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sexta-feira, 29 de julho de 2022

" RETALHOS DE PENSAMENTOS AVULSOS "



 Aqui por cima passa um avião.  Ruma ao aeroporto, já baixou o trem de aterragem e voa com a inclinação de quem perde lentamente altura, necessária para um poiso em segurança.

Estamos naquela parte da viagem em que me colo ao banco, que de costas direitas de acordo com as directrizes do comandante, se mantém vertical, normalmente já fecho os olhos, engulo em seco para desbloquear o efeito da pressão nos ouvidos e me agarro aos braços do assento, como se ali estivesse a minha "salvação" ...
Tenho pavor de avião, sofro desalmadamente quando as viagens se aproximam, mas tento racionalizar e obrigo-me a elas.  Porque, vendo bem, se assim não fosse, com as fobias que dei em inventar, à medida que vou envelhecendo, não arredaria pé da minha zona de conforto ... de que levo a vida a queixar-me, aliás !...  Incoerências do ser humano , quase sempre inexplicáveis !  
Afinal, estas coisas do domínio do psíquico quase nunca se entendem !
Mas pronto... ainda assim, sempre que um avião passa, espicho os olhos lá para cima, e eu, que acabei de chegar duma viagem longa e exigente, já seguiria com ele, fosse lá para onde fosse ...

Entretanto cheguei e adoeci com uma virose qualquer, manhosa, vulgo constipação de Verão.  Não tem cedido a umas coisitas que tomei, já melhorou, voltou a piorar.  Nada de maior, eu diria, apenas e isso é o que mais me incomoda, uma falta de energia atroz.  Não tenho febre, já fiz três testes rápidos da Covid, na expectativa de arranjar finalmente um nome pra esta coisa irritante que me incomoda, mas nada.  De Covid, nem sombra, portanto além de levar a vida a assoar-me, coisa que não lembro acontecer-me há infinitos anos, é este arrastar-me mesmo para as coisas mais elementares, que me tolhe.
Tudo é um esforço acrescido e só deitada ou sentada à fresca, é que me sinto no "céu" !

Será preguiça ? - interrogo-me.  Comodismo ?  Desculpas ... uma dose de uma espécie de justificativas pessoais pra me "safar" do que não me apetece ?  Será ??
Não pode ser só isso !
É verdade que um dos meus maiores defeitos é mesmo a preguiça, e uma submissão cómoda às rotinas confortáveis também me agrada muito.  Mas a falta de energia é real e objectiva, bolas!  
Aguardo melhores tempos, portanto.

Por aqui os dias seguem adiante sem um pingo de novidade. A rotina pura e dura re-instalou-se depressa.  As caminhadas estão em fase de reassunção, embora a fogo lento, pois representam um esforço acima do que estou a conseguir.  O calor, não ajuda, e esse está em plena época.
Aqui no meu prédio morreu entretanto uma vizinha de cento e quatro anos, a viver connosco há muitos e muitos.  Não era uma senhora de convívio diário, obviamente, até pela diferença de idades, mas fazia parte tacitamente do rol de vizinhos que aqui coabita desde o início do prédio.  E já vão sendo poucos os resistentes. 
E tudo continua indiferentemente igual.  O dia é de sol, de céu limpo, é mais um Julho em declínio, um ano a precipitar-se inexoravelmente em passadas de gigante para o seu fim ...

O tempo escoa-se.  Pouco estou com os meus.  Nunca há tempo.  As conversas adiam-se e requentam, as coisas perdem oportunidade.
A Teresa cresce. Qualquer dia percebê-la-ei já com ar de "rapariguinha", e perguntar-me-ei como não dei por isso ...
O António ... pasmo sempre, não sei porquê, onde foi buscar aquele ar e aquela voz grave de homem feito ?...
Usava fraldas ontem ...
A Vitória, de namorado oficial a tira-colo, com quem passeia pra cima e pra baixo assumidamente, com quem faz férias em Madrid e na casa do Algarve ... ficou portanto uma mulher ao completar os dezoito anos, parece ...
E até o Kiko perdeu já aquela inocência de miudinho.  Inevitavelmente faz-se ao futuro ...
Os tempos de convivermos proximamente, foram.  Os interesses diversificaram e o "figurino" familiar nunca permitiu uma aproximação gratificante.  
Hoje, encarno apenas a figura oficial da avó, tenho a certeza.  Existe um formalismo estranho entre nós, as conversas não deslancham, os assuntos não pingam.  Tornámo-nos todos meio estranhos uns dos outros.  Sou aquela a quem se telefona no "Dia dos Avós", invenção dos tempos actuais ... ou para me agradecerem um pequeno agrado trazido de fora, e mesmo assim, tenho a certeza que por detrás da ideia está a mãe, que tem que "mostrar serviço" ...

Enfim, um dia, como a D.Maria de Lurdes ( e muito antes dos cento e quatro anos ), também com sol,  chuva ou mesmo nevoeiro ... que importa ... seguirei adiante.  Afinal, morremos todos os dias um bocadinho, desde que nascemos ... e tudo continuará indiferentemente igual ... 
E a seguir a uma Primavera um Verão chegará, depois um Outono e por aí fora.  Os que ficam também vão indo, e a memória, a lembrança, a presença ... a imagem dos que vão, esbate-se, descolora e desvanece-se no nevoeiro das lembranças ...
E tudo se esquece, e tudo perde a definição e o sentido ... rosto de pai, de mãe, de amores e amigos ... É apenas uma questão de tempo !

Bom ... melhor ficar por aqui.  Isto, esta escrita sem norte ou rumo já está a descambar para o lado lunar da vida, e isso não é bom !

Fiquem bem e sejam felizes, aqui e agora !...

Anamar

domingo, 10 de janeiro de 2021

" DE TUDO UM POUCO ... "


A mata recebeu-me com flores, o sopro agreste do vento gélido, e silêncio. 
Silêncio quase total dos pássaros nas ramarias.  Um recolhimento óbvio, confirmava que muitos terão partido em busca de amenidades, coisa que não temos de todo por aqui. 
Contudo, nem todos foram.  Na mata, os melros descarados parecem sentir-se perfeitamente à vontade, pulando de galho em galho nas árvores, agora já só troncos, despidas que estão totalmente, da última folhagem.
Mas a mata já se anima com as primeiras flores do ano.  De facto, as azedas, as vincas e as flores dos aloés vera, começam a colorir o cenário, até aqui entristecido e macambúzio, adormecido e silencioso, da estação que atravessamos.

Resolvi percorrê-la hoje, no regresso de uma caminhada em que só parte do rosto se expunha à intempérie.  Desde gorro de malha, cachecol, blusão, calças sobrepondo-se a leggings ... todo o equipamento obviava a que eu sentisse o mínimo de frio possível.  De facto, mesmo com o passo estugado, no ritmo de aceleração possível, nunca o calor se concentrou muito no meu corpo.
Tem estado quase intransitável, enlameada com as chuvas que este ano não têm arredado.  Esse facto "empurrou-me" para o que eu chamo de itinerário alternativo de Inverno, que não aprecio por atravessar a zona urbana, no meio de prédios, estradas e carros.  Assim, hoje, porque nestes últimos dias não tem chovido e tem soprado um vento potenciador da secagem dos caminhos, resolvi ir espreitar para tentar perceber se pelo menos em parte, poderei retomar o percurso habitual.
Felizmente fui agradavelmente surpreendida, e até que os céus voltem a despejar lá de cima, cântaros e mais cântaros de água, voltarei à mata !!!

Estamos outra vez a passar um período angustiante e aterrador, no panorama pandémico, no nosso país.
Os números de novos casos, diariamente contabilizados, são da ordem de mais de dez mil infecções, os óbitos já ultrapassam a centena, sendo que se esperam cerca de dois mil e quinhentos no mês de Janeiro. Pelo menos são valores veiculados pela comunicação social.
O país está em vias de entrar num novo estado de emergência, como o que vivemos no passado mês de Março, início da pandemia.  Assim sendo, ficaremos totalmente confinados, ou seja, totalmente encerradas todas as actividades e serviços à excepção das lectivas já que o governo não considera o encerramento das escolas.  

Neste momento eu sinto um clima de insegurança e desconfiança com a exploração de informações contraditórias.  É sugerido por algumas facções políticas que este apertar das medidas profilácticas, está revestido duma intencionalidade premeditada, no sentido de, ao abrigo desses regimes excepcionais, se limitarem as liberdades e os direitos individuais dos cidadãos, e poderem ser aprovadas determinadas decisões governamentais que de outra forma não teriam legitimidade.
Simultaneamente à crise sanitária, a crise económica que se abate sobre todos, nomeadamente em alguns sectores sociais, está a alastrar a pobreza e a miséria sobretudo nas classes média e baixa.  Existe muita gente já, a passar sérias dificuldades na gestão do seu dia a dia. 
Este panorama é infelizmente geral pelo mundo todo !

Entretanto as vacinas estão aí. As primeiras remessas estão a ser aplicadas nos grupos de risco que constituem a população dos lares e residências séniores e nos profissionais de saúde.
Opiniões contraditórias também, nesta área, se abatem diariamente sobre todos nós.
Assim, a polémica sobre o que está por detrás da comercialização das vacinas, o que verdadeiramente gira nos bastidores das farmacêuticas com os grupos económicos poderosos a liderar um mercado em desespero ( já que se considera que elas são em si a derradeira esperança na contenção deste flagelo ), está instalada.
E o cidadão comum, sem meios pessoais de defesa nem orientação possível na formação duma opinião credenciada e isenta, sem conhecimentos reconhecidos na área, mergulhado num caldo de informação eventualmente tendenciosa alguma, sem  que lhe traga uma tranquilidade objectiva ... é um mero peão num tabuleiro do xadrês !
O "disse que disse", as notícias alarmistas e falsas em oposição às correntes pró-vacinas de cientistas e especialistas nas várias áreas associadas à pandemia, formam um cocktail explosivo nas nossas cabeças,
e deixam-nos perfeitamente "à nora" sobre a escolha que deveremos privilegiar para nossa protecção individual, quando chegar a nossa vez de opção.
Pessoalmente, e até prova em contrário, não sou dada a acreditar em maquiavelismos ou decisões menos transparentes, ou teorias conspirativas servindo interesses menos claros.  Acredito em boa fé, que genericamente em todo o mundo, quem tem feito um esforço de dimensões sobre-humanas para pôr cá fora em tempo record vários tipos de vacinas, algumas já aprovadas pelas organizações responsáveis de saúde mundial e já a serem aplicadas na população ... só pode estar a lutar com toda a seriedade possível em benefício da humanidade na devastação da catástrofe que se abate sobre o planeta.
Contudo, também sabemos como por vezes há medicamentos retirados do mercado após anos e anos de utilização, por contra-indicações e efeitos secundários detectados, ainda que a sua prescrição clínica existisse há largo tempo.
Daí que as minhas objeções, ou melhor, as minhas dúvidas se prendam exactamente ao tempo de testagem das vacinas e do receio de efeitos nefastos que possam acarretar, de acordo até com a especificidades de cada organismo, e que só mais tarde venham a ser detectados.
De acordo com um simulador da DGS disponibilizado à população, eu só virei a ser chamada para a vacinação, pelo mês de Abril.  Até lá, espero ter tempo útil para fundamentar uma opinião que me seja mais tranquilizante.

E pronto, este meu post é um mix de estados de alma, é um aliviar da pressão explosiva que sinto dentro de mim ... é afinal, de tudo um pouco sobre a realidade que se vive ... a que eu vivo ao dia de hoje, nos primeiros dias do primeiro mês  do primeiro ano da década de vinte, aqui e agora ...

Anamar

domingo, 20 de dezembro de 2020

" DIZ-LHES QUE ESTÁ TUDO BEM ... " - NATAL 2020




Hoje a minha gaivota rasou-me a janela.  
Senti-me surpresa primeiro, privilegiada depois, acabando por sorrir logo de seguida !...
E eu sei lá que gaivota era esta ?!...  Certamente uma, mais ousada, das que planam aqui por cima, sobretudo em dias como o de hoje, em que a escuridão que pincela o céu, é garante de borrasca no litoral ... lá por onde elas fazem vida.  Assim, nada como recuar até zonas onde, à falta do peixe que lhes integra o cardápio, sempre haver lixos urbanos que lhes interessem ...

Faz tempo, muito tempo já, a "minha gaivota" era uma personagem mítica nas narrativas da minha vida.  Era uma figura onírica das histórias do meu dia a dia.  Era o meu "pombo-correio" entre a realidade desinteressante do betão desalinhado e agressivo da cidade desconjuntada onde vivo, e a doçura sonhadora das arribas, das falésias altaneiras, varandins de águas azuis, verdes ou prateadas, sonhadas e sabidas além do cocuruto daquela serra que me divide o caminho entre o cá e o lá ...
Eram as suas asas distendidas na aragem, as estafetas da minha ânsia de paz, de liberdade e de sonho.  Seguindo-a no espreguiçamento aqui nos meus céus, eu deixava que esses sentidos mais absolutos, me tomassem e me fossem levando para paragens impressas dentro de mim, cantos recônditos de memórias vividas, nichos de sonhos sonhados em vidas que foram minhas ...
Depois, os tempos foram indo, e eu penso ter perdido muito da ingenuidade que acalentava o meu ser.
Hoje sou alguém endurecido, amargo, frio demais, pragmático além da conta,  a quem a capacidade de sonhar foi amputada, deixando a minha alma com um pedaço a menos ... deixando o meu coração mais incompleto e imperfeito  ...

Hoje, os tempos que se vivem entristecem-me e desolam-me.  O coração pesa-me e as lágrimas que quase nunca escorrem, têm o caudal de uma torrente incontida que me oprime o peito e me tira o ar.
Choro pelas minhas mágoas e pelas mágoas do mundo.  
Estamos a quatro dias de mais um Natal.  Um Natal absurdo, irreconhecível, mascarado de felicidade não vivida, mascarado da normalidade possível  de um jogo de gato e rato, onde os afectos são sabidos além do monitor dos telemóveis, onde as emoções galgam as distâncias nas franjas da brisa que vai passando, e o nó na garganta se disfarça por detrás de um sorriso fingido de aceitação do inaceitável ... Afinal, chegámos a mais um Natal,  e ninguém nos avisara há apenas um ano, que muitos não iriam ter essa sorte !

Hoje, como habitualmente, neste novo caminho de Inverno, na caminhada pela manhã passei frente ao portão lateral de uma residência sénior ... um lar, como "soi dizer-se".
É um portão de grades, sempre fechado, no espaço ajardinado que rodeia os edifícios propriamente ditos, dos alojamentos dos idosos. 
Nunca ali vira ninguém, dado não se tratar da entrada principal.
Hoje, dentro do espaço institucional estava junto ao portão uma senhora, cabelo totalmente branquinho, pantufas nos pés e um xailinho pelas costas, que a protegia da aragem fresca que corria, apesar de um promissor dia solarengo. 
De fora, na rua, junto ao portão também, estava uma jovem que passeava um cão. 
Percebi serem familiares. Talvez fosse uma neta daquela senhora de rosto pregueado e olhar entristecido.  Talvez fosse um raio de sol que tivesse descido sobre o rosto da idosa, momentaneamente iluminado ... talvez fosse um pedaço de azul num céu escurecido há tempo demais ...
A "neta" - vou chamar-lhe assim - fotografava-a compulsivamente com um telemóvel, como se quisesse eternizar o momento ... como se ele se estivesse a tornar único, singular, último ... quem sabe ...
"Está tudo bem"- dizia a velhinha. E rodopiava ... uma, duas voltinhas em torno de si mesma, na preocupação de dar veracidade ao que afirmava.  "Estou bem, sim ... " repetia.  Mas só o olhar triste a traía.  Esse, continuava baço, apagado, falsamente feliz ...
"Dá beijinhos ao meu neto ... e ao meu bisneto também ... que eu agora tenho um !...  Diz-lhes que está tudo bem !"

Apenas as grades do portão as separavam ... mas era todo um mundo de solidão e dor que se interpunha, era toda uma vida a escorrer lembranças idas, era um gotejar de silêncios pingando de um coração que talvez ainda sonhasse ... seria ?!...

Segui o meu caminho, com passo estugado, e um pedregulho ainda mais pesado dentro do peito.  Olhei para trás, duas ... três vezes ...
Junto ao portão já não estava ninguém ...

"Diz-lhes ... está tudo bem !... Eu agora tenho um bisneto ... Diz-lhes !..."

E mil fotografias que terão ficado a marcar mais um Natal de desesperança, dor e solidão !...


Anamar

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

" SINGING IN THE RAIN "




Há meio loucos e loucos por inteiro ... os "loucos de pedra", como dizem os nossos irmãos lá do outro lado do Atlântico.
Eu considero-me integrando o primeiro grupo, embora ainda assim ele tenha algumas gradações.  
Se não, vejamos ... 
Amanheceu um dia "daqueles" ... sem ponta por onde se lhe pegasse.  Céu tenebrosamente escuro sem esperança de redenção, chuva sistemática, ininterrupta, intensa.  Nada de molha-parvos. Nada que deixasse esperança de abertas ... nem mesmo ao meio dia, em que a minha afiançava que sempre, "ou carrega ou alivia" !...
Era uma chuva insuspeita, carregando consigo banho garantido.

Não era teoricamente dia de caminhada, dizia o meu agendamento que gosto de seguir sem desvios.  Assim sendo, estaria safa, e bem me agradaria olhar além da vidraça, o dilúvio impiedoso lá fora.
Mas amanhã, excepcionalmente não teria disponibilidade para a fazer ...
Vou ... não vou ... aventuro-me ... e se me constipo?... Se vou, isto vai dar bota ... se não vou, vou ficar a remoer-me por não ter mesmo força de vontade e espírito de sacrifício ...
Janelas da frente, janelas de trás ( lá, de onde as tempestades sempre chegam ), de nenhum ângulo havia um resquiciozinho de esperança de que talvez não fosse tão grave assim ...

E como nestes impasses, eu só funciono se me fizer de morta, e agir automaticamente sem pensar muito, equipei-me "enceboladamente" o melhor que pude, coloquei a mochila nas costas ... e irreconhecivelmente, garanto-vos, fiz-me à pista, que é como quem diz, desci pressurosa e denodadamente para a rua, antes que ...

"Maluca" seria o mínimo que poderiam chamar-me ...
Quem estava à chuva nas filas do Centro de Saúde lá terá pensado : " estamos aqui sem remédio ... e esta doida varrida, vai caminhar à chuva !  Há malucos pra tudo !"...

Bom, mas segui semi-clandestina, porque nos trajes em que ia, boné, panamá impermeável e carapuço do blusão que só me deixavam parte do rosto de fora, óculos escuros ( que não para o sol  😁😁 que não existia ), mas para ver o chão enlameado e escorregadio, não culminasse  tudo  com  um  espalhanço  sem  tom  nem  jeito ) ... apostaria  ninguém  me  conhecer !
É um pouco parecido com a nossa indumentária de protecção pessoal, em que é um verdadeiro desafio que nos conheçamos pelo único pedacinho que a máscara nos deixa livre ... os olhos !...
É uma sensação estranha, a que já nos habituámos e que é um exercício quase lúdico ... "olha, olha ... és tu !... " e sorrimos.  Mas o sorriso também não se vê, fica escondido na máscara ...

E lá fui.  Andei, andei, a chuva cobria-me as lentes dos óculos, que sem limpa para-brisas ficavam inoperacionais a cada dez minutos.  Sim , porque a água que caía, não se compadecia mesmo.
Não pude ir pela mata. Com desgosto meu, esta está interdita à circulação, tal a lama e as poças de água que lá se acumulam.
Assim sendo, o meu fadário no Inverno é um caminho alternativo que não aprecio grandemente, mas que apesar de tudo, apanha um pouco de verde, árvores também, relva e bancos ... já que se trata de um jardim amplo e com a vantagem de, sendo feito pelo Homem, ter caminhos asfaltados e empedrados.
Tem mesmo uma zona mais densa e fechada pela arborização, escura e cerrada hoje, com a falta de luminosidade do dia. Fresca e frondosa no Verão !
Não encontrei vivalma !  Não se via uma alma penada que fizesse exercício, que passeasse ou que tivesse levado o cachorro às suas precisões.  Ninguém !...

E aí, sim, como dizia no início deste meu texto : se eu estou no grupo dos semi-loucos, há os tais loucos de pedra que sempre animam os nossos dias ...

Então não é que nesse trecho escuro e escuso, quase mata com ramagens densas e entrelaçadas, com um lusco-fusco instalado apesar de ser meio-dia ... num dos bancos que serão uma bênção e uma maravilha em pleno Verão, uma criatura, com um chapéu de chuva vermelho aberto, auscultadores nos ouvidos, uma garrafa de água ao lado e a perna placidamente cruzada, trauteava a meio tom qualquer coisa imperdível no seu devaneio ... enquanto parecia usufruir de um descanso merecido ?!...
Não tinha pressa, não aparentava stress, não mostrava enfado ou desconforto ... dir-se-ia estar a vivenciar uma excelente e apetecível tarde primaveril !...

Digo-vos ... primeiro devo ter feito cara de parva, depois devo ter deixado fugir entre dentes o epíteto "é doida!" a meia voz ... por fim, cavei dali, porque  o  manicómio  ainda  fica  um  pouco  longe  e  os bombeiros  têm  mais  o  que  fazer  do  que  catar  doidos  com  colete  de  forças !!!... 😁😁😁

E pronto ... como respeito o livre arbítrio pensei ... afinal, "viver não é esperar a tempestade passar ... viver é aprender a dançar na chuva !..."
Sábia, aquela mulher !!!...

Anamar

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

" O FIEL JARDINEIRO "





Os dias continuam radiosos e abençoados.  O sol não se esquiva, a temperatura é generosa, o céu azula, os pássaros chilreiam e mostram-se saltitantes pelos campos e jardins, onde a erva rebentou em força  com um verde saudável e viçoso, e onde as flores despontam já, com a pujança e a beleza promissora de uma Primavera candente.
O sol faz o milagre.  Aliás, o sol sempre faz o milagre de despertar, colorir e adornar gentilmente os dias que agora nos arquivam a escuridão, a neblina e o frio do Inverno, que apesar de tudo ainda atravessamos.

Adoro a Natureza.  Sempre ela subjaz aos meus escritos, porque sempre ela emoldura e determina os meus estados de alma.  Não canso de o referir, e tenho-a como o bem mais seguro e precioso de que dispomos,  porque ela representa a VIDA ... 
É certa, magnânima, não guarda ressentimento ...
Fascina-me sempre a sua dádiva sem cobrança, apesar dos maus tratos e da insensibilidade do Homem.  Ela não pede, aceita ... não nega, dá-se ... não cobra e não nos falha ...

Aprecio quem a aprecia.  Identifico-me com quem com ela se identifica.  Agrada-me a sensibilidade de quem com ela gosta de se miscigenar, de quem lhe identifica a linguagem e lhe sabe ler os mistérios.
De quem se extasia com um nascer ou um por de sol.  De quem sabe olhar as margaridas selvagens, as azedas delicadas, ou a nudez dos plátanos despidos.  De quem entende, porque escuta, o trinado do melro, o arrulhar dos pombos, o pipilar do chapim ou da pega rabuda ... o grasnido da gaivota que patrulha os penhascos alterosos ou saúda a rebentação da maré baixa ...
Emociono-me com quem se debruça para colher um malmequer dos campos, uma madressilva dos muros velhos, apanhar um seixo dos areais, ou com quem "guarda" a cantilena da rebentação, nas praias ora desertas.  Quem entende a voz do vento, quem lê o recado da tempestade ... quem silencia, para sonhar, no horizonte ...
Enterneço-me com quem planta tomates, pimentos, aromáticas, figueiras, malaguetas, morangos e outros,  em vasos de varanda, e  rejubila com cada um que nasce e cresce, e o acarinha e o trata como se de uma criança se tratasse.
Extasio-me com a dádiva de amor posta na recuperação das espécies doentes ou moribundas, tantas e tantas vezes irremediável e desprezadamente largadas no lixo ... por nós, aqueles que não as "sentem" como seres vivos clamando por ajuda ...
Extasio-me com quem ajardina encostas inóspitas de falésias junto ao mar, só porque nelas se encerram vidas, histórias e destinos ...
E admiro profundamente quem ama os animais, sobretudo aqueles a quem a desdita jogou em futuros  tortuosos e indefinidos ... Quem os ajuda, os defende e os protege ...

Conheço alguém assim.
E só consegue ser assim, quem tiver um coração do tamanho do mundo e uma alma aberta, disponível, pura e "naïve", capaz de deixar albergar em si tudo e todos que o precisarem ... Quem tiver uma sensibilidade ímpar e desperta,  na arte da "jardinagem da vida" ...
Já lhe chamei  "o homem das rosas", e sobre ele escrevi um conto, há anos atrás.  Hoje, chamo-lhe o "fiel jardineiro" ... e sinto-me privilegiada por, de quando em vez, também eu ser uma humilde "plantinha" do seu jardim ...



Anamar

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

" DE TUDO UM POUCO "



O dia amanheceu radioso, aliás já ontem o seu semblante foi primaveril.
Um sol luminoso e quente, num céu completamente límpido e translúcido, emoldurou estes primeiros dias de Fevereiro.  Afinal, Fevereiro igual a si próprio ... sempre nos presenteia com estes dias que parecem anunciar uma Primavera com pressa de chegar ...

Ontem, a efeméride do costume ... dia de Nossa Senhora das Candeias,  Nossa Senhora da Candelária, Nossa Senhora da Apresentação ou Nossa Senhora da Luz ... conforme o local que A homenageia.  Este ano, com uma data interessantíssima :  02-02-2020, ou seja, uma sequência numérica chamada de palíndromo.
Este conceito que não se aplica apenas aos números, respeita a uma palavra, frase ou qualquer outra sequência de unidades que tenha a característica de poder ser lida de igual forma, da direita para a esquerda, ou em sentido contrário.
 "Ovo", "reviver", "luz azul", "ame o poema", são exemplos de palíndromos.
Na nossa travessia,  tivemos  já o privilégio de vivenciar duas capicuas :  os anos  1991 e  2002, o que é raro acontecer. A data de ontem, constitui uma perfeição global !

Bom, neste domingo "perfeito", a Senhora da Luz chegou-nos com um tempo gloriosamente luminoso ... talvez por isso mesmo !  E acresce, que consequentemente  e pegando no ditado popular, teremos ainda um Inverno para chegar ...
Sempre a minha mãe lembrava : se o dia da Senhora das Candeias "rir", o Inverno está p'ra vir, e se ele "chora", temos o Inverno fora !...
Sempre a minha mãe e os seus "ditos" !...

Hoje fiz a minha caminhada, embrulhada na mornidão deste solzinho de Inverno, doce e manso.
Por todo o lado onde o verde ainda só se anuncia longinquamente, os pássaros volteiam, saltitam e trinam numa alegria esfuziante.
Afinal, Fevereiro é mês de acasalamento e nidificação, Março mês de posturas e nascimentos, ou não albergasse em si a chegada da estação da renovação e da continuidade ...
A Natureza é sábia e nunca erra !

E a Natureza é um pote de alimento para a alma, um boião de néctar para o coração !
O ser humano experimenta em si, uma força e um poder,  uma esperança sentida e vinda nem se sabe de onde, e uma claridade insuspeita que nos inunda, como uma onda que se espraiasse mansamente num areal deserto ...
De repente, da escuridão e das trevas dos meses de recolhimento que atravessamos, surge o dealbar de uma nova aurora, de um renascimento que nos anima e "recarrega" todas as baterias do nosso ser !...
Era então que a minha mãe dizia que "ficamos com vontade de fazer coisas" ...  E fazer coisas, para ela, era desencadear uma faxina feroz na casa, de fio a pavio, que ninguém amansava ...
Nunca entendi muito bem estas "realizações" que deixavam a minha mãe exultando de felicidade !... ( rsrsrs  😄😄😄 )
Não lhe herdei, de facto, estes rompantes efusivos que tornam felizes as pessoas simples, as que não exigem demais da vida, as que se realizam e pacificam com o que os dias lhes vão dando ...
São seres de paz, de bonomia, de aceitação ... seres não tumultuados, e de bem com a existência !...

Ontem tive comigo, toda a tarde, a minha benjamina.  A Teresa, a caminho dos três anos que completará em Junho, é de facto uma bênção para quem com ela convive ...
Pequenina de estatura, tem um desenvolvimento físico mas sobretudo mental, que me maravilha.  Desde muito novinha no infantário, no que considero ser uma mais valia no desabrochamento intelectual de qualquer criança, estimulando-lhe aptidões fundamentais quer individualmente quer na relacionação grupal, a Teresa é uma criança sem inibições, com uma desenvoltura e um à-vontade espantosos, extrovertida e com uma linguagem perfeitamente escorreita e rica, para a pouca idade que detém.
Tem um discurso lógico, claro e rico em expressões.  Divide e partilha.  É calma e sempre bem disposta.  Não é uma criança birrenta, pelo que é fácil o convívio com ela.  Ouve os adultos, aceita o que se lhe diz e expõe as suas ideias enriquecendo-as com uma expressão gestual que me fascina ...
O convívio quase exclusivo com a mãe, já que o pai trabalhando no exterior passa grande parte do tempo fora, propicia-lhe e estimula-lhe uma ligação íntima  com esta, muito forte e cúmplice, que nos mostra uma menina parecendo ter bastante mais idade.

Já há muitos anos que não acompanhava de perto o crescimento de uma criança.  Antes dela, o meu outro neto mais novo, tem já doze anos, e acho que me escapou muito do seu desenvolvimento.
A vida tem períodos e fases mais ou menos complicadas, em que as prioridades, por vezes, não nos são generosas ...
Agora a Teresa, chegada quase nos quarenta anos da mãe, e em que eu talvez já não acreditasse muito que um novo elemento nos viesse enriquecer a família, é uma descoberta permanente ... um enamoramento e um fascínio constantes para mim, o facto de poder testemunhar o seu percurso promissor, nestes tempos tão conturbados e descoloridos !...

Desculpem um pouco da imodéstia.  Não o é, na verdade.  Sinto-me sim, uma "sortuda", uma privilegiada e abençoada mesmo, por a vida ainda me presentear com a possibilidade da descoberta do milagre que é a chegada ao mundo de um ser tão indefeso, tão frágil e tão vulnerável ...  e poder testemunhar dia a dia, a sua busca pelo seu lugar no mundo !
De alguma forma, sente-se  uma realização muito grande, uma imensa expectativa, e como que uma gratificação e um sentido objectivo para a continuidade, também, das nossas existências nesta Terra !...

Anamar

domingo, 19 de janeiro de 2020

" SEI LÁ QUE NOME DAR A ISTO ... "




E o bando dispersou.
Eram muitas, há pouco, patrulhando lá de cima o que suponho ser bem desinteressante aqui por baixo ... um casario sem rei nem roque, uma floresta de betão com alguns assomos de verde, para fazer de conta.
Sei que gaivota não é bicho de jardim, não é bicho de floresta, mata ou serra.  Gaivota é bicho de arribas, de falésias a pique, de rochedos salpicados de sal.  Gaivota é bicho de azul, de rendilhados de espuma, de caramujos, de algas e de peixe de marés distraídas.
Adormece-se se a onda ajuda, pica a fundo sobre as cristas, se ela é rude e se impõe.
Gaivota é bicho de ser livre.   Perspicaz, atrevida e desafiadora, não entendo por que perde tempo a andar por aqui ...
Por essa razão perdoei à minha, que partiu há muito.   Partiu, mas levou-me com ela nas asas do sonho, para bem longe deste cativeiro ...

O céu hoje é um céu de Primavera, num glorioso dia de Inverno.  O seu azul diáfano, a sua luminosidade de doçura perceptível, o calor tímido do seu sol, é um doce envolvimento para o coração e para a alma.
Da janela, repousada em varanda de privilégio do meu sétimo andar, pouco se atreve a tapar-me o horizonte.  Pouco se atreve a escurecer-me a luz.  Pouco se atreve a boicotar-me o pensamento que se solta e voeja longe, mais e mais longe ... sempre mais além ...

O rasto de um avião aqui por cima, traçou uma linha perfeita na tela do firmamento.  Um avião, seja qual for, é um caminho, é um projecto, é uma viagem, é uma história.  Sempre é uma história na vida das pessoas. Uma história contada ou inacabada.
Um avião, é uma chegada e uma partida.  É um encontro onírico.  Para mim, sempre o é.
E lá vou eu ... atrás do rasto, atrás das asas ... atrás do sonho !

Vem aí a tempestade "Glória", dizem os serviços meteorológicos oficiais.
Que saudades dos tempos em que a voz de Anthímio de Azevedo, tudo simplificava no pequeno écran ...
As tempestades não tinham denominações absurdas.  Eram tempestades e pronto. O Inverno era o Inverno, com sabor a frio, a chuva, a ventos, mais ou menos fortes, dias seguidos ... os que fossem .
O Inverno eram as golas altas, os gorros fofos, as luvas que hoje esquecemos no fundo das gavetas.  Eram os pés encharcados, os guarda-chuvas partidos nas reviravoltas das esquinas. Eram as gripes, os espirros e as tosses persistentes.  Era o Vicks Vaporub que a mãe nos punha antes de dormir ...
O Inverno era o que abria as portas à Primavera, e esta ao Verão que antecedia o Outono, no tempo certo, sem surpresas ou desvarios.
As castanhas comiam-se assadas quando o S.Martinho nos batia à porta.  Os morangos e as cerejas assomavam com a doçura mansa da Primavera. As favas desciam-nos à mesa pelas Páscoas.
Era assim.  Sabíamos e esperávamos com gosto, com desejo, com alegria ... porque sabíamos que era exactamente assim !
As coisas eram conhecidas e seguras.  Sabíamos perfeitamente com o que contar, sem sustos ou atropelos. 
Hoje acontece tudo, sempre, em qualquer momento.  Perdeu a graça !...

Hoje sabemos muitas coisas.  Coisas de mais.  Aliás, sabe-se tudo, em tempo real.  E pasmamos com a evolução das tecnologias, com o avanço do conhecimento e da informação.
Mas morre-se nos hospitais, não da doença que lá nos levou, mas de uma bactéria residente, que parece estar ali, para abater quem entrou com uma apendicite ...
E morre-se, porque um inocente avião em rota comercial, é derrubado "por engano" por um míssil, no meio de confrontos absurdos e incontroláveis, em guerras políticas e fratricidas, comandadas de secretárias a milhares de quilómetros de distância.
E há fogos sem norte ou rumo, que devastam, destroem e matam, dia após dia ... homens, plantas, animais ... a Natureza sem defesa, consumida e reduzida a cinzas.  Seguem-se inundações catastróficas, num caos e num desmando que o Homem, afinal, não controla ou aquieta.
O planeta zanga-se.  Zanga-se e avisa.  Zanga-se e castiga.

O futuro mostra-se como as areias movediças do deserto, como as dunas móveis que se fazem e desfazem, à nossa frente ... incerto e duvidoso ... assustador !
O trabalho, o mérito, a isenção, o esforço, a verticalidade, parecem não garantir a dignidade e a realização de ninguém.  São outros os valores que movem o Homem de hoje.  São outros os "requisitos" garante da segurança nos dias vindouros. Os baluartes da sociedade são falaciosos, as estruturas que deveriam pugnar pelos seus direitos, e defendê-la das arbitrariedades que nela grassam, têm pés de barro e mostram-se ineptas, ineficazes e incapazes de proteger os cidadãos.
Manda o poder. Todo o poder ... material ou não ! Impõe-se sem escrúpulos.  De todas as formas de que dispõe.
Enfim, as tempestades vão muito além das meteorológicas !

Bem ... onde o pensamento me trouxe, numa viagem sem bilhete, intemporal e não programada !...
Comecei na minha janela, olhando o espaço sem limite ou fronteira, deitado aos meus pés, há algumas horas atrás ... e termino, quando o sol já faz as malas para dormir ... saboreando uma chícara aconchegante de café, de novo junto à minha janela, quando as gaivotas já buscaram guarida e só os pombos idiotas perambulam por aqui.
O plátano agora esquálido e esfíngico, despido da folhagem que ainda esperará para voltar, parece dormitar como os velhos à lareira.
De resto, o silêncio do fim de dia aproxima-se a passos largos.  Afinal, foi mais um dia de Inverno com um glorioso semblante primaveril !...


Anamar

sábado, 18 de janeiro de 2020

" OS PEQUENOS PRAZERES ... "



Levantei-me tarde, aliás como é hábito.  Herdei do meu pai os genes da apreciação de uma boa manhã na cama, não importando a hora do recolhimento.  Essa, pode ser qualquer uma, ao sabor das circunstâncias e dos momentos.
Já varei muita madrugada entretida cá nas minhas coisas,  já me amanheceu o dia sentada ao computador frente à janela de sempre, já escrevi muito de meu nas horas silenciosas e cúmplices, perdidas noite adiante.
Mas aquela oportunidade de tempo sem tempo, no entremeio da fofura dos lençóis, no ninho aconchegante e quente do édredon ... essa, é uma benesse sem tamanho, é um privilégio que me compensa da obrigatoriedade de encarar mais um dia, com ou sem vontade, no desencasular face à luta diária que sempre nos espera !
Sou tipicamente uma mulher da "noite".  Funciono do lusco-fusco, adiante.  As manhãs ... sobretudo as horas da alvorada deprimem-me, violentam-me, incapacitam-me os neurónios, tornam-me totalmente disfuncional ...
Sobretudo nesta época do ano em que se pressente borrasca lá fora, em que se ouve o vento agreste a soprar, em que se adivinham  nuvens cavalgantes e encasteladas cobrindo a abóbada por cima das nossas cabeças ... em que a chuva copiosa tamborila ou açoita a vidraça ...
Foi o caso desta noite, em que por cada momento consciente entre o sono e os sonhos que me acompanharam,  saboreei  a  doçura  do  estar  bem ... de  tudo  estar  mais  ou  menos  perfeito !...

Depois, cumpri a caminhada que me imponho  três vezes por semana, na procura de mais qualidade de vida, com a satisfação do dever cumprido.  Sim, porque não sendo eu uma pessoa que me reconheça disciplinada, sobretudo nesta área, conseguir manter um projecto, uma determinação e uma realização, sabe-me efectivamente a uma verdadeira e prazeirosa conquista.
Hoje, em itinerário alternativo à mata enlameada e intransitável pelas chuvas caídas, inaugurei satisfatoriamente o percurso que apelidei de "inverno" ...

O sol acabou espreitando pelo meio de algumas nuvens esparsas que viriam a adensar-se e a fazerem cara feia, agora ao fim do dia.
Almocei de prato na mão, sentada sobre a máquina de lavar roupa, junto à janela, saboreando a generosidade de uma luminosidade dourada, doce e envolvente, dos raios que me inundavam.
À minha frente, o casario desgovernado, que me permite olhar horizontes longínquos,  mais adivinhados do que alcançáveis, transportava-me ao sabor do sonho, na liberdade das gaivotas que por aqui preguiçosamente planavam.
Há quanto tempo eu não me oferecia este descompromisso de formalismos !... Há quanto tempo eu não me permitia esta coisa de poder ser como eu quisesse, sem demais preocupações, presenças ou obrigatoriedades !...
Bebido o cafezinho de fim de refeição, sem urgências ou afobações, esperava-me uma tarde ociosa sem programas determinados.  E poder fazer isto, aquilo  ou aqueloutro conforme me desse na telha, tinha um sabor abençoado.

Vim para o computador  mexer e remexer em pastas, documentos, fotografias arquivadas, testemunhos de eventos, momentos que o foram, registos que marcam inesquecíveis acontecimentos, indelevelmente guardados por esta ou aquela razão, mas que se pretende que perpetuem aquela fatia das nossas vidas.
São memórias inapagáveis, são formas de nos trazerem o passado ao presente, de uma forma tão vívida que parece que o vivemos outra vez.
Revi o vídeo do lançamento do meu livro "Silêncios" que fará em Maio, três anos decorridos.  Rever as pessoas, sentir toda aquela festa, toda aquela emoção, todo aquele "conto de fadas" de um dos dias mais felizes da minha vida, deixar-me de novo envolver naquele regaço de carinho e afecto, trouxe-me outra vez as lágrimas aos olhos.
Olhar as pessoas, ver os seus rostos na alegria com que me homenagearam, escutar as palavras proferidas na Biblioteca Piteira Santos ... "beber" Énya no seu "Only Time" que nunca se apagará do meu coração ... foram presentes bem acima do que eu alguma vez sonhara, do que eu alguma vez mereceria ...

E pronto ... anoiteceu entretanto.
O meu sábado foi um conforto de alma pejado de pequenos prazeres, soltos e leves, uma  verdadeira dádiva  que  me  concedi,  com  o  sabor  da  liberdade,  da  irreverência  e  da  plenitude  de simplesmente  ser  e  saber-me  mulher,  na  posse  das  minhas  vontades, opções  e  escolhas !...

Afinal, a vida também é feita destes pequenos e saborosos retalhos ... acredito !!!...

Anamar

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

" EM OUTONO DE ALMA "




A hora mudou seguindo esta determinação peregrina que obriga ao reajuste biológico de cada um.  Simultaneamente o tempo atmosférico aproveitou p'ra virar, e assim, cinco da tarde a escuridão aproxima-se a passos largos.
Tem chovido alguma coisa ... migalhas para o que as nossas reservas carecem ... e a abóboda cinzenta e espessa vista aqui do meu "posto observatório" de sempre, é desconfortante e triste.
É uma verdadeira tarde de Outono, aquela com que o dia escolheu para encerrar.
Entretanto, à tangente, fiz a minha caminhada sem que me molhasse.  Umas borrifadelas ainda ameaçaram chegar a vias de facto, mas depois retrocederam.
A mata estava estranhamente silenciosa.  Ausência de utentes e ausência de sinais de vida.  Parecia que por ali reinava um sono reconfortante.  As tonalidades que a pintam neste momento, têm predominantemente a doçura quente das cores da época.  Cores de recolhimento, introspecção e paz.
Os vermelhos, os laranjas e os amarelos  no meio de verdes algo desbotados, proliferam pelas veredas solitárias.  As  árvores despem-se ao sabor da aragem que perpassa, enquanto que os musgos já lhes trepam os troncos.

Eu estou em modo de hibernação ... batimentos lentos e suaves, emoções controladas, entusiasmos e motivações em banho-maria, deslumbramentos ... já eram, correrias e afobações ... não estou nessa !
Olho à volta e, sinceramente, pouca coisa me acelera as pulsações, pouca coisa me acelera o passo e motiva, pouca coisa me espevita a alma ...
Hibernação no seu todo !  Só não durmo como o urso pardo, os esquilos, os morcegos e as marmotas, entre muitos mais.  E há momentos em que verdadeiramente o lamento.
Estou numa espécie de ressaca de vida.  Isolo-me muito, disponho de pouca paciência e também não encontro no dia a dia, nada que justifique eu precisar despender mais.
Até mesmo acontecimentos que me projectavam o humor e a boa disposição aos píncaros, têm neste momento pouco efeito, como uma droga terapêutica a que o organismo já se tivesse habituado faz tempo ...
A vida que se foi fazendo com uma estabilidade precisa até há anos atrás, com certezas e concretizações nos limites espectáveis e previsíveis, de repente ( a mim parece-me mesmo de repente ), deu uma cambalhota insuspeita e inimaginável.
Muitos amigos em situações débeis em termos de saúde e de qualidade de vida, vivem realidades escuras, esgotantes e desinteressantes.
Grandes inseguranças e incertezas assombram e atormentam os dias.  Parece que só se ouve falar em desgraças, em dificuldades, em desencantos e em cansaços arrastados, sem soluções à vista.
Parece que espreito para um mar de náufragos ... cada um esbracejando e esfalfando-se para alcançar uma bóia salvadora ...

Sei que não sou uma optimista por excelência.  Bem ao contrário, sou aquela que quase sempre vê o copo meio vazio ... mas a análise que supra-citei, pouco tem do meu negativismo genético ou inato.
É simplesmente uma observação bem real e concreta.
E por isso, como claras que desandaram do ponto, assim sinto a vida escorregadia, pouco tranquila e fiável. Cinzenta e cansativa.
A incerteza de um amanhã que não se garante, é uma desestabilização interior.
Esbarra-se contínua e sistematicamente em dificuldades, tropeços e inacessibilidades.  A resiliência de cada um, atravessa provas de fogo e testa-se por cada dia.
Sendo que, porque os anos passam, e com eles a condição humana se deteriora, tudo o que enfrentamos carece de um esforço e de uma frescura acrescidos, que já não detemos na sua plenitude ...
E os "sempre em pé" são cada vez mais figuras míticas nesta nossa realidade ... espécies cada vez mais em vias de extinção !...

Enfim ... vive-se por cada dia, ainda que cada dia se envolva nas "nieblas" de que algumas vezes falo, sem visualização de grandes horizontes ou amanhãs auspiciosos ...

E pronto ... não consigo escrever nada melhorzinho.  Se o fizesse, estaria a falsear as minhas emoções, a trair os meus estados de espírito ... quiçá as minhas convicções.
Talvez esta saturação languinhenta do tempo escorrente, melhore daqui a alguns dias ...
Afinal a intensidade de uma dor sempre amaina milagrosamente, no efeito de um Ben-u-ron ... ainda que se saiba ser ele apenas analgésico e não um curativo da causa ...






Anamar

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

" CADERNO DIÁRIO "



Chove e faz sol ...  Um sol fraquito, uma chuva a fazer de conta, mas de pingos grossos, contudo espaçados, pingava na vidraça.
Comecei a ouvir um tic-tac aqui pertinho, sentada que estou frente à janela, sem perceber muito bem do que se tratava.  Completamente distraída, com o computador banhado por este reflexo dourado de um sol outonal, não percebi logo o que ocorria lá fora ...
O meu gato, plantado por detrás do PC, usufruindo também ele, do morno aconchego desta luminosidade doce, dormita ronceiramente, como os gatos costumam fazer, simulando um aparente desinteresse por tudo o que os rodeia.  Não é à toa que se define este estado letárgico, como sendo de "dormir a caçar ratos" ...

Entretanto ... a "chover e a fazer sol ... as bruxas estarão a comer pão mole", seguramente ... 😄😄😄
Estou muito versada hoje em adágios populares, parece ...

Dentro de alguns dias vou procurar "arrimo" para bem longe.  Dentro de alguns dias aniversario, também.  É sempre um evento malquisto por mim.  A impotência de parar esta torrente incontrolável do tempo, esta escorrência "non stop" cada vez mais vertiginosa, deixa-me angustiada.
Neste momento as semanas não andam ... correm.  Os meses não correm ... voam.  Os dias, mal começam e já delapidaram as devidas vinte e quatro horas por cada um.  Os anos ... bom ... esses, desafiam-me com ar de escárnio, sadicamente, mostrando-me constantemente quem mais ordena !!!
Falo com pessoas amigas.  Todas são unânimes em dizer-me que há por aí uma batota qualquer, que não descortinamos ...  2019 entrou ao sprint em Janeiro ( ontem mesmo ... ), e ainda não desistiu de alcançar a meta de 31 de Dezembro com a celeridade que mais parece a da luz nos seus caminhos ...

Assim, se estiver longe, num local mais impessoal, afastada de telefonemas, felicitações e quejandos, até parece que o tempo se vai esquecer de mim ...
Por aqui, o tempo tem a cara do tempo de sempre.  As rotinas são globalmente as mesmas.  "Tudo como dantes, no quartel de Abrantes" ...
Anoitece cedo, o céu cobre-se de nuvens encasteladas.  Não sabemos o que vestir, para não pecarmos por excesso nem por defeito.  A roupa da cama já fica ligeira, madrugada adiante.
Não ando apetrechada de vontade ou paciência p'ra ver gente.  Aliás, esta tem sido a tónica dos meus últimos posts, como se tem visto.  Mas reconheço não ser seguramente boa política, este isolamento.
Este encapsular teimoso conduz a um estado emocional negativo.  Cada dia mais nos confinamos ao nosso espaço, cada dia convivemos menos, menos aferimos a nossa sanidade mental, menos escrutinamos a nossa forma de pensar, a nossa capacidade de análise, as nossas conclusões.  Cada dia caminhamos mais e mais para um autismo formal, para um desinteresse pela realidade circundante que cada vez nos diz menos, numa espécie de busca de uma eremitagem salvadora ... num afastamento escolhido da realidade da vida.  Parece querermos defender-nos não sei bem do quê ...
E nada disto é, contudo, saudável !

Mas lá fora as pessoas correm.  Correm muito de manhã à noite.
Das minhas relações, a maioria já não está no activo.  Mas isso, ao contrário do expectável, parece ainda complicar mais a presunção de disponibilidade.  Fazem-se planos, "cadernos" de intenções ... "havemos de ..."  E depois, não havemos nada !  Sempre assim.
Não sei se em nome do comodismo, da preguiça, do imobilismo epidémico ... eu sei lá ... estamos e continuamos ( lamentando-o, ironicamente ), empacados !

E mal amanhece, já anoitece, o que é o caso ...
Ainda há pouco o sol fraquito me banhava ... Já é noite cerrada ... e mais um dia prepara o encerrar de portas !
"Mais um dia", dizia em tempos uma aluna minha, com ar sapiente, à meia noite, no encerramento de mais uma noite de aulas.
"Ou menos um "... retorqui.
Matutou por breves instantes e medindo-me de alto a baixo, afirmou, com ar sabedor, vitorioso e de alguma comiseração : " Para a senhora, talvez menos um, para mim, seguramente mais um !"...

Sorri para dentro, argumentei para dentro, e tive pena que ela, já adulta, ainda não se tivesse dado conta que para todos ( desde que pusemos o pezinho por aqui ), cada dia é sempre menos uma folha a escrever-se, no caderno diário que nos coube em destino...

Enfim ... Coisas da vida real ... simplesmente !

Anamar

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

" A MÃE QUE NUNCA NOS DEFRAUDA "




Estou com tiques de velha.  Mas velha bem velha, porque recuso que para lá caminhe ... Pelo menos por ora. Não, agora !!  ( rsrsrs )
Grosso modo, os meus serões terminam já, no quentinho do meu édredon - porque as noites arrefeceram à custa de uma viragem meteorológica acentuada - espapaçada na paz da minha cama, no silêncio do meu quarto, quando tudo já é sossego em casa e os gatos acomodados.
A televisão raramente transmite alguma coisa de jeito, porque simplesmente nada de jeito ocorre neste país e no mundo.
Não sou adepta de séries, porque não é garantido que tenha tempo para as acompanhar com continuidade.  Mais ainda, quando saio em períodos mais prolongados.  Tentar retomá-las à chegada, é um "drama", e sempre os momentos mais emocionantes são perdidos.  O que me irrita ... não nego.

Assim, na preparação de um sono calmo e retemperador, e para que a cabeça não me fuja para o que não deve ( às vezes verdadeiras "coligações explosivas" de pensamentos ), refugio-me no canal transmitido pela National Geographic, pelo qual pago uma mensalidade extra-pacote.
Mas sempre o que vejo, me justifica plenamente esse acréscimo.

A National Geographic é um canal inteiramente vocacionado para a Natureza.  Exibe programas fascinantes, de qualidade indiscutível, maravilhosamente filmados e legendados. Transporta-nos a lugares na terra, no mar ou mesmo no ar, que de outra forma nos estariam vedados.
A National Geographic Society é uma das maiores instituições não lucrativas do Mundo, no domínio da Ciência e da Educação, vocacionada para explorar, conhecer e proteger / preservar o nosso planeta.
Foi fundada em 1888 em Washington, Estados Unidos.  Abarca áreas como a Geografia, a Arqueologia, a História Natural, Aventura e Viagens, entre outras.
Os seus trabalhos envolvem fotógrafos, jornalistas, operadores de câmara, biólogos, naturalistas e exploradores intrépidos.
As filmagens com os riscos inerentes, são de um pormenor, de um preciosismo, de uma exigência e concretização, extraordinários.  O apoio e rigor científicos associados, são absolutamente insuspeitos, mantendo a bitola de excelência a que nos foi  habituando ao longo dos tempos, sendo que com o avanço das tecnologias de ponta, a realização dos trabalhos, beneficia hoje, de uma qualidade insofismável.
As equipas, deslocadas para os lugares mais inóspitos do mundo, em condições quase sempre severas  em termos logísticos e ambientais, são constituídas, como disse,  por técnicos de craveira superior, que na aventura das suas expedições, nos transportam a paisagens majestosas, a meandros incríveis da vida selvagem, ao  conhecimento  profundo dos hábitos das  espécies ( da  sua  adaptação,  resistência  e  mesmo  formas  de  sobrevivência ),  dos  habitats  de  plantas, animais  e  povos, de fenómenos  geológicos  e  climáticos  existentes  no  nosso planeta, que repito, assistimos  no conforto  do  nosso  lar, como  se  os  assistíssemos  em  presença ... e  que  de  outra  forma  nos seriam  inalcançáveis !...

E eu, que ando numa de misantropia ( versão light ... tranquilizem-se ) ( rsrsrs ), coroo as minhas noites, num emaravilhamento incansável e sem limites, com bichinhos, plantas, mares, pores-de-sol, neves perpétuas, tufões e furacões, Invernos, Verões, Outonos e Primaveras, ( com a magia com que nos surpreendem ), rios pressurosos desenhando caminhos no meio de rochas sem idade, auroras boreais, ilhas desertas, parques naturais fantásticos, peixes que sobem os caudais turbulentos para a desova, na obediência de uma lei biológica surpreendente, animais hibernantes, aves multicolores em rituais espantosos de acasalamento, águas que sobem, águas que descem ... terras que se irão extinguir um dia ... florestas que não desistem, desertos silenciosos e abrasadores, ainda assim com uma riqueza de vida inexpectável ...

Porque apesar da selecção natural ( com a lei do mais forte a prevalecer, obviamente ), da luta das espécies ( em que as mais adaptáveis, são as que resistem ) e da condenação torpe, inconsciente e assassina a que o Homem vota outras até à sua extinção ... a condição de se ser vivo e a luta por continuar a sê-lo, vence os designios, as eras, e a eternidade !...

Isto é a Natureza, mãe universal que nunca, mas mesmo nunca, nos defrauda !!!...

Anamar


domingo, 29 de setembro de 2019

" DE UM TUDO ... AO FIM DA TARDE ..."




Anoiteceu com um céu laranja.  Doce e pálido.  Não intenso e afogueado. Isso foi antes, quando o sol ainda se assomava, já por detrás das chaminés, lá ao fundo.
Não tenho nada especial para dizer. Mas tenho quilos de palavras entupidas na garganta.
Não tenho nada especial para aqui deixar.  Mas tenho toneladas de sentimentos contraditórios a sufocarem-me o coração.
Fui à janela da frente. Onde poucas vezes vou. Abro, fecho, subo persianas, desço persianas, corro cortinas, abro cortinas ... ao sabor do sol, do vento e da chuva, se cai e os vidros por acaso, foram esquecidos...
Pouco mais.  A vida desenrola-se-me aqui, para as traseiras da casa.  Aquele lado, privilegiado, que me leva a reboque por sobre os telhados, no voo da brisa, para horizontes bem mais distantes e mais meus ...

É uma hora lixada, esta. Esta, em que o sol se vai, numa estação de lusco-fusco.  Esta, em que a sua luz é doce ... duma doçura de despedida e nostalgia.
Não brilha como antes.  Não aquece como antes.  Temos a certeza que a esquina do ano já se dobrou.  Daqui em diante, o silêncio da Natureza abate-se sobre a Terra, aqui neste nosso canto.
E é como se houvesse um chamamento que não se descreve e só se sente ... ao sono, à quietude, à hibernação ...
São dias de dourados, ocres e amarelos esmaecidos ... São dias de castanhos e vermelhos, nas folhas acumuladas nas alamedas dos parques.  E de árvores despenteadas que começam a despir-se, para a noite que se avizinha ...

Da janela da frente, eu adivinho, mais que vejo, a avenida, o telhado, a casa ...
Era aquela hora em que eu sabia a minha mãe, nos preparativos para se aquietar.  Sim, porque ela dormia cedo.  Depois da torrada, do chá e do telejornal, era a hora de sossegar.  Ela e o Gaspar ... o cão que um dia lhe chegou da desdita do abandono, companheiro de todas as horas e a quem "só faltava falar" ...
Se fechar os olhos ( e há pouco fechei-os por instantes ), estou lá, naquela sala iluminada pela luz do candeeiro de marfinite, com um querubim segurando um archote, na credência entre os dois sofás, frente  à  estante,  com  a  televisão  ainda  com  as  últimas  notícias  no écran ...
Vejo no chão a carpete verde, vejo a cesta do Gaspar dormir as sestas, e consigo ver também cada bibelot, por pequeno que seja, em cada prateleira ...
Vejo exactamente tudo ... até os sorrisos das fotografias sobre a camilha, e o vaso com a avenca sempre verde, no centro ...
Estou lá ... vejo claramente a tonalidade aconchegante da única luz acesa.  Vejo a entrada às escuras, vejo a cozinha com a luz clara da lâmpada do tecto ... Vejo, e oiço ...
É uma imagem obtida na minha mente, por reconstrução depois da desconstrução que foi a vida !...
É como se fizesse um rewind em câmara lenta, e o projectasse à frente dos meus olhos ...
Impressiono-me como é isso possível ... mas é !  Ela está ali ... eu, estou ali ... O tempo não é mais o hoje  ... O tempo é o ontem ... como se o arreganhasse lá atrás e o re-estendesse à minha frente, qual passadeira que se desenrola e desvenda ...
O tempo é o preâmbulo da minha vida, é o prefácio da minha história ...

Hoje, na caminhada não encontrei vivalma.  Como sabem, falo muito da caminhada. Mas não é pela caminhada, porque essa, é um esforço que me imponho.  É pela mata.  A mata é o meu quinhão de Natureza com que me presenteio.
Ainda bem que não encontrei vivalma ... Vivalma, gente ... porque cada vez gosto menos de gente !
Encontrei gatos vadios.  Gatos da mata que são genuínos, livres, soltos, e que só aparecem quando querem e para quem querem ...
Encontrei pombos, rolas, pegas rabudas, melros, pardais ... Andorinhas não vejo por lá.  As flores também já partiram quase todas, e com elas, o som das abelhas, dos besouros, e mesmo das cigarras do pino do Verão.  E as borboletas foram buscar outras Primaveras por aí ...
Lá, o ouro manso dos raios solares que atravessam as clareiras em adormecimento, guarda o silêncio das penumbras que se prometem ...
E é uma paz incontida e sem dimensões !...

Ando numa de desencanto, de corte empático com o ser humano. De cansaço.  De desaposta ... de decepção ... mesmo de indiferença ...
"Este país não é para velhos", um thriller realizado pelos irmãos Coen, tendo como intérpretes, os icónicos Javier Bardem, Tommy Lee Jones e Josh Brolin, que arrecadou o Óscar de melhor filme de 2008 e que recordo agora,  quadra-se bem com o meu estado de espírito actual, em que pareço necessitar defender-me emocionalmente, com um afastamento, uma rejeição e consequentemente uma recusa dos valores que me cercam, num país e num mundo que não entendo, não aceito e me enoja ...
Estou farta de uma sociedade movida por marionetas, submetida a interesses obscuros, pouco transparentes e claros, em que apenas os valores materiais, do sucesso e da ascensão a qualquer preço, o compadrio, o favorecimento e o poder, norteiam os alpinistas inescrupulosos e nojentos que pululam nessa mesma sociedade.
Estou farta de que me tirem a ingenuidade, me arranquem a esperança e a fé em futuros que vejo tenebrosos para os meus, e para todos aqueles que estão a crescer, acreditando ...
Estou farta de que me escureçam o horizonte e o carreguem com as nuvens da incerteza, da angústia e da dúvida no amanhã ...
Estou farta de que me arranquem o sonho ...

Em suma ... estou farta de gente !!!...

Anamar

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

“ O PIGALLE AINDA MEXE ..




Em 2013 ( Agosto ) postei neste espaço, um texto sobre o Café Pigalle, café que faz parte do meu quotidiano, aqui na minha cidade.
Como lá refiro, trata-se de um espaço com mais de cinquenta anos, atravessado por isso, por muitas gerações, entre elas, a minha.   É pois, um "ex-libris" da Amadora.
A história do Pigalle de 2013 até à actualidade, é a história triste de um gigante que se acaba aos poucos, mercê das crises, da má gestão, do descaso, da não aposta ... do desinteresse ... ou da velhice, quiçá !...

Publiquei entretanto o texto no Facebook, num espaço de que sou "amiga", "Amadora - Passado, Presente e Futuro ", e com ele desencadeei na altura, diálogos muito interessantes entre os leitores, amadorenses com histórias cruzadas e vividas em passados próximos, exactamente no Pigalle.  Pessoas que haviam deixado de se ver, de se encontrar, pessoas cujos nomes lhes faziam sentido, mas não tinham certezas de quem eram ao certo ... Enfim, reaproximei amigos de uma vida, companheiros de bilhar, tertulianos de horas mortas, em juventudes idas ...
E isso, foi-me profundamente gratificante ...

Passaram seis anos entretanto.
Hoje ( e este é o prodígio que as redes sociais às vezes têm, quase sempre mais negativas que positivas nos relacionamentos ), o meu texto foi "repescado" como memória, por alguém que obviamente não conheço, mas que lendo-o, o comentou .
O texto "saltou" portanto, de novo, para a página do referido Grupo de Amigos.

Entendi por isso, reatar o contacto com as pessoas que tenham curiosidade e interesse em saber do percurso de vida, do Pigalle, seis anos transcorridos ... eu, que o frequento incontornavelmente, todos os dias ...
E escrevi o texto que aqui igualmente posto :


"Surpreendeu-me o  regresso do meu texto, tão carinhosamente aceite na comunidade Amadora- Passado, Presente e Futuro, aquando da sua publicação, em 2013.
Se os amigos repararem, a maioria dos comentários datam exactamente desse ano.
Pois bem, volvidos seis anos após a minha publicação, cabe-me reportar que o Pigalle, o tal “dinossauro” da nossa cidade, resistiu e resiste à intempérie do tempo, e ainda mexe !
Mexe mal, trôpego das pernas, sem força anímica para se erguer e padecente de reumático,  idêntico ao dos seus frequentadores ...
Penso que o FB recuperou este meu escrito e repô-lo como memória, creio.  Daí que tenha sido retomado por alguns amigos, e me tenha caído à frente, de novo esta manhã, exactamente quando eu tomava o pequeno almoço ... no Pigalle !
A precariedade e o envelhecimento do café, mantêm-se, ou melhor, agravaram-se nestes seis anos, como é lógico esperar de alguma coisa sem manutenção qualitativa significante.
O espaço físico, eu diria estar  exactamente igual, com uma “lavadela de cara” agora nas férias, em que encerrou.
Portanto, sem ponto ou vírgula de acréscimo.
Os empregados reduzem-se a uma única funcionária que, por ser multi-funcional e não parar um minuto, tem conseguido resistir à “sanha” de despedimentos sucessivos, de pessoas que passam períodos temporais escassos e mínimos, ao serviço do estabelecimento.
É um rodopio de empregabilidade de funcionários que ( e alguns revelaram qualidade na prestação de serviços ), mal entram e já partem ...
Explicaram-me ser uma política defensiva por parte dos patrões, a quem não interessará assumir contratos mais definitivos, com tudo o que eles envolvem de responsabilidades, como empregadores.
Ao cliente, em termos de géneros, e por comparação com todos os outros espaços idênticos de restauração, existentes na mesma zona da cidade ( afinal, o seu centro ), pode falar-se em “mínimos absolutos” ...
Não chega a ser um espaço prazeiroso em termos logísticos.  É um café servido por luz artificial, como se sabe, em que não há vontade expressa de o tornar confortável e aconchegante para o cliente.  Todo o Verão se “suam as estopinhas” com os ares condicionados desligados ( avariados ... diz-se ), e no Inverno o aquecimento também poucas vezes nos ameniza o ambiente ...
A clientela  continua a privilegiar a classe “sénior”, digamos, já que o café não é  obviamente, minimamente  atractivo para os jovens.  Talvez por isso, fruto de tudo isto e da pouca simpatia e alguma conflitualidade do dono, que por ali perambula, muitos grupos de amigos que à mesma hora, diariamente, ali confraternizavam, desapareceram, buscando outros espaços  certamente mais aliciantes, do nosso burgo.
Quando, depois de férias reabriu, percebi que mais e mais o Pigalle se descaracteriza.  As “baixas” acentuam-se.  Por insatisfação dos clientes, fundamentalmente, mas também  por “deserção” forçada e triste de outros ...                                                
Acredito que apenas a detenção da venda de jogo seja a sustentação económica do café ... e não mais.
Perguntarão então os amigos, depois desta minha longa e exaustiva dissertação, por que, masoquistamente   ou  talvez  não ... insisto  em  frequentar  aquele  espaço ?!   
Serão recaídas saudosistas ?!                                                                                                                             
Pois não sei exactamente o porquê desta questão !
Alguns amigos perguntam-me, meio a brincar meio a sério :  “então, amanhã  vais  ao  Centro  de Dia ?”  E não entendem ... também eles.                                           
Sei que sou fiel nas escolhas.  Sei que sou saudosista das memórias.  Sei que me prendo e miscigeno com os locais, os hábitos e as histórias ... e eles se me colam debaixo da pele ...
Será isso ?  Será essa a razão por que, “desgraçadamente” os sapatos, sem racionalmente  me obedecerem, por cada manhã, ao sair de casa, para lá me encaminham ???!!!

Um abração, esperando não vos ter roubado demasiado tempo com esta minha crónica ... Afinal ... o Pigalle ainda mexe !!!... "

                                                                                      1964



Anamar

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

" LAVADOUROS PÚBLICOS "



O Facebook irrita-me, as redes sociais irritam-me ...

Podem sempre argumentar-me : "ninguém te obriga a frequentar esses espaços ... "
E até é verdade, pese embora hoje em dia, perca  muitíssimo menos do meu tempo com eles.
Pretendem ser espaços de lazer, lúdicos, de entretenimento e por que não ... de alguma aprendizagem.
Neles se acede a informação que de outra forma talvez não se tivesse ( sobretudo quem cultiva pouco a assiduidade nas estações televisivas, também por muito desencanto, cansaço e por senti-las igualmente, uma perda de tempo ). Por eles se chega a lugares que nos seriam inalcançáveis de outra forma, neles nos cruzamos com gente ( virtuais uns, conhecidos outros, amigos ... alguns ) e com eles nos iludimos às vezes, pensando minorar a solidão de que muitos objectivamente se queixam.
Deveriam propiciar um convívio salutar, uma dialéctica saudável, uma partilha de opiniões construtiva.  Afinal, são muitas cabeças a pensar diversamente, são formas de estar e sentir diferentes, são múltiplas sensibilidades e capacidades de análise. Portanto, visariam um enriquecimento pessoal.

Mas não. Nada disto.  Afinal esta não é mais do que uma visão idílica da coisa, uma expectativa construtiva, ou ... e isso é mesmo o mais certo, uma ingenuidade do tamanho de um "bonde", como diriam os nossos "irmãos" além Atlântico.

Tristemente tem que concluir-se que o espectáculo degradante que por aqui se vive, não é mais do que a fotografia triste e desalentadora ... porém real, do país real em que vivemos !

Em primeiro lugar, tem e deve questionar-se a autenticidade, a correcção e a verdade sobre tudo o que é postado.  Será prudente ...
Cada vez menos, as fontes são fidedignas, e visam simplesmente a manipulação e a exploração intencional dos mais desinformados, incautos, crédulos ou mesmo ignorantes.
Aliás, é o que na generalidade, os media, hoje em dia fazem.  Actuam por deturpação, desonestidade, falta de fiabilidade, intencionalidade dirigida e ausência de transparência e verdade.
Este é o caminho seguido ( até por órgãos com responsabilidade social e informativa objectiva, que deveriam pugnar por isenção ), para vender, alarmar, desestabilizar e desconstruir ... Vale tudo !

Depois, assiste-se no Facebook a um ringue de pugilato.
Uma discordância de opinião, ainda que expressa com educação, é um desaforo, é um insulto, é um desafio.  E a liça está instalada.  Ninguém leva "desaforo" para casa ...
E ninguém se coíbe de afrontar ostensivamente, destratar, injuriar e ofender quem "ousou" defender outra opinião ou outro ponto de vista, que não o seu.
E o vocabulário usado entre quem, capacitado ou não, salta indistintamente para a "luta", ainda que não se conheça ou sequer faça ideia de quem está do outro lado ... é triste, aviltante e lamentável ... pelo menos.
Os termos usados, as palavras proferidas, os epítetos e "mimos" largados, falam bem de um atrevimento inqualificável de um "bas-fond" cultural e social, arrepiante.
E as pessoas perdem totalmente a noção de educação, decoro e mesmo dos limites até onde as suas capacidades ( notoriamente insignificantes) lhes permitiriam ir, sem fazerem  uma figura absolutamente lamentável, uma imagem tristemente reprovável .  Uma verdadeira e vernácula "figura de urso" !...
Os erros de ortografia são useiros e vezeiros na "decoração" das exposições apresentadas. O que atesta aquilo que afirmo.  O ridículo das mesmas não é sequer percepcionado por quem as apresenta, e tudo é despropositado, dispensável e arrepiante !!!
A ileteracia, a ignorância, quase o analfabetismo da grande maioria das "sumidades" que se colocam em bicos de pés, debitando discursos de oratória assustadores e avassaladores, de puro convencimento e narcisismo quase sempre ... alastram.
Não há triagem, não há filtragem, não há sequer bom senso.
Guerras políticas ou futebolísticas então, são com frequência, lamentavelmente,  razão de insultos, ofensas gratuitas ou mesmo cortes de relações e amizades entre pessoas que até se queriam bem ...

Depois, o Facebook é com demasiada frequência uma feira de vaidades, de cinismos e de exibicionismos.   E como se percebe isso mesmo, claramente !...
É o "lavadouro público " da actualidade ...
É o local da troca de novidades, é o espaço da exibição de fúteis e imaginários status, é o "diz que diz", é o sonho de uma amostragem sub reptícia, como quem não quer a coisa,  de vidas famosas, sempre espectaculares, felizes e invejáveis ...
Tudo se coloca no Face, tudo se confessa no Face, tudo se exibe no Face, ainda que tantas vezes se perceba quão sombrias são as intenções ... quão subliminares são as mensagens ...

E por tudo isto ... mais do que entrar, passar e sair rapidamente nestes espaços, é pura perda de tempo.  É um desafio à paciência, nada se aprende e com um bocadinho de "sorte", apanhamos uma irritação daquelas !...

E pronto ... Agora podem bater à vontade, que eu fui ali e já venho .... 😄😄😄😄😄



Anamar