domingo, 16 de setembro de 2012

" DISSERTANDO ... "


Esta praia são muitas praias ...

O mar nunca é o mesmo, já se sabe. Esta água não conta, mas se o fizesse, diria das aventuras do seu percurso.
Os rochedos brincam de esconde-esconde.  Ora aparecem, ora se escondem debaixo das areias, que se desenham ao sabor das marés.
As lapas, os caramujos e as algas, são os únicos residentes desta praia, porque até os peixes que os pescadores sonham pescar e nunca pescam, são viajantes do mar.
A brisa ... ora, essa nunca ninguém agarra, e sopra displicentemente por cima das arribas, despenteando até, a mais tímida vegetação rasteira que ousa crescer encosta acima.
As gaivotas que são livres, volúveis e caprichosas, só aparecem se querem.  Mas, quando o fazem, ficam donas do areal e sapateiam na espuma deixada na areia, bamboleando-se de pata em pata, sacudindo e aprumando as penas, e batendo os bicos com aquele grasnido, tão nosso conhecido.
E quando o bando levanta, o recorte das asas contra o céu, é uma nuvem que foge até se perder no infinito, levando consigo o nosso olhar, que roubam, o nosso sonho, que carregam, a nossa inveja ...
porque de bom grado  iríamos  com  elas  para  terras  que  não  são  de ninguém ...  Lá, onde  há  outros rochedos,  outras areias  e  outro  mar !...


Nesta praia tudo é transitório, nada é perene, tudo muda, como tudo muda nas nossas vidas, como as vontades mudam com os tempos ...
Até o sol foi embora, e com ele, as pessoas ;  a neblina cerrou, o mar embraveceu mais e mais, assumindo o comando disto por aqui.
Um cenário fantasmagórico, tornou as poucas pessoas que ficaram, em meros vultos, apenas adivinhados, na neblina !
De certa forma apossei-me de novo da praia.
Eu e o meu silêncio que é só meu, porque a rebentação fortíssima faz eco atrás de eco, estendendo-se de falésia a falésia.

Poderia dizer que estava eu pensando com "os meus botões" ... não fora estar de facto, em traje que os não tem ...
E há sempre tanto para pensar, que esta solidão é abençoada !...

Ontem falava com alguém, que no meio de uma conversa, soltou esta frase :   " Há duas coisas que nunca se perdoam, a quem divide a vida connosco : a traição e a cobardia ".

Fiquei a digeri-la, e efectivamente penso que é uma grande verdade.
Já experimentei o amargo de ambas, e também já atraiçoei e já me acobardei.
Talvez por isso, tenha entendido perfeitamente, o que estava a ser referido.

Sobre "traição", genericamente falando  ( não necessitando ser a traição, em que de imediato se pensa, talvez aquela que mais nos mobiliza, a traição entre um homem e uma mulher, numa relação afectiva ), já aqui expus, em tempos, o meu ponto de vista.
Essa, é provavelmente a que mais marca deixa, aquela que mais "mata" ; mas infelizmente, "traição" é bem mais lato que isso.
Há traição nas amizades, nas convicções, nas lutas, nos valores e princípios, nos ideais, nas promessas e expectativas criadas a outrém, até nas relações familiares de afecto e amor.
Quase sempre nos colhe de surpresa, e magoa tanto mais, quanto a maior parte das vezes, é provocada por quem menos esperaríamos que o fizesse, e por isso, a sensação de uma injustiça abissal, é isso mesmo ... abissal !...
E desestrutura, desmantela corações, escancara feridas de difícil cicatrização e recuperação ;
deita por terra e pisa em cima, quase impedindo que nos reergamos, retira-nos defesas e instala-nos um hiper-sensor, tipo"sonar" à nossa volta, quase nos incapacitando de novas apostas, porque nos rouba a capacidade de sonhar, e acreditar outra vez.
E depois, é o tipo de dano infligido de uma forma perfeitamente gratuita, e por isso, maquiavélica ;  é sádica, tem contornos de requinte de premeditação e maturação cuidada ...
Nunca uma traição tem justificação ou necessidade que ocorra ... Não aproveita verdadeiramente a ninguém !
As pessoas são donas dos seus próprios destinos, opções, crenças e apostas, sonhos, vontades, afectos ... e têm o "livre arbítrio" ou vontade própria, que num ser humano estruturado numa formação sólida, se deve sobrepor a tudo e todos.
A coerência, a verticalidade e a honestidade, tornam o indivíduo incapaz de atraiçoar !...

E chegados aqui, impõe-se-nos consequentemente referir o segundo aspecto condenável num ser humano "inteiro", e que jamais deveria ser prevalecente,  independentemente das conveniências pessoais ... a "cobardia" !

"Cobardia" é o oposto à coragem, e coragem não é simplesmente ausência de medo.
Coragem é a atitude que nos obriga a sair detrás da moita, e dar a cara, se tivermos que defender a cor e a camisola ...
Coragem é o que nos faz tomar posições de isenção, ainda que sejam incómodas para alguns ( forçosamente sempre o serão ), se nelas acreditamos.
É o que nos faz lutar pelos ideais e sonhos, mesmo que o vento sopre contra ...
É o que nos obriga a dizer "basta", deixar de aceitar e acatar a cómoda posição de verme ( porque os vermes passam despercebidos mais facilmente ), dar um murro na mesa, virar o jogo, e deixarmos de ser usados e manipulados ...
Coragem é despir o fato de fantoche com que nos mascarámos, e não nos deixarmos mais, mover pelos cordelinhos com que os outros se divertem ...
Coragem é assumpção de coerência sempre, de verdade e verticalidade em qualquer circunstância, como referi, não pactuando nunca com auto-justificações esfarrapadas, para nos mantermos em limbos cómodos, porém instáveis, pisando terrenos de fronteira que não são, nem deixam de ser ...  vestir de cinzento, porque não é branco nem é preto !...
É nunca usar a máscara que se guarda no bolso para o que der e vier, e que a cobardia nos leva a colocar no rosto ... estando de bem com Deus e com o Diabo, como prosaicamente se diz, não nos comprometendo nem com gregos, nem com troianos !...

Não sou moralista ... acho que nenhum ser humano está em condições de o ser.
Todos temos "telhados de vidro" ... e perfeição e pureza não existem.
Não vim portanto, dar-vos aqui lições de nada !
Mas todos temos também, uma obrigação muito séria, para connosco mesmos e para com os outros, de parar para repensar posturas e formas de pensar e sentir ...
Em última análise, todos temos obrigação de reflectir, crítica e isentamente, sobre os nossos percursos de vida e os nossos posicionamentos em sociedade e no Mundo !!!...


Anamar

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

" TRISTE REALIDADE ..."



A minha mãe chora porque o "seu país chegou a esta desgraça " ... e não queria morrer ainda, sem ver de novo a sua terra erguida !!

Mas a minha mãe tem quase 92 anos, emociona-se por tudo e por nada ;
chora por ver os fogos a grassar nas nossas florestas ... chora porque aconteceu este e aquele crime hediondo, com que a televisão a não poupou no telejornal ( quase só o único programa que a motiva ) ...  chora pelos acidentes que vitimaram estas e aquelas pessoas aqui e ali ...  chora  porque é o 13 de Maio e as cerimónias de Fátima a mexem ... chora na missa de domingo, que agora deu em assistir também pela TV  ( felizmente que eu não estou por perto ) ...

Chora ...

...porque o Mundo chegou a esta calamidade, porque a preocupa o meu futuro, o futuro das netas, e também já o dos bisnetos claro ...
Acho que mesmo com tanto sofrimento, ela quereria ser eterna, para estender uma "asa protectora", que obviamente não tem, por cima de nós todos ... os seus, e os outros !...
... a minha mãe, que garante que nunca poderia emigrar do seu Portugal,  porque  nunca  conseguiria  afastar-se  do  seu  pedaço  de  chão !...

Falhei ontem o discurso de Passos Coelho, porque me esqueci completamente  ( resta-me saber se foi algum "bloqueio" psicológico com que o subconsciente me protegeu ... ).
Li agora, no café, um dos jornais do dia, que fez o favor de me pôr a par, "grosso modo", das notícias recentes.
O discurso de Vítor Gaspar, acompanhei, por acaso com a minha mãe,  porque  ocorreu  a  uma  hora  em que  sempre  estou  com  ela, ( mais  ou  menos  pela  hora  de  almoço ), e pasmei com o ar atento com que ela bebia todo aquele arrazoado, aquele discurso demasiado hermético, absolutamente técnico e formal, que poucos poderão ou terão capacidade de entender, menos ainda de descodificar, a menos que tenham largos conhecimentos de economia e finanças, e que estejam por dentro de toda a conjuntura nacional e internacional.
Creio que já é intencional, que determinadas linguagens de determinados profissionais em diversas áreas, primem por serem ininteligíveis para o cidadão comum.
Quanto menos se percebe, menos se interroga, menos se rebate, menos se questiona ... e mais fácil é afirmar que se disse, o que não se disse !...
Eu mesma ( e enfim, não sou propriamente analfabeta ), entendi muito pouco, sendo embora verdade, que visceralmente ofereço, mesmo inconscientemente, uma resistência tremenda à política ou às políticas, de que tenho, e penso que só poderei ter mesmo, uma opinião forçosamente negativa.

Para mim, política é corrupção, é compadrio, é desonestidade, é aldrabice, é oportunismo, é o "primeiro amanho-me eu", depois logo se vê ... é falta de transparência, de princípios, de respeito por valores, de protecção das classes já favorecidas e desfavorecimento progressivo, exactamente das que precisariam de quem lhes desse voz.
É ignorar o interesse e o bem colectivo, em benefício de algumas classes ( sempre as mesmas ) !
Em suma, para mim, política é um campo de imundície, é a lixeira da humanidade, é a vergonha da espécie humana.
São jogos de bastidores criminosos e organizados, com objectivos cirurgicamente planeados ...

Não conheço, acho que ninguém conhece, um só político que tenha tanta coerência de vida, de postura, de integridade, de ideais de defesa de valores e princípios ... que seja tão impoluto, que contrarie um só destes aspectos que foquei !

É certo que este posicionamento que exponho, será sem dúvida cómodo, prático ...
É fácil estender dedos acusadores, e depois não pugnar ou envolver-se, em pelo menos, tentativas de reversão do errado.
É comodismo talvez, é hipocrisia, é demagogia se calhar ... é indiferentismo grave.  É irresponsabilidade, ou desresponsabilização enquanto cidadã, enquanto pessoa, enquanto elemento de comunidades, enquanto habitante desta terra e deste Mundo.

Eu sei !

Mas também sei, que para o fazer, é necessário  à partida, ter o tal estofo ou perfil para entrar no esquema, o tal "jogo de cintura" intencionalmente permissivo e conivente ... até porque todos sabemos que mais cedo ou mais tarde, a coerência, as boas intenções, a garra, a verticalidade que até pode caracterizar-nos, a honestidade que apregoamos, e por aí fora, são trucidadas pelo sistema ... parecendo que na verdade, tudo sempre terá um preço, e que os D. Quixotes são cada vez, mais figuras lendárias ... os Sancho Panças não existem, e os moinhos de vento, há muito foram substituídos pelas turbinas eólicas !!!...

E penso que esse indivíduo acaba por, ou deixar-se arrastar pela "enxurrada" e deixar-se corromper, ou se se quiser manter-se em pé, contra ventos e correntes tão poderosas e avassaladoras, o melhor e única saída que lhe resta, é dar um tiro nos "cornos" ... ( desculpem o vernaculismo ), por desilusão, cansaço, desistência ... incapacidade absoluta !!

A minha mãe chora ... a minha mãe tem quase 92 anos ...

Infelizmente não nos sobra muito mais, quando se toma conhecimento, que mesmo a pequena criminalidade dispara, porque os pais de família não têm o que pôr na mesa ;
quando os suicídios por desespero, nas tais pessoas que não têm de facto estrutura nem perfil para encararem, se encaixarem no "molde", para viverem ou sequer se "ajeitarem", também dispara ;
quando, como acabei de ler ( e não é novidade ), as pessoas choram nas consultas médicas (que protelam o quanto podem, por não terem recursos ), deixam de fazer exames médicos, ou racionam os medicamentos que deveriam assegurar a sua saúde, pela mesma razão !!...
Estes, apenas alguns exemplos ...

Eu própria, em pleno café, não deixei soltar uma lágrima, por mero acaso.
Mas o nó no peito e no estômago, juro-vos que me "embrulhou" mesmo, o pequeno almoço !!!...

Anamar

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

" A MALDIÇÃO "



A minha orquídea morreu !...
As últimas folhas caíram exangues, soltando-se do pé, num abandono que me impressionou.
Assim ... em silêncio ... sem resistência ... indiferentes ... soltaram-se do pé ainda verdes, mas já mortas ...
Sem um desespero, um queixume, com alguma desistência ... eu diria !
Adoeceu aos poucos e poucos, devagarzinho, sem incomodar, em silêncio, sem indignação, sem raiva ...
Primeiro as flores, lindas, mimosas, delicadas ;  depois as duas hastes começaram a amarelecer.  Primeiro uma, depois a outra, anunciando uma morte ... uma morte anunciada !
Juro que não sei se ela terá gritado, chamado, pedido socorro.  Não sei, porque os meus ouvidos estão embotados demais, e não ouvem ... estão insensibilizados, duros, e os olhos a opacizarem-se gradualmente, como a orquídea ... sem reclamação !
Estão a fechar-se ao que não podem, não conseguem ver ...

Parece que se completam ciclos na minha casa.  Parece que se encerram capítulos na minha vida.
Garanto-vos, é uma sensação desconfortável, estranha, devastadora.
Uma postura de depor de armas, que deve ser a que o guerreiro tem, perante a impotência do campo de batalha ;  a que as populações têm em cenário de guerra, que lhes foge ao controle ;  a dos doentes terminais, que já anseiam acabar o "jogo", o quanto antes ;  a que o Mundo exibe, perante uma  catástrofe natural, onde também nada tem já a fazer ...
Ou melhor, há duas coisas que podem ser feitas :  resignar-se ou desistir.
Eu acho que estou mais para a segunda !...

As plantas morrem, por sistema, junto de mim.  Parece que o meu olhar as devasta, as seca, tem a capacidade de uma maldição estranha.
Parece que toco e desfaço, consigo parir e tirar a vida, transformar o ouro em cinza .
Parece que o que passa por mim, entra irremediável e irreversivelmente num estágio de corredor da morte, aquele local em que nas prisões de alta segurança de alguns estados dos Estados Unidos, os condenados à morte, apenas aguardam.
Engraçado ...  É um espaço exactamente oposto às incubadoras nas maternidades onde a minha filha trabalha ...
Aí, o corredor é da morte para a vida,  eu sou mais, da vida para a morte ... Estranho !...
Acho que estou a enlouquecer aos poucos !...

Entretanto oiço Simone no mp3, que diz que "vai valer a pena ter amanhecido ..." num "Começar de novo" da sua canção ...
Eu, levo a vida a começar de novo, só que não me tem valido a pena, acordar por cada madrugada ...

Hoje amanheci com esta estranha premonição de maldição, de capacidade de secar tudo em mim e à minha volta.
Se olhar para a minha vida, ela parece desenrolar-se num parque de diversões, em que as diversões são mais as que assombram o "Combóio Fantasma ".
E eu, como um diabinho à solta, como uma menina endiabrada, inconsequente e entontecida, desafio tudo e todos ;  desafio a sorte, o destino, a prudência ...
Pareço deliciar-me sadicamente, a andar em arames sem rede de amparo, pareço subir e descer montanhas russas sem mãos, pareço divertir-me a debruçar-me do topo do rochedo a um passo do vazio, desafiando a vertigem ...

Há uma tendência persecutória de certas doenças, que se manifesta, pelo paciente se infligir dores e sofrimentos.
Não sei o nome dessa neurose. Poderei procurar na Net, mas sei que se trata de pessoas que se auto-mutilam, que se ferem, que se magoam intencionalmente, como se isso as aliviasse de qualquer coisa, como se com essa flagelação, expurgassem de si algum veneno que as atormenta ... exorcisassem fantasmas que as atazanam !...

Agora ... porquê ???

Por que se punem de alguma coisa lá do subconsciente, que acham que lhes exige essa destruição ??!!...
Por que, doentiamente, como numa masturbação psicológica e mental, só se sentem realmente "enquadradas", quando em sofrimento, em dor, em mágoa ... repito, como se com isso quisessem purificar algo de muito errado no seu ser ??!!...
Cumprir penitência pesada, por algo de muito perturbador que têm dentro de si ??!!...

Eu movimento-me muito perto desse registo.
Eu inflijo-me, de uma forma leviana e imatura ( e parece que me deleito ao fazê-lo ), desafios  constantes de limite de resistência, piso terrenos endemoninhados, como se realmente uma maldição me comandasse, e perante a qual sou impotente, e me imobiliza.
Tenho atracção por provar aquela poção mortal, sabendo que o é, mas parecendo querer testar até onde consigo chegar, até onde resistiria, até onde teria antídotos suficientes para a mesma ...
Parecendo desafiar, atrevidamente, a minha distância entre o ser terreno e o divino, que todos detemos ...
Enfim, tenho uma pulsão imperativa e assustadora, pelas "red lines" da Vida ...

Repito ... acho que estou a enlouquecer aos poucos !...

Mas ... Afinal a minha orquídea morreu !!!...



Anamar

terça-feira, 11 de setembro de 2012

" O FECHO DO CICLO "

   

Estou a ler, ou melhor, a reler, um livro escrito por uma renomada psicanalista espanhola, que apreciei particularmente logo na primeira leitura, o que me remeteu a uma segunda, mais lenta, talvez mais cuidada e reflectida.
É um livro escrito  para, e sobre mulheres, e resultou basicamente, da experiência clínica da autora, embora obviamente, as abordagens lá feitas,  não se  "colem" integralmente às personagens reais.
É um livro que eu arriscaria dizer que "cabe"  em qualquer vida feminina, que encerra algures no seu conteúdo, alguma coisa da vivência de todas e de cada uma de nós.
Não diria ser um livro de auto-ajuda, mas sim um livro de reflexão efectiva.
Chama-se o livro,  "Mulheres mal-amadas", e recomendo-o vivamente.

Entretanto, de todas as histórias de vidas, lá abordadas, uma chamou-me em especial a atenção, por traduzir, penso, muito do masoquismo afectivo que a maioria de nós parece ter compulsão em cultivar.
Uma espécie de auto-punições, que nos infligimos, acredito que nem sempre conscientemente, e que estranhamente parece ser transversal a todas as gerações, e a todas as faixas etárias.

Das minhas relações do dia a dia, do meu convívio mais ou menos profundo ou superficial no mundo feminino, concluo, por observação e análise, que há comportamentos típicos e repetidos, quer se fale em mulheres da minha faixa etária, em mulheres de meia idade ( e com isto refiro mulheres na casa dos quarenta anos ), ou em mulheres jovens, absolutamente jovens, parecendo que estas formas de estar e reagir, são uma espécie de marca genética de género.
São formas de vida e posturas que também atravessam todos os níveis culturais, parecendo independer de facto, do grau académico, da formação  ou cultura que detenham, e até do estrato social  a  que  pertençam ( embora, penso, que atingirá graus extremos nas classes socialmente inferiores da sociedade, o que também seria espectável ).

Dizia eu que me impressionou, e me fez reflectir longamente, a história de vida, chamemos-lhe assim, de Sara.

Sara era uma daquelas pacientes que, em consulta, se exprimia com desenvoltura, que não tinha dificuldade de comunicação, e que fazia muito "trabalho de casa", que é como quem diz, vivia mas reflectia e maturava com distanciamento, a sua vida, como se fosse simultâneamente personagem e espectadora, da peça de que fazia parte.
Sara  sabia exactamente onde errava, por que errava, por que continuava a errar, por que não saía de uma espécie de predestinação ou determinismo, no seu percurso de vida.
Levianamente, poderíamos pensar que era "tonta", ou doentiamente masoquista, precisando sofrer para se sentir confortável, como se o sofrimento fosse uma componente imprescindível para viver.
Só não se entende, mas depreende-se, que por detrás dessa prática cultivada e aparentemente "desejável", estaria uma carência afectiva, que a levava a adoptar formas de chamada de atenção à sua volta, vitimizando-se ...  como quem diz : " estou aqui, estou mal, sofro tremendamente ... ajudem-me !" ...

Sara analisava cuidadosamente cada momento do seu percurso, era terapeuta de si própria, duma forma exaustiva ... sabia até soluções, caminhos ...  Não conseguia pô-los em prática.

A sua vida emocional e afectiva estava claramente dividida em etapas, e de uma forma interessante e espantosa, parecia ser uma "pescadinha de rabo na boca", que depois de muito percurso e muita caminhada, muita introspecção e análise, a levava exactamente ao ponto de partida.
Parece, e conclui-se, que Sara sofreu a vida toda, mas estranhamente, como uma aluna dedicada, adquiria os conhecimentos, apenas não sabia aplicá-los a novas situações, tendo portanto parâmetros francamente negativos, na sua  "avaliação".

A geração de Sara foi a minha, a das mulheres que dividiram os anos 50 / 60, entre a infância e a adolescência.
De acordo com os valores da época, veiculados, transmitidos ... eu diria "programados", também ela foi "formatada" - na classe social a que pertencia ( média ) - para ter mais sucesso que os próprios pais, que pertencendo à geração anterior e a classes sociais mais desfavorecidas, viviam fundamentalmente para proporcionar aos filhos, condições de acesso a vidas mais bafejadas, do que as suas.
Mais bafejadas, em condições objectivas de vida, quer a nível das necessidades básicas, quer a nível cultural e intelectual.
É a geração de muitos pais comerciantes, agricultores, trabalhadores braçais, artífices, que de tudo fizeram para produzirem descendentes com acesso escolar, quase sempre mesmo a graus universitários.
A mulher crescia na vida familiar, dentro dos valores tradicionais, e era vocacionada para casar, ter uma profissão ( já ao contrário das mães, normalmente domésticas ), ter filhos ... enfim, depois netos, ser esposa dedicada, exemplo intocável de expoente familiar, aglutinador dos afectos e do amor matriarcal, duma forma indiscutível.

Sara seguiu esse percurso.
Teve um casamento de acordo com o "figurino", sem grandes emoções, sem grandes pretensões também, estável, seguro, morno ... cinzento !
E também nele criou filhos ... claro !

Tinha a intermitência de uma paixão de adolescência, com a qual coloria um pouco a tela uniforme que a enquadrava, lhe humanizava o deserto emocional que vivia.
Hoje, Sara percebe, que foi a "clandestinidade" dessa relação, que a alimentava e obviamente a mortificava.
Nunca teve coragem, nem equacionou outra saída de vida, que não fosse continuar o "modelo" que lhe coubera em destino ...

Os anos passaram, os filhos cresceram, partiram para as suas vidas.  Independentizaram-se dos pais, inclusivamente em termos de proximidade física. Procuraram os seus próprios caminhos.
E Sara, mais sozinha ainda, na aridez do que já não era, porque nunca fora na verdade, decidiu também, que era chegada a sua hora, que havia mais mundo lá fora, e que deveria pôr um términus, num amor afinal inconcretizado.

E ficou só ;  embora solidão, fosse algo que ela conhecia há muito !
Teve que reaprender, ou talvez aprender a viver, num esquema que não dominava.
E conheceu novas emoções.

Ela e Francisco iniciaram uma relação, alimentada agora, pelos contornos do impossível, do improvável, do ilogicismo, do "socialmente não aceitável", do sonho, do "hollywodesco" que a revestiu.
Francisco era, perto dela, um jovem, cativante, muito atraente, com uma "química" que era também a sua.
Sara viveu uma paixão de corpo e alma, tórrida, com todos os condimentos que a retiravam da realidade.
Viveu um paraíso que não imaginava poder existir, conheceu os inversos de tudo o que conhecera até aí.
Hoje, à distância, entende claramente que era óbvio que nunca aquela relação poderia ter dado certo ;  era objectiva demais a precariedade da mesma, nos interesses individuais do casal, nas diferentes linguagens motivadas por formações culturais distintas,  e  por faixas etárias  bem diferentes, por objectivos futuros inexistentes.
Não era de facto, uma relação de casal ;  era um conto de fadas, e como todos os contos de fadas, mais cedo ou mais tarde acabam ... primeiro, porque fadas não existem, e depois, porque contos são histórias, com toda a utopia inerente, e todo o afastamento do real.
E claro, houve um dia em que o "edifício" ruíu ...

Sara ficou sem chão, sem ar, sem companheiro, sem amor, sem "filho", sem menino para embalar no cólo ... ficou órfã !...
E percebeu que o que sustentara todo aquele encantamento, fora muito mais o que ela concebera, inventara, criara, desenhara na sua cabeça, de acordo com as suas necessidades, do que a realidade que tinha tido sempre à sua frente.
Sara amara por dois, protegera por dois, embalara por dois, adorara o "deus" que inventou, submeteu-se e anulou-se, encontrando explicações e justificações para todas as omissões, falhas, descasos, humilhações até, de que fora alvo ...

Sara voltou ao princípio.
Teve que reaprender a viver uma vez mais, previsivelmente com mais experiência de vida, mas com uma desestruturação e um buraco na alma e no coração, maior que o Mundo.

Iniciou um novo ciclo.

Uma etapa de vingança de vida.
Fechou os olhos, os ouvidos e a mente, calcou o coração bem para o fundo, apagou toda a razoabilidade, os valores e os princípios que aprendera e sempre a haviam norteado, e partiu para uma vida que não obedecia a objectivos ou metas, justificações ou razões ...
Sara  flagelava-se e auto-destruía-se diariamente, quase sadicamente, como que numa auto-punição, nem ela sabia bem de quê, mas que lhe garantia na boca o sabor do veneno que já bebera, e com que envolvia e "matava" quem a rodeava ...
Pela primeira vez tomara os comandos da vida.  Sentia que agora as regras eram suas ;  as rédeas e o leme do barco era ela que os detinha, e os encaminhava pela tempestade e pelo turbilhão ...
E nessa "montanha-russa" viveu, sobreviveu ... talvez apenas tivesse "durado" !...

Acidentalmente, conheceu uma pessoa aparentemente oposta a todas as que conhecera até aí.
Uma pessoa que falava a sua linguagem, que a valorizava, que lhe promovia a auto-estima e a auto-confiança, que a envolvia do doce da existência, que lhe deu a saborear o mel da identificação de estares e  sentires, de  gostos  partilhados, de emoções comuns ... que lhe transmitia protecção, que a amava ...  Ou Sara precisava simplesmente ser amada, "salva" !...

E quando de novo, irremediavelmente envolvida,  percebeu  que talvez não fosse bem assim ... era já muito tarde !
A dureza e a injustiça da vida, abateram-se outra vez sobre si.  Ela, que já não tinha a resistência, a idade, a saúde, e as defesas dos anos lá para trás !
Sentiu-se traída pelo destino, de novo, ou pelas pessoas que sempre cruzavam o seu.

E novamente ficou sem ar, sem chão, sem objectivos, sem horizontes, sem vontade, sem determinação ...
Novamente Sara ficou "órfã",  agora mais magoada, mais céptica, e com o coração cravado de dúvidas e desconfianças, sobre tudo e todos ...
Reiniciou a estrada, porque afinal tinha que acordar todos os dias e viver também !
Virou mais uma esquina.  Virou, porque para sobreviver tinha que a  virar, doídamente, a morrer por dentro momento a momento !...

E cruzou-se outra pessoa na sua vida.

Sara era, apesar do passar dos anos, uma mulher que facilmente despertava atenções, interesses, emoções, nos homens com quem convivia.
Era uma mulher normal, contudo atraente, tinha um carisma especial, uma qualquer "química", ou forma de estar e ser, que atraía o sexo oposto.

Talvez deixasse passar uma sensação de desprotecção, de fragilidade ou carência ( a narrativa, não é bem clara neste aspecto ;  por vezes leva o leitor a crer que sim, por outras, mostra uma Sara, que talvez por defesa  ou já  dureza  e insensibilidade  no coração, se  mostra altiva, segura, distante, determinada, rude, até ... ).

O homem que ama Sara, ao contrário de todos os outros, ocupa agora o "lugar" que ela ocupou em todas as suas relações.
É ele que a respira, é ele que a idolatra, é ele que lhe atapeta  e facilita os caminhos, foi ele que se organizou em função dela ; é ele que projectou a sua vida para que ela ocupe o lugar de "rainha", na dele ; é ele que só aceita projectos a dois, planeia sonhos pelos dois, realiza o que ela ainda nem inventara ;  em suma, transformou Sara na razão da sua existência, "para o resto dos seus dias", jura-lhe constantemente.

E a história de Sara não adianta muito mais.
Mostra uma Sara numa relação tradicional outra vez, estável, "familiarmente convencional", teoricamente equilibrada, "socialmente" impoluta, materialmente segura ... enfim ... não sabemos se morna, se cinzenta, se sufocante ... ( penso que a terapeuta, deixa ao critério de quem foi "conhecendo" a personalidade e a vida desta mulher, a conclusão do que terá acontecido ) ...  parecendo irónica e incoerentemente, dessa forma, fechar um ciclo ... o "seu", inicial, como uma rotunda que nos leva sempre ao ponto de partida ...

... Aparentemente, tão só, a cumprir os desígnios do seu ciclo de vida ... aquilo que alguém, sei lá onde, escrevera para ela !!!...



Anamar

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

" SONHOS PROMETEDORES "


SONHOS  PROMETEDORES

" Tenho mais pena dos que sonham o provável, o legítimo e o próximo, do que dos que devaneiam sobre o longínquo e o estranho.

Os que sonham grandemente, ou são doidos e acreditam no que sonham e são felizes, ou são devaneadores simples, para quem o devaneio é uma música da alma, que os embala sem lhes dizer nada.

Mas o que sonha o possível tem a possibilidade real da verdadeira desilusão.

Não me pode pesar muito o ter deixado de ser imperador romano, mas pode doer-me o nunca ter sequer falado à costureira que, cerca das nove horas, volta sempre a esquina da direita.

O sonho que nos promete o impossível já nisso nos priva dele, mas o sonho que nos promete o possível intromete-se com a própria vida e delega nela a sua solução.
Um vive exclusivo e independente ;  o outro submisso das contingências do que acontece. "

                                                  Fernando Pessoa


O " Mestre " sempre soube das coisas todas ...  Não vi quem mais entendesse da alma humana !

Os sonhos ... Tanto  os abordei  já  por aqui !  Os sonhos que povoam os nossos dias e as nossas noites, que povoam as nossas vidas .

Sonhar "alto", sonhar razoável, sonhar lógico, dentro das lógicas das vidas de cada um ...
E quer uns quer outros a desfazerem-se, a desmancharem-se como as nuvens lá no alto se desmancham, por cada segundo que passa, como as construções na areia vão ruindo bem na nossa frente, impotentes, por cada subida da maré !
Até os castelos fortificados, aqueles que atravessaram a História, de grandes rochedos, no topo dos montes, vão deixando rolar encosta abaixo, uma e outra das suas pedras ancestrais ;   até as falésias que nasceram com a Terra, não vão morrer com ela, porque vão morrendo todos os dias um bocadinho ...

O sonho é inerente ao Homem ... o "sonho comanda a Vida " - diz Gedeão ...o sonho é o que nos faz levantar por cada manhã, "sonhando" que algo preenchedor nos vai dar sentido àquele dia ;  
é  mola impulsionadora nos momentos difíceis e desalentados.

Então, qualquer sonho serve ... os possíveis e os impossíveis, embora uns possam transformar-se nos outros e vice-versa, e muitas vezes somos simplesmente nós que o fazemos.
Na verdade, por vezes depende apenas de nós, tornar algo improvável em realização objectiva, mercê do acreditar muito, e do esforço que desenvolvamos para isso.
Outras vezes, ao contrário, algo que parecia tão possível nas nossas vidas, e alimentou o nosso ser longamente, vira uma impossibilidade absoluta ...

Esses são os sonhos, como diz Pessoa, que "cobram" à vida a sua concretização ou não, e esses são talvez os únicos que nos ferem verdadeiramente, e nos cortam por dentro.
Os outros, são baralhos de cartas que conseguimos pôr em pé, e que injustamente se desmoronaram,  ou são construções de puzzles que erguemos, e como crianças nos deliciaram, nos fizeram sorrir e nos deixaram brincar ...
E caem por terra ...  Como se isso não fosse lógico e previsível !!!...

Arregalamos os olhos, abanamos a cabeça, e como um menino p'ra quem acabou a brincadeira, encolhemos os ombros e ... continuamos a brincar ... simplesmente !...
Não doem muito esses sonhos !
Talvez apenas nos tenham mantido " crianças ", durante algum tempo ;  e as crianças são fadas para serem bruxas no instante seguinte, são elas próprias e os amigos "imaginários" no mesmo momento, e com a inerente ingenuidade que só se tem nessa fase da vida, acreditam mesmo que o são, e que podem ser tudo o que quiserem ser ...
Por isso também não se defraudam, são imunes à decepção ...

Mas as crianças tornam-se adultos, e os adultos, excepto os saudavelmente loucos, apostam pouco em sonhos de fadas e duendes, constroem ( por defesa ),  cada vez menos castelos de areia na beira-mar, menos torres com os "legos" da sua infância, menos paredes de cartas a segurarem edifícios irreais ...  porque a Vida os obrigou a poisar como garça cansada, a quem resta a babugem das ondas, para a busca de alimento ...

Deixaram de saber ver o Mundo de cima, desaprenderam de ser meninos, desinvestiram no crer e quase no desejar ;  ou então, como eu, passam-se definitivamente para o mundo dos loucos, mundo confortável, sem peias ou regras, mundo onde eu posso sempre ser e crer no que quiser, quando e onde quiser, porque tenho um estatuto que me deixa ser a águia dos penhascos, a cabra montanheira, a borboleta que voeja livre de flor em flor, sem saber quão são escassas as horas que a vida lhe concede para o fazer ...

Por isso, sou e quero continuar a ser uma irremediável devaneadora, com a certeza de que com os meus sonhos,  " músicas da alma e embalo do coração ",  serei certamente feliz, ainda que tudo não passe só de mais e mais SONHOS !!!...

Anamar

sábado, 8 de setembro de 2012

" NÃO ACREDITO !... "



" Não chores por ter acabado, dá graças por ter existido ... "

Frase dita, redita, repetida, demagógica, bonita de dizer, sonante ... frase feita, afinal !...
Como todas as frases feitas, encerra efectivamente um princípio válido, uma ideia defensável, por ser algo desejável, uma máxima de vida .
A maior parte das vezes, tão só !...

Tudo que existiu e deixou memórias, foi porque constituíu alguma coisa que nos valeu a pena, foi porque marcou a nossa vida, de uma forma positiva ou negativa.
Mas se choramos porque terminou ... certamente positiva, gratificante, marcante, porque nos aqueceu o coração, a ponto de não querermos nunca que tivesse terminado, e o seu fim nos penalizou profundamente.

A mágoa deixada sabe a um fim de festa, à última colher de um doce que adorámos, ao último acorde daquela sonata que nos toca o espírito, à última rosa daquela  roseira perfumada do caminho ... à última andorinha daquela Primavera que finalizou !
Não é fácil não chorar pelo que termina, se o que termina foi isto !!!

Agradecer que tenha existido ... ser grato a alguém ou a alguma coisa ( nem que seja apenas a designios do destino, ou circunstâncias da vida ), acredito que sempre o faremos, porque nos representou e representará uma fatia dessa vida, que é parte da  nossa história, e essa é feita desses episódios bons e  maus, enriquecedores ou destrutivos ... mas episódios !

Mas muitas vezes ao olharmos para trás, e se o fizermos demoradamente, como quem passa uma tarde a olhar para uma fotografia, a nostalgia dominará seguramente o nosso coração, porque dessa fotografia começa a saltar tudo o que escaparia a um simples olhar, e das nossas memórias no tempo, também ...

Essa fotografia marca uma época, e nessa época, um dia.
Marca um dia, e nesse dia, uma determinada hora, que passamos a lembrar cada vez com maior nitidez.

Essa fotografia vai marcar um local, um sítio que foi nosso, por horas, por minutos, por segundos que valeram vidas.
E nunca mais, olhando para ela, teremos dúvidas sobre esse lugar, e  o  que  esse  lugar  guardou  de  nós, e o  que  nós  guardámos  desse  lugar ...

A luz também emana  da imagem :  o sol, ou a ausência dele ;  as nuvens, feito farrapinhos de algodão presas nas carrasquinhas da mata, ou um céu imaculadamente azul, límpido, transparente ...

E o  cheiro ...  Garanto-vos que aquela foto tem cheiros.  Cheiros de flores ou cheiros de mata, cheiros de maresia ou cheiros de terra molhada ...

E tem cor, muita cor ;  o multicolorido do que está ( esteve ) connosco, quando a fotografia foi tirada, e testemunhou o rubor da nossa face feliz, ou a palidez do nosso rosto, se em sofrimento.
O horizonte, do laranja ao fogo, num pôr-de-sol esplendoroso.  Ou indefinido, se a cerração se abatia sobre tudo, nesse dia ... também não nos falhará na memória.
Sabemos seguramente como era o horizonte longínquo, que tínhamos a emoldurar aquilo que o nosso olhar alcançava ...

E tem som, essa fotografia tem arquivados em si, todos os sons do nosso universo de então.
Tem o canto dos pássaros, ou tem o gorgolejar da água mansa de um regato, tem a rebentação de ondas alterosas nos rochedos e tem o sussurrar do vento nas ramagens ...
E tem o som de todas as palavras que se disseram então, porque as vamos lembrar seguramente ... e tem o tic-tac das batidas dos corações de quem lá estava, também seguramente ...

Essa fotografia vai fazer-nos sentir o calor das mãos que se deram, dos braços que se entrelaçaram, dos beijos que se trocaram, até o calor da emoção que nos dominava.
Ou então vai fazer-nos sentir o gélido no coração, de uma palavra que feriu, de uma desilusão que perpassou, de uma mágoa que se abateu ...
Vai fazer-nos doer bem dentro do peito, pelo quebrar da ilusão de então, como claras em castelo que desmancharam, e se reduziram a líquido ...
Vai  fazer-nos  perguntar  a nós mesmos,  "Porquê ?  Porquê  ruíu o investimento  e ficaram só memórias doídas ??..."
Essa fotografia aquece-nos a alma, ou gela-nos o espírito !

Assim as nossas memórias, quando fazemos a "reprise" do que passou ...

Darmos graças por ter acontecido ... por certo !...
Não chorar por ter acabado ... não acredito !!!...

Anamar

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

" QUE CANSAÇO !... "



Precisava escrever.
Aliás era urgente que escrevesse, porque está a faltar-me o ar.  O ar no coração.
Não sei explicar, mas sinto uma cobra constritora a envolver-me o coração e a tirar-me o ar ... devagar,  gradualmente, segundo a segundo, lentamente, como quem goza o que faz ...
Um nó, talvez um nó explique melhor.  Um nó  com laçada a apertar devagarzinho, sadicamente, doloroso, maquiavélico, que me está a tornar os olhos húmidos ...

À minha volta o café de sempre, provavelmente as pessoas de sempre, provavelmente as conversas de sempre, provavelmente a normalidade de sempre, excepto eu, cada vez mais anormal, mais inconsequente e ilógica no que sinto, na forma como me pauto, no arrastar dos meus dias.

Que cansaço ... bolas, que cansaço !

Por que há-de ser sempre assim comigo ?  Por que hei-de eu ser diferente das pessoas comuns ?  Por que hei-de eu sangrar, por que hei-de eu sofrer até me doer, mas doer de dor mesmo, na alma ??!!

A alma dói ?  Será que a alma dói ?  Mas ... onde está essa bendita alma alojada, se o peso que eu tenho é no peito, e o rio que ameaça correr, está nos olhos ??!!...

Em fundo, como uma espécie de "ponto" numa peça de teatro, oiço a voz da minha  filha, pragmática, objectiva, segura, realista, a questionar-me como sempre o faz, do porquê  de toda esta anormalidade de vida e personalística, se na verdade eu não tenho motivos reais ...
Se na verdade eu tenho saúde, eu subsisto e mais que subsisto, vivo razoavelmente, dentro de tudo o que nos rodeia, se eu sou simplesmente uma utópica, uma exigente sei lá do quê ... uma tonta, afinal ... se na verdade eu devia agradecer também sei lá a quem, tudo o que tenho demais ( e se calhar devia ... ) !!!

Mas ninguém está aqui "dentro", e portanto ninguém sente.
Os médicos iriam reduzir tudo aos chavões habituais, de ansiedade,  angústia, desvios de personalidade, desequilíbrios, tendências compulsivamente depressivas ... e patati e patata ...
Tudo espremido, as pessoas comuns simplificariam, e diriam . " Que ganda pancada ! " ... " Esta não é certa ... não tem os parafusos todos no sítio ..." e etc, etc.
Já p'ra não dizerem "doente" ... porque as pessoas reduzem tudo a doenças .  Doenças do corpo, doenças da alma, doenças ...
E os médicos curam tudo com químicos ... ou melhor, não curam, " mascaram " ...  Os médicos são mestres na grande arte de " mascarar " tudo.
As dores ( as outras ), mascaram-se com analgésicos, as alergias com anti-histamínicos,  a  falta de sono, com soníferos, as depressões com anti-depressivos e ansiolíticos ... em última análise, a loucura, com manicómios !!

Mas eu é que sei  ( não sabendo ), o que sinto !
Este estar sem estar em lado nenhum, esta tristeza e infelicidade de coisa incompleta, de árvore a que arrancaram uma pernada, de arco-íris a que roubaram uma das sete cores, de dia de Verão a que apagaram o sol, de pássaro amputado nas asas ... de coração todo partidinho em picadora de alta rotação !!!

Porra ... desculpem ... devia  pôr o "ozinho" no canto, mas não ponho ... sei lá ... quero lá saber ... Hoje estou assim !!!
As contenções dentro de mim acabaram ; o parecer bem ou mal, adequado ou não, não me molesta  ;  o parecer sem ser, não me faz sentido mais ;  o ter que "encarneirar" no rebanho, violenta-me.
Não  me  enquadro,  parece  que  cada  vez  me  enquadro  menos  nos contextos sociais, de costumes,  dos  "politicamente correcto ",  do " não tens idade para ... ",  " não se te apropria ... " !
Estou cansada !...

Fui espartilhada antes, durante e depois ??!!
Será que tive que atravessar gerações e épocas em que fui forjada para obedecer a padrões, figurinos e esquemas ?   Em que tinha que caber em " molduras " instituídas ??!!...
E tenho que continuar nos mesmos moldes e medidas ??
E sempre tenho " sombras " que me " medem ", me " emparedam ",  me " espartilham "??
Estou cansada !!...

Nada encaixa na minha vida !
Parece um tecido esfarrapado, sem conserto, parece uma renda esburacada, parece um puzzle vandalizado, parece um alfabeto em que anarquizaram a ordem das letras !!!
Logo eu, que sou aquele animal em que colocam a cabeçada e a sacode, o arnês e lhe foge, lhe dão o medicamento e o cospe !...
Logo eu, que vivo em permanente dialéctica com a vida, em permanente conflito e dúvida com as realidades, em permanente discussão comigo própria, em permanente desajuste com o espaço, o tempo e o Mundo !!...

Precisava escrever, precisava e preciso ...

Fui escrevendo sem escrever ...  Fui apenas largando pensamentos, frases, sentires a esmo,  ao correr desta cabeça que parou de pensar, e deixou apenas a mão e a caneta a caminharem ...

Precisava ter aberto, aliás, escancarado as comportas aqui de dentro, para ver se respirava melhor ;  precisava ser desconstruída e construída de novo ... mas isso já não vai acontecer nesta vida, seguramente ... talvez na próxima  reincarnação !!!...


Anamar

terça-feira, 4 de setembro de 2012

" FOI TEMPO ... "



Foi tempo ...
tempo das macieiras florirem,
foi tempo das tâmaras tombarem, amarelecidas nos cachos ...
e das margaridas silvestres  terem  pétalas  rosa,  brancas  e  amarelas ...
das violetas da Serra morrerem, porque foram arrancadas da Serra,
das mimosas perderem o ouro com que se vestiam, e as madressilvas, o cheiro com que se perfumavam ...

Simplesmente porque já foi tempo !...

Foi tempo em que eu sabia as tuas mãos,
cada centímetro do teu corpo e a tua gargalhada ...
Sabia o teu cheiro e o teu calor,
e o desenho que fazias na minha cama ...

E até sabia se rias ou se choravas por dentro,
só por ouvir a tua voz !

Foi tempo em que as rochas eram grutas,
e as árvores, nichos ...
Mas o alcantilado da arriba, onde o vento era livre, o sol perseguia a sombra das gaivotas ...sempre !
Nunca se escondia ...
Era Mundo aberto para outros Mundos ...

Foi tempo de relógio a correr rápido, depois mais devagar,
e mais devagar ainda ... até parar ...
E foi aí que deixou de ser tempo !...

Foi tempo de pôres-de-sol vermelhos, com braseiro aceso,
igual ao braseiro que ficou no buraco do coração ...

Foi tempo de rir, depois foi tempo de calar, e depois foi tempo de chorar,
porque foi tempo de acreditar, de esperar e de desesperar ...

E por que é que o tempo tem que ser sempre assim?!

Um  tempo  que  escurece  cedo,  com  a  mania  que  é  quase  Inverno ??!!...

E de repente o areal fica vazio ... e até as pedras tombam, para que não lembrem locais ...

Odeio o tempo das encruzilhadas,
o tempo dos caminhos tortuosos e confusos,
que sempre vão ter a caminhos que não são caminhos, porque não têm princípio nem fim !

Odeio o tempo dos cansaços e da desesperança,
porque são mortes anunciadas ...
E odeio os silêncios porque as palavras secaram ...
E eu preciso de palavras, para viver ...

Mas até para viver é preciso haver tempo ...
E eu acho que para mim,
simplesmaente ... JÁ  FOI  TEMPO !!!...



Anamar

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

" SALVOU-SE A LUA CHEIA "



Já aqui falei, não há muito tempo, do mecanismo enigmático e inexplicável dos sonhos.

Alguns parecem divertir-se a surpreenderem-nos com o ilógico do seu conteúdo ( isto se eles devessem ter alguma lógica ), outros, vão definitivamente buscar inquietações, estados de alma, angústias que nos assaltam, mas na maioria das vezes o contexto em que essa perturbação se apresenta, é dum confusionismo total, com assomos de "non senses" absolutos ...
Outros ainda, são a resposta nítida e sem dúvidas, de uma forma explícita mesmo, a qualquer coisa que vimos, que lemos, que pensámos, muitas vezes ao adormecer.
Foi exactamente este, e lembro bem, o tipo de sonho com que labutei esta noite.

Já ontem durante o dia havia pensado que hoje, dia 3 de Setembro, o primeiro dia útil do mês, é também o limite do período de férias da generalidade dos docentes, o que significa que o dia de hoje é o dia de apresentações nas escolas, para início de mais um ano escolar, pelo menos o início das actividades preparatórias do mesmo.

É um dia de fim de férias, que sempre traz a nostalgia do términus de um período que deverá ter sido de repouso devido, de lazer, de ausência de horários e preocupações laborais, ou seja, um período do desligar das realidades, normalmente pesadas, que vivenciamos todo o ano.
Por essa razão, ao longo da vida, mesmo ainda quando era estudante, os anos "mediam-se" com princípio e fim, coincidentes com o início e o fim do ano escolar, e não com os início e fim do normal ano civil.
Penso que se calhar acaba por ser um pouco assim, em todas as famílias com elementos ligados ao ensino, sejam estudantes ou professores.
Isso acaba por se "infiltrar" e colar às realidades familiares, efectivamente.

Por isso, este dia sempre foi marcante, com um misto de sentimentos e emoções, até contraditórios, na minha vida.
Por um lado, uma sensação desagradável pelo fim compulsivo de uma época descontraída e com menos responsabilidades, que foram as férias, depois alguma ansiedade do desconhecido que me esperava por cada ano iniciante ... que turmas, que alunos, que novidades o ano me destinaria ?!...
Depois, havia o sentimento sempre gratificante do reencontro com os colegas mais queridos ( aqueles que o coração sorria só por revê-los ), o contar das férias, o partilhar de informações sobre "novidades" que normalmente o Ministério da Educação sempre primou por pôr cá fora estrategicamente durante o mês de Agosto, em que as pessoas estão desmobilizadas, e a troca de opiniões sobre as mesmas ... e enfim, "novidades"também pessoais, se as houvesse.

E é  espantoso que dois anos depois, e em que já me sinto a anos-luz de tudo isto, ainda assim, involuntariamente, experiencio de alguma forma, toda esta mescla de sentimentos, e por que não dizê-lo ... sobretudo de algum saudosismo deste reencontro afectivo e sempre carinhoso, com caras e corações que me eram queridos.

Ontem à noite, no Facebook, li também depoimentos de algumas colegas que referiam exactamente o dia de hoje que as esperava, e a apreensão adivinhada mas já sentida, do futuro próximo, nas escolas.

No átrio do meu prédio, cruzei-me também com uma miúda, igualmente docente já há vários anos ( e digo "miúda", porque beira a idade da minha filha mais velha ), que "derrubada" ( é o termo ), desalentada, quase desesperada, por se sentir injustiçada e encurralada sem grandes perspectivas à frente,  me disse que pura e simplesmente não havia ficado colocada.  ( As colocações saíram nesta sexta-feira passada ).
Divorciada, com dois filhos a cargo, em idade escolar, "senti" em mim mesma, a situação e ... bem ... e fiquei sem "nada" para lhe dizer, porque de facto não há nada que se consiga dizer, sobre a insegurança, o desgaste, a angústia da incerteza, na verdade o desespero  que será por certo, ter que viver do Fundo de Desemprego, e manter-se em permanência ( quase ao dia ), atenta a novos concursos que vão saindo, para que  os não falhe, e possa concorrer a tempo de novas tentativas, nunca sabendo se continuarão a ser infrutíferas, ou não ;
ainda que venha a ter a sorte de conseguir, entre os milhares de pessoas em idêntica situação, uma colocação, onde será ( perto, longe de casa ? ), com toda a logística a gerir, de crianças a estudar, e a viverem em tempo integral com a mãe !...

As pessoas informadas, e nem sequer necessitam ser muito atentas, conhecem, pela comunicação social, como se apresenta a situação de milhares de docentes neste país, até mesmo a existência de imensos professores com vínculo ao quadro, com "horário zero", ou seja, sem horas que lhes sejam distribuídas.
O número de turmas reduziu, porque demograficamente a população em idade escolar diminuíu abissalmente, o número mínimo e máximo de alunos por turma foi alargado, o que prevê redução dessas mesmas turmas, e porque a legislação sucessivamente implementada pelo Ministério, a nível do ensino, é anedótica, para não dizer profundamente dramática ...

Para além do êxodo de todos os docentes, que com mais ou menos penalização, preferiram partir ( que foi o meu caso ), provocando mais uma verdadeira sangria de competências neste país, há a situação dos que "entalados" em meio de carreira, nada mais puderam fazer que ficar.
Permaneceram, a exaurir-se, num remar contra marés e ventos adversos, com consequentes situações de desgaste físico e mental, num "esticar" de resistência quase para lá do humano, numa luta de, no meio do turbilhão, conseguirem ainda assim, manterem-se "à tona" ... dando o seu melhor, em prol das reais e mais importantes  vítimas  de tudo isto, os jovens deste país, a prepararem também eles, sem grandes horizontes e certezas, os seus futuros !!!...

Ontem, pela internet, e retirado, creio, de um espaço que se diz "de liberdade de expressão" - " O Cão Danado ", chegou-me também ao conhecimento este texto, que aqui deixo  ( como homenagem de solidariedade a estas estóicas e abnegadas personagens, verdadeiros "bombeiros" na área da educação ), e que não é mais que um relato real e fiel, do "filme de terror" que muitas pessoas estão a viver neste momento em Portugal ... e que hoje, encetam mais um episódio das suas vidas ...

Escusado será dizer-vos, qual foi o tema do sonho que me massacrou por esta madrugada adiante ... em que uma lua cheia linda, clara, espectacularmente brilhante, foi a única nota dissonante, positiva e animadora, que me iluminou a alma  !!!...



 "Amanhã os professores com colocação apresentam-se nas escolas por este país fora para um novo ano letivo.

Cada professor (colocado ou não) enfrentará o dia de amanhã com um estado de espírito diferente:

- uns apresentam-se nas escolas como sempre o fizeram, ainda sem consciência da “nova” escola que os espera;

- outros apresentam-se após terem passado pelo “limbo” durante o verão sem saber se iam ser “repescados” ou não;

- alguns apresentam-se à espera da desejada aposentação após o dever cumprido durante toda uma carreira;

- enquanto uns se apresentam para saber que tipo de trabalho vão desenvolver (num ano em que o “mais com menos” imperará), outros apresentam-se sem serviço letivo atribuído e sem conhecer que tipo de funções irão realizar no agrupamento, ao lado de colegas com 24 horas letivas;

- muitos apresentam-se amanhã no Centro de Emprego sem certezas quanto ao seu futuro profissional;

- uns continuarão em casa a candidatar-se a ofertas de escola, esperando uma colocação por essa via ou pela Bolsa de Recrutamento;

- e outros tentarão conseguir emprego noutra área, talvez até fora do país.

A todos, independentemente da situação de cada um, este novo ano letivo trará com certeza um novo paradigma, uma escola diferente daquela que conhecíamos.

E perante isto o que fará cada um de nós? "



Anamar

domingo, 2 de setembro de 2012

" ADEUS " ...


Este post pode dividir-se em três partes :  um preâmbulo, da pessoa amiga que  me enviou a poesia,  mais uma  obra prima que é a poesia de Eugénio de Andrade ... ( linda, sensível, triste ... talvez realista, como são quase todas as por ele escritas ), e um epílogo, que esse sim, é meu !...

Já disse um adeus assim sentido a alguém?
Já alguém lhe disse um adeus assim sentido?
Já disse, sem dizer, um adeus assim sentido a alguém?
Já deixou alguém na dúvida de lhe ter dito, sem dizer, um adeus assim sentido?
Já ficou na dúvida se alguém lhe disse, sem dizer, um adeus assim sentido?



"Adeus"


Já gastámos as palavras pela rua, meu amor

e o que nos ficou não chega

para afastar o frio de quatro paredes.

Gastámos tudo menos o silêncio.

Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,

gastámos as mãos à força de as apertarmos,

gastámos o relógio e as pedras das esquinas

em esperas inúteis.


Meto as mãos nas algibeiras

e não encontro nada.


Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!

Era como se todas as coisas fossem minhas:

quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!

E eu acreditava.

Acreditava,

porque ao teu lado

todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos.

Era no tempo em que o teu corpo era um aquário.

Era no tempo em que os meus olhos

eram peixes verdes.

Hoje são apenas os meus olhos.

É pouco, mas é verdade,

uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.

Quando agora digo: meu amor...,

já se não passa absolutamente nada.

E no entanto, antes das palavras gastas,

tenho a certeza

de que todas as coisas estremeciam

só de murmurar o teu nome

no silêncio do meu coração.


Não temos já nada para dar.

Dentro de ti

Não há nada que me peça água.

O passado é inútil como um trapo.

E já te disse: as palavras estão gastas.


Adeus.      

                  Eugénio de Andrade


O único epílogo que posso postar neste poema, com o qual me identifico, me mexeu, me emocionou .... resume-se a uma só palavra :  "JÁ"...

Poderia talvez acrescentar : "infelizmente" .... porque um adeus, só por si, seja em que circunstâncias, momento, ou causa que  o determine, for,  é seguramente um momento extremamente triste, de sofrimento e solidão, na vida do Homem !...


  Anamar

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

" POEMA DE AMOR "



Ama quem te saiba ouvir e entender a tua linguagem ...

Ama quem saiba rir contigo, e quem saiba também secar-te as lágrimas quando caírem.

Ama quem saiba passar contigo tardes infindáveis, serões sem horas, a conversar de tudo, por tudo e por nada, e o nada é importante, e é tudo ... porque o conversaste ...

Ama quem se deixa embalar na mesma música que tu ...

Quem se emociona e saiba extasiar-se, só porque o sol vai adormecer no horizonte laranja, lá longe ...

Ama quem adore a beleza de todas as flores, mas aprecie a singeleza das silvestres, daquelas que nascem nas pedras, nos muros, nos troncos, e não foram semeadas por ninguém, e não são regadas  por ninguém, que não a Natureza, mãe de todas elas ...

Escolhe quem goste de dançar contigo na chuva , saiba perder-se na sua melopeia embaladora, e saiba escutar o mar pelas madrugadas, em todas as marés ...

Ama quem, como tu, ame todos os animais, tenha compaixão por todos eles, e lhes conheça o verdadeiro valor, dedicação e afecto ...

Ama quem deixe o sonho voar livre, junto com aquela gaivota que voa de asas esticadas, na brisa da tarde, até lá onde a vista não divisa mais ...

Ama quem gosta dos espaços sem horizontes que os limitem ;   mas também do alcantilado das serras, das falésias, das escarpas ... das pedras sem história, por terem uma história que não finda nunca ...

Ama quem saiba dar-te as mãos, entrelaçando forte os dedos, como se com isso quisesse mostrar-te que segura o Mundo para ti ...

E também quem saiba simplesmente silenciar contigo, perscrutando apenas as batidas de corações,  em  simultâneo ...

Fica com quem saiba sempre olhar a lua cheia, da tua varanda, e acredite que nela há olhos que se encontram, e corações que se juntam ...

Prende  só  quem  souber  que  estás  a  prendê-lo  com  o  teu  olhar  ( porque  o  lê  e  o  conhece ) ...
... e não  com  amarras  ou  algemas !...

E guarda dentro de ti, quem souber os mistérios e os segredos do teu corpo, porque os tem guardados dentro do seu ... Mais ninguém !!!

Ama quem gosta de brincar na areia, como criança outra vez, e quem fica feliz e te ache linda, só porque o vento ousa despentear o teu cabelo, e isso te faz lembrar as mãos sábias que muitas vezes já o despentearam ...

Ama quem saiba estreitar-te ao peito, e o peito seja quente, da fogueira que o incendeia, só porque tu estás perto !   E quem deixe repousar a tua cabeça cansada, no seu regaço doce, como barco em porto de abrigo ...

Ama  quem  saiba sonhar  longe, ainda  que sejam sonhos infantis e pouco prováveis ... mas sonha !...
Ama quem acredita que esses sonhos deixarão de ser sonhos, e um dia, já velhinhos, vão transformar-se em realidades à luz da lareira acesa ...

Não precisas sonhar o belo, o sublime, o irreal, o utópico, o que é mentira ... porque isso passa, e as perfeições  e  as obras de arte, só existem, mortas, nos museus, em telas pintadas ou estátuas esculpidas ...

Mas não esqueças ... ama ... sobretudo ama, quem tenha força, coragem, determinação, para sempre, em qualquer momento, lutar por ti, sofrer por ti, querer o teu ser junto de si, e que jamais seja capaz de esquecer ou abandonar os sonhos sonhados e partilhados um dia, lá atrás, pelos dois !!!...



Anamar

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

" A ESTRELA CADENTE "



A noite estava completamente escura.
No pico da encosta, lá, donde se divisa o Mundo, viam-se longe alguma luzes das últimas casas da aldeia, via-se a luz do farol, que varria sincopadamente e em ritmo certo, 360º de espaço à sua volta ( por certo era uma luz aconchegante e tranquilizadora, para quem vinha dos lados do mar ), e viam-se as constelações no céu de breu.
Era o privilégio e a maravilha que sempre a extasiavam, quando subia ao cimo daquele cume, onde só ali havia escuridão suficiente para ver, admirar e "contar" as estrelas.

Quando era miúda, nas férias passadas na aldeia, era vulgar o avô levá-la a passear após o jantar, quando já corria aquela fresca abençoada, na canícula do Alentejo.
Sempre iam até ao campo, e subiam àquele pico, que afinal era logo ali.
A iluminação precária e pobre da povoação, desaparecia totalmente logo no virar da primeira esquina, e a escuridão espalhava-se e envolvia tudo em seu redor.

Os grilos e as cigarras "desgarravam" sem se cansar ; os chocalhos dos rebanhos, que no Verão não recolhem aos estábulos, soavam de quando em quando nos pastos, e a voz sincopada do avô, uma voz calma, doce e sapiente, sem pressas, contava-lhe histórias ...
Histórias não daquelas que se lêem nos livros, de fadas, coelhinhos e lobos ferozes ... mas histórias de vidas, histórias de gente, histórias reais, em linguagem infantil, que não esquecera até hoje.

Havia uma cumplicidade imensa entre os dois, uma partilha de saberes e de emoções.
Ambos ensinavam, e ambos aprendiam um do outro, porque os adultos ensinam, mas aprendem sempre muito com as crianças.

Se mais não tivesse sido ( e foi muito mais ), o repositório destas memórias e deste afecto que se partilharam, perdurava quase cinquenta anos depois ( e por certo, por toda a vida que ela ainda vivesse ) ;
ficara indelével, gravado, ajudara à sua formação como pessoa, como um adulto íntegro.
A transmissão dessa sabedoria, que nenhum livro, nenhum filme, jamais conseguem fazer, é afinal a memória dum povo, é a sabedoria das gerações, é a experiência de vidas, é  o  legado  das  tradições,  é  a  história da  Humanidade que  passa  através dos séculos ...

A primeira "estrela" que descobriam no céu, era Vénus, que o avô lhe dissera chamar-se a "estrela do boeiro".
Vénus era um planeta "mascarado" de estrela, e por isso não "piscava", como pisca a luz das estrelas "à séria".
Era do "boieiro", porque subia no céu ao cair do dia, exactamente quando o gado recolhia aos estábulos.
"O sol vai dormir, quando Vénus se levanta" - dizia-lhe o avô.

Depois era a brincadeira de qual dos dois descobria primeiro, no céu escuro, a Estrela Polar, a última estrela da cauda da  Ursa Menor ; e a Ursa Menor  era encontrada a partir da Ursa Maior, um "quadrado" desenhado por quatro estrelas, e bem mais fácil de encontrar.
Multiplicando por cinco a distância entre as "guardas" ( duas das estrelas dos vértices desse quadrado ), íamos então encontrar a Ursa Menor, e daí à Estrela Polar, era um pulinho ...
Lá estava ela, bem mais brilhante que as outras, mais visível ... parecia maior !
O avô explicara-lhe que o tamanho com que as viam, tinha a ver com a distância a que elas se encontravam de nós, e contava-lhe que naquele preciso momento, poderiam estar a ver a luz de estrelas que já haviam morrido há muito, luz que levara muito, muito tempo a chegar à Terra ...

Isso era um mistério insondável e mágico para a menina ...
Como era possível ver-se uma luz que brilhara numa estrela que já não existia, se ela só veria a luz do farol, se o faroleiro não se esquecesse de o ligar ??!!...

O avô contara-lhe também, como muitas e muitas gerações se haviam orientado pela Estrela Polar, que sempre indicava a direcção do norte.
Daí, à bússola e aos pontos cardeais, era outro pulinho de pardal ...
E as histórias continuavam ...

-"Avô, e só existem estas constelações?  Porque eu não vejo mais "desenhos" feitos no céu !!! - inquiria Isabelinha.

E aí, vinha o hemisfério norte e o hemisfério sul ( as duas meias laranjas ), a cassiopeia, o orion, o cruzeiro do sul ... e daí vinham os pólos, e o equador, e a forma da Terra e de como ela se movia e rodava em torno do Sol, a estrela que todos os dias nos aquece, e que, quando ela também morresse, a Terra  morreria  junto !
Contou-lhe dos dias e das noites, e como a essa hora, em terras distantes, as pessoas estavam a começar o seu dia ...
E contou-lhe também, que há muitos anos atrás, um senhor chamado Galileu ( um cientista que estudava muitas coisas ), fora condenado e preso, por ter afirmado que a Terra girava em torno do sol, o que nessa época da História, foi considerado uma blasfémia e uma heresia, porque o que os Homens viam diariamente, era o Sol a levantar-se e a pôr-se ; portanto, quem "andava" era o Sol e não a Terra, e Galileu não passaria de um trapaceiro, e de um impostor aldrabão ...

- "Como os homens eram ignorantes, avô !! ....
E  a  forma  da Terra, como descobriram que era uma "bola" ??

Veio então a história do horizonte. O avô chamava a atenção de Isabel, de como, do alto daquele cume onde se sentavam, a menina podia ver uma linha curva e não recta, a limitar tudo o que os rodeava, tal qual como na praia, olhando o mar, lá ao fundo ...
Apanhava do chão uma pedrinha esférica, e mostrava-lhe como afinal era lógica a conclusão !...

Nas noites em que a lua cheia se pavoneava no firmamento, obviamente que as "fases" eram questionadas.
Até hoje se lembrava como o avô lhas ensinara tão intuitivamente, arranjando uma laranja, uma uva e a luz de uma vela ... que ele dizia fazer de conta serem a Terra, a Lua e o Sol, respectivamente.
E contara-lhe um segredo :  "Olha, Isabelinha, para saberes sempre em que quarto está a lua, lembra-te que ela é "mentirosa" !...   Quando desenha um "C" no céu, está em quarto decrescente, e quando forma um "D", está em quarto crescente ...   Assim, nunca te enganas !..."

- "Avô, e aquelas manchas que a gente consegue ver tão bem na Lua ... o que são ??"

E os temas nunca terminavam, e variavam de noite para noite.
Sempre a partir de palavras adequadas à sua idade, sempre de uma forma bem simples, aprendeu muito do que não esqueceu pela vida fora ...
Histórias da vida no campo, das sementeiras, das colheitas, das mondas, da ceifa ... das estações do ano ...
Histórias da gente pobre da sua terra, quando a pobreza era muita, e a açorda de pão "dormido", quase só o  que  havia  para  pôr  na  mesa !...
Histórias das chuvas, das geadas e das neves, que há muitos anos atrás, contava o avô, num Inverno muito rigoroso, pintaram de branco a sua aldeia !...
Histórias dos meninos que não podiam estudar, porque os pais não tinham dinheiro que o permitisse, e mal aprendiam a ler, a escrever e a contar, abandonavam a escola, porque havia que ajudar no sustento da casa, trabalhando muitas vezes acima do que uma criança poderia fazer ...
Contava-lhe que na escola escreviam numa ardósia, que era uma pedra de lousa, com um giz branco ...
Contava-lhe que a sacola da escola, era feita em casa, de burel, um tecido bem resistente, para que durasse para todas as crianças da família, sem se estragar ...
E que eram poucos os meninos que tinham calçado, e por isso, a maior parte andava descalça, até nos Invernos mais gelados !
E quando lhes era comprado um par de botas, na feira, estas eram cardadas, e levavam "protectores" nas biqueiras, para que não se estragassem facilmente ...
E depois havia também que explicar o que eram "cardas", e o que eram "protectores", porque felizmente Isabel nunca os vira !...

Passadas mais de cinco décadas, Isabel ficaria ali, uma outra vez, no cume da encosta, lá donde se divisa o Mundo ... certamente até de manhã ... e ainda assim não lembraria a globalidade de todo o tesouro inestimável, que por certo, sem se aperceber, na sua pouca / muita cultura, o avô lhe transmitiu em menina ...

Deu por si meio adormentada nessas memórias, deu por si a ver as luzes distantes e pobres do casario da aldeia ( não havia mudado grande coisa ), e deu por si a ver o varrimento da luz do farol, que não se havia cansado até então ...
Mas deu também por si, inconscientemente, ao olhar o céu e ao ver uma estrela cadente ( aquelas que o avô lhe  dissera que tinham  sempre  muita  pressa  de  caminhar ), a  pedir,  como  em  menina,  três desejos ...   " porque se os pedires, a estrelinha, na sua corrida pelo céu, vai depressa buscar-tos " - dizia-lhe ele ...

Que saudade desse tempo, que saudade da figura do ancião que tanto amou, sempre venerou, e nunca esqueceu ...  que saudade de si, em menina !...
Hoje, na sua vida, na sua realidade, na mulher que ela era, pensou que lhe bastaria pedir UM só desejo ... se a estrela cadente fosse capaz de lho trazer !!!...

Anamar