quinta-feira, 18 de setembro de 2025

" FANTASMINHAS DOS SILÊNCIOS ..."

 



Sempre o ano começava agora.  Agora que as férias objectivamente terminavam, agora que a criançada já povoa de novo as ruas, agora que se reabriam os livros, os dossiers, até mesmo a pasta, dormida que estivera nos meses de Verão. 
Não sei bem explicar este brouhaha interior que chegava como a última onda da praia, e se instalava, feito um frisson inquieto, que ano após ano se anunciava.

Era sempre assim. Havia uma animação no ar que nos preenchia de uma espécie de expectativa inexplicada, de uma espécie de alegria e de ansiedade que não doía, nem cansava, feita de curiosidade, vontade de rever, encontrar, falar, rir, olhar rostos que deixáramos, fechar abraços que interrompêramos ... enfim, sempre havia um objectivo a atingir, um desígnio a alcançar, um foco ...
E começava mais um ano lectivo !

Hoje, olho para trás e parece que esvaziei por dentro.
O cheiro dos livros e dos cadernos já não impregna este meu espaço, sei que as salas já não me esperam, sei que é como se eu tivesse dado um salto apenas, para as prateleiras onde os livros alinhadinhos  repousam sonolentos, imprestáveis, desocupados ... piscando-me apenas os olhinhos meio cansados e inúteis. Apenas fazendo-lhes companhia ... avivando memórias ... 
Hoje, é como se nem na equipa de suplentes eu ocupe lugar ...
Os meus miúdos mais velhos, todos três universitários, alguns iniciando, outros olhando já o mercado de trabalho, pertencem a departamentos que já não domino ...
A benjamim, numa terceira classe com currícula que pouco me diz, também já nada tem que me mobilize.  Agora é a vez de ser a mãe a afobar-se, a inteirar-se, a desdobrar-se na azáfama instalada ...

E no entanto tudo parece que foi ontem, parece ter sido ontem que pela última vez cruzei aqueles portões de entrada, aqueles portões de uma vida !...

Lá, já ninguém me conhece ... "Onde é que a senhora vai ?"... E eu só quereria franquear uma última vez, à sorrelfa, a porta da sala dos professores... naquela ânsia, quase certeza que ainda haveriam de estar ali, todos, no cavaqueio à volta de camilhas que agrupavam os interesses, as áreas, os grupos disciplinares, de acordo com as especificidades individuais ...
Eram os matemáticos, os de inglês ... mais além Português, ou Física e Química ou Biologia , ou ... ou ... ou ...
E já tantos foram embora !... E já tantos deixaram de responder à chamada ... E já tantos estão tão irreconhecíveis, quando às vezes ainda nos cruzamos, em golpes acidentais, que me confrangem o coração !
O tempo , o malfadado tempo brincou com todos nós, de esconde-esconde ... Deixei uns e que é feito deles ?!  Onde raio se perdeu a gargalhada da Tininha ?  A bonomia da Emília ? Os bordados da Alcina ?  O Moisés, o Arlindo, o Sampaio, a Ana Frade, a Teresa Sobreira, a Celeste ... todos ... tantos ?!...
Não os acho além da minha memória, não os escuto a não ser no som do silêncio ...
Fantasminhas que povoam as minhas lembranças ... palavras, cheiros e cores que se vão esbatendo na espuma dos dias ...

Uma vida ! A vida ... a única que detenho.  Até um dia ... quando for ... em que as portas definitivamente se fecharão !

Anamar

1 comentário:

Anónimo disse...

Nostalgias verdadeiras, o Mundo está virado de pernas para o ar, e os idosos ( mais um eufemismo) são tratados como velhos inúteis.
Muitos desistem e consentem, outros e ainda felizmente são bastantes, tratam os "fedelhos" como merecem .
Enquanto tem energia. 🥺