terça-feira, 28 de julho de 2020

" MEMÓRIAS IDAS ... "




Aquela casa não é aquela casa ...
E ainda bem que "esta" casa não é a casa que era !

Respirei fundo, cumpri o horário e atrevi-me.  Não fazia ideia de como me saíria de uma visita inesperada, ilógica e desajustada no tempo.
O tempo ... de Covid19,  é um tempo impensável p'ra visitas em casa de quem quer que seja, menos ainda em casa de pessoas que não nos são propriamente familiares ou de relações próximas. Visitas, configuram mesmo um certo abuso ... eu acho .
Mas passo a explicar:
A casa dos meus pais, nos últimos quase trinta anos a casa "da minha mãe" apenas ... era um rés-do-chão alto,  como se dizia, que estreámos, acabadinho de fazer, quando, recém-chegados do meu Alentejo, de Évora, meu berço de coração, rumámos à capital por razões profissionais do meu pai.
Corria então o ano de 1963.
E lá se fez toda a minha história.
De lá saí p'ra casar, de lá parti para Luanda onde vivi dois anos, cumprindo também eu a "comissão militar" do meu marido, alferes miliciano  ali destacado.
P'ra lá entrei com a minha filha mais velha nos braços, chegada da clínica, com horas de vida.
De lá vi o meu pai rumar ao hospital, sem retorno ... no que foi o meu primeiro grande desgosto na vida.
De lá saí para a casa definitiva onde ainda vivo até hoje, embora o cordão umbilical nunca tivesse sido cortado.

Aquela casa foi pois, a casa de família ... o berço, o ninho, o aconchego.
Todos os dias transpunha a soleira daquela porta.  Todos os dias desejava as boas noites à minha mãe, quando pelas sete horas, debruçada na janela, com o Gaspar ao lado, se despedia de mim, antes das minhas aulas, já que o liceu nos ficava em caminho.
Todos os dias, quando dobrava a esquina, a ouvia descer a persiana, porque a noite se avizinhava e para ela eram quase horas de recolhimento.
Aquela casa assistiu ao crescimento das minhas filhas.  Ficando logisticamente no triângulo entre o meu liceu, a escola preparatória da mais velha e a primária da mais nova, era estrategicamente o pólo de apoio a nós três, na hora do almoço.
Vínhamos chegando, contando as novidades, conversando, rindo e claro ... acelerando a minha mãe, mercê da fome que já se fazia sentir.
" Avó ... cheira bem !  O que é hoje ? "  " Meninas, mãos lavadas e mesa ... parem da corrimaça ! "      " Cláudia ... chega !  Catarina,  pára ... olhem  que  ainda  partem  alguma  coisa ! "...
" Como foi a escola ? "... " Recebeste algum teste, Cláudia? "...
E era assim !...  E foi assim ... muitos anos.  Todos os possíveis !!!...

Depois, a vida desmanchou-se.  Como se desmancham as vidas das pessoas.
Pelas mais variadas razões, aquela casa foi-se despovoando ...  Até o Gaspar ( a quem só faltava falar, dizia a dona ... ), partiu um dia.
As persianas desceram definitivamente, as plantas foram definhando, pois já não era mais a dona que as cuidava ... os estendais ficaram inúteis, o silêncio e as sombras foram-se instalando ... a ausência de vida passou a morar por ali ...
Até ao dia em que inevitavelmente me coube a mim franquear de novo a porta da rua, agora no sentido do exterior ... definitivamente, jurara eu.

Mas a vida tem ironias, tem "arapucas" difíceis de entender.  Tem desafios que talvez seja útil encarar de frente.  Tem feridas que por vezes criam crostas apenas superficiais, e que removendo-as de vez, abrem hipóteses para uma cicatrização objectiva e plena.

A actual inquilina daquele espaço é uma antiga aluna minha, uma miúda que vi crescer ali, no segundo andar do mesmo prédio.
A casa foi para obras de fundo tanto quanto me apercebi, como careceria um andar que pouca manutenção tivera desde a construção.  A senhoria verbalizara-mo, quando lhe devolvi em definitivo as chaves.
Passei uma vez junto às janelas ... abertas, por via das obras.  Olhei longamente o que conseguia divisar.  Um operário perguntou-me se queria entrar para ver.  Declinei, enquanto as lágrimas me escorriam.  "Foi a casa de toda a minha vida ... Não quero entrar, não !"

O tempo passou.  A minha mãe já partiu há mais de dois anos.
Ontem, a Sandra disse-me "professora, faço gosto em que veja a minha casa e como ela ficou depois de toda uma vida ser a vossa casa ..."
Não pude recusar.  Eu queria e não queria.  Buscava ( como se ali estivesse ) toda a história que ali vivi.  Parecia que naquelas paredes estava indelevelmente tactuada a presença dos meus pais, o som das suas vozes, o ruído dos seus passos.  Tinha a certeza ( e isso enchia-me o coração de uma esperança vã ... quase de uma alegria mitigadora), que olhar aquele espaço seria uma regeneração de um passado que se tornaria presente outra vez ... Como se isso pudesse acontecer !... Como se milagres existissem ...

Não fazia ideia de como me saíria de uma visita inesperada, ilógica e desajustada no tempo.
Mas ... respirei fundo, cumpri o horário e atrevi-me ...

Aquela casa não é aquela casa ...
E ainda bem que "esta" casa não é a casa que era !...

Anamar

Sem comentários: