sábado, 28 de junho de 2014

" JÁ VENHO ... "



Estou de partida ... Parece que  finalmente estou de partida !

Sempre,  antes de qualquer viagem, bate uma ansiedade estranha.
É um misto de curiosidade pelo desconhecido que me espera, é um receio de que algo inesperado possa surgir lá e também cá, com tudo o que fica ...
E é também uma nostalgia, apesar do cansaço instalado, de tudo o que deixo ... pessoas, bichos, coisas ...
Porque afinal tudo isso, bom ou mau, é a minha realidade diária, é o aparentemente certo na minha vida, é a minha rotina.

O Homem é um animal de hábitos, e tendo embora um lado bem aventureiro de viajante, dentro de mim, uma ânsia da novidade, uma necessidade saudável de quebrar rotinas, que afinal penso ser inerente a quase todos ou todos os seres humanos, sempre se me aperta um nó no peito, na hora de fechar a porta de casa e olhar p'la última vez os meus gatos, que sem a noção do tempo ( espero ), continuarão a aguardar que eu volte da rua ... na hora de desligar o telemóvel, porque o avião já aquece os reactores ... no momento em que passo a ser eu, só eu, eu comigo mesma apenas, frente a todas as emoções, dúvidas, decisões, escolhas, com os olhos bem abertos, os ouvidos bem despertos, o coração bem disponível, vazio de tudo o que seja negativo e angustiante, se possível ...

E pronto !

O mais que eu vir, que eu viver, que eu experienciar, como uma infantil aprendiz de vida, totalmente desarmada, e vazia de pré-concepções e juízos, de alma lavada, coração receptivo e sequioso, e uma cabeça povoada de sonhos e fantasias ... contarei na volta, com o entusiasmo de todas as histórias plenas de ingenuidade, bonomia e pureza, sempre bebidas  em  deslumbramento, pelos  marinheiros  de primeira viagem !!!...

Por cá, fiquem em paz, com tudo de bom nas vossas vidas ... e, ATÉ  BREVE !!!...
Porque eu ... JÁ  VENHO !!!

Anamar

domingo, 22 de junho de 2014

" BREVE PARTIREI ..."



Cheirava a chuva, na mata, hoje ... Cheirava sobretudo a terra molhada, enquanto o ar desanuviado de poeiras estava leve, puro, fresco !
Tinha havido uma renovação, porque a água que tombou copiosa dos céus, neste segundo dia de Verão, fizera uma faxina por lá.

Passei e não encontrei vivalma, não obstante ser domingo, não obstante não ser fim de semana de praia ... Restaram-me os pássaros volteadores, os insectos batendo asas de queratina por entre o restolho ressequido aqui e ali, ou as borboletas em bailados diáfanos de elfos, na busca de pólens à discrição ...
Talvez as pessoas tivessem receado que as chuvas a destempo, mais que as orvalhassem ... as encharcassem mesmo.

Lembrei as abençoadas chuvas tropicais, lembrei o que são as borrascas em terra de calor a sério, e de chuva a sério também!
Já tomei grandes aguaceiros, estrondosamente fortes, curtos, saborosos.  Já apanhei com grandes trovoadas bem por cima da cabeça, enquanto me sentia privilegiada, e me deleitava por poder atravessar a tempestade ribombante, dentro daqueles mares cálidos de águas dormentes e preguiçosas, enquanto as luzes rasgavam o firmamento, desenhando lasers nunca igualados.

Estranhamente também aí, as pessoas fogem, correm a abrigar-se não sei do quê, nem para quê ...
Do que afinal, sendo uma bênção da Natureza, apenas nos relembra o gosto que é, estarmos vivos !
E nas águas, que por reflectirem o céu  se tornam plúmbeas, me envolvi como em manto doce, me aninhei como em alcova de amante ... e absorvi até à alma, longamente, o cheiro salgado do mar ... o cheiro adocicado da terra úbere!...

Breve partirei ...
Breve procurarei as terras magnânimas ... uma vez mais.  Vou encontrar o centro da Terra, vou procurar aquela estrada invisível que corta oceanos, atravessa continentes, e fala uma única língua, a única que liga os mundos ... todos os mundos ... a universal !
Breve verei a multitude das cores da paleta do Mestre, breve me extasiarei com os verdes, os azuis, os ocres, os castanhos, os dourados e os prateados das orlas de vai-vem ...
Breve vou absorver todos os cheiros que não se descrevem, todos os sons e os silêncios, todos os cânticos e todas as vozes ...
E verei rostos que não conheço, mas que de repente ficam meus ... Olharei outros tantos sorrisos ladinos, de outras tantas crianças  como todas ... porque as crianças são todas iguais, e os seus sorrisos desarmados, são sempre de querubins !...
E verei os sóis a acordarem e a deitarem-se, entre os laranjas, os fúchsias e o recorte  negro das palmeiras esguias e dos coqueiros despenteados ... E a  lua, que em quartos ou  plena, torna o mar numa poalha de prata ...
As estrelas povoar-me-ão os sonos, porque ponteiam os céus escurecidos ... e os sentires, todos,  montam vigília e sentinela, para que nenhuma emoção se perca por lá, e para que a verdade e a autenticidade das terras do café, do cacau, dos escravos e das senzalas,  que ecoam pelas encostas e perpassam pela mata, me devassem, me penetrem e me preencham ... em plenitude !...

Puro hedonismo, no sonho, no desejo, na alma de viajante que transporto em mim ... porque "só existe um êxito : a capacidade de levar a vida que se quer" - Morley, Cristopher


QUEM SOMOS

O mar chama por nós, somos ilhéus
Trazemos nas mãos sal e espuma
cantamos nas canoas
dançamos na bruma

Somos pescadores-marinheiros

de marés vivas onde se escondem
a nossa alma ignota
o nosso povo ilhéu

A nossa ilha balouça ao sabor das vagas

e traz a espraiar-se no areal da História
a voz do gandu
na nossa memória ...

Somos a mestiçagem de um deus que quis mostrar

ao universo a nossa cor tisnada
resistimos à voragem do tempo
aos apelos do nada

Continuaremos a plantar café cacau

e a comer por gosto fruta-pão
filhos do sol e do mato
arrancados à dor da escravidão


OLINDA BEJA  ( poetisa natural de S.TOMÉ E PRÍNCIPE )


Anamar

quinta-feira, 19 de junho de 2014

" MEC ... excelente, como sempre !..."

Divulgando o que merece, aqui está um autor que sempre me surpreende pela forma lúcida, objectiva, clara, sensível, com que aborda os temas.

Não queria que este texto se perdesse na turba das crónicas, notícias, colunas de opinião, e tanto outro disseminar de informação da nossa profusa comunicação diãria.
Assim, publico-o aqui, no meu cantinho, para que possa ser saboreado, usufruído, reflectido por quem a ele aceder, e tenha alguns minutos do seu precioso tempo  para  que  nele  se possa   " passear "  e  quem  sabe ... deleitar !...




Quero fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão.

Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado.
Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido....Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem.

A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje.

Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá tudo bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?

O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.

O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não dá para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem.

Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.

A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira.

E valê-la também.

Miguel Esteves Cardoso

Anamar

sábado, 14 de junho de 2014

" VIAJANDO NOS SONHOS ... "



Uma viagem é um sonho que sai do universo onírico,  torna-se palpável,  materializa-se, ganha substância ...

Ao contrário dos sonhos, a viagem tem o antes, o durante e o depois.  Começa a programar-se, e com isso "descola" na nossa mente.
Enriquece-se em tudo aquilo que lhe adicionamos mentalmente, numa preparação meticulosa, desejadamente diversificada, intencionalmente multifacetada.
Transforma-se num sonho monitorizado, com asas que nos começam a crescer na alma.
Do alto do galho onde a sonhámos, atrevemo-nos a ensaiar voos, por espaços e horizontes, em direcção a sóis que se põem e nascem fulgurantes, em mapas desconhecidos ...
Temos connosco a expectativa do não conhecido, aureolada pela curiosidade, ânsia, vontade e liberdade sonhadas.
Até porque os espaços longínquos que nos espreitam, e nos fogem na realidade quotidiana, sempre se condimentam nas cores, nos sons, nos sabores, na luz, nos cheiros, nas gentes e quase sempre nos silêncios da interioridade que nos despertam, do intimismo p'ra onde nos conduzem ... porque nos emergem o melhor que possuímos ...

Para mim, são o regresso ao âmago, ao avesso do meu direito, são o retorno à purificação dos sentires embiocados, são o retomar da viagem uterina rumo a outras essências, outro chão e outra verdade ...
São reencontro comigo ... do que sou, mas não sou aqui ... São redescoberta do equilíbrio ... São partida p'ra novas chegadas, para o autêntico, o verdadeiro ... são mergulho no que importa ... finalmente !!!

E por isso escolho o verde, o mar, o sol, a lua, a areia e a rocha, pássaros e flores, vento e trovoadas ... escolho a brisa e os silêncios, a genuinidade das gentes, perfumada com as flores de  acácias, com o aroma das especiarias e da terra molhada, impregnado  na pele encharcada pelo aguaceiro torrencial ...
E não escolho o betão, nem as casas, nem os bairros, os fumos e os horizontes quebrados, o sol que se esconde, pedindo licença aos espaços exíguos libertados por entre as torres.
Não escolho museus, palácios, ruas, cacofonia alucinante de vozes e gritos sibilantes, que me agridem o coração.
Não escolho os destinos onde a mão do Homem trabalhou, sofisticou, enfeitou, artificializou ... não escolho os caminhos onde a sua pegada se afundou, não escolho os espaços que ele polui e destrói ...
Fujo das metrópoles, as grandes cidades não me movem, a sua laboriosa concepção, também não ... a sua  arquitectura trabalhada e presumida, as maravilhas da tecnologia ou os "milagres" megalómanos do seu ressurgimento, menos ainda !...
E nunca me arrependo !!!...

Desta vez também é assim ...
Busco o paraíso e lamento não trazê-lo comigo, na volta ...

Porque as viagens, como os sonhos, também têm o seu despertar.
Como com eles,  com alguns deles, também lamentamos que se esfumem no tempo, naquele clique injusto de apagar de luz, ao desligar-se o interruptor.
Como eles, alguns deles, foram janela aberta por algum tempo, num interlúdio ou intermezzo de vida, cujo sabor experimentado, desejaríamos perpetuar no nosso coração.
Foram uma nesga entreaberta na porta da monotonia do nosso quotidiano ...
Foram uma nesga de azul, no cinzento plúmbeo em que mergulha quase sempre a nossa realidade ...
Foram uma demão de tinta colorida, no opalino, desvanecido em cada aurora das nossas vidas !!!...



Anamar

sexta-feira, 13 de junho de 2014

"COISAS QUE FICAM ... HISTÓRIAS ANTIGAS "



O  Santo  António,  cartão  de visita e rosto de Lisboa, está de novo no calendário.  No calendário e nas ruas ...

Tenho esse problema mal resolvido na minha vida ...
Seguramente ... porque  se ainda me regressa à memória ano após ano, e me deixa um gostinho de mágoa ténue, é porque não está resolvido na minha cabeça.
Passo a explicar :  desde adolescente, desde os áureos tempos das loucuras, das brincadeiras, dos convívios, na fase irreverente da minha história, e numa altura em que os riscos sociais não eram gravosos ... sempre sonhei festejar uma noite dos "Santos", como se dizia.
Ir a Alfama, percorrer os bairros alfacinhas, madrugada adiante, comer as sardinhas a pingar no pão, o vinho e outros petiscos, ao som das marchas populares, debaixo dos mastros armados nas ruas, com grinaldas e balões, bandeirinhas em papel, ver os tronos nas pracinhas e vielas, visitar as escadinhas, os becos e os pátios ... saltar as fogueiras ... com o cheiro a manjerico a tiracolo ... sempre foi um sonho meu.
A maioria das colegas de faculdade não faltavam, sobretudo as que, sendo da província, estudavam sozinhas em Lisboa, alojadas em residências universitárias ou em casas particulares.
Contavam então histórias inocentes de paródia, de alegria, de irreverência, de saudável convívio, no dia seguinte, ou no outro ... porque o seguinte era o feriado da cidade, e a noite também fora longa, e havia que dormir ...

Eu, nunca tive autorização para ir.  A minha mãe, no seu melhor "estilo de educação", não me permitia alinhar nessas brincadeiras, apesar dos meus pedidos insistentes .

Visse as marchas pela televisão, visse a transmissão dos casamentos na Sé, comprasse um manjerico como mandava a tradição, uma alcachofra para florir, fizesse umas "simpatias" ao Santo, com uma amiguinha vizinha do mesmo prédio ... e já estaria de bom tamanho ...
Até  porque a data, sempre beirava a época de exames, que não se compadeciam com dispersões supérfluas ...

Queimava a alcachofra ( no bico do fogão, porque as fogueiras pertencem às festas ) e deixava-a ao relento para florir, como bom presságio, deitava um ovo num copo com água, para  que nele  se desenhasse ou não, o almejado véu de noiva  ( rsrsrs ), sinal de que, solteira não ficaria ... colocava num prato com água, exposto à madrugada, pequenos papéis dobrados, com nomes de candidatos, para que no dia seguinte, o mais aberto, me desvendasse o esperado nome do futuro namorado ... e pouco mais ...

Essa, a minha "relação" com o santinho casamenteiro, à altura, apesar de, sempre de "olho gordo", eu invejar a liberdade de quem podia brincar noite dentro, numa confraternização e num bairrismo únicos, na noite em que Lisboa se torna menina-gaiteira !

Mas o tempo passa, os anos também, e a época para tudo, esfuma-se ...

Seguiram-se as minhas filhas ...
Essas sim, já não faltavam às festas, na melhor tradição lisboeta, em grupos de amigos e colegas de estudos.
"Vamos aos Santos" ? - ouvia-as combinar pelo telefone ...
E eu, magoada por dentro !...

E nunca percebi, e sempre me interroguei se seria mesmo assim ( e não uma enorme injustiça ao Santo ... ), quando me garantiam no dia seguinte, que a magia, a aura dourada e a mística com que eu emoldurava o evento, estava só na minha cabeça, porque sempre o proibido será o mais desejado ...
Uma grande confusão, uma grande barafunda, sardinhas a preço proibitivo, frias e mal conseguidas, num atendimento péssimo...
Em suma, simplesmente um bilhete postal elaborado e aproveitado para turista consumir  ...
A isso se resumiam os Santos Populares ...

Bom, não posso confirmar nem desmentir .
Acho que vou morrer sem nunca ter feito o gosto ao pé, à boca, aos olhos e ao coração !
O Sto. António sempre irá ser para mim, apenas um registo de imagens desfilando pela televisão, um clima adivinhado mas nunca vivido, de um povo e de uma cidade que jamais toquei de perto ou experimentei, um pulsar desconhecido, de corações foliões que se partilham a compasso, num bairrismo que só eles conhecem, uma mágica ou uma "religião" seguida fervorosamente, sobretudo pelas almas brejeiras de pessoas simples, anónimas, que por tradição, fé e alegria esfuziante, esquecem tudo por uma noite, e vêm p'ra rua brincar !!!...


Anamar

sexta-feira, 6 de junho de 2014

" APONTAMENTOS "



A abóbada das avenidas e pracinhas começou a ficar lilás.
Os jacarandás voltaram a florir, polvilhando com lágrimas roxas, o chão das ruas que pisamos.
É quase Verão, é quase Sto. António ... Lisboa enfeita-se !

Mais um ano passou, é o que isso significa !

Maravilhei-me ao vê-los a azular em explosão de cor, tal como há muitos anos me extasiava, quando numa noite qualquer de Primavera, ao regressar das aulas, o vento de feição me surpreendia com o cheiro do pitosporo da minha praceta.
Aí, eu percebia que o calendário tinha dobrado outra folha, que o hibernante Inverno passara, e que a renovação estava aí, outra vez !...

Mas isso já foi, faz tempo.
Agora já não há pitosporo na praceta, já não há aulas, nem regresso delas, pela meia noite, com frio, chuva, ou bom tempo ... assim, nas tais noites de me cheirar a flor de laranjeira, e de eu sorrir ... a sentir-me agradecida !

Estes sinais da Natureza, estes presentes gratuitos e nunca regateados, esta generosidade suprema, esta harmonia perfeita que só a Vida nos providencia,  é algo inatingível,  e é algo incomparável  à  maior obra de arte produzida pelo Homem, por maior que ela seja ...
Atingi uma fase da minha passagem por aqui, em que me sinto mais e mais marginal da sociedade em que me insiro e dos seus valores, mais e mais desligada dos contextos que ocupo, a nível pessoal, material e social, mais e mais indiferente aos seus conteúdos ...
Por outro lado, sinto-me privilegiada pelo facto de, sem nada pedir ou dar em troca, poder usufruir da maravilha perfeita e equilibrante que desfila frente aos meus olhos, e de que usufruo, só pelo facto de os ter, de ter olfacto, ouvidos e coração.  Em suma, pelo facto de estar viva, simplesmente !...

Não é à toa, que cada vez mais sinto em mim um apelo pelos espaços amplos, pelos horizontes sem limite, pelo silêncio audível das grandes planícies, ou pelo chilreio cúmplice dos pássaros no emaranhado dos bosques ...
Não é à toa que me emociono ao ver as areias brancas, e  todas as cores da esmeralda  à turquesa, dos verdes aos azuis intensos, das águas para lá do nosso continente ...
As cores variegadas dos pássaros, das borboletas, dos insectos em zumbidos ensurdecedores ... dos que conhecemos, e de todos os que vamos conhecer ...
Não é à toa que deixo o sol atravessar-me a pele e envolver-me o coração, com o calor entorpecente ... num convite à modorra e ao voar do sonho ...
Ou que me inebrio com o adocicado de todas as flores, naquele cheiro que não se descreve, apenas se sente, se reconhece,  e nos preenche, como uma poção mágica que nos transportasse a outra dimensão !...
Não é à toa que me deixo solta no vento, deitada no sal das marés ... embalada pelo vai-vem das águas que apenas adormecem , languidamente na areia, com toda a voluptuosidade de bailado dos deuses ...

Não é à toa que, nesta passagem  ( sim, porque eu vim de algum lado, não pertenço bem aqui ... e estou a ir ... seguramente ), mais e mais vou, busco, procuro, fujo ... fujo da insatisfação da minha realidade maçante, decepcionante, cansativa e tão sem graça ... e sucumbo ao sonho ou embrenho-me em realidades outras, que não estas ... e sempre caminho nas asas da imaginação  e do devaneio !!!...

Não é à toa que vou ter saudades, muitas saudades, do azul-violeta das campânulas em cachos pendentes, dos nossos jacarandás ... um dia, quando partir, e não estiver mais cá ... tenho a certeza !!!...

Anamar