quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

" SEMPRE SEREMOS AS NOSSAS MEMÓRIAS ... "



O tempo fechou totalmente.  O meu horizonte, aqui do alto da minha janela, circunscreveu-se apenas aos prédios próximos.  São cinco horas duma tarde gélida e chuvosa.  Estamos sob a influência duma frente glacial polar que coloca Portugal sob condições adversas, com temperaturas severas bem abaixo dos valores normais para esta época, embora estejamos como se sabe, em pleno inverno.

É segunda-feira, dia de caminhada, hoje não realizada.  Havia comprado um saco de comida para os gatos da colónia da mata, só que, deixar lá o saco sob a chuva que cai poderia comprometer o seu aproveitamento.  Assim, levarei amanhã em que não se prevê mau tempo.
Aqueles mais de vinte animais que ali vivem, dão-me conta da cabeça e do coração.  
Se no Verão é aprazível a zona da mata onde estão os abrigos engendrados pelo senhor Sérgio que deles, à custa de dedicação, esforço físico e monetário, cuida diariamente, agora no Inverno, com este tempo carrasco que se faz sentir, aquilo vira um pesadelo de frio e humidade ... pobres bichos !!!
Estou aqui sentada frente ao radiador que o Jonas não permite que eu desligue, a pensar nos desgraçados que não nasceram em berço de ouro ou que o destino jogou na rua, pela maldade e insensibilidade humanas.  E dói-me a alma !

Num dia, como disse, perfeitamente insuportável, e felizmente sem nenhuma necessidade de ir à rua, fiquei por aqui a escrever, a ouvir música, a passear-me pelo computador, sem objectivo definido.
Entre fotos arquivadas de pessoas conhecidas ou amigas falecidas no período da pandemia, apareceu-me a foto do Rui Mendes, aquela figura pequenina, bastante desengonçada, mercê do problema físico que o atormentava.  Artista plástico que trabalhava aqui na Câmara da Amadora, não sei bem em que área, sempre com um aspecto negligenciado mesmo a nível de cuidados de higiene e limpeza, o Rui  frequentava o Pigalle a que eu também ia para o café da manhã.  Convivia pouco, as pessoas evitavam a sua companhia.
O Rui era portador de nascença, duma doença grave e rara, do foro hemático  que desde sempre lhe lera a sentença duma esperança de vida limitada, inclusive já atingida.  Semanalmente deslocava-se ao Hospital de S.José onde levava uma determinada injecção sem a qual a sua vida perigava.
Sempre vivera só com a mãe, a qual esteve acamada durante alguns anos, e era ele que a tratava e a rodeava do conforto possível.  O Rui, mercê daquela responsabilidade, tinha então a sua sobrevivência como o foco da sua vida. Até que ela partiu.
Após o seu falecimento o Rui ficou só e mais abandonado ainda.  
Depois veio a Covid e fomos deixando de saber uns dos outros. A tertúlia e o convívio diário que se ia mantendo com aqueles que acabavam tornando-se figuras familiares, extinguiu-se.
Os sucessivos confinamentos, encerraram-nos entre quatro paredes, quebraram-se laços, extinguiram-se pontos de encontro, fecharam até definitivamente muitos outros.  E do Rui e da sua bonomia e boa disposição, no rosto sorridente com a barba de "pai natal" bem branquinha, fui deixando de ter notícias.
Até que, quando já deitávamos um pouco a cabeça de fora, indagando junto da Cátia do Pigalle, soube acidentalmente que o Rui também partira, num qualquer dia de Novembro de 2020, mergulhados que estávamos em plena Covid ...
Entristeci.  Fiquei mais pobre e mais só. 

Não mantive com ele nenhum laço privilegiado de amizade além do que me conferia a tertúlia quase diária de alguns momentos, em conversa de circunstância ... pouco mais.
Não interessa ... o Rui atravessou num determinado período a minha vida, e é hoje mais um lugar vazio nas memórias que ao longo dos tempos me compõem a existência.
Que esteja em paz ! 
Mais de três anos volvidos, quem lembrará hoje o Rui Mendes ?!...😢😢

Anamar

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