domingo, 29 de setembro de 2019

" DE UM TUDO ... AO FIM DA TARDE ..."




Anoiteceu com um céu laranja.  Doce e pálido.  Não intenso e afogueado. Isso foi antes, quando o sol ainda se assomava, já por detrás das chaminés, lá ao fundo.
Não tenho nada especial para dizer. Mas tenho quilos de palavras entupidas na garganta.
Não tenho nada especial para aqui deixar.  Mas tenho toneladas de sentimentos contraditórios a sufocarem-me o coração.
Fui à janela da frente. Onde poucas vezes vou. Abro, fecho, subo persianas, desço persianas, corro cortinas, abro cortinas ... ao sabor do sol, do vento e da chuva, se cai e os vidros por acaso, foram esquecidos...
Pouco mais.  A vida desenrola-se-me aqui, para as traseiras da casa.  Aquele lado, privilegiado, que me leva a reboque por sobre os telhados, no voo da brisa, para horizontes bem mais distantes e mais meus ...

É uma hora lixada, esta. Esta, em que o sol se vai, numa estação de lusco-fusco.  Esta, em que a sua luz é doce ... duma doçura de despedida e nostalgia.
Não brilha como antes.  Não aquece como antes.  Temos a certeza que a esquina do ano já se dobrou.  Daqui em diante, o silêncio da Natureza abate-se sobre a Terra, aqui neste nosso canto.
E é como se houvesse um chamamento que não se descreve e só se sente ... ao sono, à quietude, à hibernação ...
São dias de dourados, ocres e amarelos esmaecidos ... São dias de castanhos e vermelhos, nas folhas acumuladas nas alamedas dos parques.  E de árvores despenteadas que começam a despir-se, para a noite que se avizinha ...

Da janela da frente, eu adivinho, mais que vejo, a avenida, o telhado, a casa ...
Era aquela hora em que eu sabia a minha mãe, nos preparativos para se aquietar.  Sim, porque ela dormia cedo.  Depois da torrada, do chá e do telejornal, era a hora de sossegar.  Ela e o Gaspar ... o cão que um dia lhe chegou da desdita do abandono, companheiro de todas as horas e a quem "só faltava falar" ...
Se fechar os olhos ( e há pouco fechei-os por instantes ), estou lá, naquela sala iluminada pela luz do candeeiro de marfinite, com um querubim segurando um archote, na credência entre os dois sofás, frente  à  estante,  com  a  televisão  ainda  com  as  últimas  notícias  no écran ...
Vejo no chão a carpete verde, vejo a cesta do Gaspar dormir as sestas, e consigo ver também cada bibelot, por pequeno que seja, em cada prateleira ...
Vejo exactamente tudo ... até os sorrisos das fotografias sobre a camilha, e o vaso com a avenca sempre verde, no centro ...
Estou lá ... vejo claramente a tonalidade aconchegante da única luz acesa.  Vejo a entrada às escuras, vejo a cozinha com a luz clara da lâmpada do tecto ... Vejo, e oiço ...
É uma imagem obtida na minha mente, por reconstrução depois da desconstrução que foi a vida !...
É como se fizesse um rewind em câmara lenta, e o projectasse à frente dos meus olhos ...
Impressiono-me como é isso possível ... mas é !  Ela está ali ... eu, estou ali ... O tempo não é mais o hoje  ... O tempo é o ontem ... como se o arreganhasse lá atrás e o re-estendesse à minha frente, qual passadeira que se desenrola e desvenda ...
O tempo é o preâmbulo da minha vida, é o prefácio da minha história ...

Hoje, na caminhada não encontrei vivalma.  Como sabem, falo muito da caminhada. Mas não é pela caminhada, porque essa, é um esforço que me imponho.  É pela mata.  A mata é o meu quinhão de Natureza com que me presenteio.
Ainda bem que não encontrei vivalma ... Vivalma, gente ... porque cada vez gosto menos de gente !
Encontrei gatos vadios.  Gatos da mata que são genuínos, livres, soltos, e que só aparecem quando querem e para quem querem ...
Encontrei pombos, rolas, pegas rabudas, melros, pardais ... Andorinhas não vejo por lá.  As flores também já partiram quase todas, e com elas, o som das abelhas, dos besouros, e mesmo das cigarras do pino do Verão.  E as borboletas foram buscar outras Primaveras por aí ...
Lá, o ouro manso dos raios solares que atravessam as clareiras em adormecimento, guarda o silêncio das penumbras que se prometem ...
E é uma paz incontida e sem dimensões !...

Ando numa de desencanto, de corte empático com o ser humano. De cansaço.  De desaposta ... de decepção ... mesmo de indiferença ...
"Este país não é para velhos", um thriller realizado pelos irmãos Coen, tendo como intérpretes, os icónicos Javier Bardem, Tommy Lee Jones e Josh Brolin, que arrecadou o Óscar de melhor filme de 2008 e que recordo agora,  quadra-se bem com o meu estado de espírito actual, em que pareço necessitar defender-me emocionalmente, com um afastamento, uma rejeição e consequentemente uma recusa dos valores que me cercam, num país e num mundo que não entendo, não aceito e me enoja ...
Estou farta de uma sociedade movida por marionetas, submetida a interesses obscuros, pouco transparentes e claros, em que apenas os valores materiais, do sucesso e da ascensão a qualquer preço, o compadrio, o favorecimento e o poder, norteiam os alpinistas inescrupulosos e nojentos que pululam nessa mesma sociedade.
Estou farta de que me tirem a ingenuidade, me arranquem a esperança e a fé em futuros que vejo tenebrosos para os meus, e para todos aqueles que estão a crescer, acreditando ...
Estou farta de que me escureçam o horizonte e o carreguem com as nuvens da incerteza, da angústia e da dúvida no amanhã ...
Estou farta de que me arranquem o sonho ...

Em suma ... estou farta de gente !!!...

Anamar

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