quarta-feira, 30 de outubro de 2019

" EM OUTONO DE ALMA "




A hora mudou seguindo esta determinação peregrina que obriga ao reajuste biológico de cada um.  Simultaneamente o tempo atmosférico aproveitou p'ra virar, e assim, cinco da tarde a escuridão aproxima-se a passos largos.
Tem chovido alguma coisa ... migalhas para o que as nossas reservas carecem ... e a abóboda cinzenta e espessa vista aqui do meu "posto observatório" de sempre, é desconfortante e triste.
É uma verdadeira tarde de Outono, aquela com que o dia escolheu para encerrar.
Entretanto, à tangente, fiz a minha caminhada sem que me molhasse.  Umas borrifadelas ainda ameaçaram chegar a vias de facto, mas depois retrocederam.
A mata estava estranhamente silenciosa.  Ausência de utentes e ausência de sinais de vida.  Parecia que por ali reinava um sono reconfortante.  As tonalidades que a pintam neste momento, têm predominantemente a doçura quente das cores da época.  Cores de recolhimento, introspecção e paz.
Os vermelhos, os laranjas e os amarelos  no meio de verdes algo desbotados, proliferam pelas veredas solitárias.  As  árvores despem-se ao sabor da aragem que perpassa, enquanto que os musgos já lhes trepam os troncos.

Eu estou em modo de hibernação ... batimentos lentos e suaves, emoções controladas, entusiasmos e motivações em banho-maria, deslumbramentos ... já eram, correrias e afobações ... não estou nessa !
Olho à volta e, sinceramente, pouca coisa me acelera as pulsações, pouca coisa me acelera o passo e motiva, pouca coisa me espevita a alma ...
Hibernação no seu todo !  Só não durmo como o urso pardo, os esquilos, os morcegos e as marmotas, entre muitos mais.  E há momentos em que verdadeiramente o lamento.
Estou numa espécie de ressaca de vida.  Isolo-me muito, disponho de pouca paciência e também não encontro no dia a dia, nada que justifique eu precisar despender mais.
Até mesmo acontecimentos que me projectavam o humor e a boa disposição aos píncaros, têm neste momento pouco efeito, como uma droga terapêutica a que o organismo já se tivesse habituado faz tempo ...
A vida que se foi fazendo com uma estabilidade precisa até há anos atrás, com certezas e concretizações nos limites espectáveis e previsíveis, de repente ( a mim parece-me mesmo de repente ), deu uma cambalhota insuspeita e inimaginável.
Muitos amigos em situações débeis em termos de saúde e de qualidade de vida, vivem realidades escuras, esgotantes e desinteressantes.
Grandes inseguranças e incertezas assombram e atormentam os dias.  Parece que só se ouve falar em desgraças, em dificuldades, em desencantos e em cansaços arrastados, sem soluções à vista.
Parece que espreito para um mar de náufragos ... cada um esbracejando e esfalfando-se para alcançar uma bóia salvadora ...

Sei que não sou uma optimista por excelência.  Bem ao contrário, sou aquela que quase sempre vê o copo meio vazio ... mas a análise que supra-citei, pouco tem do meu negativismo genético ou inato.
É simplesmente uma observação bem real e concreta.
E por isso, como claras que desandaram do ponto, assim sinto a vida escorregadia, pouco tranquila e fiável. Cinzenta e cansativa.
A incerteza de um amanhã que não se garante, é uma desestabilização interior.
Esbarra-se contínua e sistematicamente em dificuldades, tropeços e inacessibilidades.  A resiliência de cada um, atravessa provas de fogo e testa-se por cada dia.
Sendo que, porque os anos passam, e com eles a condição humana se deteriora, tudo o que enfrentamos carece de um esforço e de uma frescura acrescidos, que já não detemos na sua plenitude ...
E os "sempre em pé" são cada vez mais figuras míticas nesta nossa realidade ... espécies cada vez mais em vias de extinção !...

Enfim ... vive-se por cada dia, ainda que cada dia se envolva nas "nieblas" de que algumas vezes falo, sem visualização de grandes horizontes ou amanhãs auspiciosos ...

E pronto ... não consigo escrever nada melhorzinho.  Se o fizesse, estaria a falsear as minhas emoções, a trair os meus estados de espírito ... quiçá as minhas convicções.
Talvez esta saturação languinhenta do tempo escorrente, melhore daqui a alguns dias ...
Afinal a intensidade de uma dor sempre amaina milagrosamente, no efeito de um Ben-u-ron ... ainda que se saiba ser ele apenas analgésico e não um curativo da causa ...






Anamar

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

" CADERNO DIÁRIO "



Chove e faz sol ...  Um sol fraquito, uma chuva a fazer de conta, mas de pingos grossos, contudo espaçados, pingava na vidraça.
Comecei a ouvir um tic-tac aqui pertinho, sentada que estou frente à janela, sem perceber muito bem do que se tratava.  Completamente distraída, com o computador banhado por este reflexo dourado de um sol outonal, não percebi logo o que ocorria lá fora ...
O meu gato, plantado por detrás do PC, usufruindo também ele, do morno aconchego desta luminosidade doce, dormita ronceiramente, como os gatos costumam fazer, simulando um aparente desinteresse por tudo o que os rodeia.  Não é à toa que se define este estado letárgico, como sendo de "dormir a caçar ratos" ...

Entretanto ... a "chover e a fazer sol ... as bruxas estarão a comer pão mole", seguramente ... 😄😄😄
Estou muito versada hoje em adágios populares, parece ...

Dentro de alguns dias vou procurar "arrimo" para bem longe.  Dentro de alguns dias aniversario, também.  É sempre um evento malquisto por mim.  A impotência de parar esta torrente incontrolável do tempo, esta escorrência "non stop" cada vez mais vertiginosa, deixa-me angustiada.
Neste momento as semanas não andam ... correm.  Os meses não correm ... voam.  Os dias, mal começam e já delapidaram as devidas vinte e quatro horas por cada um.  Os anos ... bom ... esses, desafiam-me com ar de escárnio, sadicamente, mostrando-me constantemente quem mais ordena !!!
Falo com pessoas amigas.  Todas são unânimes em dizer-me que há por aí uma batota qualquer, que não descortinamos ...  2019 entrou ao sprint em Janeiro ( ontem mesmo ... ), e ainda não desistiu de alcançar a meta de 31 de Dezembro com a celeridade que mais parece a da luz nos seus caminhos ...

Assim, se estiver longe, num local mais impessoal, afastada de telefonemas, felicitações e quejandos, até parece que o tempo se vai esquecer de mim ...
Por aqui, o tempo tem a cara do tempo de sempre.  As rotinas são globalmente as mesmas.  "Tudo como dantes, no quartel de Abrantes" ...
Anoitece cedo, o céu cobre-se de nuvens encasteladas.  Não sabemos o que vestir, para não pecarmos por excesso nem por defeito.  A roupa da cama já fica ligeira, madrugada adiante.
Não ando apetrechada de vontade ou paciência p'ra ver gente.  Aliás, esta tem sido a tónica dos meus últimos posts, como se tem visto.  Mas reconheço não ser seguramente boa política, este isolamento.
Este encapsular teimoso conduz a um estado emocional negativo.  Cada dia mais nos confinamos ao nosso espaço, cada dia convivemos menos, menos aferimos a nossa sanidade mental, menos escrutinamos a nossa forma de pensar, a nossa capacidade de análise, as nossas conclusões.  Cada dia caminhamos mais e mais para um autismo formal, para um desinteresse pela realidade circundante que cada vez nos diz menos, numa espécie de busca de uma eremitagem salvadora ... num afastamento escolhido da realidade da vida.  Parece querermos defender-nos não sei bem do quê ...
E nada disto é, contudo, saudável !

Mas lá fora as pessoas correm.  Correm muito de manhã à noite.
Das minhas relações, a maioria já não está no activo.  Mas isso, ao contrário do expectável, parece ainda complicar mais a presunção de disponibilidade.  Fazem-se planos, "cadernos" de intenções ... "havemos de ..."  E depois, não havemos nada !  Sempre assim.
Não sei se em nome do comodismo, da preguiça, do imobilismo epidémico ... eu sei lá ... estamos e continuamos ( lamentando-o, ironicamente ), empacados !

E mal amanhece, já anoitece, o que é o caso ...
Ainda há pouco o sol fraquito me banhava ... Já é noite cerrada ... e mais um dia prepara o encerrar de portas !
"Mais um dia", dizia em tempos uma aluna minha, com ar sapiente, à meia noite, no encerramento de mais uma noite de aulas.
"Ou menos um "... retorqui.
Matutou por breves instantes e medindo-me de alto a baixo, afirmou, com ar sabedor, vitorioso e de alguma comiseração : " Para a senhora, talvez menos um, para mim, seguramente mais um !"...

Sorri para dentro, argumentei para dentro, e tive pena que ela, já adulta, ainda não se tivesse dado conta que para todos ( desde que pusemos o pezinho por aqui ), cada dia é sempre menos uma folha a escrever-se, no caderno diário que nos coube em destino...

Enfim ... Coisas da vida real ... simplesmente !

Anamar

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

" A MÃE QUE NUNCA NOS DEFRAUDA "




Estou com tiques de velha.  Mas velha bem velha, porque recuso que para lá caminhe ... Pelo menos por ora. Não, agora !!  ( rsrsrs )
Grosso modo, os meus serões terminam já, no quentinho do meu édredon - porque as noites arrefeceram à custa de uma viragem meteorológica acentuada - espapaçada na paz da minha cama, no silêncio do meu quarto, quando tudo já é sossego em casa e os gatos acomodados.
A televisão raramente transmite alguma coisa de jeito, porque simplesmente nada de jeito ocorre neste país e no mundo.
Não sou adepta de séries, porque não é garantido que tenha tempo para as acompanhar com continuidade.  Mais ainda, quando saio em períodos mais prolongados.  Tentar retomá-las à chegada, é um "drama", e sempre os momentos mais emocionantes são perdidos.  O que me irrita ... não nego.

Assim, na preparação de um sono calmo e retemperador, e para que a cabeça não me fuja para o que não deve ( às vezes verdadeiras "coligações explosivas" de pensamentos ), refugio-me no canal transmitido pela National Geographic, pelo qual pago uma mensalidade extra-pacote.
Mas sempre o que vejo, me justifica plenamente esse acréscimo.

A National Geographic é um canal inteiramente vocacionado para a Natureza.  Exibe programas fascinantes, de qualidade indiscutível, maravilhosamente filmados e legendados. Transporta-nos a lugares na terra, no mar ou mesmo no ar, que de outra forma nos estariam vedados.
A National Geographic Society é uma das maiores instituições não lucrativas do Mundo, no domínio da Ciência e da Educação, vocacionada para explorar, conhecer e proteger / preservar o nosso planeta.
Foi fundada em 1888 em Washington, Estados Unidos.  Abarca áreas como a Geografia, a Arqueologia, a História Natural, Aventura e Viagens, entre outras.
Os seus trabalhos envolvem fotógrafos, jornalistas, operadores de câmara, biólogos, naturalistas e exploradores intrépidos.
As filmagens com os riscos inerentes, são de um pormenor, de um preciosismo, de uma exigência e concretização, extraordinários.  O apoio e rigor científicos associados, são absolutamente insuspeitos, mantendo a bitola de excelência a que nos foi  habituando ao longo dos tempos, sendo que com o avanço das tecnologias de ponta, a realização dos trabalhos, beneficia hoje, de uma qualidade insofismável.
As equipas, deslocadas para os lugares mais inóspitos do mundo, em condições quase sempre severas  em termos logísticos e ambientais, são constituídas, como disse,  por técnicos de craveira superior, que na aventura das suas expedições, nos transportam a paisagens majestosas, a meandros incríveis da vida selvagem, ao  conhecimento  profundo dos hábitos das  espécies ( da  sua  adaptação,  resistência  e  mesmo  formas  de  sobrevivência ),  dos  habitats  de  plantas, animais  e  povos, de fenómenos  geológicos  e  climáticos  existentes  no  nosso planeta, que repito, assistimos  no conforto  do  nosso  lar, como  se  os  assistíssemos  em  presença ... e  que  de  outra  forma  nos seriam  inalcançáveis !...

E eu, que ando numa de misantropia ( versão light ... tranquilizem-se ) ( rsrsrs ), coroo as minhas noites, num emaravilhamento incansável e sem limites, com bichinhos, plantas, mares, pores-de-sol, neves perpétuas, tufões e furacões, Invernos, Verões, Outonos e Primaveras, ( com a magia com que nos surpreendem ), rios pressurosos desenhando caminhos no meio de rochas sem idade, auroras boreais, ilhas desertas, parques naturais fantásticos, peixes que sobem os caudais turbulentos para a desova, na obediência de uma lei biológica surpreendente, animais hibernantes, aves multicolores em rituais espantosos de acasalamento, águas que sobem, águas que descem ... terras que se irão extinguir um dia ... florestas que não desistem, desertos silenciosos e abrasadores, ainda assim com uma riqueza de vida inexpectável ...

Porque apesar da selecção natural ( com a lei do mais forte a prevalecer, obviamente ), da luta das espécies ( em que as mais adaptáveis, são as que resistem ) e da condenação torpe, inconsciente e assassina a que o Homem vota outras até à sua extinção ... a condição de se ser vivo e a luta por continuar a sê-lo, vence os designios, as eras, e a eternidade !...

Isto é a Natureza, mãe universal que nunca, mas mesmo nunca, nos defrauda !!!...

Anamar


quarta-feira, 16 de outubro de 2019

" NADA DE COISA NENHUMA - Reflexões "





Nascer e morrer são os dois momentos da vida em que estamos inevitavelmente sós. São instantes, quer queiramos quer não, que só a nós verdadeiramente respeitam.
Eu diria, que são os únicos que atravessamos inapelavelmente entregues a nós mesmos.
Depois, toda a travessia é feita com outrém, ou sob a influência de outrém.

Chegamos e entramos numa célula familiar e numa estrutura social pré-desenhadas, com regras, princípios e valores que logicamente nos pré-existem e para os quais não fomos obviamente consultados.  Realidades formatadas, em que previsivelmente teremos ou deveremos então, encaixar.
Por mais autónomos, assumidos e livres que sejamos, por mais independentes na mente e no coração que nos julguemos, sempre vamos estar inseridos num azulejo pré-concebido ou num figurino previamente estabelecido.
Sofremos todo o tipo de influências, sujeitamo-nos a todos os padrões já definidos, com os quais concordamos ou não, e a nossa margem de manobra sempre é, na realidade, restrita ou limitada.

Podemos levar uma existência "quieta", pacífica, sem grandes contundências e consequentemente, sem grandes atribulações.  Se tivermos uma maneira de ser amena, pouco questionante e polémica, pouco recalcitrante e com uma carrada de bonomia, não seremos dados a "bater de frente", a por em causa, a questionar ... menos ainda a discordar ...
Teremos uma vida meio amorfa, meio pacatona ... talvez mais pacífica.  Mas, será "vida" esse caminho ?

Se por outro lado tomarmos consciência do que nos rodeia sem abdicarmos de podermos / devermos  sentir-nos críticos, observadores e mesmo julgadores, se formos reivindicativos, exigentes, coerentes com princípios e convicções, não abdicaremos de nos situarmos, de denunciarmos e de pugnarmos em conformidade com essas mesmas convicções.
Mas esse trilho de honestidade, alimentado por sonhos, esperança e luta, dá uma mão de obra dos infernos !!!
Ganhamos inimizades, desgastamo-nos, sofremos provavelmente injustiças, descriminações, boicotes, perseguições quantas vezes, ciladas por inescrupulosos, outras tantas ...

E frequentemente, cansados e à beira de desistir, quase a depor armas, sonhamos voltar costas, sumir, partir para outra ... viver numa ilha isolada ... ( rsrsrs ) ... ou seja, alcançar a paz e o sossego da solidão ... outra vez ...
O avanço da idade tira-nos o fôlego, o empenho e a coragem. O cansaço, o desgaste da vida, desilusões, frustrações e o desacreditar muitas vezes no valer a pena, tolhem-nos a vontade e as ilusões.  Tornamo-nos amargos, saturados e impacientes.
"Sumir ... vontade de sumir ... " ouvimos frequentemente dizer.  "Hoje estou em baixo ... não tenho pachorra para ver e ouvir as mesmas coisas de todos os dias, outra vez !"

E isolamo-nos.  E começamos a sentir-nos melhor  sós, com as nossas rotinas, os nossos lugares, as nossas escritas, as nossas memórias, as nossas músicas, as nossas coisas ... quiçá, as nossas manias... Porquê não ?
Também a nossa solidão, como colo de repouso, segurança  e pacificação !...
E os nossos refúgios começam a ser os momentos de escape, os momentos de silêncios, os momentos de contemplação, de introspecção, de verdade ... As nossas verdades !!!

Este texto foi escrito sem grande construção prévia.  Foi sendo escrito ... digamos assim.  Tenho-o nas mãos há alguns dias já.  A corrente ideária não se definia.  Como um braço de água, buscou simplesmente, várias escapatórias ... e foi correndo.
Ele representa uma espécie de catarse.  Uma espécie de rebentamento de dique.  Uma espécie de mergulho na profundidade da alma.   Ou simplesmente o vómito de quem está assim ... como o tempo, meio corpuscular, meio entediante, meio sonolento de Outono morno, em ocres e vermelhos, das árvores que se vão despindo dia a dia.

Ele representa, na verdade, nada de coisa nenhuma em particular ... Talvez simplesmente, uma insatisfação e um vazio que constato na minha vida, sem se calhar o saber sequer descrever ...

Anamar

domingo, 6 de outubro de 2019

" VOLTA SALAZAR ... ESTÁS PERDOADO ! "




O 25 de Abril encontrou-me já com filhos nascidos.
Trazia atrás de mim, portanto, alguns anos vividos.  Nasci, cresci e fiz-me gente na vigência do Estado Novo, que vivenciei durante tempo suficiente, para lhe perceber e sentir os mecanismos e as manhas.
Sou alentejana.  Nasci num chão de miséria, de injustiça e de infâmia.  Tenho no sangue a coragem, a luta e a determinação, e no coração, a esperança, a convicção e a altivez que nunca permitiu que vergássemos e baixássemos a cabeça.
Sou de uma raça que quebra, mas não dobra.  Mas pura de alma, honesta e trabalhadora.  Resiliente e corajosa.  Gente que enfrenta e não foge ... leva adiante, se acreditar !

Lembro o tempo do pão dormido, da açorda temperada com um fio minguado de azeite, na janta, quando os senhores da terra se compadeciam dos assalariados que nos Invernos rigorosos não podiam trabalhar os campos, e não ganhavam.
Lembro o tempo da fome, do analfabetismo, da ignorância e do obscurantismo.
Das injustiças sociais e suas assimetrias carrascas, das desigualdades, das arbitrariedades, da exploração ... do domínio dos poderosos, e da servidão do povo.
E do que não lembrasse, os meus pais se encarregaram de mo contar.

Sou oriunda de uma classe social  média baixa, da chamada gente remediada.
Sou filha de pessoas humildes, que viveram sem outros proventos que não o seu trabalho.  O meu pai foi um comerciante no ramo das ferragens, a minha mãe, uma simples doméstica que concluíu a instrução primária apenas já adulta.  Gente honrada e trabalhadora.  Não mais !

Estudei, contudo.  Cursei uma Faculdade no tempo da ditadura.
Lembro as perseguições políticas, lembro os medos e os silêncios.
Lembro as invasões da Faculdade pela polícia a cavalo e a brutalidade usada indistintamente, os jactos de tinta lançados sobre os manifestantes, que o ousavam.
Lembro a Pide, e os "desaparecimentos" súbitos deste ou daquele colega.
Lembro a Guerra do Ultramar, onde milhares de jovens perderam a vida, ou a estropiaram.
"Para Angola, rapidamente e em força!" - dizia sem respeito, Salazar, em Abril de 1961 ...
Lembro os auto-expatriados, como saída única de fuga à mobilização.
Lá fora, sem opção, longe da família e o coração em sangue, viam o seu país sem esperança, a fenecer, a morrer aos poucos ...

E Abril de 74 chegou, e com ele, sementes de esperança, de fé e de liberdade desceram sobre todos nós.  Bençãos em que acreditámos.  Sonhos que voltámos a sonhar.  Causas que voltaram a valer a pena.  E fé ... de que então era a hora ...
Portugal acordou renascido naquela madrugada !
Demo-nos as mãos, derrubámos as diferenças, levantámos pontes e caminhámos juntos, porque era tão grande a felicidade, que não cabia num coração único !

E a democracia chegou, como presente de Natal, com laço e fita.  Foi o nosso bem maior !
Foi difícil, foi suada, foi experimentada, foi aprendida, dia a dia, passo a passo.
Caímos muitas vezes, levantámo-nos outras tantas.  Fomos mantendo a esperança no acreditar em ideais que nos guiavam.
Os valores de Abril foram perseguidos, doídos e paridos com muito sofrimento ao longo dos tempos e das vicissitudes de cada tropeço.
Porque os aprendi na pele, tentei transferi-los adiante.
Desde logo, o uso da verdade, a isenção, a coerência, a honestidade.
Desde logo, o esforço e a aposta nas convicções, com seriedade e responsabilidade, com verticalidade e carácter ... sem desistência ou abdicação, doendo a quem doer, custando o que custar, com frontalidade e sem medos ... em todas as circunstâncias da vida de cada um.

Chegámos ao hoje.  Hoje é um dia duplamente carismático na História do meu país.
Hoje é o dia em que se comemoram os 109 anos da implantação da República em 1910, marco histórico na História de Portugal, e hoje é também o dia de reflexão às vésperas das eleições legislativas para a Assembleia da República, que se realizam amanhã.

E a que se assiste, neste momento ?

Reflectindo sobre os anos andados em jogos políticos oportunistas, em jogos de bastidores pouco saudáveis e claros, olhando os escândalos sucessivos em governações sucessivas ( na justiça, na saúde, na banca, no ensino ... entre muitos mais ),  constato tristemente que nos tempos actuais se atingiu um clima generalizado de suspeição sobre tudo e todos.
Suspeição sobre a seriedade de pessoas, suspeição sobre a informação difundida pela comunicação social (onde as fugas de informação sobre casos mediáticos, justificam a proliferação da mediocridade e do sensacionalismo informativo ).  Suspeição sobre as instituições, sobre os órgãos de soberania, sobre as classes e estruturas políticas e sociais, totalmente descredibilizadas.
Neste momento, os compadrios são descaradamente visíveis.  Os negócios suspeitos e pouco transparentes, grassam.  O hermetismo de instituições acobertando apenas troca de favores e ganhos ilícitos, proliferam encapotadamente.
A mentira alastra e os órgãos que deveriam ser livres e independentes na investigação e defesa do esclarecimento e transparência de factos criminalmente censuráveis, são pressionados, silenciados e coagidos.
A corrupção, a falta de isenção e a fuga à verdade, driblam uma justiça manifestamente doente, limitada e ineficaz.
Parece termos voltado aos tempos tenebrosos do silêncio, da conivência, do favor, do jeitinho e do privilégio de alguns que se mantêm impunes, em permanente "estado de graça", intocáveis e acima da lei !... Aqueles que têm o poder de mexer a seu modo, as pedras do xadrês político e económico.
E os tempos vindouros, infelizmente,  não são sequer promissores, à luz de toda a conjuntura europeia e mesmo mundial !
Sinto-me profundamente triste, desconfortável, defraudada, estranha e revoltada, num país que devia ser o "meu", e começa a ser-me desconhecido.  Não sei viver a duvidar da minha própria sombra, com "fantasmas" ( outra vez ), a conviverem com a minha realidade !

Não foi seguramente para nada disto que os capitães de Abril saíram à rua !
Não foi seguramente para nada disto que pugnei para instituir e alicerçar valores sérios e puros, no seio da minha própria família !
Democracia será isto ?!   Ou, simplesmente fomo-la deteriorando na sua essência, com toda a mediocridade humana ?!...

Ouve-se por aí, perigosamente com demasiada frequência, mas talvez com algum entendimento, a frase : " Volta Salazar ... estás perdoado !..."
Ainda assim, e apesar dos pesares, prefiro a mensagem deixada na balada "Trova do vento que passa", saudosamente cantada por Adriano Correia de Oliveira nos idos de sessenta, do século passado :

" Mesmo na noite mais escura, em tempos de servidão, há sempre alguém que resiste ... há sempre alguém que diz não ! "

Teremos que acreditar !  Resta-nos acreditar !...

Anamar

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

" INSATISFAÇÃO "




Estou aqui em voltas e mais voltas, sem que jorre sequer um assunto, um tema, algo interessante para escrever.
Dispensei uma amiga com quem iria tomar café, na expectativa reconfortante de que, aqui no meu canto, seria seguramente bafejada com alguma ideia medianamente aceitável.  Qual quê ... sinto-me vazia por dentro, ou melhor, sinto-me esvaziada de conteúdo.
Crise de criatividade, consciencialização da desimportância objectiva do que escrevo, ou desinteresse  mesmo ?
E no entanto precisaria escrever, já que, fazê-lo, é uma catarse que me é vital.

Parece que já escrevi tudo o que tinha a escrever, nos tempos em que só me restava o espaço sufocante de permeio a estas quatro paredes, que por vezes se agigantavam.  Aqui, no sossego e na solidão do meu quarto.
Nos tempos em que os meus gatos eram as figuras importantemente silenciosas na minha vida, em que a minha gaivota esvoaçava por aqui, pousava perto, e piscando os olhinhos, me trazia notícias lá de longe, da orla costeira onde as águas batiam nos rochedos na maré baixa, e em que o seu vai-vem embalava e adormecia a alma ... nos tempos em que cada por-de-sol, com toda a sua singularidade, me fazia sonhar, na nostalgia da partida ...
Nos tempos em que a música, doce e lenta, escorria incessantemente e me aconchegava ...

Parece  que essa  "eu",  não  existe  mais.  Parece  que  essas  memórias  estão  a  ser  engolidas pelo tempo,  parece  que  o  mundo  à  minha  volta  se  descaracterizou  inapelável e doídamente ...
Chego a ter saudades desse tempo que foi.  E no entanto, não era um tempo fácil ... não era sequer um tempo feliz !
Estranho tudo isto !  Estranho, o ser humano ... ou se calhar, simplesmente estranha apenas eu, nesta insatisfação magoante que me tortura e despeja por dentro.
Parece que então, havia um norte que eu perseguia, um objectivo que me motivava, um foco que me justificava a caminhada.
Nada disso percebo, neste momento.  Nada disso percepciono neste timing da minha existência.  Parece que não há muita coisa que me valha a pena, ou me preencha.  Parece não existir de facto muita coisa que me dê asas, ou me sirva de bordão ...
É um marasmo que me inunda.  É uma angústia que não explico, que me toma.  É uma melancolia morna que me envolve ... São as cores outonais que me pintam o coração ...

Talvez nada importante.  Não sei.  Talvez nada que me "autorize" a sentir assim, nesta espécie de ingratidão com a vida.  Afinal, continuo viva por aqui, continuo com saúde e com os problemas que eventualmente as pessoas encaram, sem excessiva preocupação, felizmente.
Olhando à minha volta, sei exactamente que poderei chamar-me e sentir-me privilegiada !

Mas, fazer o quê ?...

Não consigo, por mais que racionalize, fazer valer a pena a vida que detenho.  Excesso de burrice, seguramente, utopia para a qual já não tenho idade, miopia formal face ao desenrolar dos dias ...
E sei-os a passar vertiginosamente.  Sei que cada minuto desperdiçado e não valorizado, é um minuto inglória e irreversivelmente delapidado.
Há quase ano e meio que a minha mãe partiu.  Incrível !  Parece ter sido ontem ...
Há quase dois anos e meio que a Teresa nasceu.  Igualmente incrível !  E de tudo fala, e tudo conversa e interage de uma forma rica e desinibida.
Ainda ontem o António usava fraldas e dançava ao som da "Joana come a papa ", e já entrou para a Faculdade.
E daqui a pouco, aniversario.  Um ano mais que não me interessa nada, e que vou procurar ignorar, longe daqui ...
E assim por diante !...

Como folha tombada num riacho serpenteante por entre as pedras, que vai encalhando pelo caminho ... como fiapo de algodão largado no vento que sopra ... como nuvem perdida no firmamento, que se faz e desfaz ... ou barco sem vela ou remo, longe do cais ... assim me sinto eu, sem rumo, bússola, norte ou motivo ... amodorrada que estou, numa onda pardacenta que não coa a luz !...

Anamar