quarta-feira, 14 de outubro de 2009

"A MONTANHA SEMPRE IRÁ PARIR UM RATO"





Fazer um filho, plantar uma árvore, escrever um livro...uma máxima para lá de gasta, que traduz as três realizações consentâneas com a nossa passagem pela Terra.

Acho que não fujo muito a este princípio.
Já fiz não um, mas três filhos, plantar uma árvore...digamos que talvez me tenha ficado por algum arbusto e muitas, muitas plantinhas ornamentais de que gosto...resta-me escrever um livro, portanto...

Interessante como o ser humano tem em si uma ânsia de perenidade, de perpetuação da sua pessoa, de "trabalho feito", de rasto deixado...
Não sei se é narcisismo, não sei se é uma forma encapotada de agarrar o tempo e prendê-lo na lâmpada do Aladino, não sei se é vaidade mesmo, simplesmente, como se dissesse às gerações vindouras: "estive cá, existi, fui gente"...já que o vento que passa não transportará nunca as suas palavras adiante.

Eu gosto de escrever, eu alimento-me da escrita. Vivo dela em comunhão muito, muito estreita. Não a faço por obrigação, não a faço porque ache ou pense que talvez a faça razoavelmente.
Não, faço-a quando as "sinetas" interiores , me tocam, quando as ideias me jorram e me inundam, do nada, quando já me sinto desconfortável se a não consigo fazer.
Por isso acho que a respiro, acho que ela me completa como pessoa, e que a sua falta me amputa na alma...

Escrever, para mim, é reflectir, é comunicar com os outros, também é comunicar só comigo mesma, é sonhar, é transpor o meu próprio ser, sair de mim, transfigurar-me, encarnar personagens...outros "eus" de que se calhar me travisto ainda  que inconscientemente.
Escrever é encher-me até transbordar, de uma plenitude e de uma felicidade que não descrevo, é soltar sem espartilhos quem na verdade sou, no avesso, na ourela...é por-me nua, completamente nua numa praia deserta, onde só o mar e o sol me escutassem...

Às vezes estou seca, nas ideias, nas emoções, na verborreia...
Aí, não coloco uma só letra no papel; noutras, o meu cérebro pulula, torna-se inquieto, fervilha...faz-me saltar da cama a desoras, só porque a boca não sustém mais palavras lá dentro. É como se uma espécie de transfiguração ocorresse e não fosse mais eu, mas alguém dentro de mim que me comanda, me sussurra, me apazigua...e aí, escrevo, escrevo...loucamente escrevo...

Comecei um ensaio autobiográfico, que acredito, dada a "riqueza" incomensurável da minha vida, poderia vir a ser qualquer coisa interessante, ou pelo menos, curiosa...
Escrevo aleatoriamente pequenos apontamentos ou crónicas, aqui por estas "veredas"...com interesse, sem interesse...subjectivo...

Estou bem perto de passar por alterações significativas na minha vida profissional. Penso frequentemente como será o "depois"...
Não tenho maneira de ser para "crochetar", ler livros infantis, ver muita televisão, ou propor-me actividades impostas, só porque não posso ficar parada...
Gosto de me sentir livre, sem demais satisfações a terceiros, gosto de fazer o que me dá na bolha, sem hora nem dia, mesmo que possam conotar-me como um pouco irreverente demais, radical, vivendo num limbo provavelmente menos recomendável para o estatuto, faixa etária, conveniências sociais...gosto de ser um pouco louca mesmo, desafiando desassombrada e sem demais sobressaltos, tudo o que ainda tiver à frente, se calhar excentricamente, desajustadamente...
Atingi um estatuto que me dá algum "conforto" de vida, um estatuto que me permite ser isto tudo e não ter que explicar por que o sou...(que o diga a minha filha mais velha, que arvorada em minha mãe, reclama da "trabalheira" que lhe vou dando...)

E é nessa base, que por vezes penso que talvez chegue aí a oportunidade de, na encruzilhada de vida, escolher o meu caminho alternativo, e esse passaria seguramente pela escrita.
Mas também é nessa base que penso igualmente, que apesar de constatar a parafrenália de autores, editores e obras a sairem todos os dias das "fornadas" sucessivas e parece às vezes, que sem qualquer critério, aquilo que eu escrevo tem o valor que eu lhe dou e não mais.
Não é relevante, é banal, não acrescenta nada, não é notório, não vale a pena...não terá visibilidade...não se justificaria no nosso, ou em qualquer outro cenário literário...

É quando entristeço e desacredito, me acho imatura e tonta, utópica, fora do real...sonhadora...

Sempre ouvi  à minha mãe dizer ao longo da vida, que para se cantar, era preciso saber-se cantar, "ter voz", nascer-se com ela, à séria.
Pois bem, hoje em dia todos cantam, todos são modelos, todos são estrelas, todos são comentadores, jornalistas, opinadores, muitos "parem"  textos com pompa e circunstância, crivados de erros ortográficos e calinadas que levantariam das tumbas, tantos e tantos...e nada é requisito para nada...

Só que a "gaita" de tudo isto, é que o eco das palavras da minha mãe sempre se me impõe, como a sensatez que de onde em onde me falta...e tudo isto bem espremido, bem espremido...faz-me achar sem requisitos, necessários ou suficientes para coisa nenhuma, faz-me achar um "bluff", faz-me achar que comigo, "a montanha  sempre irá parir um rato"...

Anamar

terça-feira, 13 de outubro de 2009

"ANDANDO"


O dia anoiteceu com um céu pegando fogo.

Desta minha incaracterística janela, sobre o não menos incaracterístico casario duma descaracterizada terra que só me faz sentir em Alcatraz (versão portuguesa), em que até a imaginação - que é do pouco que temos que não paga imposto e de que não temos que dar "pevas" de satisfação a ninguém - foi ficando pálida como quem já padece da gripe A.
E olhando o "fogo" que se abatia para lá do horizonte, entrei na crise existencial de conceptualizar o que serão fins de tarde como este, sem história,assunto ou preocupação.

Fui ontem ver um filme de um realizador japonês, que me fez reflectir sobre algumas realidades, para as quais, por aí andamos adormecidos.
A primeira questão que me fez arrebitar a orelha e me pôs o neurónio de serviço ao serviço mesmo, foi o nome aposto à película.
Chama-se o filme, "Andando"...

Já me tenho questionado muitas e muitas vezes e até comentado com terceiros, que o português, por hábito, determinismo ou incapacidade interiorizada, quando confrontado sobre como está ou se sente, sempre responde: "vai-se andando..."
Aquele "vai-se andando" é uma inevitabilidade assumida, um indiferentismo acomodado...uma desistência de vida, uma espécie de pena ou karma imutável, predestinado, tanto quanto o fado, Fátima ou saudade..."cargas" que só nós conhecemos bem e nos torna esta gente misógina, misantropa, triste e desgraçada...

Pois aquele filme narra exactamente o "ir andando" de uma família, disfuncional segundo a crítica, que em vinte e quatro horas conseguiu expor amores, sentimentos, segredos, que unem e desunem aquelas personagens.
Foi também por aí (que através do tocante, inteligente e nostálgico que Kore-Eda Hirokazu nos vai desvendando, na aparente normalidade e trivialidade do convívio de um único fim de semana), que me questionei como provavelmente todas as famílias são de facto disfuncionais, sem que sequer o percebam, o analisem e o confrontem...

E o que será então uma família "funcional"...se existir??
É aquela que vive e cumpre à regra o "socialmente" previsto que uma família cumpra?
É aquela que parametriza comportamentos, afectos, trilhos, valores?
E se sim, à luz de que valores esses parâmetros são aferidos e por quem são aferidos??

Serão valores éticos, morais, sociais, religiosos?!
As células familiares, ramos da célula-mãe (a "matrix" dessa família), devem sujeitar-se a ela, independentemente de faixas etárias, culturais, personalísticas, com convicções alicerçadas...ou terão direito às suas próprias escolhas, determinações, livre-arbítrio, opções, direito ao erro e ao acerto e não simplesmente serem absorvidas e diluídas no próprio clã??!!...

Bom filme, sem dúvida, pelo qual ainda perpassa a característica mágica e um pouco etérea, de bandas sonoras que são isso mesmo...etéreas, sempre tendo a capacidade para nos transportar a um mundo menos materializado e com valores díspares dos da velha e enferma civilização ocidental...

Anamar

sábado, 10 de outubro de 2009

"OS RAPAZES DE LIVERPOOL - preito a John Lennon"


Já muito se falou sobre os Beatles...já se disse quase tudo...arriscar-me-ia a dizer "tudo mesmo". Já não há lacuna deixada lá atrás, sobre a sua mítica vida e percurso artístico.

Hoje, 9 de Outubro, Lennon, a ser vivo, completaria sessenta e nove anos de idade. Só que teve estupidamente a vida ceifada aos cinquenta .

Os Beatles são indissociáveis da minha geração, são indissociáveis das festas, dos bailes de garagem, das confraternizações universitárias, da ousadia rebelde da afirmação duma juventude cuja "linguagem" ficou indelevelmente "colada" à deles...

Foram a "cara" de multidões que lutavam corajosamente contra as discriminações, as injustiças, a violência, a guerra...
Foram pedrada no charco de uma sociedade estagnada, hipócrita, acomodada.
Foram os cabelos compridos, aberrantes para falsos conservadores;  foram calças à boca de sino e flores nos cabelos, contra um mundo desumanizado, esquecido dos verdadeiros valores sociais de igualdade, justiça, equilíbrio, paz e amor.

Foram apelo à unificação de uma "aldeia global", em que muros, ódios, fronteiras de amor fossem derrubados e o Homem finalmente soubesse falar linguagens comuns, soubesse tratar como igual o seu semelhante, tivesse coragem para denunciar e enfrentar as arbitrariedades e  atrocidades cometidas em nome de interesses e "lobbies" particulares...

Foram indubitavelmente e são-no até hoje, um ícone intocado, um símbolo muito para lá do seu legado artístico. Foram o corolário da década de sessenta, anos de ouro, de conturbações saudáveis, por tudo porem em causa,  por tudo ser questionado, valorizado e repensado...

Foi o tempo de uma pura ingenuidade, de um crer frenético e auspicioso, de uma fé no Homem, apesar de tanto sofrimento que se experimentava...do sonho sonhado num Mundo livre e igualitário...foi o tempo em que John Lennon, de novo ele, nos dizia..."Imagine..."

Anamar

terça-feira, 6 de outubro de 2009

"FINALMENTE OUTONO"

 Clique no pássaro

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Amanheceu finalmente um dia a fazer jus à interioridade de um Outono que tem andado travestido de Verão envergonhado e incaracterístico, "nem carne nem peixe"...
Amanheceu um dia cinzento por igual, sem pinceladas no céu, sequer farrapos escuros ou claros...tudo uniformemente igual, sem cambiantes ou cores. Temperatura a baixar acentuadamente e pelo meio da tarde, uma chuva inicialmente hesitante, que viria a "desbundar" em chuva desbragadamente forte.

Enfim, alguém que leia tudo isto até aqui, já me nomeou seguramente para metereologista de serviço!

Acontece apenas, que quer eu queira quer não, sempre existe uma interrrelação profunda entre o que vai lá "fora" e o que me vai aqui "por dentro". E experimentei uma espécie de alegria doce quando o dia me amanheceu exactamente assim...
Costumo viver do sol, da sua luz e calor como "doppings" de existência. Costumo inconscientemente determinar os meus humores, ânimo, garra de vida...pelo "presente", que cada dia me oferece...como dizia alguém noutro dia, aniquilando a objectividade do real, pela subjectividade da pessoa que "sou" nesse dia, momento ou circunstância.
As coisas são, não o que são, mas as que eu vejo, sinto ou perscruto...
Acho que isto é fuga ou um certo grau de loucura motivada por defesa ou sobrevivência, creio.

Pois bem, mas o apelo transmitido pela Natureza ao recolhimento, à paz doce e melancólica dos castanhos aos vermelhos das folhas jogadas no chão, o grito "uterino" de introversão de tudo quanto é vivente, o súbito debandar das espécies, encasuladas de todas as formas possíveis, aquele apelo da alma, ao aconchego, ao ninho, ao "enroscanço"...deixou-me feliz, aconchegada, como que a iniciar uma hibernação, sinónimo de "mar flat", sinónimo de silêncios reconfortantes, sinónimo de uma modorra preguiçosa que me agradou...

A aragem perpassava e empurrava ao acaso a minha gaivota, planando sem rumo que a preocupasse...pelo gozo de planar sem rumo mesmo...
A praceta começou a "maquilhar-se" para os desfavores do tempo, com ausências forçadas por bancos molhados. Os pombos, sem grande espírito de sacrifício, debandaram oportunistamente para debaixo de beirais que os protegessem. Até a Rita, cá por casa, já procurou o conforto das mantinhas que lhe marcam locais de sestas intermináveis...porque a lã, começa a convidar agradavelmente...

Enfim, os castanhos, os ocres, os vermelhos, os amarelos, as cores quentes com que a Natureza procura aquecer-se e aquecer-nos para os tempos vindouros, começam a dar os primeiros retoques no grande quadro que ora se começa a desenhar...
Breve, breve, o cheiro e o fumo das castanhas nos assadores de esquinas de rua, lembrarão que mais um ano passou e que o Outono já instalado, não vai demorar a implacavelmente dar lugar a mais um Inverno, neste ciclo ou roda dentada que nos vai levando, levando...nem sabemos bem para onde!...

Anamar

sábado, 3 de outubro de 2009

"MULHER-LUA"






Chegou à janela e levou aquele "soco no estômago" bem seu conhecido.
Inevitável, sempre assim sentia, e o que sentia sempre a fazia esboçar um sorriso.
Uma espécie de cumplicidade trocada...não sabia bem explicar...

Eram sete da tarde de um Outono em crescendo, o céu preparava-se para se recolher em mais uma noite, e ela, a lua cheia, quase completamente cheia, só, imponente, isolada, sem que nenhuma pontilha de luz mais, bordasse o firmamento já escurecido, estava ali, provocadora, bem defronte de si.
Extasiava-se sempre, sempre dizia a meia voz para si mesma:"Que espectáculo!"...Sempre se sentia "esmagada"...

E depois havia aquela coisa, aquela corrente de magia que passava...
Ela e a lua cheia tinham de facto um diálogo endiabrado de mulheres no cio...
Tantas luas cheias já na sua vida, tantas quantos os amores, tantas quantas os homens que atravessaram a sua existência...

Isabel olhava para trás e pensava: "Que coisa louca, a sua vida hoje!"
Muitos acham que os seus percursos dariam bons filmes. Isabel estava segura que o seu daria um, absolutamente inigualável.

Uma mulher madura, ou melhor, uma mulher cuja idade convencionalmente se desajustaria do seu "figurino" de vida actual.
Isabel procura paginar-se e não repaginar-se, inventar-se e não reinventar-se, construir-se e não reconstruir-se, apenas porque só agora "desencantou", ou seja, só agora saíu de um deserto que a manteve cativa e dormente, e pela primeira vez tomou consciência do que era a vida real, as dificuldades reais, os afectos reais.

"Olha que loucura..." sempre pensa, quando confronta as rugas, os fios brancos que tenta encobrir, algum cansaço que a todo o custo desvaloriza, com a adolescente que sente dentro de si, qual borboleta solta espreguiçando as asas ao deixar a crisálida que a albergou e protegeu.
Isabel tem uma ânsia de compensar todo o desperdício de vida, todos os sonhos que não passaram disso mesmo, tudo o que quereria ter sido e feito e não foi e não fez...
Sente que veste um "fato" que não é o seu, sente que não pode mais haver peias, amarras ou convenções que continuem a espartilhá-la, porque essa "factura" já pagou há muito e não tem já tempo útil a perder.
Sente direito à vida, como direito ao oxigénio que lhe cabe respirar, sente direito a uma liberdade desenfreada, como cavalo a quem foi tirada a sela e largado no prado.
Sente direito a concretizar todos os sonhos, por mais sonhos que sejam, só porque já os sonhou e então não eram adequados ao seu estatuto.
Quer dar-se ao luxo de saltar do rochedo ainda que se quebre na chegada; quer dar-se o privilégio de viver no fio da navalha porque isso fá-la sentir viva e não morta, como em três quartos da sua existência; quer permitir-se sorver até à exaustão o bom e o mau, as certezas ou as dúvidas, o sofrimento ou a alegria, as expectativas e as desilusões, a paixão ou a morte...porque tudo ISTO é que é a VIDA.
Precisa correr riscos...o desafio de viver, é em si o maior risco que pode experimentar. Não vira a cara para o lado, não quer mais isso.
Que lhe interessa que a achem louca?!...

A lua feiticeira, sua aliada, que a inunda quando lhe oferece nus, o corpo e a alma, fá-la sentir cada centímetro da sua pele na efeverscência e na sensualidade do sangue a correr e a pulsar...

Isabel sente-se plena, transbordante, prenha de um vulcão interior de emoções e sentires, cuja lava alastra à sua volta e envolve os que ousam "tocá-lo"...
Nesses, normalmente deixa a sua marca...
É uma mulher furacão dos zero ou dos cem, não pega nada pela metade; agarra a vida que detém, pelos cornos, e jura que nunca mais a deixará fugir; pela primeira vez ama-se um pouco e valoriza-se também.
Descobriu que, como a lua cheia que volta pujante todos os meses, altiva no céu escuro, com o mesmo brilho misterioso extasiando aqueles que a sabem olhar, também ela, como uma Fénix renascida, se ergue e erguerá todos os dias, doa o que doer...
em todos aqueles que ainda lhe couberem por destino...

Anamar

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

"A VELHICE É MESMO LIXADA !..."



A D.Madalena estava em prantos.
Na praceta, no lugar do costume. Pela trela, o seu novo companheiro de desdita, um cachorro que adoptou depois de todas as vissicitudes que lhe aconteceram.

Há tempos que não vos falo da D.Madalena.
Ela continua a pé firme pelos bancos ociosos das tardes longas e vazias de solidão.
Primeiro partiu o marido, depois a mãe, depois o caniche que honrava o pedigree e se comportava cavalheirescamente, no meio de quantos perambulam pela praceta, ou a cruzam, apressados.

A D.Madalena esvaziou-se de afectos. Os olhinhos em pinta de "i" no fundo das lentes de garrafa, sempre me lembram aquela garça de Sta.Lucia, na beira da rebentação.
O cabelito escorrido, sem corte nem jeito e a vozinha esganiçada em falsete, anuncia à distância, a sua chegada.
Bamboleia-se pé cá, pé lá, e vem vindo, rumando aos bancos, enquanto o tempo não for agreste e a não escorrace da praceta.

Por lá estão os outros, iguais a ela, os seus pares de dias vazios; os outros adormecidos da vida, aqueles a quem a indiferença descolorida dos anos, opacizou já a existência...

Sempre me angustia vê-la.
O seu sorriso atoleimado estampado no rosto, é um esgar de indiferentismo ao mundo que a rodeia.

Hoje, a D.Madalena lavava-se em prantos, com o vira-lata reguila, de posturas de cachorro inconsequente e sem modos, a amarinhar pelas pernas de quem a abeirava.

Não percebi bem porquê, mas parece que a D.Madalena terá de se separar do seu "companheiro". Não sei se por razões de saúde, se por dificuldades económicas ou outras, percebi que equacionava ir pô-lo no "canil".
Por canil, entenda-se o canil municipal, e por canil municipal, entenda-se o futuro traçado na porta de entrada...
Alguém a consolava e lhe dizia que talvez ela devesse tentar arranjar-lhe um dono, alguém que o tratasse e o "estimasse"...

E as lágrimas escorriam-lhe incontidas, dos olhinhos agora em til, de franzidos e doídos.
A voz emudecida, um nó na garganta, acredito...adormentada no destino...
A D.Madalena sentia por perto já, outra perda anunciada na vida.
O cachorro inconsciente, felizmente não entendia os humanos.

Eu passei, só olhei, ouvi pouco...o suficiente...e pensei: a velhice é mesmo lixada!...

Anamar

terça-feira, 29 de setembro de 2009

"SUN IN MY MORNING"



E de repente aquela particular "curtição" que foi aquela época...
Aqueles anos dourados, de dourados mesmo, e de uma dourada despreocupação de vida. Uma rebeldia natural, porque espontânea, não agressiva, contestatária mas não ofensiva, porque o acreditar era mesmo na paz e no amor, ainda que não tivéssemos vivido Woodstock.

Os Bee Gees revestiam o nosso imaginário de leveza, doce e calma expectativa num futuro que só poderia ser bom.
As mesas da faculdade, de ociosas tardes de tertúlias sem hora, o cigarro saboreado, soltando nos anéis de fumo aquele "frisson" de uma liberdade à revelia de pais, de pressões, de ansiedades...eram elos tecidos e criados ali mesmo, numa certeza que iria ser p'ra toda a vida.

Éramos amigos sem cores, sem slogans, sem rótulos. Éramos amigas, na partilha das confidências ingénuas, de quem pensa que já alcançou um grande lugar no mundo.
Era uma linguagem tão nossa, tão cúmplice, que piamente juraríamos nunca quebrar as teias.
Era aquela exaltação de quem partilha um trilho atapetado de flores amarelas. Era um céu por cima das nossas cabeças, sem borrasca que o atormentasse; eram corações magnânimos, porque não sabíamos ser de outra forma...eram os anos sessenta, eu era jovem, crédula, se calhar tontamente crédula...

Hoje, o sol povoou a minha manhã.
Tenho dias assim. Por nada, de nada...
Dias em que as libélulas passarinham por entre os junquilhos ou os miosótis...por nada, de nada...

São dias em que ninguém me entende e devem achar que sou louca. Dias em que trauteio os Bee Gees, julgo que estou lá atrás, vou apanhando as braçadas de narcisos, só porque são amarelos e lembram o meu sol dos anos sessenta...mas ninguém fala mais a minha linguagem!...

Que coisa!
Onde estão todos? Onde ficaram?
Será que ainda estão no bar da faculdade a resolver aquele maldito integral que não encaixava nos nossos afectos?!
Será que o cinzeiro pejado de beatas, consumiu em si todos os nossos sonhos?!

A Teresa...o Bento...a Olívia...a Lina...o Américo...o Manel...
Todos pais, mães, avós, sozinhos alguns, soltos por aí...muitos!

Tantas cicatrizes a esmo...
Tantas feridas ainda escancaradas!
Os fios prateados traem os rostos que os espelhos já esqueceram de reflectir...
Afinal, os cordelinhos eram ténues e frágeis. Apenas povoavam os corações que eram tontos...como o meu...

Saudade...saudade adocicada, que dói devagarinho, existe mesmo... acabei de descobrir...

Anamar

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

"ESTA ESTRANHA FORMA DE VIDA - PARTE II"

Enormérrima ausência esta.
Ausência de disponibilidade para vir ao PC, mais ainda para tomar pulso a flashes emocionais que me atravessaram mas que ficaram sem oportunidade de serem passados à escrita.

Uma sensação de amputação real, uma falta sentida bem aqui dentro e transferida de dia para dia: "amanhã vou ter de escrever"...
E o amanhã foi ficando distante, distante e quase já nem sei se sei por no papel o que quer que seja, com fiabilidade, com objectividade, com interesse.
Problemas de saúde, obras em casa, início de ano escolar...condimentos mais que suficientes para este adiar quase "sine die" daquilo que mais gosto de fazer: escrever.

Na era da comunicação, mais ainda na era da comunicação virtual, quase em detrimento da real, pessoal, "face to face"...Na era das redes sociais de conhecimentos, tipo "encher chouriços", tipo à pressão, tipo disparar em todas as direcções, em que o isolamento do ser humano o impele a ir a todas, na tentativa de que entre "tantas" e tão variadas, quiçá haja alguma oportunidade aproveitável...Na era dos "facebooks", dos "Twitter", dos hi5, já não falando do messenger, bastante demodé, sobretudo se se tem à mão uma webcam e uns altifalantes...a essência do ser humano deixou de ser prioritária, a verdade ou a meia verdade contada a gosto nas entrelinhas, os delírios ou desejos mais ou menos inconfessáveis ou loucos, veiculados intencionalmente nos perfis, nos diálogos, ou simplesmente o que se sugere mas não se diz, parece não ter qualquer importância mais.
Dá ideia que o ser humano se basta e engole no faz de conta, no imediatismo inconsequente, no "o que é que isso importa?!..."
Francamente não consigo achar nada disto positivo, construtivo, gratificante. Acho sim (e a experiência tem-mo confirmado), que tudo não passa de uma fonte de artificialismo, decepção, surpresas, situações forjadas e forçadas, mágoas até, pela fraude a que a maioria destes caminhos ínvios nos conduzem.

Bom, mas não vim falar disso, ou melhor, não foi a ausência dessa comunicação que me deixou órfã e "desasada", até porque, como afirmei já sobejamente, escrevo prioritariamente para mim e para ninguém...
Como diria o Julius de Sta. Lucia - "I leave with myself" ou seja, no meu caso, "I write for myself"...

Entretanto começou mais um ano lectivo, e é interessante auscultar-me como o tenho feito por cada dia que tem passado.
Na perspectiva que não haverá para mim profissionalmente um novo Setembro, um novo reinício, uma nova vivência e desfrute desta "adrenalina" que sempre acompanha um recomeço, as sensações são como que "sorvidas", como se faz em relação ao último gole de uma bebida doce de que gostámos.
Há em mim uma leveza triste a invadir-me, como se a guilhotina estivesse a descer lentamente, e eu quisesse tirar a cabeça, mas já o não pudesse fazer.

Não sei se consigo explicar o que sinto: adoro rever-me na sala de aula, com alunos à frente, ainda sôfregos de saber, ainda com olhos esperançosos e confiantes, dos vinte aos cinquenta e tal anos, a dar-me (como sempre soube e pude fazer ao longo da minha vida), a fazer-lhes festas no coração sem eles saberem, quando lhes explico três ou quatro vezes as mesmas coisas, com toda a bonomia e até amor, a sentir o seu voto de confiança, de apreço, de compreensão e também de afecto para comigo, numa empatia estabelecida por um barco em que todos velejamos e de que apenas sou a timoneira...

Sinto como é injusto que me tenham querido retirar o sonho continuado, de poder fazer um resto de carreira em paz, assim, a entregar o meu melhor, sem nada em troca que não seja a realização pessoal e a felicidade interior de os ver singrar, realizarem os seus desígnios, cumprirem as suas esperanças e metas.
Sinto uma revolta e até um ódio, pelo que me fizeram, fechando-me as portas da alma e do coração, fazendo com que a escola onde sempre vivi, se tornasse um mundo fóbico, triste, irreconhecível, um mundo que me colocou nos ombros um cansaço, uma desmotivação, uma tristeza...

E eu sei que não vou ser feliz lá fora, porque isto é o que eu sei fazer, porque isto é o que eu gosto de fazer, porque deixar os "meus meninos" (dos que o são, aos pais de família quase da minha idade), é desumano, é violento, é arbitrário.

Enfim, como penso que entrei de facto, numa espiral sem volta, num caminho sem retorno, resta-me fechar os olhos e ver-me há trinta e tal anos nesta mesma escola, dentro destas mesmas salas, com a vontade e a fé de verdes anos esperançosos, com o crer e a convicção inabaláveis, de que tinha entre as mãos destinos cuja missão seria encaminhar, com o acreditar de que deveria fazer de tudo para nunca defraudar aqueles seres em formação, em início de jornada...

Restar-me-à o quê mais, agora??
Talvez uma consciência bem tranquila, na certeza de ter valido a pena, ou a loucura inconsciente, que apesar dos pesares me leva a crer, que se voltasse lá atrás, faria por certo, tudo de novo!!

Anamar

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

"ESTA ESTRANHA FORMA DE VIDA"


Sabem quando a gente desce à rua e tem a sensação de que o seu "sítio", o seu bairro, a sua terra se mudaram para parte incerta, parecendo que tudo o que era já não é, e as pessoas também não??!!

Pois é, hoje tive essa experiência incómoda.

O Escudeiro, previsivelmente fechado por uma semana, foram-no afinal duas (e que falta me faz o Escudeiro!...constatei agora)...

O senhor Afonso, charcuteria de há décadas e décadas, com a D. Zaida na comidinha caseira "prêt-à-porter"...sumiu...agora é um mediador de seguros...

Muitos dos espaços de circulação e cruzamento diário das gentes cá do burgo, encerrados para férias...

Pessoas que já não via há tempos, de repente diferentes...ou gordas, ou magras, ou trôpegas...ou velhas...estranhas!

Um "deserto" meio esquisito, instalado pela deserção temporária de gente que "emigrou" para férias, rumou a outras paragens.

Parece que estive noutra galáxia durante séculos e fui largada aqui por alguma nave extra-terrestre.
Dificuldade em reassumir a mesma realidade descolorida de sempre, resistência a uma retoma que se impõe, pelo menos temporalmente.
Acho que me falta aquele "élan" que põe muita gente "a pilhas", no reinício do ano de trabalho.

Vejo quem faça desesperados projectos de mudança em casa (nem que seja o bibelot ou a moldura, da cómoda para a mesa de cabeceira)...
Quem ache que pintando a casa de outra cor, "se pinta" por dentro;
Quem tenha afã de uma boa limpeza sazonal, como se com ela, se fossem todas as teias de aranha da vida;
Quem fique com comichões na ponta dos dedos para revolucionar roupeiros, gavetas, armários...

Vejo e admiro, vejo e entendo...compreendo na perfeição! Tudo isto, afinal, é muito "à ser humano"...
Sempre nos ludibriamos intencionalmente, por exemplo quando achamos que "um banho de loja" resolve e apaga as nossas "desgraças afectivas", ou quando nos achamos merecedores do maior gelado do mundo, só porque "já temos por hoje a nossa dose de chatice"...e depois, não é exactamente assim, não é mesmo nada assim...muito pelo contrário!!...

De facto, eu não critico...invejo mesmo, no bom sentido...

Que pena eu não saber ser assim, que pena eu não ter pelo menos, vontade de pôr cada parede da sala de sua cor, pintar um sol aos pés da cama, ou estrelinhas fluorescentes no tecto do quarto!!

Que pena eu não conseguir realizar-me, ou entreter-me, ou enganar-me...ou não achar ao menos uma "estucha" ciclópica e violenta, ter de dar minimamente e sem nenhum gosto, uma "lavadela de cara" a algumas das coisas que convivem comigo o ano inteiro as quais negligencio fazendo "vista grossa"!!...

É que, se assim fosse, eu certamente estaria muito mais feliz, com uma meta ou objectivo a alcançar, entraria numa enorme festa por dentro, ao contrário desta visão cansativa, cinzentona e desinteressante sobre esta estranha forma de vida!!!...

Anamar

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

MEMÓRIAS DE STA LUCIA...























































Aqui deixo um repositório de memórias, um repositório do TUDO que foi Sta Lucia, neste Agosto de 2009.

Anamar