quarta-feira, 17 de agosto de 2016

" A DESCIDA ÀS PROFUNDEZAS "




Os mistérios insondáveis da  memória humana são algo que me assusta  mais e mais, à medida que a vida se desenrola.
É perturbador mergulharmos nela, como um espeleólogo que busca a profundidade, neste caso, da alma.
Surge como um túnel mal iluminado, que se aprofunda e agiganta.  Surge como uma passagem entre pontos de acesso quase inatingíveis.

Se recuarmos no tempo e tentarmos escalpelizar os lugares que buscamos, com o avanço dos anos, uma cortina entretecida em teia opacizada, vai inviabilizando progressivamente, esse desiderato.
Refiro-me a memórias de passados recentes, porque persistem sobretudo apenas, os mecanismos da memória longínqua, explicáveis à luz da ciência.
A medicina sabe claramente, por que as memórias mais recentes se apagam, e de uma forma aparentemente ilógica, as memórias distantes emergem com uma nitidez e clareza que confundem.

A minha mãe caminha para os noventa e seis anos.
Este fim de semana ficámos juntas.  Conversámos longamente.
Tem demências pontuais.  Tem confusionismo, obscuridade no conhecimento e na linguagem, a acentuarem-se em progressão.
Procuro situá-la, pela conversa.  Procuro referenciá-la, buscando pessoas, lugares, acontecimentos significantes, que vivenciou e lhe foram importantes.
Procuro "escavar"  no seu cérebro, momentos, ocasiões, factos, coisas, emoções, afectos ... lugares.
E como um escafandrista, trazê-los à tona da sua memória, tentando envolvê-la nos resquícios dos registos que possam existir.
Tento deitar-lhe laços, bóias, cordões que a reabilitassem, aqui e agora.

A minha mãe fala com uma nitidez e uma clareza impressionantes, sobre realidades da sua infância e juventude.
Projecta-as na actualidade, indistintamente, sem balizas ou impedimentos, sem triagens ou capacidades interpretativas.
Faz um "mix" desconexo e doloroso, que toma como real e actual.  Uma espécie de filme em rewind.
Sem noção de tempo ou espaço.  Sem noção de passado ou presente.

Em contrapartida, as suas experiências recentes, memórias de um passado próximo, estão totalmente deletadas na sua cabeça.

E é dolorosíssimo, destruidor, aterrador mesmo, assistir ao esforço supremo que exercita, para pescar tudo o que lhe ficou num mar de profundidade inalcançável.
É duma violência sem tamanho o seu "esgaravatar" mental, para tentar alcançar de novo o significado de coisas que lhe foram perfeitamente familiares e queridas.
É desesperador assistir à incapacidade de afastar as cortinas tenebrosas que inapelavelmente lhe cerram a memória, e lhe barram o caminho de acesso aos recônditos da mesma !

A minha mãe sempre amou e sempre se rodeou de plantas e flores, muitas delas, por si plantadas.
Tratava-as, acarinhava-as, desvelava-as com um esmero sem tamanho.
Em cada palmo de terra, dispunha uma sardinheira.  Em cada canto cuidava uma buganvília, uma glicínia, um hibisco ...
Nos últimos anos viveu numa casa com jardim, onde podia para felicidade sua, desfrutar de uma qualidade de vida que a preenchia plenamente.
Lá, a minha mãe apenas lembra que foi feliz.  Como um sabor impreciso que fica, de uma iguaria que já engolimos ...
De lá, tem imagens ténues e esbatidas, como manhãs de nevoeiro, que por mais esforço que façamos, nos impedem de divisar mais além ... com definição ...
Apenas isso !
E quando tento que recue e desencave  uma centelha da felicidade que experimentou, quando tento que abra uma pequena fresta que lhe permita espreitar lá atrás ( como uma cortina que pudesse correr, deixando livre o olhar e deixando a memória saltitar ) ... perde os olhos no vácuo, fecha o rosto para lá da distância, afasta-se ... à medida que as lágrimas lhe escorrem ...

"Tenho tanta pena de não me lembrar !" ... diz.

E eu fico perplexa.  Sinto uma revolta sem tamanho face à injustiça da vida.  Sinto um pavor que me tolhe e domina ...
Será que eu também vou perder as minhas memórias ?
Será que eu também vou perder a minha identidade ?...
Sim, porque nós somos as nossas memórias !
Como é, caminhar de olhos vendados ?  Como é, ter que progredir no escuro, sem norte,  bússola,  estrelas ?   Como  é,  estar  largado,  sem  referências,  sem  rumos,  nortes,  sentidos ???!!!!

Tudo isto me consome.  Todas estas interrogações me atormentam.  Todos estes medos, me povoam.

Os pais partem,  E é quando sentimos a proximidade desse desfecho, que concretizamos que nós mesmos estamos caminhando logo ali atrás, tomando simplesmente lugar na calha que avança ... inexoravelmente !!!

Anamar

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