zangados, em que as tonalidades escureciam e se cavavam entre os cinzas indefinidos e os verdes agrestes, de "briga séria" lá no alto.

Outros desembocavam em areais de bonança ... praias de solidão, onde caminhava descalça, semi-nua, cabelo ao vento, na babugem da rebentação, como uma menina atrevida e provocadora.

Nuns e noutros caminhava ... O destino, é que muitas vezes ou quase sempre, desconhecia ...
Esse, flutuava como pena largada ao sabor da aragem, como a gaivota ( companheira de casarios insípidos ), que se soltava de asas aproveitadoras dos golpes de vento, espreguiçada e dolente ...

Era muito mais espectadora de vida, do que intérprete no palco da mesma.
Já desistira de lhe encontrar lógicas, definições, sentidos.  Sobretudo, sentidos que lhe parecessem sentidos mesmo ...
Sabia-se "à janela" da "dita", a vê-la passar ...
O diabo é que ela passava depressa demais ... ventando ... insensível ao que empurrava para diante !

E ficou-se por ali, numa nesga de sol envergonhado ... como gato ronronante em telhado quente.
A tarde ameaçava expirar-se. O sol já só batia no cocuruto das árvores da serra.
Os penedos, continuavam desafiadores, em equilíbrio instável, trepando pelas encostas ... Os musgos e os fetos vestiam muros, vestiam troncos, vestiam pedras ... pedras que sempre ali estiveram e estariam, antes dela e depois dela !...

E a Vida far-se-ia, alucinantemente ...
Por ali, só ela "passaria"....tudo o resto continuaria indiferentemente igual !!!

Anamar

NOTA : O título deste post adveio de uma conversa havida com um amigo, em que de acordo com o diálogo que mantínhamos, ele proferiu a frase "É a Vida"!!.......e "É a Vida"!! foi exactamente o título mais adequado a apor a tudo o que escrevi ... Por isso o adoptei. Obrigada !

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

" MARGOT "


Margot subiu ao piso de cima.
Estava cansada, exausta mesmo, mas a voz de Giselle ordenara ... não havia escolha. Mais um cliente aguardava no quarto do primeiro andar.  Não havia outras "meninas" disponíveis, e mesmo que houvesse, ele escolhera-a a si !
Naquele momento, como em quase todos, quereria morrer.  As coisas só se tornavam menos penosas, quando "metia" uns copos, da garrafa que escondia entre os seus parcos pertences.
Com eles se anestesiava, com eles se atordoava ... através deles, esquecia.

A sua vida era curta ainda, mas longa demais em sofrimento.
Lembrava os tempos em que na pequena casa em que vivera, com o quintal das sardinheiras e o jacarandá ao fundo, sonhava que os seus sonhos se cumpririam um dia.
Gostava de se sentar à tardinha, quando a canícula se abatera ( e já corria uma breve aragem abençoada ), debaixo da única árvore do quintal, jardim sonhado por si ...
Fora ela, com as suas mãos que a plantara, e todos os anos, como que agradecida, ela se adornava pujantemente de lilás, se enfeitava, como quem vai p'ra uma festa !

A planície de sobreiros e azinheiras, prolongava-se sem horizontes, para além do quintal, até onde a vista alcançava e a terra tocava o céu !
As andorinhas, as garças, as cegonhas, os cucos, os melros, no início das Primaveras perambulavam por ali ... pássaros livres, sem medos ou limites.
Os campos sempre se bordavam de macela, papoilas, esteva ... tufos de giestas ao fundo, junto do ribeiro que por lá corria ; a urze também se perdia, salpicando o montado ...
Flores da sua infância, quando corria solta pelas terras, feito um potro sem freio, para apanhar raminhos e oferecer à mãe !!!

Onde estavam hoje essas flores ??
Onde estava hoje a mãe, o quintal do jacarandá, a brisa da tarde que acalmava o fogo que emanava da terra ??!!
Tudo perdido lá para trás, numa vida que Margot raramente queria lembrar, raramente podia lembrar !

Hoje a sua realidade era aquela casa de pesadelo, aqueles homens de pesadelo, até o seu nome era pesadelo que a atormentava em noites sem sono ...

Margot subiu ao piso de cima.
Entrou no quarto, iluminado apenas por uma meia penumbra do dia que começava a cair.
Ele estava sentado na cama, de costas para a porta, como que preso em pensamentos.  Quase não deu por ela entrar ...
Ah !  Era "aquele" homem, quase o único homem que a tratava como gente, naquela casa.
O homem que a escolhia, e muitas vezes apenas a acolhia nos braços, e no colo que lhe tinha ficado tão longe !...
Nunca o percebera, não sabia sequer o seu nome, não sabia por que ele sempre a preferia às outras, mesmo quando disponíveis.
Não conhecia os seus segredos íntimos.
Ele falava pouco de si, mas do pouco que falava, Margot sabia-o sensível, doído, com um peso de alma inexplicável.
Costumava aparecer meio cabisbaixo, entristecido, parecia, mas tinha uma forma doce de a olhar, de a "ver" ... até de a acarinhar ...

O "homem sem nome",  tinha dentro de si um segredo do tamanho do Mundo, que devia pesar-lhe e o tornava muito "pessoa" ...isso, Margot  pressentia-o claramente.

Naquela casa, naquela vida, era difícil não se ser "invisível", irrelevante, nada !
Era difícil que alguém pudesse ser uma "mulher", verdadeiramente para alguém ... pouco mais que objecto, coisa de utilidade prática, vaso onde se despejava toda a imundície das estórias e das vidas.
Tudo era demasiado impessoal, doidamente impessoal, agressivo e triste !

Naquela casa, Margot era simplesmente a "Margot", uma "menina" mais, sem história, sem passado, sem destino ...
Também, a quem interessaria que ela tivesse tido um quintal de sardinheiras com um jacarandá ao fundo ?!
A quem interessaria que ela tivesse gostado de ouvir os trinados dos pássaros, no fim das tardes de Agosto, quando o calor amainava ?!
A quem interessaria que ela tivesse tido mãe, a quem oferecia raminhos de flores catadas nos campos, quando por eles corria, em criança ?!
A quem interessaria que Margot tivesse sonhado um dia, e acreditado, que os seus sonhos viriam a concretizar-se ?!
A quem interessaria que Margot não fosse de facto Margot ?!

Olhou-o, esboçou um sorriso ( normalmente o seu sorriso nunca era feliz ), e acariciou-lhe lenta e docemente a cabeça ...

Foi então que o "homem sem nome" lhe estendeu o mais bonito ramo de margaridas silvestres, que colhera para ela ... As primeiras, desabrochadas por entre os frios do Inverno agreste, que ainda se fazia sentir !!!...

Anamar

domingo, 29 de janeiro de 2012

" O UIVO DO LOBO "


O céu estava escuro ... não se via uma só estrela.
Podia dizer-se que era uma noite de breu, não fora aquela imensa bola, prenhe de luz, que iluminasse o recorte da mata, junto à casa.

Cá dentro, era apenas a luz da lareira ainda acesa que iluminava a penumbra da sala.

Íngride "cutucava" as últimas brasas do lume, para as "espertar".
Adorava aquele pedaço de dia / noite, em que naquela cabana da montanha, feita totalmente da madeira dos pinheiros, abetos e faias que a rodeavam, se fazia finalmente silêncio, e a paz reinava.
Todos já haviam ido dormir.
Ali, estava só ela, a luz difusa das últimas chamas bruxuleantes, um CD a tocar como que "ao longe", os seus pensamentos, as suas reflexões.
Normalmente, nessas noites de silêncio e paz, de ausência de "vida", a sua, costumava desfilar-lhe, feito um filme que deslizasse lentamente frente aos seus olhos.

Era uma noite de lua cheia, daquelas em que, sendo noite cá dentro, reinava uma poalha clara, que inundava toda a floresta, e a montanha por detrás da cabana.

Íngride sabia de cór aqueles sítios.
Poderia caminhar lá fora agora mesmo, que traria no cesto as mesmas braçadas de flores silvestres que colhia durante o dia.
As bétulas, os mirtilos, azevinhos, amoras silvestres ... os musgos, os líquenes, sabia-os à volta da casa, ladeando os caminhos da mata.

A montanha ainda guardava os gelos perpétuos, do Inverno rigoroso da Noruega, que cobre tudo com as neves que sempre lá ficam, ano após ano, mesmo sendo já Março, e os dias amanhecendo claros e luminosos.
As sombras dos abetos, dos pinheiros , das faias e dos carvalhos, adensavam-se à medida que a montanha subia.

Íngride sempre os ouvia nestas noites.

O seu uivo territorial, ecoava no silêncio da madrugada.
Os lobos sempre uivam à lua cheia.  É um cântico ou um choro ... é algo mítico, com uma magia própria ... uma canção inacabada ... uma dor não descrita.

Desde criança, quando subia à cabana para passar algum tempo, que "convivia"  inevitavelmente com a sua presença .
Ela não os via, mas sentia-os claramente . Havia uma "cumplicidade" entre ela e eles, uma conivência, uma familiaridade.
Eram presenças mágicas na sua cabeça, desde as histórias infantis , e habituara-se a amá-los e a respeitá-los ...
Março era época de acasalamento. Os machos alfa delimitam território e escolhem fêmea.
Os lobos acasalam para toda a vida . Têm um sentido gregário e familiar poderosíssimo, e isso também a fascinava . Os lobos, também nisso ensinam os humanos ...

Colocou um xaile de lã sobre as costas, abriu mansamente a porta da cabana para que não rangesse nas dobradiças, e esgueirou-se pela noite gélida, lá para fora .
As sombras envolviam tudo e envolviam-na também, e a luz daquele imenso luar, projectava-lhe uma sombra agigantada e fantasmagórica, no caminho.

Íngride teve sempre, sem o perceber, uma relação estranha com a lua cheia. Eram duas "mulheres" que se "entendiam", que se "desafiavam", que se "provocavam".
Vieram-lhe à memória as histórias contadas entre dentes pelo povo, dos homens que nas encruzilhadas, viravam lobos, em noites de lua cheia, para só voltarem à condição de humanos quando o dia raiasse ...
O "lobisomem" é uma figura da mitologia, que atravessou gerações ...

Apoiou-se displicentemente na cancela, e ficou simplesmente ali, estática, a "escutar" o silêncio, a ver o fumo que ainda saía da chaminé da sala, a deixar-se inundar por aquele clarão, que tornava a noite em dia, e "sentir" no cimo do monte, a presença deles ... os reis da floresta ... e o seu "choro" ou o seu "grito", lançado lugubremente à lua ...

Em criança, a sua avó, também à lareira, também numa noite como essa, também naquela cabana de gerações, contou-lhe a lenda do "uivo do lobo", em noites de lua cheia.
Era uma história tão linda, tão comovente e tão enternecedora, que jamais a esquecera ...

Segundo a lenda, em tempos remotos, um lenhador e sua mulher viviam junto a uma floresta.
Haviam tido uma filha linda, tão linda, que decidiram preservá-la de qualquer contacto humano, por receio que pudesse ser raptada, coisa que os senhores poderosos costumavam fazer nessa época.
Assim, a jovem cresceu no estrito convívio de seus pais e dos animais da floresta, que amava por demais.
Sempre que alguém se aproximava da casa, corriam a trancar a filha numa cave, que haviam construído para esse fim.
Inevitavelmente nestas coisas, há um dia em que elas falham ...
E um dia, com os pais atarefados e distraídos, um jovem pastor aproximou-se da casa deles, e encontrou a menina no quintal.
Por seu lado, pela primeira vez, ela viu um rapaz da sua idade.
O espectável aconteceu, e apaixonaram-se um pelo outro.

A moça, cheia de avisos e reprimendas dos pais, sobre o deixar-se ver por alguém, correu a esconder-se, não sem que antes, os olhares trocados entre eles, deixassem uma promessa muda.
O tempo foi passando, e sempre arranjavam oportunidades para se verem e falarem, sem que os pais dela se apercebessem.
Como a situação se tornava cada vez mais insustentável, o pastor encheu-se de coragem, e foi falar com os pais da menina, pedindo-a em casamento.

Irritados e desgostosos pela desautorização havida, reagiram muito mal,  e resolveram castigar os dois namorados.
Disseram ao pastor que voltasse à noite, para ter a resposta, e como a mãe da menina era conhecedora dos poderes e segredos de todas as plantas da floresta, preparou uma infusão com poderes de encantamento.
Bebendo-a, o rapaz transformar-se-ia num animal da floresta, e dessa forma separavam-no da sua filha.

Assim foi.

À noite, quando o pastor voltou, ofereceram-lhe a bebida, dizendo ser um licor caseiro por eles preparado, e logo ali ele se transformou num lindíssimo lobo, que desesperado, fugiu.
A menina, contudo, da sua cave vira pelas frinchas das tábuas o que acontecera ao seu amado, e mal os pais a libertaram, sem que tivessem tempo para a impedir, bebeu o resto da poção mágica, na esperança de se juntar ao seu amor.

Apenas o feitiço produzido no rapaz não foi igual para a menina, e esta transformou-se ali, numa imagem fugaz, semelhante a um raio de luar.
Brilhou por momentos, e logo que algumas nuvens cobriram a lua, desapareceu.
Entretanto o lobo encantado que voltara para perto da casa,  soube o que havia acontecido à sua amada, lançando então um atormentado grito de dor, desespero, saudade e tristeza ... um uivo doloroso que ecoou por toda a floresta.

E é por isso que, desde então, os lobos uivam ao luar.
Julga-se que o encantamento nunca foi desfeito, pelo que, cada vez que um lobo uiva à lua, há um raio de luar em forma de mulher, que o vem banhar de luz ...
E os amantes, acabam assim, por se reunirem de novo, em cada noite de lua cheia, e por toda a eternidade ...

Íngride não deu pelo correr do tempo, mergulhada que estava no seu pensamento.
Também não deu pelo entorpecimento álgido que lhe tomara o corpo, pelo frio atroz da noite ...
Igualmente não se apercebeu, que também nessa noite as nuvens subiram no céu e cobriram a lua ...

Apenas despertou do "torpor" mágico que a dominava, quando bem à sua frente, na clareira do bosque junto à cabana, um lobo, um imenso lobo cinzento de olhos doces e tristes, a olhou longamente ...
Era uma figura imponente, era um ser superior ... parecia um ser de solidão e sofrimento ...

Ergueu a cabeça em direcção aos pálidos raios de luar que ainda atravessavam o firmamento escurecido, e de uma forma doída, sentida, desesperada e saudosa, lançou um uivo doloroso e profundo que ecoou por toda a montanha ...

Nessa noite, Íngride não teve mais dúvidas ...

                               
Anamar

sábado, 31 de dezembro de 2011

"O HOMEM DAS ROSAS"


O homem das rosas passava quase sempre.

Cabelo todo branco, olhos miudinhos por detrás de umas lentes finas ... e uma rosa na mão.
O rosto sério e determinado, parecia, tinha uma qualquer luz a inundá-lo, lá isso tinha!

Maribel sempre o via passar, do seu portão.
Quase já fazia parte da sua rotina, vê-lo dobrar a esquina, de passo estugado, como se tivesse urgência de chegar a qualquer lado. Maribel não sabia onde.

Olhava-o atentamente e seguia-o com os olhos, desde que a sua silhueta surgia ao fundo da estrada, até que sumia de novo na outra curva.
Àquela hora, a menina descia o caminho, apoiava o queixo na cancela, e "estendia" os olhos pela estrada.
Sempre o coração lhe dava um saltinho no peito, quando ele uma vez mais não falhava.
Aquele mistério era um segredo que não contava a ninguém, e que começava a iluminar-lhe os dias.
"Aquela hora"  passou a ser  "aquela hora" ... e a inquietude dominava-a, até que o coração repousava fnalmente !

Engraçado aquilo !!!...

Entre a menina e o homem dos cabelos brancos, estava tácita e invisivelmente criado um "laço" ...

Um dia ele sorriu, porque afinal para ele, aquela menina também era um mistério.
Por que sempre estava ela àquela hora, naquele portão, com aquele olhar curioso?!
Por que parecia "segui-lo" desde que se avistavam, até que ele dobrava o caminho?!

O tempo foi passando, os dias e as tardes seguiam o seu percurso.

O homem das rosas tinha sempre pressa de chegar ao destino. Maribel nunca soube qual!
Ele nunca tinha tempo para esboçar mais do que um sorriso ... Ainda assim, era um sorriso triste ... contudo doce ... contudo quente ...
Haviam "atado" as suas vidas, por uma flor ... O homem "cativara" a menina, e a menina "cativara" o homem das rosas ...
E, como no "Pequeno Príncipe", sempre somos responsáveis por quem amamos ... e por isso, se pudesse, a menina ter-lhe-ia oferecido uma rosa do seu jardim, para o fazer sorrir mais, e o "prender" para sempre ao seu portão!

E o tempo continuou passando, os dias e as tardes seguiam o seu percurso.

Para ela, aquele homem tornou-se num "menino" da sua idade, passou a ser o sol da sua rua ... e Maribel também não percebia porquê ... mas sentia!
E o que se sente é que importa !  E mesmo sendo cegos os olhos, é preciso "ver" com o coração !...

Para ele, aquela menina, de queixo esborrachado na cancela, era uma espécie de arco-íris que se acendia no céu ...
Mas, os arco-íris não se prendem ... são livres ... e escondem-se em dias que não são de sol e chuva !
E por isso, ele acreditou que aquela "pintura" no firmamento, que ele criara na sua cabeça, era coisa que nunca alcançaria ...
Não acreditou que pudesse lá chegar, mesmo que fosse nas asas de uma borboleta, porque essas são livres também, e chegam a todos os sítios e a todos os corações, onde os homens não conseguem alcançar ... e por isso ... o "homem das rosas" mudou de caminho ...
Tristemente esqueceu que nos tornamos eternamente responsáveis por aquilo que cativamos ...

Um dia, ao amanhecer, quando nem os pássaros ainda tinham acordado, Maribel foi até ao portão ... outra vez ...  Sempre continuava esperando, dia após dia, tarde após tarde ...

Bem na sua frente, estava uma rosa branca, branca como a neve que é fria, branca, mas pura, como o coração de uma menina ...
E estranhamente, a rosa conseguiu aquecer-lhe, quase queimar-lhe as mãos e a alma !...

O homem nunca mais voltou ... e por isso, não pôde ver as lágrimas da menina a rolarem por um rosto infantil, mas já desencantadamente adulto ...  Não pôde ver os seus olhos que ficaram tristes, na sua rua sem sol ... porque nunca o percebeu ...  Não pôde ouvir os soluços do seu coração ... não pôde ...

Mas também ... ele tinha sempre pressa, não era ??!!...

Anamar