Aqueles tocadores de sonhos começaram cedo pela manhã. E não arredaram pé, por todo o dia, da calçada junto à porta do prédio, zona de passagem de quem se faz às compras diárias, aos autocarros e aos comboios.
Por certo, esperançavam-se ser ali, lugar de generosidades dos passantes.
Duas bicicletas, um atrelado por cada uma, mais umas tralhas logísticas, mais um cão ... mais a magreza inerente à escassez adivinhada, mais a sujidade dos trajes e das "rastas" nos cabelos imundos ...
Ah ... e um pífaro. Um deles tocava uma espécie de música, sempre a mesma, extraída daquele instrumento.
Esse, em pé, bamboleava o corpo como quem experimenta uma dança nos acordes musicais. O outro, sentado no chão, num pano estendido sobre as pedras, fazia uma qualquer bricolage que expunha na calçada, sonhando talvez que alguém pudesse comprar aquelas peças, cuja serventia não descortinei.
O sol esteve agressivo por todo o dia. Forte de mais, apesar do céu se mostrar nublado a espaços.
E eles ao sol, alheados do que os rodeava. Silenciosos. No seu mundo, apenas.
O cão dormia, o pífaro tocava aquela lenga-lenga, o rapaz da bricolage terminava acabamentos, o rapaz do pífaro ora num pé ora noutro, parecia não estar por ali .
Não pediam esmola, não pediam comida, não falavam com ninguém.
Dois perfis esfíngicos, alheados do contexto à sua volta, numa postura total e absolutamente zen ... eu diria ...
Conhecemos gente assim. Vagueiam nas cidades, pedalam nas estradas, acampam nas falésias frente ao mar.
"Hippies", marginais, "outsiders" ... gente estranha ... vá-se lá saber ... era o que se adivinhava na postura selectiva e xenófoba de quem os olhava e rapidamente desviava os olhos. Eram incómodos, sem o serem ...
O ser humano, sem querer obviamente generalizar, reage mal ao diferente, ao que desafia as estruturas, ao que questiona, ao que mexe com o instituído, ao que quebra regras ...
E a presença daqueles jovens, assumidos na forma comportamental escolhida, confrontava quem passava, se mais não fosse, porque acenava com a coragem de se mostrarem livres. Independentemente de serem ou não aceites numa sociedade toda ela articulada, desenhada em figurinos musculados e "correcta", enjeitam literalmente o estabelecido, ainda que este os hostilize.
Do meu sétimo andar, onde chegavam os acordes daquela melopeia repetida, espreitei-os vezes sem conta.
Certamente serei demagógica ... mas aquelas figuras descomprometidas causavam-me alguma inveja. De certa forma, despertavam-me simpatia e admiração ... a nós, que acomodados ao conforto das seguranças na vida, nas certezas dos trilhos desejados e escolhidos, optamos pelo imobilismo de ir ficando por aqui ... ainda que os sonhos fiquem quase sempre da "porta" para fora !
Transportam mundo nas costas, carregam estrada nas pernas ... e asas ...
Pousam nas grades da nossa "gaiola" e sorriem.
Não sei se são tocadores de sonhos, não sei se são adoradores de sóis e de luas, amigos do vento e da chuva ... filósofos da vida ...
Não sei se serão só isto, se serão exactamente isto ... ou muito mais que isto ...
Ou apenas, pássaros !...
Anamar
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