domingo, 4 de março de 2018

" O LUSCO-FUSCO "


Está uma tarde desanimadora.  Está um tempo de despedir esperançosos.  Afinal, até parecia, mas não, a Primavera não está nem ao virar da esquina !

Ocorreu-me ... tem-me ocorrido, que precisava falar com a minha mãe.  Falar de coisas triviais, coisas com pouca / muita importância ... como por exemplo a chuva que tem caído, o mar que se alçou e levou tudo adiante ...
Ouvi-la falar das imagens da guerra na televisão ... e vê-la condoer-se até à alma, pelas mulheres, pelas crianças ...
Relatar-me as últimas do seu Sporting ... sem arredar pé, como uma leoa que se preza !
Ocorreu-me referir-lhe que me deve lembrar como se faz aquela sopinha boa de feijão com mogango, ou a sericaia de fim de almoço.  Afinal, se não aprendi, já não aprendo ...
Ou mesmo pedir-lhe que me recorde que bolos tínhamos nós, na mesa, na Páscoa que se avizinha, lá no Alentejo de casa de avós em mesa farta ...
Coisas tão simples.  Simples e triviais, que recheavam as nossas conversas quotidianas !

Parece que deixámos de conversar só ontem ... mas hoje, já não a acho.
Que estranho que é,  ter ali sentada à minha frente, uma moribunda formal.  E a outra, aquela com quem deixei tantas coisas p'ra falar, desrespeitosamente já não comparece mais ao encontro...
E no entanto ainda ali está.  Está e não está !

E fica aquela sensação esquisita de uma saudade inacabada, uma incompreensão sem remédio ! Uma sensação de tempo que não se agarrou e já  não se agarra ... num desperdício e distracção absurdos ...

Apetece-me abaná-la.   Chocalhar-lhe aqueles miolos imprestáveis que já só estão.  Nada mais !
Apetece-me ... em vão !  É uma parede intransponível, sem brechas, que tenho à minha frente ...

E fica  aquele sentido mal explicado de impotência e injustiça !  Que raios, havia tanta coisa em pauta para nos dizermos !...
E agora ?  Agora faço como ?

E dou por mim a experimentar uma saudade amarga, quando entendo ... Porque quando pareço não querer entender, acho que ela está lá no sofá, ao cair das tardes ...  eu estou lá, a caminho das aulas, depois de um último beijo e de um último adeus, antes de contornar a esquina  a tempo ainda de a ouvir descer a persiana ... e amanhã é outro dia certo, de vida, em que eu e ela estamos lá ... e havemos de estar, porque eu tenho infinitas coisas para aprender com ela, porque ela sempre foi alguém que nunca me desfeiteou nem falhou.  E por isso, tem que continuar por ali !...

Como podemos ter saudade já, de quem ainda não partiu ?
Como podemos encaixar no nosso coração e na nossa alma, pacificamente, uma inexplicação sem limite, sem tamanho, numa aberração monstruosa ?!

E uma revolta incomensurável, mina-me até às entranhas .  Nunca vou entender nada disto.  Nunca vou aceitar tamanha pirraça do destino...
Ela, que quando era gente, sempre se esperançou que a existência  haveria de ter um respeito misericordioso pela pessoa que sempre foi !!!...

Anamar

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