quarta-feira, 28 de março de 2018

" REFLECTINDO"



Aqui estou, frente a este casario inexpressivo, frente a este céu só limitado pelas barreiras que os humanos lhe construíram, frente a esta lonjura até onde a minha mente voa.
Aqui estou, como tantas vezes estou, na busca da paz do silêncio.
Já que este meu poiso é o galho de árvore donde o pássaro voeja rumo ao infinito, é o silêncio da falésia inacessível ao Homem, é a mansidão do encontro primordial de mim comigo própria ... sempre o busco, como catarse, como paragem, como local de despojamento e reflexão honesta, procurando despir-me de emoções, de pressões, de condicionalismos, na busca da verdade e da transparência nas minhas reflexões,  na busca de respostas, vezes sem conta, para as minhas angústias, olhando a minha verdade de frente, duma forma isenta, despida e corajosa ...
Sempre o busco na procura da pessoa que eu sou ...

Lá fora está cinzento.  As anunciadas nuvens vão pejando o firmamento.  Afinal é Semana Santa ... seria de bom tom !

Sou humana e os humanos cometem demasiados erros, tentanto quase sempre acertar.
Mas sempre busco, com severidade, explicações para as minhas atitudes e escolhas, sem justificações esfrangalhadas ou panaceias protectoras e tolerantes.
Desde sempre me habituei a reflectir, a analisar, a guerrear-me, se for o caso.  Costumo mesmo ser menos tolerante comigo, do que com os que me rodeiam.  Costumo, sem artifícios ou maquilhagens pôr a nu os meus erros, fragilidades, e incapacidades.  E faço-o sem piedade, com a espada afiada do justiceiro que busca repor o certo.
Não passo a mão na minha cabeça, nem desculpabilizo e aquieto o coração para dormir melhor ...

Talvez porque a vida já me maltratou largamente, não tenho dificuldade em perceber o outro, em ouvir o outro, em tentar entender a sua justificação ou posicionamento.
E se reconhecer que errei, que maltratei, que injusticei, que não fui correcta, que não assumi a minha inerente responsabilidade ... não tenho dificuldade em, duma forma desarmada, me retratar, me explicar, pedir desculpa, assacando a culpa para mim própria.
Considero que uma retratatação, uma explicação transparente e sincera, sem álibis ou truques, terá tudo para ser entendida, aceite e eventualmente perdoada por boa fé.

Daí que, sendo eu assim comigo mesma  no relacionamento diário com os outros, não há coisa que mais me destrua, amachuque e mortalmente magoe, que, por um lado a intransigência e indisponibilidade do outro face à tentativa de clarificação de uma atitude minha.
Por outro, o balizar-se no reduto defensivo e cómodo da sua trincheira cerrada e intolerante à realidade. Trincheira de ideias feitas, convicções absolutas, verdades insofismáveis !...
Por outro ainda, o circunscrever-se a um posicionamento autista de posse da razão ... uma espécie de cómoda vitimização, de quem teria sido intencionalmente injustiçado e preterido.
Mas no corolário de tudo isto, o que não suporto mesmo e com que convivo muito mal, é a tentativa frequente do outro em desvirtuar os factos, alterar a objectividade dos mesmos, acreditar numa outra verdade que o conforte e lhe permita conviver com ela, pacificando-o e ilibando-o  quantas vezes, da maior fatia de responsabilidade sobre eles.

Essa postura injusta, triste, ofensiva mesmo, já que mexe com a idoneidade de cada um, com a sua sinceridade, boa fé e até mesmo honestidade, deixa-me louca por impotência, por exaustão, por incapacidade de conseguir que me entendam, que me vejam com os olhos da alma, despindo-me até ela, mergulhando até ao âmago de mim mesma, trocando-me o avesso pelo direito p'ra que alcancem o profundo do meu coração, a verdade das minhas palavras, o teor das minhas intenções !...

Mas eu sou humana.  E o ser humano comete demasiados erros ...
Um deles, talvez seja simplesmente continuar a acreditar e a sonhar que ele ainda vale a pena !...

Anamar

terça-feira, 20 de março de 2018

" AS MARGARIDAS SELVAGENS "





Elas já romperam por aí ...
Adivinho-as no alto das falésias, com este sol de Primavera com pressa de chegar, tímidas, humildes, singelas.
São elas, as margaridas não semeadas.  As que assomam quando Março adentra, quando Abril acena com as suas "águas mil"...

Não passeio faz tempo, no alto das ravinas, com o vento a despentear-me, com este azul meio sim meio não, pontilhado por farrapos brancos que se esqueceram de partir.  Com o mar lá em baixo em aguarela de azul e verde, e com as gaivotas vagueando no preguiçamento do costume ...
Vou pouco para além.
Tenho memória de as ver.  A elas, e às flores amarelas sem nome, no meio de outras mais ... mas isso parece fazer parte de uma vida que nem é já bem minha ...

As nossas existências são fatiadas em períodos, em épocas, em realidades.  Cada período, cada época, cada realidade pintou-se com as suas particulares cores.  Encheu-se dos seus particulares sons, palavras e acordes musicais.  Decorou-se com as suas especiais vivências, emoções e sentimentos.

Assim, quando lembramos a meninice, logo somos assaltados por este ou aquele pensamento, este ou aquele rosto, este ou aquele momento ...
Quando avançamos no tempo, a adolescência traz-nos outros sentires e outras emoções diversas.
A idade adulta, da mesma forma, faz-nos atravessar realidades qualitativamente diferentes, caracterizadas e povoadas por personagens diferentes também.
E cada espaço temporal por nós vivenciado nos acende mais e mais memórias, nos firma mais e mais apontamentos, todos pintalgados por aquela risada especial, adoçados por aquela ternura perpassante, sofridos por aquela mágoa que desceu, assaltados por aquele desencanto que nos tomou ...
Por isso não é à toa que neste puzzle da existência, esta peça só encaixa aqui, aquela outra, ali ...
E não é à toa que indelevelmente o colorido deste matiz, é pertença deste momento e jamais de outro.  O sol que brilhou naquele dia, jamais teve o mesmo brilho em mais nenhum outro.  As palavras trocadas então, pertencem só e exclusivamente àquele contexto e são irrepetíveis em mais nenhum outro !...

Por isso, o tempo das margaridas selvagens todos os anos chega, quando Março adentra e quando Abril acena com as suas "águas mil" ... Mas não é a mesma coisa ... ainda que eu possa vaguear por além, ainda que eu possa passear no alto das ravinas, com o cabelo em desalinho e com as gaivotas volteando no espreguiçamento do costume ...

As fatias do tempo vão-se cumprindo.  As folhas do livro vão-se desfolhando.  As nossas existências vão-se consumindo ...

Anamar

domingo, 4 de março de 2018

" O LUSCO-FUSCO "


Está uma tarde desanimadora.  Está um tempo de despedir esperançosos.  Afinal, até parecia, mas não, a Primavera não está nem ao virar da esquina !

Ocorreu-me ... tem-me ocorrido, que precisava falar com a minha mãe.  Falar de coisas triviais, coisas com pouca / muita importância ... como por exemplo a chuva que tem caído, o mar que se alçou e levou tudo adiante ...
Ouvi-la falar das imagens da guerra na televisão ... e vê-la condoer-se até à alma, pelas mulheres, pelas crianças ...
Relatar-me as últimas do seu Sporting ... sem arredar pé, como uma leoa que se preza !
Ocorreu-me referir-lhe que me deve lembrar como se faz aquela sopinha boa de feijão com mogango, ou a sericaia de fim de almoço.  Afinal, se não aprendi, já não aprendo ...
Ou mesmo pedir-lhe que me recorde que bolos tínhamos nós, na mesa, na Páscoa que se avizinha, lá no Alentejo de casa de avós em mesa farta ...
Coisas tão simples.  Simples e triviais, que recheavam as nossas conversas quotidianas !

Parece que deixámos de conversar só ontem ... mas hoje, já não a acho.
Que estranho que é,  ter ali sentada à minha frente, uma moribunda formal.  E a outra, aquela com quem deixei tantas coisas p'ra falar, desrespeitosamente já não comparece mais ao encontro...
E no entanto ainda ali está.  Está e não está !

E fica aquela sensação esquisita de uma saudade inacabada, uma incompreensão sem remédio ! Uma sensação de tempo que não se agarrou e já  não se agarra ... num desperdício e distracção absurdos ...

Apetece-me abaná-la.   Chocalhar-lhe aqueles miolos imprestáveis que já só estão.  Nada mais !
Apetece-me ... em vão !  É uma parede intransponível, sem brechas, que tenho à minha frente ...

E fica  aquele sentido mal explicado de impotência e injustiça !  Que raios, havia tanta coisa em pauta para nos dizermos !...
E agora ?  Agora faço como ?

E dou por mim a experimentar uma saudade amarga, quando entendo ... Porque quando pareço não querer entender, acho que ela está lá no sofá, ao cair das tardes ...  eu estou lá, a caminho das aulas, depois de um último beijo e de um último adeus, antes de contornar a esquina  a tempo ainda de a ouvir descer a persiana ... e amanhã é outro dia certo, de vida, em que eu e ela estamos lá ... e havemos de estar, porque eu tenho infinitas coisas para aprender com ela, porque ela sempre foi alguém que nunca me desfeiteou nem falhou.  E por isso, tem que continuar por ali !...

Como podemos ter saudade já, de quem ainda não partiu ?
Como podemos encaixar no nosso coração e na nossa alma, pacificamente, uma inexplicação sem limite, sem tamanho, numa aberração monstruosa ?!

E uma revolta incomensurável, mina-me até às entranhas .  Nunca vou entender nada disto.  Nunca vou aceitar tamanha pirraça do destino...
Ela, que quando era gente, sempre se esperançou que a existência  haveria de ter um respeito misericordioso pela pessoa que sempre foi !!!...

Anamar