Anoitece mais cedo.
Sente-se bem que os dias encurtaram.
O sol busca o horizonte bem antes do que há escasso tempo atrás.
A sua luz já não é igual.
É uma luz mais doce, mais dormida ... mais mansa.
Parece convidar a um regresso a casa, desvenda o segredo dos
primeiros fins de tarde outonais. E tem
a cor desses fins de dia. Tem os seus
silêncios, a sua cumplicidade, a sua interioridade...
É um sol que me fala de saudade, que me fala de solidão, que
me fala de abandono.
E do cansaço que me invade, também.
E eu tenho infinita saudade ... de tanta coisa que foi e não
é mais. Saudade de tudo ...
indistintamente. Saudade de mim !...
Eu pensava que depois de se morrer, não se podia morrer
mais.
Mas pode !
Pode morrer-se e ir-se morrendo aos poucos outra vez ...
Todos os dias um pouquinho.
Aqui por cima, uma gaivota sozinha, aproveita os golpes da
aragem na demanda do poiso de pernoita.
Sozinha ... não voa, deambula em balanço de jeito de maré.
É a hora da passagem.
O dia cede lugar à noite, a luz à escuridão, os sons ao silêncio.
Saudade ... esse tormento de passado que se quer tornar
presente, em vão !
Esse tumulto de labareda e chama desgovernada !
Essa espada que se enterra indiferente, mais e mais,
dilacerando, despedaçando, cortando.
Até às fímbrias da alma ... insensível, distante ... surda !
Essa coisa desobediente e carrasca que não obedece à lógica,
à sensatez, ao pragmatismo. E nos
fragiliza e desfaz por dentro. E mata
... outra e outra vez !
Entretanto o Outono chegou.
Sinto-o, mas acho que já não o descrevo.
Há muitas emoções que percebo indizíveis em mim. Como se me tivessem embotado o coração.
A vida endurece as pessoas.
Insensibiliza-as. Amorfiza-as.
Lá longe adivinho a serra, nos verdes-musgo, nos ocres, nos
vermelhos e nos castanhos de partida.
Sei-a e cheiro-a, como se lhe calcorreasse as veredas, de
novo. A caruma espalha perfume pelos
córregos.
Os ouriços dos castanheiros bravos, dependuram-se, e
abandonam o recheio. Breve, as
castanhas a assar, voltarão a
trazer-nos a intimidade de dias conhecidos.
Lá longe ... no fim do meu sonho, está aquela casinha que
inventei. Vejo-a, nas résteas de sol de
fim de dia ...
Uma porta, duas janelas, uma lareira que haverá de fumegar,
uma cancela de aldraba ferrugenta ... trepadeiras que já não florescem, em fim
de estação ... margaridas em bordadura de beira de caminho ... e o areão que
estraleja debaixo dos pés ... estrada abaixo ... sobre a arriba ...
E o interior ... ah, o interior também o vejo, pejado de
sonhos, de emoções e de afectos ... entre palavras ditas e palavras apenas
adivinhadas, em sussurro. Entupido de
esperança e de paz !...
E oiço claramente os acordes de Beethoven, nas teclas do piano imaginado, nas noites de
silêncio !
Porque eu sou livre de inventar ... e uma inveterada
sonhadora !...
E aos loucos sempre se perdoa tudo ...
Lá longe ... depois da serra, o mar braveja em areais que não pisei.
As rendas deixadas na areia, são véus largados que se fazem
e desfazem, no capricho das marés.
A brisa que volteia traz histórias de marinheiros ausentes,
e as gaivotas brincam de nostalgia de fim de Verão.
Mas tenho a certeza que agora é que se preparam p’ra serem
felizes. As praias ficam desertas, a
mansidão dos mares da estação finda dará lugar às borrascas desafiadoras, o silêncio irá imperar ... e vão restar-lhes
as falésias.
E as gaivotas amam as falésias, amam roçagar a crista
alterosa das ondas endiabradas, amam o desafio tentador dos ventos
desgovernados que aí vêm ... E amam ser
donas das areias vazias e dos céus sem limites ... livres ... mais livres do
que nunca !
É assim o Outono !
Sempre me mexe e remexe.
Sempre me envolve numa melancolia adocicada e morna ... como um agasalho
promissor que me desse ninho !
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