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sexta-feira, 14 de março de 2014

" A MULHER, O ESPELHO E REFLEXO "



Deambulando por aí, deparei-me com este artigo, bem interessante, escrito também por uma mulher.

Achei-o curioso, e tanto mais, porque vinha o mesmo, como que em continuidade do que eu escrevera no post anterior.
Parecia que o meu pensamento, e o da autora, se haviam cruzado !
Trata-se dum texto muito bem escrito, muito lúcido, muito objectivo ...
E  com  um  toque de extrema  sensibilidade,  na  delicadeza  das  abordagens, devido  evidentemente, a uma  alma  e  a um  espírito femininos !

Achei-o merecedor de divulgação, e ofereço-o em particular às minhas leitoras, obviamente. Espero que o apreciem.


Por: Benedita Enildes de Campos Corrêa

A mulher, o espelho e reflexo


O tempo passou, a idade avançou e é como se eu tivesse atravessado a fronteira do tempo entre a juventude e a maturidade quase sem me dar conta. Agora, é mais fácil entender os idosos quando dizem que o tempo passa tão rápido.

Aos 47 anos, a relação com a vida mudou. Com o espelho também. Às vezes, ele parece refletir quase a mesma imagem de tempos atrás. Outros momentos, todavia, o espelho traz à tona um novo rosto, revelando como de uma só vez, abruptamente, as mudanças ocorridas no decorrer dos anos.

Agora, diante do espelho, percebo-me de forma diferente: uma expressão com a sua própria unicidade, a qual não rotulo mais, de bonita ou feia, como antes. Aos poucos, vou desapegando-me da imagem física. Afinal, nós não somos o corpo. Questiono-me acerca do mistério da alma contido nas camadas profundas do corpo. Quem é esse Ser na sua totalidade que o corpo cobre e testemunha tudo o que acontece? Quem olha através dos meus olhos para o espelho? Quais as faces que permanecem desconhecidas dentro de mim e que ainda poderão ser reveladas?

Faço uma  retrospectiva no tempo e vejo meu corpo como um palco no  qual transcorreram  cenas de lutas com vitórias e derrotas, resistências e entregas, atos de bravura e fraqueza, encontros e desencontros, encantos e desencantos,  risos e prantos, gritos e silêncios, amargores e êxtases.  Cenas que não tiveram ensaios prévios, acontecimentos que deixaram uma forte experiência e muita gratidão com tudo que me remeteu para dentro de mim, fazendo-me buscar o encontro comigo mesma, sem o qual é impossível o nosso encontro com o Todo. 
Experiências vivenciadas neste corpo que me foram desamarrando, libertando de ilusões, bloqueios e de muitos apegos, dando-me a impressão de ter vivido mais de uma encarnação num único corpo. Quantas transformações! Em contraste com a experiência adquirida, dentro há uma jovialidade que transcende tempo e forma. É como se houvesse em  mim várias mulheres de idades diferentes - de uma  criança a uma anciã. E uma disposição para confiar na vida que o mergulho em mim mesma através do tempo fez acontecer.

A dedicação ao autoconhecimento me abriu um espaço de profunda intimidade e compreensão do mundo interno, o que tem me permitido lidar com as mudanças físicas de um modo mais natural, apesar, é claro, de o espelho testemunhar alguns conflitos e contradições, que é normal em toda fase de transição, em especial, na vida da mulher. Quando entramos no nosso  interior entendemos melhor a relação entre corpo, mente e energia. Não nos tornamos presas fáceis dos desejos e das loucas demandas da mente, bem como das exigências desta nossa sociedade de consumo que cultua a imagem do corpo de forma extremamente exacerbada, tornando-se uma insanidade.

Nesta nova experiência com o espelho, o corpo e o reflexo, chegam-me as palavras do querido amigo, Dr. Paraná de Oliveira, o qual deixou o corpo aos 89 anos:  “ter o senso de beleza mais desenvolvido é uma qualidade excepcional. Não é qualquer um que a tem. A beleza  física  não tem muito mérito, é transitória, passageira. A beleza  interior é permanente,  porém, mais difícil de encontrar e atrai a simpatia das pessoas. Ela é obra pessoal  do titular. O titular a constrói. E para aqueles que gozam da beleza interior, o  corpo pode  não ser  tão  bonito, mas sempre se descobre um ângulo que o favoreça, mesmo com a idade. É como o fotógrafo que concebe o ângulo mais bonito da mulher para fotografá-la e termina descobrindo aquele que a deixa mais bela.”
Durante um satsang com Kiran Kanakia na Índia, místico sufi indiano, alguém  lhe perguntou como aprender a permanecer em harmonia com o corpo  quando este vai  envelhecendo.  Eu fiz um registro de  parte da sua mensagem:

“Envelhecer é um fenômeno biológico natural do corpo. Compreenda o corpo, as suas demandas, o que e o quanto ele necessita neste momento. Ouça-o. Esta compreensão da linguagem e da situação do corpo o mantém em harmonia. Uma vez que você está em harmonia com o corpo, há uma  beleza natural nele com a idade também. Não há nada errado em aceitar que o corpo está ficando velho. Aceite isso. Uma vez que você aceita não vai forçar o corpo a se tornar jovem.  Há uma aceitação harmoniosa do envelhecimento.

Não há beleza  somente nas pessoas jovens. Há beleza nas pessoas idosas também. Beleza é a harmonia que está no corpo. Beleza não é a forma do nariz,  dos olhos, do rosto, do corpo. Beleza não está na idade. Beleza está na harmonia. Harmonia é beleza. Uma vez que você vai entrando em harmonia com a vida, há uma beleza interior que ressalta. Se você permanece em harmonia há uma beleza natural e fica livre de todo esse medo de envelhecer.”
Tenho aprendido com Kiran que a compreensão e a aceitação da natureza da vida do jeito que é, interna e externa, nos conectam com a harmonia - nosso estado natural. Que é possível viver com celebração, da infância à velhice. A Existência não é miserável e a cada momento nos dá muitos presentes. Só precisamos estar de olhos abertos para enxergar.

À medida que o tempo passa, dou-me conta de que a melhor fase  é aquela em que nos inserimos na vida com totalidade e consciência. Então, permanecemos no aqui e agora, onde aspiramos o perfume da sagrada comunhão com a Existência. Vivendo a idade da maturidade constato haver certos frutos que, normalmente, só podem ser colhidos a partir desta época. E em qualquer idade é possível descobrir o nosso melhor ângulo, mesmo diante do espelho.

Dou graças à Vida por tomar consciência de que dentro do corpo há aquela parte que não envelhece, que nunca morre. E agradeço a Deus a paz, a harmonia, a beleza e, por que não, o Mistério de cada dia.


Anamar

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

" A VIDA "



No meu post de ontem, coloquei uma frase, um pensamento, que de alguma forma foi "mentor" de tudo o que escrevi.
Foi ela, uma espécie de pontapé de saída para a reflexão que constituíu  o  que  postei :   "A  VIDA  é MUITO,  para  ser  insignificante "...

Na altura não referi o autor dessa frase.
Ela foi retirada de um poema seu, que do meu ponto de vista tem tanto de lúcido e comovente, como de absolutamente realista, talvez duro e um pouco cru ...
Mas a Vida é tudo isso, não ??!!...

Trata-se de Augusto Branco, personalidade que não me dizia nada, mas que indaguei na Net.

Augusto Branco (Porto Velho, 23 de maio de 1980), pseudônimo de Nazareno Vieira de Souza é um poeta e escritor brasileiro.

Biografia

Augusto Branco nasceu em Porto Velho, capital do estado brasileiro de Rondônia, filho de Rosa e Raymundo, dois ribeirinhos que foram morar na cidade. Escreveu seus primeiros versos ainda na infância entre os 7 e 8 anos, pouco antes de começar a trabalhar na loja de ferragens de seu pai.
O poeta é Técnico em Contabilidade e cursou Administração na Faculdade São Lucas, até que aos seus 23 anos resolveu buscar outros horizontes em sua vida profissional.
Freqüentou os cursos de Administração e Pedagogia na Universidade Federal de Rondônia, mas não completou, no entanto nenhuma faculdade. Colaborou, como colunista, no periódico Diário da Amazônia, e publicou várias obras na Internet, meio que encontrou para divulgar sua obra enquanto não conseguia assinar com uma editora.
Publicou seus primeiros livros de forma independente, pelo Clube de Autores, e suas publicações virtuais tiveram um êxito considerável, especialmente o poema VIDA: Já perdoei erros quase imperdoáveis - atribuído a diversos autores  pela Internet,  mas finalmente registado em seu nome pela Biblioteca Nacional. Chamou atenção pela sua popularidade na internet, a nível mundial, ao longo de muitas redes sociais, e até  em rede nacional pela Rede Globo.

"Bom mesmo é ir à luta com determinação, abraçar a vida com paixão, perder com classe e vencer com ousadia, porque o mundo pertence a quem se atreve, e a VIDA é MUITO para ser insignificante."


Sem demais "acrescentos", portanto, que seriam grosseiros, ousados e excessivos da minha parte, deixo-vos apenas ...  "A  VIDA " ...

Já perdoei erros quase imperdoáveis,
tentei substituir pessoas insubstituíveis
e esquecer pessoas inesquecíveis.

Já fiz coisas por impulso,
já me decepcionei com pessoas
que eu nunca pensei que iriam me decepcionar,
mas também já decepcionei alguém.

Já abracei pra proteger,
já dei risada quando não podia,
fiz amigos eternos,
e amigos que eu nunca mais vi.

Amei e fui amado,
mas também já fui rejeitado,
fui amado e não amei.

Já gritei e pulei de tanta felicidade,
já vivi de amor e fiz juras eternas,
e quebrei a cara muitas vezes!

Já chorei ouvindo música e vendo fotos,
já liguei só para escutar uma voz,
me apaixonei por um sorriso,
já pensei que fosse morrer de tanta saudade
e tive medo de perder alguém especial (e acabei perdendo).

Mas vivi!
E ainda vivo!
Não passo pela vida.
E você também não deveria passar!

Viva!!

Bom mesmo é ir à luta com determinação,
abraçar a vida com paixão,
perder com classe
e vencer com ousadia,
porque o mundo pertence a quem se atreve
e a vida é muito para ser insignificante ! 


Augusto Branco


Anamar

sábado, 13 de outubro de 2012

" QUEM ME QUISER "





Hoje, quem me quiser não me terá, pela simples razão que já morri ...

Hoje , quem me quiser, apenas lembrará o tempo que eu vivi.

Hoje, dobrei a esquina,  fechei os olhos, cerrei a luz 

Deixei que a sombra me envolvesse, que as chuvas me inundassem, 

Fingi que acreditei ...

Deixei que os sonhos me enganassem ...

Hoje, ainda que queiras ... lembra apenas que um dia te existi !

Já não me podes ter ... pela simples razão que já morri ...

                                                                                                 Anamar



Para vocês,  "Quem me quiser" ... extraordinário poema de  Rosa Lobato de Faria, nesta madrugada de sábado ... apenas mais um dia ..

                                   

Quem me quiser

 

Quem me quiser há-de saber as conchas
as cantigas dos búzios e do mar.
Quem me quiser há-de saber as ondas
e a verde tentação de naufragar.
Quem me quiser há-de saber as fontes,
a laranjeira em flor, a cor do feno,
a saudade lilás que há nos poentes,
o cheiro de maçãs que há no inverno.
Quem me quiser há-de saber
a chuva que põe colares de pérolas nos ombros
há-de saber os beijos e as uvas
há-de saber as asas e os pombos.
Quem me quiser há-de saber
os medos que passam nos abismos,
infinita nudez clamorosa dos meus dedos,
o salmo penitente dos meus gritos.
Quem me quiser há-de saber
a espuma em que sou turbilhão, subitamente
- Ou então não saber coisa nenhuma
e embalar-me ao peito, simplesmente.

Rosa Lobato de Faria





Anamar

terça-feira, 2 de outubro de 2012

" A BARCA DA MEMÓRIA "


Veja este vídeo fantástico do MSN - Memórias da cidade do Porto no fundo do mar


( clique sobre esta frase para abrir o vídeo )

Na cidade do Porto decorre uma iniciativa cultural interessantíssima, que apelidaram da "Barca da Memória". Conforme o vídeo que aqui  posto e que retrata o evento, os portuenses são convidados a colocar em contentores que serão posteriormente selados, o que entenderem poder retratar o Porto actual.
Algo que fale dos dias de hoje, da história da cidade e dos seus habitantes.
Esses contentores, reunidos num Barco Rabelo - "A Barca da Memória" ( como lhe chamaram ), serão então, em cerimónia adequada, transportados para alto mar, e afundados a  três milhas a sudoeste da barra do Douro.
A ideia é serem recuperados em 2112, ou seja, daqui a cem anos, para que as memórias de hoje na vida da cidade e dos portuenses, sejam dessa forma - nas mais variadas vertentes - narradas e ilustradas aos concidadãos de então.

Esta iniciativa, lembrou-me o conhecido envio de mensagens em garrafas lançadas ao mar, na expectativa de que, algures num qualquer areal, de um qualquer continente, num qualquer lugar do Mundo, ao serem recuperadas, essas mensagens sejam lidas, e dessa forma tenham colocado em comunicação dois seres, que não se conhecem, que jamais se conhecerão, que talvez já nem existam,  mas  que  dessa  forma  saiam  perpetuados,  através  dessa  comunicação ...

São nostálgicas estas formas de expressão e transmissão de pensamentos e sensações, por quem assim os expressa .  É como se o ser humano, de certo modo, quisesse eternizar a sua existência, a sua pegada, algures aqui na Terra ;
Como se dessa forma se sentisse um pouco detentor e manipulador do Tempo, vencendo-o, numa espécie de passada de gigante.
É como se dissesse :  " Daqui a cem anos eu já não estou ;  mas estarei, através de quem me ler, quem me sentir, quem me perscrutar ... "

O ser humano sempre sonha com a eternidade, sempre sonha deixar o seu rasto, de alguma maneira, no Planeta.
Os namorados inscrevem corações entrelaçados e atravessados por setas, em troncos de árvores, que atravessam anos ... às vezes, vidas ;
Nas pedras deixam-se inscrições a desafiar as eras ;
Nas areias escrevem-se nomes, deixam-se pegadas e tactuam-se mãos, para a maré desfazer, indiferente ...

Em casa, não em barcas, mas em arcas, guardam-se as memórias, como se pode.  De fotos, a postais, a escritos, a flores secas, a pedras, a conchas, a bilhetes de espectáculos, a guardanapos de papel ... de tudo, essas arcas têm ( já aqui falei delas muitas e muitas vezes, e da minha compulsão em recheá-las ).
É como se disséssemos : " Passei aqui na Terra por algum tempo.    Aqui estão  as  minhas marcas ... as memórias  da  pessoa  que  eu  fui !... "

E tudo porque temos pavor do esquecimento, até mesmo na cabeça dos nossos entes queridos.
A minha mãe frequentemente diz, sobre isto ou aquilo que faz : " Depois vocês vão lembrar-se de mim, um dia !... "  ( como se nós pudéssemos esquecê-la !... )
Mas na cabeça dela, sendo algo material, permanecerá depois dela partir, e terá para todo o sempre, a marca das suas mãos.
Ela não entende que a marca individual do ser humano, não passa por nada material, mas advém sim, do espólio espiritual, afectivo, do todo global que essa pessoa intrinsecamente foi, distribuíu, doou de si mesma, na sociedade, e no seu meio restrito, junto de todos e de alguns.
Esse é que é o legado que fica.  Isso  é que imortaliza ou não, o Homem !

Sentimos pavor de não sermos realmente mais do que o pó, em que nos transformaremos ...
E o pó é volátil, o pó vai com o vento, o pó transporta um anonimato doloroso, e até os mais humildes, conscientes e realistas, sentem que é injusto ser em vão, a sua passagem por aqui.  
Que diabo ...  boa, má, louvável, reprovável ... fomos gente ... tivemos "história" !
Temos direito a um lugar na "galeria" !!!...

Recordo o  filme  que a maioria de vocês  lembrará seguramente, baseado na  novela do mesmo nome, de Nicholas Sparks :  "As palavras que nunca te direi".
O enredo da película assenta exactamente, como referi atrás, nas palavras, nos sentimentos, nas emoções, nas histórias, narradas anonimamente, encerradas e transportadas numa garrafa lançada ao mar.

Esta  ideia  é  assaz  romântica,  é  emocionante,  é  nostálgica,  poética ...
Comporta em si, a remota ilusão de que um dia, alguém lerá aquelas confidências ...
Onde?  Quando ?  Quem ?
Ninguém poderá responder a nada disso ;  é como uma página da nossa vida, uma folha do nosso destino, que seguiu à deriva pelo Mundo.
Somos nós a falarmos para alguém sem rosto ; é um pouco do que somos, transportado a outros corações ;
é parte das nossas memórias, que alguém / ninguém irá partilhar com alguém / ninguém, também sem rosto, mas certamente com alma !...

Nunca o fiz, mas às vezes penso que gostaria de um dia, também embarcar nessa viagem ... largar a minha garrafa numa qualquer maré, de um qualquer mar ...
E já me perguntei, quais seriam as minhas palavras, sem destinatário conhecido ??

Afinal, talvez simplesmente encerrasse nela, um poema ...  um poema da mulher-poetisa, eleita pelo meu coração, e que tão bem dá eco à alma feminina ... Florbela Espanca 
Talvez este ... quem sabe ??!!...


                    " EU "

Eu sou a que no Mundo anda perdida,
Eu sou a que na Vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
sou crucificada ... a dolorida ...

Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
impele brutalmente para a morte !
Alma de luto sempre incompreendida !...

Sou aquela que passa e ninguém vê ...
Sou a que chamam triste sem o ser ...
Sou a que chora sem saber porquê ...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao Mundo p'ra me ver
e que nunca na Vida me encontrou !    
  
                                        Florbela Espanca ( do Livro de Mágoas )
                                                       


Anamar

terça-feira, 24 de julho de 2012

PARA REFLECTIR ...

Mais uma vez este espaço se abre a um artigo digno de divulgação, tão lata quanto possível, e despoletador de profunda reflexão, penso.

Analisar, repensar, interpretar a "saúde mental dos portugueses" nos tempos que correm, com todos os considerandos que lhe são inerentes, e particularmente feita por um profissional de gabarito na área em causa ... urge !

Assim sendo, limito-me a colocar à vossa disposição este texto, que por certo alguns conhecerão, mas cujo conteúdo nunca será demais considerar..



Artigo de Pedro Afonso - Médico psiquiatra no Hospital Júlio de Matos


Transcrição do artigo do médico psiquiatra Pedro Afonso, publicado no
Público
.

"Alguns dedicam-se obsessivamente aos números e às estatísticas
esquecendo que a sociedade é feita de pessoas.

Recentemente, ficámos a saber, através do primeiro estudo
epidemiológico nacional de Saúde Mental, que Portugal é o país da
Europa com a maior prevalência de doenças mentais na população. No
último ano, um em cada cinco portugueses sofreu de uma doença
psiquiátrica (23%) e quase metade (43%) já teve uma destas
perturbações durante a vida.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque assisto com
impotência a uma sociedade perturbada e doente em que violência,
urdida nos jogos e na televisão, faz parte da ração diária das
crianças e adolescentes. Neste redil de insanidade, vejo jovens
infantilizados incapazes de construírem um projecto de vida, escravos
dos seus insaciáveis desejos e adulados por pais que satisfazem todos
os seus caprichos, expiando uma culpa muitas vezes imaginária. Na
escola, estes jovens adquiriram um estatuto de semideus, pois todos
terão de fazer um esforço sobrenatural para lhes imprimirem a vontade
de adquirir conhecimentos, ainda que estes não o desejem. É natural
que assim seja, dado que a actual sociedade os inebria de direitos,
criando-lhes a ilusão absurda de que podem ser mestres de si próprios.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque, nos últimos quinze
anos, o divórcio quintuplicou, alcançando 60 divórcios por cada 100
casamentos (dados de 2008). As crises conjugais são também um reflexo
das crises sociais. Se não houver vínculos estáveis entre seres
humanos não existe uma sociedade forte, capaz de criar empresas
sólidas e fomentar a prosperidade. Enquanto o legislador se entretém
maquinalmente a produzir leis que entronizam o divórcio sem culpa,
deparo-me com mulheres compungidas, reféns do estado de alma dos
ex-cônjuges para lhes garantirem o pagamento da miserável pensão de
alimentos.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque se torna cada vez
mais difícil, para quem tem filhos, conciliar o trabalho e a família.
Nas empresas, os directores insanos consideram que a presença
prolongada no trabalho é sinónimo de maior compromisso e
produtividade. Portanto é fácil perceber que, para quem perde cerca de
três horas nas deslocações diárias entre o trabalho, a escola e a
casa, seja difícil ter tempo para os filhos. Recordo o rosto de uma
mãe marejado de lágrimas e com o coração dilacerado por andar tão
cansada que quase se tornou impossível brincar com o seu filho de três
anos.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque a taxa de
desemprego em Portugal afecta mais de meio milhão de cidadãos. Tenho
presenciado muitos casos de homens e mulheres que, humilhados pela
falta de trabalho, se sentem rendidos e impotentes perante a maldição
da pobreza. Observo as suas mãos, calejadas pelo trabalho manual,
tornadas inúteis, segurando um papel encardido da Segurança Social.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque é difícil aceitar
que alguém sobreviva dignamente com pouco mais de 600 euros por mês,
enquanto outros, sem mérito e trabalho, se dedicam impunemente à
actividade da pilhagem do erário público. Fito com assombro e
complacência os olhos de revolta daqueles que estão cansados de
escutar repetidamente que é necessário fazer mais sacrifícios quando
já há muito foram dizimados pela praga da miséria.

Finalmente, interessa-me a saúde mental de alguns portugueses com
responsabilidades governativas porque se dedicam obsessivamente aos
números e às estatísticas esquecendo que a sociedade é feita de
pessoas. Entretanto, com a sua displicência e inépcia, construíram um
mecanismo oleado que vai inexoravelmente triturando as mentes sãs de
um povo, criando condições sociais que favorecem uma decadência
neuronal colectiva, multiplicando, deste modo, as doenças mentais.

E hesito em prescrever antidepressivos e ansiolíticos a quem tem o
estômago vazio e a cabeça cheia de promessas de uma justiça que se
há-de concretizar; e luto contra o demónio do desespero, mas sinto uma
inquietação culposa diante destes rostos que me visitam diariamente."

Pedro Afonso
Médico psiquiatra

Anamar

domingo, 1 de julho de 2012

" A PROSÁPIA DE SE SER HUMANO ... "


Este será o meu último post antes de me afastar alguns dias, como o referi em post anterior.
Os últimos posts têm sido posts reflexivos, sobre aspectos de fundo do ser humano, e da Vida.
Encerro este ciclo, abordando o aspecto mais definitivo, objectivo e frio ... a  MORTE !
Faço-o pela voz do "Mestre",  Pessoa, no heterónimo Álvaro de Campos.
Quem melhor que ele nos pode falar desassombradamente desta prosápia, desta ilusão, desta importância incomensurável e insubstituível, que o ser humano se dá, enquanto ser humano ??!!...
O total desassombro, a verdade nua e crua, a insignificância ... a pequenez que deveria reduzir-nos à nossa real dimensão, neste extraordinário poema, magistralmente dito pelo "diseur" que não carece apresentações : Paulo Autran !


   " SE  TE  QUERES  MATAR "

Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! Que eu, que tanto amo a morte e a vida, se ousasse matar-me, também me mataria ...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez  matando-te, o conheças finalmente...
Talvez acabando, comeces...
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu, a morte em literatura!
Fazes falta? Ó sombra fútil, chamada gente!
Ninguém faz falta ; não fazes falta a ninguém ...
Sem ti, correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros, existires, que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...
A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado de que te chorem?
Descansa ... pouco te chorarão !...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco, quando não são de coisas nossas, quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte, porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros...
Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda do mistério, e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar,  inconsolável e contando anedotas, lamentando a pena de teres morrido.
E tu, mera causa ocasional daquela carpidação!
Tu, verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
muito mais morto aqui, que calculas,
mesmo que estejas muito mais vivo além...
Depois, a trágica retirada para o jazigo ou a cova ...
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos, um alívio da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...
Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente :
quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti  os que te amaram,
e uma ou outra vez suspiram, se por acaso se fala em ti.
Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera as seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada Homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes ... 
És tudo para ti, porque para ti, és o universo,
e o próprio universo e os outros, satélites da tua subjetividade objetiva.
És importante para ti, porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?
Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces, para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?
Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente ... Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico de cédulas nocturnamente conscientes, pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos, pelo grande cobertor não cobrindo nada das aparências, pela relva e a erva da proliferação dos seres, pela névoa atómica das coisas, pelas paredes turbilhonantes do vácuo dinâmico do mundo...

                                                Álvaro de Campos

Anamar

quarta-feira, 11 de abril de 2012

DIGNO DE SER LIDO ...

 
 
Não é meu...mas não resisti!
Carlos Drummond de Andrade não carece apresentações.
 
Olhem só que texto lindo e clarividente !! Tive que 
partilhar convosco ! 
 
*CASA ARRUMADA*
 
Carlos Drummond de Andrade* 
(1902-1987)*
 
Casa arrumada  é assim:
Um lugar organizado, limpo, com espaço livre p'ra 
circulação e uma boa entrada de luz.
Mas casa, p'ra mim, tem que ser casa e não um centro
cirúrgico, um cenário de novela.
Tem gente que gasta muito tempo limpando, 
esterilizando, ajeitando os móveis, afofando
as almofadas...
Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato
o olho e percebo logo:
Aqui tem vida...
Casa com vida, p'ra mim, é aquela em que os livros
saem das prateleiras e os
enfeites brincam de trocar de lugar.
Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso
das refeições fartas,
que chamam todo mundo p'ra mesa da cozinha.
Sofá sem mancha?
Tapete sem fio puxado?
Mesa sem marca de copo?
Tá na cara que é casa sem festa.
E se o piso não tem arranhão, é porque ali 
ninguém dança.
Casa com vida, p'ra mim, tem banheiro com vapor 
perfumado no meio da tarde.
Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente 
guarda barbante, passaporte e vela de aniversário, 
tudo junto...
Casa com vida é aquela em que a gente entra 
e se sente bem-vinda.
A que está sempre pronta p'ros amigos, filhos...
Netos, p'ros vizinhos...
E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados 
por gente que brinca ou namora a qualquer hora 
do dia.
Casa com vida é aquela que a gente arruma 
p'ra ficar com a cara da gente.
Arrume a sua casa todos os dias...
Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo 
p'ra viver nela...
E reconhecer nela o seu lugar.
 
Anamar   

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

"REFLITAMOS ! "...

Não me canso, nem me cansarei jamais, de ser grata  com quem divide comigo sempre, alguma coisa do valer a pena desta vida ...
Com quem sabe e sabe-se dar e partilhar !
Tudo isso são provas de AMOR !

Assuntos mais ou menos contundentes, temas normalmente relevantes, humor fino e de bom gosto ... notícias da actualidade, que muitas vezes são veiculadas sem que nos cheguem às mãos ... figuras públicas, ainda assim desconhecidas de muitos de nós, só porque este Mundo é imenso, e as pessoas que nele fazem história e deixam "marca", são miríades ...inalcançáveis !

Hoje, trago aqui uma personagem que eu desconhecia ... talvez também muitos de vocês.

Carlos Alberto Libânio Christo , nascido em Agosto de 44 em Belo Horizonte, Brasil ... vulgo Frei Betto.
A sua biografia refere-o como "religioso, teólogo, escritor".

É de facto um escritor e religioso da Ordem Dominicana, filho de um jornalista e de uma escritora.
Adepto da  "Teologia da Libertação", é militante de movimentos pastorais e sociais, ocupou funções de assessor especial do Presidente Lula da Silva, e foi coordenador de Mobilização Social do programa "Fome Zero".

Esteve preso por duas vezes sob a ditadura militar, em 64 e entre 69 e 73.

Tem inúmeros livros publicados, um deles relatando a resistência dos dominicanos à ditadura  ( que passou por torturas e mortes ), foi mesmo adaptado ao cinema .
Recebeu vários prémios pela sua atuação em prol dos direitos humanos, e a favor dos movimentos populares.
Assessorou vários governos socialistas, em especial Cuba, nas relações Igreja Católica - Estado.
É chamado a proferir conferências, debates, colóquios, enfim ... tudo em que o seu espírito liberal, humanista, esclarecido e claro, pode intervir, mediar e influir, ajudando ...

Apresentado que está minimamente Frei Betto, vou limitar-me apenas a deixar-vos para reflexão, estes extraordinários quanto imprescindíveis excertos, tão necessários e importantes às sociedades em que vivemos, tecnocratas, consumistas, materialistas e sobretudo ... muito "corridas".... em que o ser humano perdeu o tempo, o saber e a capacidade de reflectir e meditar ....
Em que em última análise, o ser humano perdeu, e perde cada vez mais, a capacidade de ser....... HUMANO !!!

                                      *************


Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos e em paz nos seus mantos cor de açafrão.
Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo : a sala de espera cheia de executivos com telefones celulares, preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas como a companhia aérea oferecia um outro café, todos comiam vorazmente.
Aquilo me fez refletir : "Qual dos dois modelos produz felicidade?"


Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei : "Não foi à aula?"  Ela respondeu : "Não, tenho aula à tarde ".
Comemorei : "Que bom, então de manhã você pode brincar, dormir até mais tarde ".
"Não", retrucou ela, "tenho tanta coisa de manhã ..."
"Que tanta coisa ?", perguntei.
"Aulas de Inglês, de ballet, de pintura, piscina", e começou a elencar seu programa de garota robotizada.
Fiquei pensando : "Que pena, a Daniela não disse : "Tenho aula de meditação ! "
Estamos construindo super-homens e super-mulheres, totalmente equipados, mas emocionalmente infantilizados.


Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis livrarias e uma academia de ginástica ; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias !
Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito.
Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos : "Como estava o defunto ?"  "Olha, uma maravilha, não tinha celulite !"
Mas como fica a questão da subjetividade ? Da espiritualidade ? Da ociosidade amorosa ?


Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra !
Tudo é virtual.
Somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais.
E somos também eticamente virtuais ...


A palavra hoje é "entretenimento" ; domingo, então, é o dia nacional da imbecilização coletiva.
Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela.
Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres : "Se tomar este refrigerante, vestir este ténis, usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá !"
O problema é que, em geral, não se chega !
Quem cede desenvolve de tal maneira o desejo, que acaba precisando de um analista.  Ou de remédios ...
Quem resiste, aumenta a neurose ...


O grande desafio é começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante, neoliberal, consumista.
Assim, pode-se viver melhor.  Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis : amizades, autoestima, ausência de stresse.
Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno.
Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral : hoje, no Brasil, constrói-se um shopping-center.
É curioso : a maioria dos shopping-centers têm linhas arquitetónicas de catedrais estilizadas ;  neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingo.
E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca : não há mendigos, crianças de rua, sujeira pelas calçadas ...


Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista.
Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas.
Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus ...
Deve-se passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial, sente-se no purgatório ...
Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno ...
Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do Mc Donald ...
Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas : "Estou apenas fazendo um passeio socrático".
Diante dos seus olhares espantados explico : "Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas.
Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia : ..."Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser FELIZ !!!..."

Anamar

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

" COMO É QUE SE FAZ ? "


Ontem Ary dos Santos fez parte do meu espaço.

Nem sempre este lugar é apenas um lugar exclusivamente pessoal, de reflexões e sentires meus.
Sempre este lugar é um lugar de divulgação e partilha de tudo que considero válido, seja meu, seja de outrem, desde que importante, desde que me faça sentido.

Hoje trago outra figura nacional, da nossa literatura, sobejamente conhecida e referenciada, creio que por todos : Miguel Esteves Cardoso, vulgo MEC.

Não conheço cabalmente a sua obra publicada ; conheço-o por me "cruzar" com ele, em crónicas avulsas, que publica em colaboração noutros espaços.
De qualquer forma, a ideia que tenho formada sobre a sua escrita, é de que é sempre uma escrita "aberta", clara, picaresca, algo controversa, desassombrada, quase sempre provocatória ... aquela pedrinha que jogamos à água para ver as ondinhas que se formam, ou aquele elemento que numa reunião levanta intencionalmente uma questão polémica, para que os espíritos se agitem.

A sua postura na vida, em sociedade, creio também corresponder a este registo.
É uma figura não acomodada, tem uma visão curiosa e segura do que expõe ...a sua ironia inteligente, sempre cirúrgica ...

O texto que aponho neste meu post, impressionou-me particularmente.
Ao lê-lo, a minha identificação com o escrito foi de tal ordem, que quase existiu uma "promiscuidade" de sentires, entre mim e ele.
Dei por mim, linha por linha, a dizer em surdina : "eu teria escrito isto" !...  "bolas ... exactamente a expressão do meu pensamento" !...

Parecia tão simplesmente, que eu era ele e que ele era eu !

Para lá dessa razão, e àparte este aspecto particular que refiro, considero o artigo digno de uma leitura atenta, isenta ... digno de uma apreciação ponderada ...

Leiam com os olhos, mas sintam com o coração !!!...


"Como é que se Esquece Alguém que se Ama?  

Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está?
As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar Sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguem antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar.
É preciso aceitar esta mágoa esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados se tivessem apenas o peso que têm em si , isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução.
Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injecção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padece. Muitas vezes só existe a agulha.
Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado.
O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar.
"

Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'


Anamar

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

"SÓ PARA QUE NÃO ESQUEÇAMOS"....


Teoricamente hoje não postaria nada.

Ainda se "digere" o post de ontem ...
Contudo talvez por ele, também por ele, trago-vos este espectacular, quanto sentido, poema do Ary,

Ary dos Santos não poderá  nunca ser  esquecido no coração dos portugueses, independentemente de se identificarem ou não, com o seu "sentir" político.

Antes de tudo, foi um extraordinário poeta ... depois, alguém para quem o sofrimento humano fazia sentido de luta!...


Convosco, e sem demais dispensáveis palavras ... "KYRIE"

Anamar

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

"LIBERDADE..."


Este post, juntamente com o de ontem, é uma nota de humor na escrita de dois homens de letras que não necessitam de referências : o brasileiro Mário Quintana e o nosso "mestre" Fernando Pessoa.

Sobre ele recuso alongar-me, sabendo nós que quem não tiver sequer uma ideia sobre a sua pessoa e a sua obra, seja iletrado, direi mesmo "analfabeto" formal.
Esta vertente satírica, de um humor fino e requintado é um novo lado de "ver" Pessoa, igualmente interessante.

Juntei os dois posts porque fundamentalmente ambos abordam o mesmo tema que tão bem conhecemos, mas apenas os génios sabem traduzir : as pequenas / grandes prevaricações a que o ser humano é "convidado" diariamente, e o gozo que dá infringi-las, desrespeitar as regras instituídas...

De uma forma geral o ser humano vive "espartilhado" pessoal, social, profissionalmente. Vive entre convenções, vive entre a "cruz e a caldeirinha", vive entre o politicamente correcto que lhe impingiram, e a "rebelião" interna que sente dentro de si.

Ao longo da vida foi vinculado duma forma geral, a regras, figurinos, parâmetros, entre o que pode e o que deve, entre o parece e o não parece bem, entre o social aceite pela "carneirada" e as ganas que sente em não fazê-lo...
"É certo ou errado", "pode-se ou não se pode", "deve-se ou não se deve"... e as barreiras, as baias e os muros levantam-se cada vez mais altos à nossa frente.

E lá seguimos, mais ou menos contrariados, constrangidos, irados às vezes, de "olho gordo" sobre o que desejaríamos ter liberdade de fazer e a coragem ou ausência dela, para o fazer!...

O "pudim" de Quintana, está aí a cada esquina a espreitar-nos, a piscar-nos os olhinhos ... até que um dia mesmo os menos corajosos dão o salto e dizem : "Que se lixe"!!!...

  "LIBERDADE"

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa…
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças…
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca

                                                       Fernando Pessoa 
Anamar

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

"IRRESISTÍVEL ...."



Nome:
Mario Quintana
Nascimento:
30/07/1906
Natural:
Alegrete - RS
Morte:
05/05/1994 em Porto Alegre

Foi um poeta,contista, tradutor e jornalista gaúcho.
Mário Quintana não carece de apresentações. Todo o seu espólio é e sempre será um espanto!
A sua poesia é marcada pela simplicidade, pelo humor subtil e pelas pequenas surpresas, em poemas que muitas vezes não têm mais do que uma frase... "Sonhar é acordar-se por dentro", é tudo o que diz um deles. Precisa mais? 
                                                             Mario Quintana

                 "Olho em redor do bar em que escrevo estas linhas.
                  Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha,
                  nem desconfia que se acha connosco desde o início
                  das eras. Pensa que está somente afogando problemas
                  dele, João da Silva... Ele está é bebendo a milenar
                  inquietação do mundo!" 
 
   Recebi de uma amiga o texto que vos passo e que achei "divino"  (obrigada Emília).
   Se o apreciarem como eu o apreciei, teremos prestado uma humilde homenagem, a mais um "monstro" das letras e a mais um livre pensador do nosso país irmão!...
Convosco, portanto, com o meu carinho.......também o HUMOR de Mário Quintana!


                                      eterno espanto


           "Em que estrela, amor, o teu riso estará cantando?" 


Pesquisei na Net e esta "doçura" de poema, parece não dever-se a Mário Quintana, mas a um poeta uruguaio, nascido em 1920,  Mário Benedetti.
Era um admirador canino de Quintana, ao ponto de lhe deixar bilhetes, livros e quindins na portaria do seu prédio, e é ainda assim, uma adaptação do mesmo.

P U D I M

Não há nada que me deixe mais frustrada
do que pedir Pudim de sobremesa,
contar os minutos até ele chegar
e aí ver o garçon colocar na minha frente
um pedacinho minúsculo do meu pudim preferido.
Um só.
 
Quanto mais sofisticado o restaurante,
menor a porção da sobremesa.
Aí a vontade que dá é de passar numa loja de conveniência,
comprar um pudim bem cremoso
e saborear em casa com direito a repetir quantas
vezes a gente quiser,
sem pensar em calorias, boas maneiras ou moderação.
 
O PUDIM é só um exemplo do que tem sido nosso cotidiano.
 
A vida anda cheia de meias porções,
de prazeres meia-boca,
de aventuras pela metade.
A gente sai pra jantar, mas come pouco.
 
Vai à festa de casamento, mas resiste aos bombons.
 
Conquista a chamada liberdade sexual,
mas tem que fingir que é difícil
(a imensa maioria das mulheres
continua com pavor de ser rotulada de 'fácil').
 
Adora tomar um banho demorado,
mas se contém p'ra não desperdiçar os recursos do planeta.
 
Quer beijar aquele cara 20 anos mais novo,
mas tem medo de fazer papel ridículo.
 
Tem vontade de ficar em casa vendo um DVD,
esparramada no sofá,
mas se obriga a ir malhar.
E por aí vai.
 
Tantos deveres, tanta preocupação em 'acertar',
tanto empenho em passar na vida sem pegar recuperação...
 
Aí a vida vai ficando sem tempero,
politicamente correta
e existencialmente sem-graça,
enquanto a gente vai ficando melancolicamente
sem tesão...
 
Às vezes dá vontade de fazer tudo 'errado'.
Deixar de lado a régua,
o compasso,
a bússola,
a balança
e os 10 mandamentos.
 
Ser ridícula, inadequada, incoerente
e não estar nem aí pro que dizem e o que pensam a nosso respeito.
Recusar prazeres incompletos e meias porções.
 
Até Santo Agostinho, que foi santo, uma vez se rebelou
e disse uma frase mais ou menos assim:
'Deus, dai-me continência e castidade, mas não agora'...
 
Nós, que não aspiramos à santidade e estamos aqui de passagem,
podemos (devemos?) desejar
vários pedaços de pudim,
bombons de muitos sabores,
vários beijos bem dados,
a água batendo sem pressa no corpo,
o coração saciado.
 
Um dia a gente cria juízo.
Um dia.
Não tem que ser agora.
 
Por isso, garçon, por favor, me traga:
um pudim inteiro
um sofá p'ra eu ver 10 episódios do 'Sexo e a Cidade',
uma caixa de trufas bem macias
e o Richard Gere, nu, embrulhado p'ra presente.
OK?
Não necessariamente nessa ordem.
 
Depois a gente vê como é que faz p'ra consertar o estrago.
“Há noites em que eu não posso dormir, de remorso por tudo o que eu
deixei de cometer.”
 
Mário Quintana
Anamar