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terça-feira, 18 de setembro de 2012

" DIREITINHO ... DIREITINHO !... "



Estou no café habitual, à hora habitual, no pequeno almoço também sempre igual, numa espécie de destino que se começa a cumprir, também igual, pela manhã.
Como se sabe, tudo é igual neste café, a minha vida também parece vestir-se das mesmas coisas, todos os dias.

Estava a ler ;  hoje não me sentia com razão suficiente nem necessária, para escrever.
Necessária talvez, porque afinal, numa vida tão silenciosa quanto a minha, o papel são os olhos, os ouvidos, e até a boca que de vez em quando me fala.
No MP3, não sei quem, canta numa voz rouca e sensual, que se adivinha ( ou eu adivinho ), ser de um homem maduro, cabelo grisalho, daqueles que têm um timbre intimista nas flexões da voz, logo nas primeiras duas frases ;
daqueles cujas palavras vêm embrulhadas em papel térmico, para nunca perderem o calor, aquele calor que estranhamente nos instala  um friozinho, que tem o condão de chegar e subir, ou chegar e descer ... nunca sei !!...

" And I love you so " ... o tema !...

Normalmente esses homens têm vários atributos.  Falam baixo, com sensualidade, fazem "promessas", e despertam sonhos nas entre-linhas ou nas entre- palavras ...  e despem, despem despudoradamente  uma mulher,  de  imediato,  porque  têm  olhar  de  RX ;  atravessa-nos sem pedir licença, e com poderes de que, nem a capa do Super-Homem nos protegeria ...
De quando em vez cruzamo-nos com personagens dessas, que mesmo com um rio de permeio, deixam esvoaçar uns quaisquer fluidos, tipo poções mágicas, que não sei se é a isso que chamam de "química", feromonas, ou sei lá o quê !!!
Eles, os fluidos, varrem o espaço, atravessam distâncias, progridem através de matéria, que estudámos na Física, ser impenetrável.
" Dois corpos não podem ocupar simultâneamente o mesmo espaço ", dizia Pauli no seu princípio da exclusão.
Bom, mas essas individualidades não são seguramente matéria, serão energia, obras do "capeta", seres meio-humanos, meio demoníacos !...

Agora, por que raio estou eu a falar destas coisas ??

Simples !...
Já ontem, curiosamente, a mesa onde me sentei, separava-se de outra, lado a lado, apenas por um anteparo de vidro, o qual divide o café em zonas de fumadores e não fumadores.
E tal como ontem, essa outra mesa, foi ocupada por um casal, de idade indefinida.  ( não tenho jeito nenhum para fazer estas avaliações ... )
Ele, do que vi,  ( e não olharia senão discretamente, óbvio ), com o tal aspecto sedutor, com o tal cabelo embranquecido, figura agradável.
Aposto que tinha voz rouca, baixa, "safadamente" convidativa ...

Ela, sem nenhum traço referenciável.  Um ar descuidado, uma mola plástica a apanhar atrás o cabelo, que não tinha mão de cabeleireira, também já não nova, e vestida modestamente.
Não seria por aí !...
O que me chamou mais a atenção foi o aspecto meio abandalhado, que antigamente se diria ( não me interpretem mal, por favor ; não é nenhum tipo de segregação ou superioridade ), quando as havia ... e vocês sabem que este termo era da linguagem comum ... ar de "sopeira" ( sem desprimor para as mesmas ) !

Eu estava de cá, eles de lá, ela, de frente para mim ...

Eu via-os, eles, não !
E não, porquê ?
Porque estavam num estado de graça tal, que tenho a certeza, nem davam por que estavam no café.
Pairava por cima deles a palavra "romance" ... e recente ( Por que diabo é que só os romances recentes, conseguem conservar a frescura das histórias cor de rosa ??!! ).
De mãos dadas, que só se descruzaram, quando o empregado inconveniente lhes pôs à frente os cafés, olhos de "carneiro mal morto", sorrisos nos rostos, de uma cumplicidade escrita, que sem palavras, mostrava como se diz e se escreve "Felicidade", "Paixão", "Desejo" ... fotografavam-se mutuamente com os telemóveis, ininterruptamente, e via-se que a adrenalina os traía e lhes soprava aos ouvidos ... "vamos embora daqui, para outro sítio !... "

Todos imaginamos para onde, e todos conhecemos o poder destas "urgências" urgentíssimas, o mistério que nos faz apagar o Mundo à nossa volta, e de repente ficamos só nós, nós e o nosso romance que queima, nós, ilhados num mundo irreal que não se descreve, nós e a magia que põe o ser humano com a maior cara de "tonto", apenas possível quando se vivencia uma espécie de milagre, ou bênção ... que têm a capacidade de nos arrancar a este mundo tão descolorido, e nos projectam  lá para um Olimpo, que apenas nestes momentos se corporiza !...

Eu acho que sorria, sem dar por isso.  Pelo menos, o empregado perguntou-me se sorria para ele ...
Por acaso, não !
Sorria para dentro de mim mesma, e querendo ser honesta, vou mesmo dizer-vos o que se passava comigo.

Discretamente, e por cima das letras do livro, olhando para ela, que como disse, se sentara de frente para mim, pensava :  " Tão estúpidas que nós somos !!!  Como tão facilmente acreditamos em tudo !  Como, com uma boa "cantada" ( dizem os brasileiros ), embarcamos sôfrega e avidamente, no romance, na aventura, na história, um terço verdade, dois terços treta !...  Como, quando nos sabem tocar os "cordelinhos", como uma criança extasiada e ingénua, confiamos, adoramos o brinquedo novo, e zeramos todos os desamores, sofrimentos, mágoas, desilusões que nos deveriam proteger, como um chapéu de chuva no coração !...
Como facilmente nos propomos embarcar, embarcar e embarcar sempre, em novas viagens mirabolantes, prometedoras ...  Como "naïvemente" continuamos a acreditar, que felicidade com F maiúsculo existirá de certeza em algum lugar deste Mundo sem graça, nalgum recanto desta vida cinzentona, e que ... talvez seja desta vez !...   Burras, burras, burras !!!... "

Mas ... prometi ser honesta convosco e vou sê-lo.

 Como "quem desdenha quer comprar", dei por mim com um estranho embaciamento nos olhos, misturado com o sorriso disfarçado ( que agora sei que era triste, afinal ), e a sentir uma inveja "do caraças", um aperto aqui no peito, naquele lugar que todos conhecemos, e a achar que a fábula de Esopo, a "Raposa e as uvas" que aprendi na infância, e que estava até no meu livro de escola, se me aplicava direitinho, direitinho ...
"São verdes, não prestam, nem os cães as podem tragar !... "

... lembram-se ???...


Anamar

sexta-feira, 27 de julho de 2012

" A VITÓRIA "


   NOTA : Esta foto não é actual


A Vitória esteve comigo quase uma semana, estadia que por tão longa, foi de algum modo, inusitada.
Desta feita, colégios terminados, actividades de férias também, e o drama de muitos pais que ainda trabalham :  onde colocar os filhos?
No caso da minha filha, com três crianças, em que o mais velho tem onze anos e o mais novo, cinco, pior ainda.

Eu relaciono-me melhor com raparigas do que com rapazes, talvez por ter criado apenas filhas ;  como tal, amando os três por igual, sinto-me mais confortável no relacionamento com a miúda, que neste momento tem oito anos.

A Vitória, na sua pouca idade, é uma mulherzinha na postura, nas atitudes, mesmo nas conversas.
É cordata, pelo menos comigo não tem teimosias ou birras ( que talvez ainda fossem previsíveis e aceitáveis para os poucos anos que tem ), colabora se solicitada, conversa e também se entretém sem muitas exigências.
A minha casa é desprovida de grandes entretenimentos para crianças.
Existir, eles existem.  Foram guardados há muitos anos em arcas, estão na arrecadação, e nunca lhes mexi mais, a partir do momento em que deixaram de ter serventia, pela inexistência de crianças em casa ;
assim, existe apenas um armário com livros infantis, da mãe e da tia, lápis de cor, canetas de feltro, papéis para desenhar, claro e obviamente televisão, com aquelas séries intermináveis de que os miúdos se tornam dependentes.
Para além disso, arranjei um programa de cinema fora de casa, com as inevitáveis pipocas ( que compartilhámos a meias até que ambas ficámos "atafulhadas", e nos ríamos já do enjoo que sentíamos ), arranjei uma ida à piscina para uma tarde de brincadeira interminável ( só o frio nos correu de lá ), e também estava prevista a "minha" caminhada, coisa que a Vitória, desportista que é, teria adorado ... mas, deu-me uma famigerada preguiça, e acabei por a não encaixar no nosso "calendário de actividades" ...
Na sua próxima estadia comigo, proponho-me fazê-la !...

A Vitória é uma compincha ,  é desinibida, "enturma-se" facilmente, e interage extremamente bem, quer com crianças, quer com adultos.
O convívio com mais dois irmãos e respectivos amigos, a frequência do colégio, as actividades no Sporting, de todos eles também, e uma preocupação sistemática e atenta que os pais têm de os "despertar" para iniciativas culturais, e eventos interessantes que possam motivá-los, de acordo com as respectivas idades, juntando certamente, como é lógico, àquilo que de genético ela transporta, fazem dela uma criança extrovertida, faladora, obviamente simpática.

Tenho com ela, ou melhor, sinto dentro de mim uma ligação meio inexplicável e imperceptível, de empatia, que talvez não seja abusivo dizer, de "mulher para mulher" ou de "mulher para futura mulher", uma espécie de conivência de sentires, de cumplicidades, que até pode não vir a verificar-se ( porque sem dúvida é prematuro afirmá-lo, e futurologia não faço ), mas que objectivamente percepciono.

Não sendo a mãe, e ocupando portanto na "hierarquia familiar e afectiva", um lugar privilegiado, sinto uma disponibilidade de mente e de coração, mais descomprometida, menos cerceada, que é propiciadora sem dúvida, de uma aproximação bem real ao adulto que vai desabrochando dentro dela.

Percebo perfeitamente agora, como é diferente o estatuto de pais e de avós, e percebo perfeitamente a razão por que na Vida, e de uma forma geral, quase todos sempre estamos indelevelmente marcados por estes ...
O relacionamento é de facto específico, especial, bem diverso do que foi enquanto pais, e é real aquela afirmação meio complacente e humorística, de que o papel dos pais é educar ... o dos avós, "estragar" !...

Claro que este "estragar", refere-se à adição de "melaço" que os "pais com açúcar" ( como alguém com brilhantismo definiu os avós ) conferem a uma ligação, que mercê das circunstâncias inerentes à Vida, é mais liberta, mais descomprometida, mais indulgente, mais tolerante, de maior entrega, menos espartilhada e possuidora da experiência, da sabedoria, da dádiva, do desejo de deixar em boas mãos e passar adiante, tudo o que de bom e mau, a Vida nos ensinou.

É uma relação que beneficia de algo extraordinário, que enquanto pais, logicamente não pudémos deter ... que é Tempo.
Efectivamente, Tempo é o que não faltará aos avós ... Tempo é o que os avós terão de sobra, e o facto de o serem numa fase da Vida em que há "espaço" em demasia, por vezes, nas respectivas Vidas, os netos são também por isso, um factor equilibrante de que ambos, avós e netos, usufruirão !

Bom ... sei que a Vitória, ao que parece, gostou muito da estadia em casa desta avó que começará a conhecer melhor, espero, com todas as suas incoerências, incompletudes, defeitos e virtudes, senso e loucura, com preocupações logicamente pedagógicas e de formação, mas também permissiva e aberta aos pequenos disparates, que não são mais que prevaricações saudáveis ...

E isso, deixou-me profundamente feliz.

Vou tentar cultivar ao meu jeito, esta ponte de afecto entre nós, porque sinto que não estou a enganar-me ao expectar depositar nas suas mãos, a corporização daquele futuro que não tive, daquela Vida que não fui capaz de viver, daquela desejada "vingança" de existência ... em suma ... daquela "VITÓRIA" nos sonhos que eu só sonhei !!!...

Anamar

quarta-feira, 25 de julho de 2012

" LEVAR A CARTA A GARCIA "

Há pessoas que parece nunca terem crescido.

Confrontamo-nos por vezes, no nosso caminho, com cabelos embranquecidos que não tinham por que o estar, com posturas tão absolutamente "naïves", que nos pasmam.
São pessoas muitas e muitas vezes traquejadas na Vida, às vezes com uma escola de existência muito sofrida, com traumatismos existenciais que funcionaram da forma inversa, ou seja, em vez de conferirem uma maturidade "protegida", digamos assim, parece que a retiraram.

São eternos meninos grandes que parecem recusar-se a ficar adultos.
Indivíduos que sofreram uma regressão personalística, e não um avanço.
Creio que complicam em vez de simplificar, enchem-se de tarefas, avolumam outras ... tarefas sem fim, que nunca se dão feitas, mas que lhes "alimentam" a inquietude de espírito.
Mergulham em imbróglios complicados de resolver, mas se os não tiverem também não vivem ...
Os problemas nas suas cabeças, agigantam-se, porque se instala um imobilismo, um cansaço atroz e uma estagnação psicológica, que os tolhem mentalmente, os emperram psicologicamente, os indisponibilizam emocionalmente, os paralisam, convencendo-os contudo, que as soluções sempre aparecerão ... só que no dia seguinte ...

E esse dia seguinte, é um dia seguinte não se sabe de que semana, de que mês, de que ano !...
No entanto, essa convicção instala-lhes alguma paz no coração, enquanto nela vão acreditando.
Para eles sempre estará só numa questão de tempo, a resolução de determinados aspectos da Vida, quando, para quem está de fora e distanciado, é absolutamente claro, que essas posturas são absolutas "fugas para a frente", auto-justificações inconsistentes, conclusões e convicções infantis, contudo necessárias para viverem e minimamente se sustentarem, em termos de alguma estabilidade, e se se pode dizer, tranquilidade, ainda que a prazo ...

Em tempos, na minha escola, existiu um presidente do Conselho Directivo, que vivia a correr daqui para ali, carregando papéis nas mãos, numa afobação extrema.
Quando abordado, todos já sabíamos de cór, qual a frase resposta : "Agora não posso ... mais tarde ! Desculpa !"
A eficácia do seu desempenho enquanto por lá esteve, ficou muito a desejar ;  contudo, a personagem em causa envelheceu a olhos vistos, durante o seu período de vigência, e ninguém terá dúvidas que aquele homem sofria a bom sofrer, com as responsabilidades que lhe pesavam, que aquele homem se esforçava para um excelente desempenho, se embrulhava desesperadamente nos problemas ... e pior ... convencia-se que os resolvia ...

Eu entendo estas posturas de ingenuidade, como uma procura de auto-satisfação, ou  mesmo de uma "carícia" pessoal imprescindível ao próprio "ego", porque, sem nenhuma prosápia, esse indivíduo está convicto estar a fazer um bom trabalho, a desenvolver o esforço adequado a conferir-lhe sucesso no que faz ... em suma, que apresenta competência nos desempenhos.

Nada disto que afirmo vem imbuído de juízos de valor negativos, pejorativos, desabonatórios, sobre as pessoas em causa .

Falo em tese, da percepção que me fica das coisas, tão só !...
Aliás, quem seria eu para o fazer ??!!...

Penso que se trata de distúrbios de personalidade, quiçá instalados pelos traumatismos psicológicos a que a Vida os submeteu.
Penso que essas pessoas têm necessidade de se auto-convencer que são insubstitíveis, convencer-se o quão imprescindíveis são, enquanto apoios e pilares, na família, na sociedade, no Mundo, e de que este talvez "parasse", se elas desaparecessem ...

São pessoas de uma generosidade extrema.
São pessoas que colocam sempre os outros, e os problemas reais ou imaginários, à frente de si mesmos.
São pessoas que para aliviarem a carga dos demais, têm um espírito de entrega, esforço, dedicação, missão e dever, absolutamente exacerbados.
São pessoas que se anulam, são de uma abnegação incomensurável em prol de causas, de valores, de princípios, que convictamente defendem e por que pugnam

Para mim, tudo isto seria louvável, não o considerasse já patológico, perturbador, destruidor mesmo do próprio indivíduo, sendo que cada vez mais, o aliena em relação à realidade.

Conheço  de muito perto, casos que encaixam na perfeição neste "boneco" que aqui desenho.
Dividi a minha vida, de certo modo, exactamente com uma pessoa, cujo perfil se insere em parte neste modelo.
São indivíduos que sem dar conta, repito, sem  nenhuma  intencionalidade ou  má fé, subalternizam as capacidades dos que lhes estão perto ;  infantilizam mesmo os seus dependentes.
Por vezes cerceiam-lhes asas, porque afinal, na Vida, a necessidade impulsiona as pessoas, obriga-as a reagir, responsabiliza-as, valoriza-lhes capacidades.

Mas insisto, não presumo estar certa nesta minha forma de observação e análise ; não tenho a veleidade sequer, que corresponda a uma análise com grande correcção.
Não tenho formação científica neste âmbito.
Admito por isso, que estas conclusões talvez sejam atrevidas, possam mesmo constituir erros grosseiros ... espero que ofensivas ... não !!!
Elas resultam simplesmente, da sensibilidade que tenho das situações e do conhecimento das pessoas.

Para mim, trata-se dos tais seres, que existem na Vida, como costumo dizer, apenas para levarem a "Carta a Garcia" !!!...

Anamar

sábado, 9 de junho de 2012

" OS VEZO - um paraíso em qualquer lugar "


Os "VEZO"  são uma etnia indígena do sudoeste da Ilha de Madagáscar.

Nas minhas perambulações nocturnas pela TV, nas minhas "viagens" intermináveis no Travel Channel, "fui" até lá ;  deixei-me transportar pela aventura, pela curiosidade e pelo prazer de Jérôme Delafosse, o viandante de nacionalidade francesa, da Bretanha, com rosto de querubim e corpo grandão e desconjuntado, de turista de "pé descalço".

Os "VEZO" são povos nómadas, com uma precariedade de vida que aos nossos olhos ocidentais, parece insuportável, inaceitável, absurda.
Vivem ao sabor das tradições, do tempo, das marés, dos frutos e do peixe no mar.
Deslocam-se velejando em canoas rústicas e precárias, meramente em busca de condições favoráveis para subsistirem.  Famílias inteiras ... crianças de meses, vivendo da sorte por cada dia, geração após geração, século após século.
Montam tendas nas areias, junto ao mar, sob copas das árvores das costas desertas, abrigando-se dos ventos, cozinhando em fogueiras improvisadas, de madeiras perdidas ; as águas lavam e dão o "pão" de cada dia ;  o céu é a abóbada de protecção ...  de sonhos não, porque os "VEZO"  não os têm.
Não têm a noção do tempo, não têm preocupações de futuro ... Vivem cada dia de "per si", regidos exclusivamente pelas leis da Natureza, que implacavelmente as dita ...
Chegam a ser comoventes o desprendimento, a simplicidade, a alegria e a felicidade que transbordam, na liberdade que encarnam.

Liberdade é isso mesmo, creio.
Liberdade não tem definição, do meu ponto de vista.  É um estado de alma, é um estádio de vida, é uma opção, ou nem chega a sê-lo ...  É tão só um determinismo do destino.
Nasce-se com, ou sem ela, sobretudo na alma ...
Interrogo-me por que desígnio inatingível, se nasce aqui ou ali no planeta que dividimos ?  É-se isto ou aquillo ? Temos esta ou aquela  " formatação " de génese ??!!
A mesma  matéria, uma bio-diversidade alucinante, esmagadora, fascinante, inexplicável ...

Sempre invejamos o que não temos.  O ser humano sempre se sente incompleto, insatisfeito ... sempre anseia o que não detém.  Faz parte da nossa natureza, creio, ou pelo menos da minha, na eterna inquietação e turbulência interiores.

Os "VEZO" vivem a vida inteira integrados em paraísos terrestres, inteiramente graciosos ;  acordam e dormem com verdes exuberantes por sobre as cabeças, esbanjam nasceres e pores-de-sol ;  a chuva acaricia-os, o vento curte-lhes a pele canela.  Os cheiros já não lhes importam, talvez nem sequer os percebam !
Do salgado da maresia aos adocicados dos frutos do sul, nada os surpreende, nada os extasia ... é a sua realidade ...  Nada de novo !
Não exprimem emoções.  Pelo menos naquilo que constitui o nosso repositório de emoções.
Penso que talvez possam vivenciar o medo, por terem noção da sua vulnerabilidade ( enquanto seres desprotegidos ), o afecto, embora de uma forma absolutamente particular ( em especial pela valorização do núcleo familiar ou clã , realidade da qual nunca se desvinculam ), o temor e submissão sos deuses ( enquanto seres promotores dos seus destinos ; deuses que habitam o mar, lugar sagrado onde os espíritos se acolhem ) ... a alegria, sem dúvida, na partilha, nas gargalhadas e risos que semeiam ingénua e displicentemente ...

De resto, têm uma total aceitação permanente e indiscutida, do que desfrutam.
Se a pesca foi generosa, os deuses foram protectores ... se foi precária a apanha nessa noite, come-se menos, simplesmente.
As crianças talham as suas próprias canoas de brincar nas ondas, arpões incipientes para peixes "incipientes", na rebentação ... uma bola adquirida na "civilização" ... e mar, muito mar aos pés, para viver!

Aos meus olhos ( de utopia, com certeza ), os " VEZO " representam-me em particular na actual realidade social, antropológica e pessoal, um "éden" individual e colectivo, a paz global, a ausência de conflito interior, a ausência de questionação existencial destrutiva, da insatisfação permanente, da dúvida e insegurança exponencialmente projectadas, a ausência daquele medo que advém da ansiedade do ter, a pureza de valores e sentimentos, almas e consciências não corrompidas ... enfim, se calhar o que eu "realizo" no meu espírito ... o que talvez nem exista !!
Seguramente o convite,  ou a proposta despudorada, de uma "fuga" sem volta !!!...

                               
Anamar

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

" APENAS ... "

Na vida, os perfis estão definidos.

Há estereótipos de tudo, perfeitamente alicerçados ...
É esperável que "mãe" seja isto, "avó" seja aquilo, "filho" tenha outro estatuto, "indivíduo socialmente enquadrado" obedeça a determinado figurino ... é espectável que - tendo-se responsabilidades profissionais - as mesmas se honrem, e não se desvie um milímetro do considerado "lógico" e "obrigatório" ... é "obrigatório que se crie e se mantenha um determinado "boneco", sempre de acordo com o que está na cabeça das pessoas, da sociedade, do Mundo.
Quem desvia, é marginal, é "outsider", é desenquadrado.

E logo aí, leva com uma carga emocional em cima, profundamente negativa.
Se não o for pelos juízos de valor que sobre esse indivíduo caem ( o que seria o de menos ), sê-lo-á pela culpabilização que a sociedade lhe infere, pelo facto de ser diferente, ou digamos, não conseguir ser igual.
Como sempre, ser igual aos iguais, não criar conflito, ser cinzento, ser "flat", ser "discreto" na forma como se pauta, não confrontar ... dá muito menos trabalho, é sempre mais cómodo, provocaria menor desgaste.
A droga, é que nem sempre se consegue, e nem sequer é por teimosia ou incoerência ... É porque é assim ... somos assim ... funcionamos imperfeitamente assim !!!

Eu tenho muito essa questão, a agitar-me turbulentamente os neurónios, sempre, e a apertar-me o coração ... As pessoas nem imaginam quanto !

Eu sou filha, sou mãe, sou avó.
Eu tive uma vida extremamente castradora, não que o fosse intencionalmente para me infligir danos, mas o que é facto, é que infligiu, e muito !

Fui filha única de pais "velhos" (  trinta e quarenta e oito anos ) , vivi numa época em que se vivia apenas e só, o que nos deixavam viver, em que se aceitava porque não havia como discordar, em que a dialéctica ou sequer o diálogo entre pais e filhos, não existia.
Era assim ... os de hoje não entendem, nem podem, claro .  Os da mesma geração que eu, conhecem-no claramente.
Sempre fui rebelde ;  sempre lutei por "espaço", pelo "meu espaço", e dificilmente me conseguiram "encarneirar" em rebanho.
Fui por isso, sempre ovelha fora do redil, quando e como podia ...
Contudo, repito, este "poder" era extremamente relativo e limitado ainda assim ...

Casei era uma criança ; tinha na altura dezanove anos e uma mão cheia de ilusões.
Penso que acreditei que ganharia com isso, um estatuto de autonomia e de posse do meu próprio destino.
Apenas então, o meu destino estava obviamente cruzado com outro, e se não os mesmos, outros "figurinos" se desenharam ...
Era uma mulher casada, com família constituída, com uma célula familiar que deveria ser convencional,  "calminha", seguindo os trilhos ditos normais e inerentes ao que se desejava : trabalhar, ser dona de casa, ter filhos, eventualmente netos, ser filha dedicada ( porque única, de pais a envelhecer a olhos vistos ), ser uma boa ou de preferência excepcional profissional, ter dedicação à casa, ou melhor, ao "lar", como estaria destinado ...

E fui indo ... fui indo, de facto !

Se fizesse um gráfico da minha vida, pareceria o registo electrocardiográfico de um doente acabado de morrer ... uma linha recta, sem picos ou depressões ... o registo do mar na maré baixa ... a ausência de brisa num dia irrespirável de calor !

E fui indo ... fui indo, de facto ... pautando-me o melhor que podia e conseguia, pelo que de mim se exigia, não me desviando da margem do riacho que estava escolhido para a minha vida !

E o tempo passou ... aliás, passou tempo demais !

Criei filhas, trabalhei ( fui considerada e reconhecida pelos meus pares e por quem de mim dependia ), fui uma "boa filha", como era "obrigação" e "justo" que fosse, fui esposa, ( novamente de acordo com os arquétipos estabelecidos ), construí e decorei casas ( lindas, mas sem alma ... carregadas de mim em cada centímetro quadrado ... Contudo impessoais, por frias, demasiado "arrumadas", demasiado "convencionais", porque sem Vida ... Aquela vida que, quando vivida, "bagunça", desarruma, grita, agita ... enche de choros e de gargalhadas os lares onde se faz ... ) !
Enfim, tudo, tudo direitinho, o melhor possível, o melhor que fui capaz !

E eu, como a "Bela Adormecida" das histórias da minha infância ... a dormir na torre do castelo ... sem perturbações.
Até um dia ... um dia em que, mesmo sem príncipe, acordei.
Acordei, porque aquele sono profundo já havia "virado" pesadelo, e os pesadelos fazem-nos normalmente acordar.

Abri as janelas, sacudi o mofo, olhei o céu cá fora e o sol que espreitava, e decidi que de "masmorra de alma", tinha que chegasse ...
Nesse dia, a minha vida mudou. E comecei a aprender a viver ...

Muito complicado ... tudo muito complicado.
Como uma criança nos trambolhões dos primeiros passos, como uma criança que se embrulha nos próprios pés ...
Muito sofrimento, muita mágoa, muita dor ... mas também a realização de quem galga a montanha a "pulso", sem ajudas ou empurrões.
Criei uma nova existência, uma nova consciência, um novo percurso ... Mais certo, mais errado ?  Não sei ! O meu, simplesmente ...
Muito imperfeito certamente, muito incompleto, a tactear, a tactear todos os dias ...  A errar aqui, para acertar ali ... provavelmente a errar mais, que acertar.
Mas sinto-me uma "resistente" e uma "vencedora"...
Já caí muitas vezes, já sossobrei outras tantas, já chorei lágrimas até secarem, mas também já ri muito ... já sorri às vezes sozinha, para mim mesma, para dentro do meu coração !
Já acreditei e já fui traída ... vezes demais !
Mas sempre continuo a acreditar, e por esse acreditar, já vale a pena !
E sempre espero ... sempre continuo a esperar. Esperar por amanhãs, que tenho fé, ainda me consigam ressarcir de tanto tempo na "torre do castelo" ...

Espero por compreensões que parecem demorar a chegar, espero por entendimentos e aceitações que quase nunca vêm ...
E sou diferente !  Se calhar sou !!  E fujo aos tais parâmetros que ficaram lá para trás, porque cansei de os viver !
Fujo à previsibilidade que de mim esperam, porque se calhar fui previsível tempo demais, durante "uma vida" ...
Defraudo muita gente que não aceita o perfil que tenho hoje, é provável ...  Dentro de mim tenho ânsia de recuperar tempo, de viver fora de horas o que deveria ter vivido nas horas certas ...
Não encaixo em padrões pré-definidos e previstos ... e não consigo encaixar por mais que me esforce !...
Não caibo no "modelito" social e familiar decidido para as mães da minha faixa etária, menos ainda para as avós da minha faixa etária ...   Fazer o quê ??!!...
O meu tempo vive-se de facto em contra-ciclo, vive-se ao arrepio dos anos, talvez de mim mesma ...  Fazer o quê ??!!...

Magoo-me se me confrontam com essa realidade, que parece aberrante ... sinal que não me entendem, sinal que não conhecem o meu sofrimento ...
Porque, na realidade, travo uma luta interior diária, comigo mesma, apesar de tudo ;  uma luta que defronto entre o esperável e o que na realidade sou de facto ... E sempre me sinto obviamente em falta, obviamente omissa, obviamente não cumpridora ...
E às vezes penso : "Que raio de destino o meu, que ( por estar fora do que me exigem e exigiram, antes e depois ), sempre erro, sempre estou em permanente falta ou défice, para com tudo e todos "??!!...

Nem sempre consigo ter as costas "tão largas" que aguente ...
Nem sempre consigo encolher os ombros, e dizer : "Que se f..... a taça" " ... Lamento !!!
Sou como sou ! Se calhar, o cúmulo da imperfeição !
Sou como apenas sei ser ... não como "escolho" ser "ser" !!!...  Lamento !!!

Mas hoje, sou "eu mesma" ... APENAS !!!

Anamar

domingo, 18 de dezembro de 2011

"SODADE ..."

                                 
Hoje, "saudade" diz-se em crioulo ...

Cesária Évora partiu e deixou-a nas gentes da sua terra, que cantou como ninguém, deixou-a nas gentes de Portugal, também nas gentes do Mundo!
A "diva dos pés descalços", a "rainha da morna" que deu Cabo Verde ao Mundo, foi embora ...

Cabo Verde é lá longe, mas sempre será um pouco perto de nós, os portugueses.
A terra das mornas, dos fados, lunduns, xotes, baiões ou serestas ficou mais pobre, ficou mais triste, sem a sua voz.

Oriunda de uma família muito pobre, de cinco filhos, o seu pai tocava cavaquinho, violão e violino, e cedo ela começou a cantar e a fazer actuações, aos domingos, na praça principal da sua cidade, Mindelo na Ilha de S. Vicente.
Aos dezasseis anos, Cise, como era conhecida, começou a cantar em bares e hotéis.
Com pouco mais de trinta anos, por questões pessoais e financeiras associadas à dificuldade económica e política do seu país ( Cabo Verde acabara de adquirir a independência - 1975 ), deixou de cantar para sustentar a sua família.
Esse período arrastou-se por dez anos, em que Cesária teve inclusive de lutar contra o alcoolismo.
Foram os seus "Dark Years", como dizia ...
Encorajada pelo também cantor e empresário Bana, reiniciou a sua carreira, e os seus êxitos multiplicaram-se.
Aos quarenta e sete anos já atingira o estrelato internacional.
Radicou-se então em Paris, onde em 2009 o presidente Sarkozi a medalhou com a Legião de Honra, entregue pela ministra da Cultura Francesa.
Em Setembro de 2011, com a saúde muito debilitada, cancelou uma série de concertos que havia agendado, e a sua editora anunciou então o fim da sua longa carreira artística.
A 17 de Dezembro, aos setenta anos, Cesária Évora fechou a "porta" ...

Cesária foi mulher da praia, e como ninguém, cantou este "algo" que nenhum outro povo define como nós, os portugueses ... a "saudade" ...essa coisa doce e doída que se tem por alguém ou por alguma coisa que perdemos ...

Somos povo de fado ... mas sobretudo povo de saudade !...

Saudade já se tem mal deixamos um amor, tem-se dos que partiram e não voltam mais, ou só daqueles que nos dizem "até logo" ...
Saudade, experimentamos por um sítio, um chão que foi nosso e ficou no nosso coração ...
Saudade ficou de um céu ou de um mar, que nos embalou e nos aqueceu.
De um olhar comprido, tão comprido que não "desgrudou", e se prendeu no nosso para sempre ...
Saudade de um abraço, de um beijo ou simplesmente de um calor, de um cheiro que nos pertenceu ...
Tem-se da infância feita de pais e família completa, tem-se de amores e amigos ... tem-se de NÓS ... tem-se de VIDA ...

Já temos saudades tuas, Cesária, porque afinal ... "saudade é o amor que fica"!!!...

Anamar

sábado, 17 de dezembro de 2011

VIAGEM AO "OUTRO LADO"...


Um painel com desenhos infantis, rabiscados por homens idosos ...
Pavilhão de Psico-Geriatria do Hospital Psiquiátrico do Telhal .

"A Eva, no consultório do médico, sofre da "Síndrome de Down" ...
A Eva, na escola, sofre de "trissomia vinte e um" ...
A Eva na rua, é obviamente mongolóide ...
A Eva para os amigos ... é simplesmente ... EVA !..."

 Aquele meu meio-irmão foi-me "apresentado", ainda eu não era nascida ...

Doze dias antes do meu nascimento, era ele internado na Casa de Saúde onde "vive" até hoje.
Ele pertence, por azar ou por "sorte", ao outro "mundo" ... ao outro lado. Aquele lado que não conhecemos, que não entendemos ...que é mistério!

Entre esse mundo e nós, o mundo dos "mentalmente sãos" ... há, julgo, uma barreira ténue, uma barreira de "nieblas", indivisa, diáfana, mas que  não nos deixa enxergar o que vai para lá dessa fronteira.

O meu meio-irmão, ainda assim meu irmão de pleno direito ( porque irmão de sangue ), "herdei-o" do primeiro casamento do meu pai.
Não o conheci, não convivi com ele, não o "saboreei" como se faz aos nossos chegados ... não o conheço!

Tenho contudo por ele, um carinho imenso, uma ternura ilimitada, quase um "amor" ... que talvez não me fosse exigível ... e uma comiseração que talvez não devesse ter, mas que se me impõe...

O Vítor nasceu de um casamento "mal-fadado" pelo destino. Durou muito poucos anos.
Da mãe, ele apenas usufruiu de dois, porque a "fraqueza de pulmões" a levou tísica, na flor da idade.
Foi então criado por parentes afastados, porque avós também já não tinha. Aproveitou da boa vontade e alguma disponibilidade de corações, quando lhas queriam proporcionar...
O pai, o nosso "querido" pai, como o refere ainda hoje, labutava pela vida, Alentejo fora, para poder sustentá-lo...

Passados bastantes anos, o meu pai voltou a casar. O Vítor teve finalmente direito a um lar de verdade, a carinho de verdade, a família de verdade...
A doença colheu-o ironicamente, quase logo.
Entrada na adolescência, esquizofrenia diagnosticada, tratamentos violentos e desumanos à altura ... uma Casa de Saúde distante, impessoal e fria à sua espera ...

Nasci eu, doze dias depois ...

Ao longo da minha vida, desde criança, o meu irmão era sinónimo de um mundo estranho, desconfortável, penoso de devassar ... Era sinónimo de sofrimento patente, de "injustiça" gritante, de impotência face ao destino ...
Visitas escassas (vivíamos em Évora e a Casa de Saúde é em Lisboa).
Sem transporte próprio, o ritual desses domingos, passava pela camioneta, passava pela compra da caixa com bolos, e em altura de festas, uma ou umas pequenas lembranças, a propósito.

Depois era a angústia (assustadora para uma criança), de franquear aqueles portões, de atravessar aqueles muros altos, passar portas fechadas por molhos de chaves (que voltavam a fechar-se após as atravessarmos) ... Era o medo por aquelas figuras fantasmagóricas, absolutamente estranhas ( a doença consegue incrivelmente distorcer mentes, mas também corpos), das quais nunca sabemos que reacções esperar... Era o penetrar no mundo dos "loucos", simultâneamente estranho e fascinante ...
Era mergulhar numa prisão que não o era ... mas era ... Prisão de pena perpétua, algemas que tornam reféns quem fica para lá das grades!...
Era a confrontação real e de perto com a situação, eram inevitavelmente as lágrimas da minha mãe, rosto abaixo ... era ela a  dizer-me até hoje : "Nunca te esqueças dele...ele tem o teu sangue ...e só te tem a ti ..."
Coisa lúgubre e "pesada" !!...

Telhal é sinónimo de Natal ... porque sempre o Natal foi inerente ao Telhal ...

E assim, lá fui hoje, com um peso tremendo dentro de mim, pela omissão e fuga por que me pauto ao longo do ano ... com uma raiva por hipocritamente pactuar e sucumbir a datas e quadras calendarizadas, logo eu que me rebelo contra isso ... com uma mágoa e um aperto no coração, como sempre ... com as palavras da minha mãe nos ouvidos, a martelar : "Nunca te esqueças dele ... "

Como poderia?!...

A Pena coroava a Serra, e a Serra envolvia a paisagem ... Sol encoberto, folhas tombadas num Inverno a chegar.
Abandono, solidão... acho que já total e absoluta indiferença ... figuras transparentes ... há muito, mortas ...

Um mundo REAL cá fora à minha espera !!!...

Anamar

domingo, 11 de dezembro de 2011

"A SENHORA QUE SE SEGUE"


A "senhora que se segue" é a "quarta a contar de cima" ... a minha segunda filha.

A minha segunda filha é uma pessoa muito especial, e acrescem-me responsabilidades ao falar dela, porque além de não ser uma personalidade fácil de retratar, é uma réplica de mim própria, e portanto fica mais difícil alcançar o tal distanciamento necessário e desejável, para o fazer.

Desde cedo, criança ainda, logo deu sinais de independência, de alguma rebeldia provocadora e voluntarismo.
Lembro sempre duas histórias por ela protagonizadas, reveladoras disso mesmo :

Certo dia a irmã estava no banho e ela assistia. Não sei precisar a idade, mas lembro que ela se debruçava na banheira, como nos assomamos a uma janela ;  isto dá-vos ideia da altura da personagem.
Como a irmã brincava com a água e com isso salpicava o chão, eu já havia ralhado várias vezes.
Então, bem baixinho, ela debruçou-se para a irmã e sussurrou-lhe :  "Ana ... atira água para o chão, para a mamã te bater" !!! ...

Sempre reivindicava a compra de pastilhas elásticas, que de vez em quando eu comprava a pedido da irmã, quatro anos e meio mais velha.
Não lhas dava, obviamente, e explicava-lhe que as teria quando tivesse mais idade.
A irmã entretanto, oferecia-lhe aqueles papéizinhos com banda desenhada que vinham no interior das pastilhas, por terem bonecos e ela poder brincar.
Um dia, "afivelou" um ar bem solene e veio ter comigo inquirindo-me : "Mamã, quando eu for crescida (e simulava com a mão uma estatura elevada), compras-me pastilhas, não compras"?
Achando que finalmente ela estava a entender a questão, sorri e disse-lhe : "Claro, filha ... quando fores mais velha, eu compro " !...
Resposta imediata : "Então depois eu dou os papéis à Ana" !!!...

Bom, isto é um pouco a Catarina pelos seus quatro anos talvez !

O tempo foi passando e esta minha filha ia revelando um interior rico, generoso, disponível, multifacetado.
Tornou-se uma jovem solícita para quem a rodeava, extrovertida, com um poder para cativar tudo e todos, que hoje em dia sempre é referido por muitos que com ela privam.

Ela sabia e sabe escutar crianças, velhos, doentes ... ela sabe dizer a palavra certa a quem precisa de a ouvir, seja o arrumador de carros da praceta, o drogado, o sem-abrigo, os amigos, os vizinhos, os conhecidos ... e os que o são menos ... todos sempre tiveram e têm, um lugar no coração da Catarina, todos sempre tiveram direito a muito do seu tempo.
Ela pára para ouvir as histórias de vida, de muitos, e nessa altura, o "seu próprio relógio" pára também ... porque esses são mais importantes que ela própria.
A sua vertente humanista, a sua boa-fé, sempre está presente, e quantas vezes é aproveitada e explorada por tantos inescrupulosos !

A Catarina é simultâneamente uma crédula, uma sonhadora e por isso uma utópica ...
É um "D. Quixote" na sua vida pessoal e profissional.
Defende as suas convicções se as entende correctas, contra tudo e contra todos, o que lhe tem acarretado alguns dissabores, má aceitação por vezes, alguma marginalização, até ...

Enfrenta o "socialmente correcto" e comporta-se ao arrepio do instituído, se for o caso ...
Não pactua com o que acha menos certo, não cede nunca, se entende que está no trilho devido.

Muitos a utilizam como estandarte ou bandeira de causas, já no liceu, na Faculdade, na vida profissional.
Não se coïbe por acomodação, benefício pessoal, ou conveniência, de dar a cara ... Não faz "fretes" ou rasteja perante ninguém para obter dividendos ...
É assim, autêntica, igual a si própria ...

Nem sempre a vida lhe facilita o percurso.
O "bater de frente", como sabemos, angaria inimigos ...
mas ainda assim, a Catarina "colecciona" (como costumo dizer), um batalhão de amigos e amigas, das mais variadas origens, que cruzaram o seu caminho.
A sua vida profissional neste momento, não lhe dá brechas em termos de tempo, para manter a vida pessoal e social que gostaria, e por isso, não se sente muito feliz.
Adora o que faz, mas precisa de "gente", vive junto de "gente", respira "gente" ...
Seguiu talvez por isso, a carreira de enfermagem.

Neste momento sente-se muito "máquina", engrenada para o trabalho, robôtizada dia após dia ... e o tempo lúdico, o tempo para conviver é sempre precário, excessivamente curto para o que necessita, para o que sonha ainda fazer no futuro.

Os animais fazem parte da sua vida.  Também com eles sempre fez trabalho "de campo".
Atenta aos "desvalidos" da sorte, pelas suas mãos e pelo seu coração, passaram muitos, entre a rua e outros destinos !
Neste momento, cohabita com um cão bem velhinho e doente, que recolheu da rua há largos anos, numa situação de precariedade total e chocante, e três gatos, dois deles vindos de um contentor de lixo, ainda bébés, claro ...

Que mais dizer sobre a Catarina???

É uma rebelde sonhadora da vida ... "Parte a cara"... mas vai lá! ...  "Dá-se mal, mas insiste, se quer muito! ...  Tem sonhos de menina, que não se compadecem da idade que já tem.

Continua a aguardar na esquina, a chegada do "Pai Natal", eu acho ...  a chegada de um qualquer "cavaleiro andante" que lhe traga um "Mundo" à medida do que concebeu e em que acredita ...

Só espero que a estrada que ainda tem pela frente, não tenha excesso de espinhos, nem demasiadas encruzilhadas, porque, tenho a certeza ... sempre se irá magoar a percorrê-la !!!...

Anamar

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

"RETALHOS..."


"Nieblas" neste 8 de Dezembro, dia da Sra. da Conceição, festejado "Dia da Mãe" dos meus tempos de menina.
Agora, a igreja transferiu esta comemoração para o primeiro domingo de Maio de cada ano, data móvel portanto ... e eu zanguei-me!
Vêem por que me recuso a aceitar comemorações impostas??!!
De repente, e à revelia de nós todos, surge uma cabeça pensante ... e catrapumba ... nada do que era, continua a ser!

Bom, mas eu como sou e serei sempre (acho), contestatária, "decidi" que sou fiel às minhas convicções e memórias, e como tal, mantive e manterei, enquanto a minha mãe viver, o 8 de Dezembro como o "seu" dia oficial.

Nos meus tempos de garotinha, no liceu que eu frequentava, na saudosa cidade de Évora onde vivia, existia uma disciplina que certamente muitos lembrarão ... "Lavores Femininos".
Sempre, ano após ano, nessas aulas e por todo o primeiro período escolar (porque afinal estamos praticamente a encerrar as actividades escolares), se confeccionava um berço, a oferecer no dia de hoje, a uma família carenciada, que obviamente esperasse "a cegonha", com as dificuldades inerentes à situação.

A professora entregava a cada aluna (na altura as turmas não eram mistas ... como sabem), a tarefa de confeccionar, à sua escolha, uma das peças que comporia o enxoval do nascituro.
Assim, uma aluna faria botinhas, outra casaquinhos de malha, gorrinhos, outra babetes, outra bordaria uma ou mais fraldas (na altura em pano, lembram?) ... outra faria uma camisinha ...outras forrariam a alcofinha.
Tudo muito mimoso, tudo bem feitinho, tudo com muito amor.
Claro que se o trabalho estava atrasado e o tempo urgia, a professora fazia-se "desentendida" e deixava que os trabalhos viessem para casa, entre aulas, a fim de que se acelerassem...
Aqui para nós ... óbvio ... era altura das respectivas mães entrarem ao serviço, adiantando ou finalizando a tarefa destinada ... rsrsrs.
Mas era por uma boa causa ... e ninguém era penalizado !

Eu escolhia sempre fazer uma camisinha ... A cor é que oscilava entre o rosa e o azul (também, conhecer-se o sexo do bébé, à altura, era impensável ...).
Por via das dúvidas ficava-me quase sempre pelo amarelinho claro.
Era bordada com "ajour", com florzinhas ou passarinhos a "cheio", "ponto pé de flor"..."grilhão" ou "sombra", e escrita a palavra "Bébé" para a alindar ainda mais!
Pasmo ao lembrar com carinho e uma pontinha de emoção, as coisas que nós sabíamos então, as coisas a que nos dedicávamos ... Os nossos horizontes...dos doze, treze anos ...

Bom, retomando ... Para mim, "Dia da Mãe" "ad eternum", o dia de hoje!...

Amanheceu absolutamente outonal, no cinzento uniforme... uma abóboda de nevoeiro adensava-se por sobre as nossas cabeças, à frente dos nossos olhos...
Ar ... absolutamente gélido... a lembrar-nos que poucos dias faltam já, para o Inverno se apresentar em força ...
A minha gaivota apareceu por aqui, mas não foi para ficar. Vinha acompanhada, e cá para mim, anda de namorado novo ...

E lá fui visitar a minha velhota e obsequiá-la como todos os anos, com qualquer coisa que ela goste.
Nesta altura do "campeonato", enjeita todo e qualquer bem material (diz, e eu acredito, que já tem tudo até morrer...) ...
Como tal, e porque os velhotes sempre são lambareiros, e ela não foge à regra, comprei um bolo-rei pequenino para que inaugurasse a quadra natalícia.
Aproveitou e pediu-me uma "fartura"... o "brinhol", no Alentejo ... de que diz ter muitas, muitas saudades! rsrsrs

A visita hoje foi interessantíssima. Nem vos consigo passar uma pálida ideia de como decorreu.
Começou logo à entrada, por me dizer que há oitenta e alguns anos, na sua terra, morreu a Menina Custódia, trinta e tal anos, empregada no Montepio...uma das duas farmácias da vila. Figura muito popular e acarinhada, a sua partida foi muito sentida pelo "povo".

"O seu funeral e o do Sr. Padre Serrão (tão boa pessoa, que até ciganos casava religiosamente), foram dos mais sentidos por quem os "estimava" muito".
"O Padre Serrão (que também casou os meus avós, sem que o meu avô, que não era de igrejas, se tivesse confessado (!!!)), foi encontrado morto, no banho frio que tomava sempre antes da "missa d'alva"...fosse Verão ou Inverno!"

Da Menina Custódia passou-se para o Tio Tiago Nobre, que de acordo com a descrição, na minha cabeça, encarnaria na perfeição, o Zé Povinho, de Bordalo.
Barrete na cabeça, figura atarracada, com um cão a acompanhá-lo, tinha o hábito de festejar a Restauração da Independência a 1 de Dezembro.
Vinha ao postigo da sua porta, e com uma espingarda, todos os anos à meia-noite, disparava as suas "salvas" comemorativas.
Dizia a minha mãe, que hoje em dia o Tio Tiago Nobre estaria tristíssimo com o governo, por lhe sonegar feriado tão desejado ...
O Tio Tiago Nobre vivia na rua da minha bisavó...portanto, avó da minha mãe ... Aldonsa de nome.
E aí, repegou-se outro tema ...

"Com a minha avó (a cuja casa a minha mãe ia dormir, em criança), aprendi tudo ! Foi ela que me tornou a mulher que fui toda a vida ... a saber dar conta das minhas coisinhas"!...
Enviuvou aos trinta e um anos, tendo ficado com três meninas com sete, cinco e três anos. "O marido finou-se com um "catarral "...  Ainda o "sangraram" ... mas não adiantou"...
conta... 
"A minha avó coitada, p'ra criar as filhas trabalhava no campo. Se era na monda...tomava dois regos por conta, um para ela, outro para a avó (a mais velha das três), que a acompanhava na lida ... para ganhar mais qualquer coisa.
Claro que ela mondava o seu, e completava o da avó" - dizia-me a minha mãe, passando para o discurso directo.

"Se era na apanha da azeitona, a mesma coisa ...
Depois vinha para casa, e sem nunca ter aprendido a "coser" ...aceitava trabalhos de costura e confeccionava mesmo, calças e camisas de homem ...pela noite dentro, na máquina de costura, à luz da candeia ou do candeeiro de petróleo !!! Tempos muito "custosos"...

"Quando eu era bem pequenina, punha-me com os joelhos numa "joelheira" de madeira, para lavarmos o chão, de tijoleira de barro.
Não havia lá esfregonas !!... Era à escova que se lavava! E tinha que ser muito esfregado, para que as juntas entre as tijoleiras, ficassem bem branquinhas, e as pedrinhas que as tijoleiras muitas vezes têm ... a brilhar! Eu andava com um trapinho ao seu lado, e volta e meia dizia-me : tens que lavar melhor ! Ainda não está bem !...
Coitadinha, lembro-me muito dela !..."

"E de manhã muito cedo, varríamos a rua, em frente à porta, com uma daquelas vassouras de buínho. Ela até tinha uma pequenina, para mim!"...

Quando o mês de Maio começava, acordava-me muito cedo, no primeiro dia, e obrigava-me a comer uma amêndoa ... dizia que era para que o Maio não me entrasse, senão ficaria molengona e preguiçosa, todo o ano"... "Não sei bem porquê ... mas era assim !..."

E eu ficaria aqui o resto da tarde, sem que mesmo assim, vos conseguisse dar uma ideia aproximada do que foi aquele mais monólogo, que diálogo.

Nos seus quase noventa e um anos, e a viver só, a minha mãe necessita  conversar,  contar,  reviver pedaços, retalhos dos seus tempos idos, da sua vida passada, que lembra com rigor e pormenor.

Eu, apesar de conhecer de cor e salteado as histórias repetidas vezes sem conta, limito-me a ouvir embevecida, pela enésima vez, quase imóvel para não perturbar a magia desses relatos ... E ausculto a sua alegria por poder contá-los, como se ao contá-los, lá regressasse... como se os lembrando, voltasse lá atrás!...

Anamar

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

" A TERCEIRA A CONTAR DE CIMA ..."



Já aqui falei algumas vezes, directa ou indirectamente, da minha família, daquelas personagens que a meu lado vão trilhando, até à eternidade, os caminhos do meu percurso.

São "bengalas", são pilares de apoio, são colo que embala, são lenços que me enxugam o rosto, são cobertores em dias mais "frios".
São conforto e são também dedos em riste ou "espelhos", quando me analisam de uma forma isenta, ou me confrontam com as minhas insuficiências e imperfeições.
Tudo isso é carinho, tudo isso é amor ... não tenho qualquer sombra de dúvida !

É pequena a minha família neste momento. Duas filhas, uma mãe já na recta final, infelizmente ... três pequeninos a iniciar a caminhada ...

Não somos de nos "estorvar" uns aos outros. Não somos excessivamente presentes ou impositivos. De facto, não somos daquelas famílias sempre "grudadas", sempre em permanência. Respeitamos muito os "mundos" uns dos outros.
Faço muita "mea culpa", porque tendo a cair um pouco no exagero, ou seja, de uma forma algo egoísta, confino-me muito ao meu espaço, ao meu dia a dia, às coisas que gosto de fazer e com as quais passo o meu tempo, e não me disponibilizo como podia e devia, eu sei!
Vivo e mantenho muito os meus "esquemas", comodista que sou, delineio e custo a alterar as minhas rotinas, intransijo pouco a mudanças de ritmos ...
Interiormente luto contra mim própria, mas sinto em mim pouco "espaço de manobra", uma resistência até, para alterar o "stato quo" ... "quem torto nasce ..." (rsrsrs)


Contudo amo-os profundamente a todos ...
Ser-me-ia muito difícil continuar a marcha sem estes esteios a nortear-me o percurso!


Tenho duas filhas, dizia ; duas filhas absolutamente diferentes, opostas nas formas de ser, nas personalidades, nas posturas.


Nunca abordei nada sobre elas, aqui neste meu espaço, como se isso fosse um assunto demasiado íntimo, demasiado intocável, demasiado pessoal, quase "sacralizado", para o expor em público.
Pareço ter algum "pudor" afectivo, a falar dele!...


Contudo, olhando para trás e lembrando as suas infâncias e adolescências, algumas surpresas a vida me reservou.


A minha filha mais velha (é sobre ela que falarei hoje), sempre foi extremamente responsável, demasiadamente responsável perante a vida pessoal, académica, social.
Extremamente formal, é ainda hoje, absolutamente intransigente e pouco permeável a facilitismos, utopias ou situações dúbias ou pouco claras.
É atenta, rigorosa, exigente, reivindicativa.
Seguiu a área do Direito, e obviamente a deformação profissional inerente, "apurou-lhe" ainda mais estas características personalísticas.
É uma pessoa fechada, aparentemente fria ... apenas aparentemente, porque é de uma sensibilidade especial, que preserva e procura encapotar, como se a sua exteriorização a fragilizasse e a tornasse vulnerável à vida.


Tem três crianças, em "escadinha" de três anos. Três adoráveis "pestinhas" de dez, sete e quatro anos.


Com os filhos, usa do mesmo rigor de princípios e valores, a mesma exigência, sem cedências exageradas.
Uma educação que eu (que também assim fui ... mas não é para lembrar ... rsrsrs), como avó que assume o protagonismo de "estragar" os netos (como cabe a qualquer "mãe com açúcar" - a melhor definição de avó, que já alguma vez li ), sempre "recrimino", e para a qual sempre chamo a atenção, embora a respeite inteiramente, como é óbvio.

É no entanto uma "mãezona", coisa que jamais eu "adivinharia" no seu perfil, quando adolescente.
É com ternura, espanto e alguma surpresa, que constato que a partir do momento em que fiquei só, esta minha filha assumiu o lugar que talvez devesse ter-me cabido a mim, de "matriarca", pólo centralizador e aglutinador dos valores familiares.
Costumo dizer que neste momento, naquela cabeça e naquele coração, além dos três filhos, cabem "por adopção", outros três ... a irmã, a avó e eu própria.

Chama a si as preocupações e os interesses de cada um de nós, desdobra-se nas tentativas de resolver, satisfazer, "inventar" o que possa "florir" ainda, e sobretudo, os caminhos da avó, que a ajudou a criar nos primeiros anos de vida, e por quem tem um carinho muito especial ...

Tem um instinto protector do "clã"... sendo que o mesmo abrange todo o núcleo de afectos que lhe dizem respeito.
Lembra uma "leoa" no instinto maternal ...
Ela é interveniente, ela exige, ela não descura ou facilita, ela é rigorosa por demais ... mas ela também se desdobra na resposta ás necessidades das crianças (escolares, sociais, familiares, lúdicas), à custa do seu próprio descanso e da sua própria vida pessoal, no sentido de  orientar seres globalmente programados numa formação integral, como cidadãos  responsáveis, capazes,  pessoas  (homens e mulheres de amanhã) ... inteiros e genuínos!!!...

E pronto ... creio ter feito um "retrato" isento e justo, da "terceira a contar de cima"...

Fico agora em dívida com "a senhora que se segue" ... rsrsrs

Prometo, por um destes dias, vir também a esta tribuna fazer uma reflexão, igualmente distanciada, para que resulte tão próxima da realidade quanto possível (sem a comprometer "deformando-a", com o olhar tendencioso de mãe ...)

Anamar

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

"TUDO ISTO EXISTE ... "

A minha reflexão de hoje é bem objectiva, contrariamente à escrita anterior, como se sabe.

Pensei e repensei sobre o assunto que aqui trago, cujo teor infelizmente não é virgem nos meus escritos.
Em tempos idos, publiquei outro post abordando o mesmo tema, sinal que ele se repete ... sinal dos tempos, talvez !...
Decidi-me hoje escrever, porque considerei que se a questão em si me não sai da cabeça, depois de a ter tentado relegar para o meu "lixo" mental, é porque se calhar, ela é importante, pelo menos para mim.

Uma vez mais deparei-me, no cabeleireiro, lugar absolutamente "apropriado" para este tipo de coisas, com um artigo de uma das revistas cor de rosa, das nossas bancas.
Lá é o local onde sempre mas enfiam nas mãos, e lá é o único sítio onde lhes passo os olhos ... ainda assim, muito na diagonal.

Desta feita, como digo, saltou-me e "provocou-me", um artigo sobre uma das participantes de um dito programa televisivo, a que nunca assisti, e que dá pelo nome de "Casa dos Segredos".

O título chamativo era : "Ela já vale uma fortuna - Cachet pode chegar aos 800 euros por presença" - acompanhado de uma foto de capa, da concorrente em causa.

Trata-se de uma auxiliar de acção médica, algarvia, oriunda de família extremamente precária do ponto de vista económico, em que a projecção à "ribalta", se deve exactamente à sua visibilidade no referido programa.
Até aí, nada a objectar ... Respeito o livre arbítrio, concordando ou não.

O que realmente me "mexeu", foi a análise feita ao perfil da menina.
Era dito : "Ela é ingénua, atiradiça, divertida, INCULTA (!!!) e muito popular"  (sic) ...

E continuava, no seguinte teor ... As "pérolas" de Cátia :

- " Gostava  de visitar a Península Ibérica"                                                                                    
- " África fica a norte de Portugal"                                                                                         
- " A capital da Itália é Veneza"                                                                                     
- "O maior mamífero à superfície da Terra é o dinossauro"
- " Se calhar no globo só aparecem as capitais.
    Se calhar o Dubai está lá dentro"                                                                                        
                                                                                     
 (referi apenas alguns exemplos, dado que o meu intuito não é obviamente explorar esta vertente)

Nesse ponto da leitura já eu espumava, já os olhos me "pulavam" nas órbitas, de arregalados, já eu quase não me continha com uma vontade louca de largar uns quantos impropérios, soltar uns quantos palavrões ...

Tristeza de sociedade, tristeza de país, se calhar tristeza de Mundo ... miséria humana no seu melhor, exibida e explorada, como se o ser humano fosse macaco de circo!...

Isto tudo num país em meio de uma crise brava ... talvez também, por causa da crise brava .
A situação social de precariedade a acentuar-se, de falta de perspectiva ou horizontes, de falta de trabalho, acarretando desistência, desmotivação, cansaço acrescido... leva a que : por um lado, a necessidade de ascensão social  a qualquer preço (acenada por este tipo de programas, de facilitismo, de "abundância" imediata e sem mérito ou esforço), surja como luz ao fundo do túnel ...
por outro, e na vertente oposta, leva a que se consuma, se devore, se utilize miseravelmente o irrelevante, o menos bom do ser humano (exposto como "carne p'ra canhão"), a "fofoca", a exposição das vidas pouco ou nada transparentes dos pseudo-vips e dos que o querem ser ... como sendo assuntos "extraordinariamente" invejáveis e importantes, para o comum dos cidadãos ... uma forma de alienação através de vidas desinteressantes e cinzentas.

Penso que este estado de coisas é revelador do "analfabetismo" formal, da "iletracia", do "obscurantismo" de um povo pouco habituado a pensar, a questionar, a ter sentido crítico, a analisar, a "escolher"...
um povo em que, um filho utiliza a denúncia pública do próprio pai (como protagonista de crimes hediondos), também num programa televisivo, para se catapultar a candidato ao mesmo !!!...

Refiro ainda, porque me choca brutalmente, o papel de insensibilidade, irresponsabilidade e exploração, de alguma comunicação social, que "vende" a qualquer preço, indiferente exactamente à incapacidade, à ignorância, à vaidade, à leviandade e à credulidade ... em suma, à estupidez do ser humano.

Penso que deveriam existir órgãos seriamente reguladores deste tipo de artigos, por intencionalmente falaciosos, oportunistas, imorais!...

Enfim ... "tudo isto existe, tudo isto é triste ... se calhar, tudo isto é FADO!!!...

Anamar

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

"AINDA HÁ PESSOAS ASSIM "...


Ainda há pessoas assim ...

Tenho um amigo que consegue deslumbrar-me a cada momento.
Homem maduro, cabeça totalmente branca a atestar as vissicitudes por que tem passado na vida ... um coração que não lhe cabe no peito ... e uma alma e um riso de criança ! ...

Nos tempos que correm, este carácter, esta personalidade, esta forma de ver e estar na vida são absolutamente incomuns, raras, "desadequadas" ... são verdadeiras pérolas negras cerradas na concha de uma ostra dos mares do sul ...

O Augusto, chamemos-lhe assim, é oriundo de uma família de província dessa Beira Baixa de interioridade total, onde o agreste dos picos e das penedias da Estrela talham, nos genes, perfis de integridade, robustez, garra, intrepitude, mas também de almas generosas, solidárias e tão transparentes quanto o ar da serra.

Devido a circunstâncias de vida que não vêm ao caso, cresceu e fez-se homem no seio de uma família  classe alta, entre Sintra e a Av. de Roma ... já lá vão algumas décadas.

A realidade da sua vida ... pois totalmente distinta da que teria tido se tivesse vivido na sua terra natal ;
passou a conviver e a mexer-se no meio de uma burguesia pródiga, bastante abonada em dinheiro e valores, sem dúvida classe privilegiada no Portugal de então.
Apesar de rapazote, manteve em si já na altura, qualidades que se lhe reconhecem claramente hoje : bom observador do que o rodeava, sentido crítico e isenção nas análises, justeza nas apreciações, desejos de equidade ... mas sempre um espírito sonhador e crente a nortear-lhe o percurso.
O Augusto é ainda hoje um "D.Quixote" nato ...

Toda a sua energia é canalizada diariamente para tudo aquilo em que acredita.
A luta não o intimida ... nunca o intimidou, mesmo quando teve que enfrentar grandes desafios na vida, nem sempre favoráveis.
Sempre tem uma mão estendida para ajudar a levantar, para impulsionar quem está por baixo ... sempre tem uma palavra de estímulo para quem não está seguro ... sempre tem uma luz para, no fundo do túnel, nortear os mais perdidos ... sempre tem uma disponibilidade e uma generosidade que me enternecem ! ...

A vida é implacável quantas e quantas vezes, testa-o constantemente, mas a criança que tem dentro de si fá-lo sorrir quase sempre, fá-lo reerguer quando parece que não há mais caminho a fazer ...
"Pensamento positivo, sempre" é um lema que adopta como forma de estar na vida.
As grandes causas sociais, objecto da sua preocupação, são terreno onde dispende muita da sua energia sem sossobrar.
Sempre acha que vale a pena mudar uma "pequena fatia" para poder mudar o Mundo ...

Adora animais, os seus e os abandonados ... Vive rodeado de dois cães e três gatos, todos recuperados de infortúnios, de destinos madrastos.

Ama a natureza, absorve até ao âmago da sua alma, o vento da falésia sobranceira ao mar imenso, bem frente à casa onde vive, numa aldeia entre Colares e a Roca ...
Não dispensa as flores na sua vida ;  tem-nas, compra-as para que alindem o seu espaço e o seu coração, para que as energias positivas que elas sempre nos transmitem, o envolvam ... oferece-as para "aquecer" com elas, outros corações !
Tem debaixo da pele a "sua" serra de toda a vida ... Sintra é o seu mundo, o seu sangue ... o seu "oxigénio" de vida ! ...

E pronto ... ainda há pessoas assim ! ...

Contudo, apesar de me ter esforçado, sinto quão pequenina foi esta minha humilde tentativa de o descrever ... quão distante do ser que ele é, este "esboço" rudimentar que pintei ...
Apenas, há muito sentia em mim a necessidade de o tentar "desenhar" na minha escrita, aqui no espaço onde falo de tudo o que me toca e me emociona ...
até para que acreditemos que nem tudo está perdido nesta "selva" que habitamos, até para que aceitemos sempre que "amanhã é outro dia " ...
até para tentar fazer alguma justiça ao ser admirável que eu tive o privilégio de cruzar na minha vida !! ...

Anamar
                                               
                                                          

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

"LIBERDADE..."


Este post, juntamente com o de ontem, é uma nota de humor na escrita de dois homens de letras que não necessitam de referências : o brasileiro Mário Quintana e o nosso "mestre" Fernando Pessoa.

Sobre ele recuso alongar-me, sabendo nós que quem não tiver sequer uma ideia sobre a sua pessoa e a sua obra, seja iletrado, direi mesmo "analfabeto" formal.
Esta vertente satírica, de um humor fino e requintado é um novo lado de "ver" Pessoa, igualmente interessante.

Juntei os dois posts porque fundamentalmente ambos abordam o mesmo tema que tão bem conhecemos, mas apenas os génios sabem traduzir : as pequenas / grandes prevaricações a que o ser humano é "convidado" diariamente, e o gozo que dá infringi-las, desrespeitar as regras instituídas...

De uma forma geral o ser humano vive "espartilhado" pessoal, social, profissionalmente. Vive entre convenções, vive entre a "cruz e a caldeirinha", vive entre o politicamente correcto que lhe impingiram, e a "rebelião" interna que sente dentro de si.

Ao longo da vida foi vinculado duma forma geral, a regras, figurinos, parâmetros, entre o que pode e o que deve, entre o parece e o não parece bem, entre o social aceite pela "carneirada" e as ganas que sente em não fazê-lo...
"É certo ou errado", "pode-se ou não se pode", "deve-se ou não se deve"... e as barreiras, as baias e os muros levantam-se cada vez mais altos à nossa frente.

E lá seguimos, mais ou menos contrariados, constrangidos, irados às vezes, de "olho gordo" sobre o que desejaríamos ter liberdade de fazer e a coragem ou ausência dela, para o fazer!...

O "pudim" de Quintana, está aí a cada esquina a espreitar-nos, a piscar-nos os olhinhos ... até que um dia mesmo os menos corajosos dão o salto e dizem : "Que se lixe"!!!...

  "LIBERDADE"

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa…
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças…
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca

                                                       Fernando Pessoa 
Anamar

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

"IRRESISTÍVEL ...."



Nome:
Mario Quintana
Nascimento:
30/07/1906
Natural:
Alegrete - RS
Morte:
05/05/1994 em Porto Alegre

Foi um poeta,contista, tradutor e jornalista gaúcho.
Mário Quintana não carece de apresentações. Todo o seu espólio é e sempre será um espanto!
A sua poesia é marcada pela simplicidade, pelo humor subtil e pelas pequenas surpresas, em poemas que muitas vezes não têm mais do que uma frase... "Sonhar é acordar-se por dentro", é tudo o que diz um deles. Precisa mais? 
                                                             Mario Quintana

                 "Olho em redor do bar em que escrevo estas linhas.
                  Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha,
                  nem desconfia que se acha connosco desde o início
                  das eras. Pensa que está somente afogando problemas
                  dele, João da Silva... Ele está é bebendo a milenar
                  inquietação do mundo!" 
 
   Recebi de uma amiga o texto que vos passo e que achei "divino"  (obrigada Emília).
   Se o apreciarem como eu o apreciei, teremos prestado uma humilde homenagem, a mais um "monstro" das letras e a mais um livre pensador do nosso país irmão!...
Convosco, portanto, com o meu carinho.......também o HUMOR de Mário Quintana!


                                      eterno espanto


           "Em que estrela, amor, o teu riso estará cantando?" 


Pesquisei na Net e esta "doçura" de poema, parece não dever-se a Mário Quintana, mas a um poeta uruguaio, nascido em 1920,  Mário Benedetti.
Era um admirador canino de Quintana, ao ponto de lhe deixar bilhetes, livros e quindins na portaria do seu prédio, e é ainda assim, uma adaptação do mesmo.

P U D I M

Não há nada que me deixe mais frustrada
do que pedir Pudim de sobremesa,
contar os minutos até ele chegar
e aí ver o garçon colocar na minha frente
um pedacinho minúsculo do meu pudim preferido.
Um só.
 
Quanto mais sofisticado o restaurante,
menor a porção da sobremesa.
Aí a vontade que dá é de passar numa loja de conveniência,
comprar um pudim bem cremoso
e saborear em casa com direito a repetir quantas
vezes a gente quiser,
sem pensar em calorias, boas maneiras ou moderação.
 
O PUDIM é só um exemplo do que tem sido nosso cotidiano.
 
A vida anda cheia de meias porções,
de prazeres meia-boca,
de aventuras pela metade.
A gente sai pra jantar, mas come pouco.
 
Vai à festa de casamento, mas resiste aos bombons.
 
Conquista a chamada liberdade sexual,
mas tem que fingir que é difícil
(a imensa maioria das mulheres
continua com pavor de ser rotulada de 'fácil').
 
Adora tomar um banho demorado,
mas se contém p'ra não desperdiçar os recursos do planeta.
 
Quer beijar aquele cara 20 anos mais novo,
mas tem medo de fazer papel ridículo.
 
Tem vontade de ficar em casa vendo um DVD,
esparramada no sofá,
mas se obriga a ir malhar.
E por aí vai.
 
Tantos deveres, tanta preocupação em 'acertar',
tanto empenho em passar na vida sem pegar recuperação...
 
Aí a vida vai ficando sem tempero,
politicamente correta
e existencialmente sem-graça,
enquanto a gente vai ficando melancolicamente
sem tesão...
 
Às vezes dá vontade de fazer tudo 'errado'.
Deixar de lado a régua,
o compasso,
a bússola,
a balança
e os 10 mandamentos.
 
Ser ridícula, inadequada, incoerente
e não estar nem aí pro que dizem e o que pensam a nosso respeito.
Recusar prazeres incompletos e meias porções.
 
Até Santo Agostinho, que foi santo, uma vez se rebelou
e disse uma frase mais ou menos assim:
'Deus, dai-me continência e castidade, mas não agora'...
 
Nós, que não aspiramos à santidade e estamos aqui de passagem,
podemos (devemos?) desejar
vários pedaços de pudim,
bombons de muitos sabores,
vários beijos bem dados,
a água batendo sem pressa no corpo,
o coração saciado.
 
Um dia a gente cria juízo.
Um dia.
Não tem que ser agora.
 
Por isso, garçon, por favor, me traga:
um pudim inteiro
um sofá p'ra eu ver 10 episódios do 'Sexo e a Cidade',
uma caixa de trufas bem macias
e o Richard Gere, nu, embrulhado p'ra presente.
OK?
Não necessariamente nessa ordem.
 
Depois a gente vê como é que faz p'ra consertar o estrago.
“Há noites em que eu não posso dormir, de remorso por tudo o que eu
deixei de cometer.”
 
Mário Quintana
Anamar