sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

" ISTO SOU EU A PENSAR ... "




O dia está de "nieblas" ou seja, está envolto num nevoeiro tão cerrado que não se vê, só se adivinha ...
Não está frio, nos 16 graus de um Janeiro, meio de Inverno.  Contudo ... chove. Chove aquela chuva miudinha que não é bem carne nem peixe, mas que chegou para me encharcar na caminhada ... já que hoje era dia .
Eu gosto das "nieblas", este tempo fantasmagórico que desenha perfis esbatidos, como se estivéssemos atrás de um vidro embaciado.  Gosto deste ar misterioso que sempre me transporta às narrativas celtas, às costas bravias e inóspitas da Irlanda, tão bem retratadas naquele filme maravilhoso de mar alteroso e descomandado  com  que  "A filha de Ryan" nos presenteou, nos écrans de cinema nos idos de 70 ...

Afinal, o dia está parecido com a vida das pessoas.
A maior parte não tem tempo, saudavelmente, para se preocupar com estas tretas. Mas como "quem tem vagar faz colheres ..." eu, até enquanto caminho, penso na vida e falo sozinha ...
O cinzento que me cercava e que me fazia "desaparecer" no raio de alguns metros, foi propício a que me interrogasse pela enésima vez, do porquê da insegurança e da instabilidade da nossa existência, nos dias que correm.
Nos primeiros tempos da minha vida, eu e as pessoas minhas contemporâneas  adquirimos, alicerçámos e interiorizámos conhecimentos, princípios, valores que nos norteavam e que nos garantiam certezas mais ou menos indiscutíveis.  Sabíamos que estas causas, produziriam aquelas consequências, que se vivêssemos controladamente dentro de determinados parâmetros  que conhecíamos, não teríamos à partida, surpresas desagradáveis ou grandes percalços no futuro.
Podíamos planificar, podíamos aceitar desafios e assumir responsabilidades, mesmo a longo prazo, porque era devidamente acautelado o risco que se corria.  E só o corria quem queria.

Hoje, vivemos num arame sem rede.  Tudo, mas tudo, pode sempre acontecer em qualquer circunstância.  Tudo o que era certo ontem, cai em suspeição hoje.  A instabilidade, a incerteza, a dúvida sobre o que e quem nos rodeia, é uma onda gigantesca que cresce mais e mais avassaladora, como um tsunami nos nossos dias.
Há uma desprotecção total do ser humano  face à sociedade, face aos cidadãos, face às instituições, face aos princípios, às linhas norteadoras e às coordenadas que nos regem.  É como se, de repente, toda a sinalética que conhecíamos, fosse desvalorizada, e todos os códigos assimilados e válidos, caíssem em desgraça e passássemos a desconhecê-los.
E aí ficamos nós  mais perdidos que no meio de um deserto, mais naufragados do que em cerração de alto mar ...
E apossa-se-nos uma angústia, um pavor, um cansaço e um descrédito em tudo, que nos indigna, nos revolta e nos reduz à fragilidade com que nos confrontamos, percebendo-nos demasiado insignificantes e desprotegidos no mundo que habitamos.
Não temos verdadeiramente ninguém que nos defenda, as instituições são mais e mais falíveis e inaptas, as estruturas sociais não respondem e não funcionam sequer em tempo útil, são manipuláveis e corrompíveis.  Deixámos de saber as linhas com "que nos cosermos" ... deixámos de identificar as verdades que o eram ...
E ficámos estranhos ... estilo  marcianos largados de uma qualquer nave espacial ...

Somos espoliados nas "nossas barbas" ... e sabendo-o, contudo,  não temos armas disponíveis para a reversão das situações. Tudo é maquiavelicamente engendrado.  Verdadeiros  processos kafkianos são montados. Cantam-nos canções de embalar descaradamente entorpecentes,  para que consigamos reagir.  A verdade e a mentira, o direito e o avesso, o certo e o errado saem da tômbola aleatoriamente, como se inocentemente, o seu grau de validade fosse o mesmo ...

Estas reflexões atormentaram-me e atormentam.  Angustiam-me e desgastam-me.  Desmotivam-me e desencantam-me face à vida e ao futuro.  Sou cada vez mais uma analfabeta, face ao livro da Vida.

Fiz análises de rotina há alguns dias.  O meu colesterol continua teimosamente descontrolado, e desafiador.  Depois de há já razoável tempo eu ter assumido medidas correctivas no meu esquema de vida demasiado sedentário, assumiu valores ainda mais elevados.
Alimentação simples e não comprometedora, comportamentos de risco que evito diariamente e exercício físico praticado com total regularidade, seriam garante de uma segura descida dos seus valores.
Bem ao contrário ... num braço de ferro, persiste em assumir valores fora da tabela.
Sou meio inconsequente em relação a estes acidentes de saúde.  Como o meu pai, que resistia o mais que podia a médicos, medicamentos e tratamentos, eu, que felizmente não tenho  historial de contratempos a este nível, evito dar-lhes importância, protagonismo ou com eles me preocupar.
E por isso, tenho assumido um comportamento de "deixar correr" ...  Os resultados laboratoriais chegam, leio-os de través e guardo-os no armário até que uma nova investida de "consciência" me invada ... e os repita.

Entretanto, vou ouvindo as sugestões de gente avisada : "tens que te aconselhar com o médico !  O valor é elevado,  olha este e aquele a quem aconteceu isto e aquilo " ...

São as estatinas o fármaco aconselhado na terapêutica.  Todos o sabemos.  Só que se trata de um químico com uma moldura de efeitos colaterais assustadora.  Desde a dependência ao medicamento,  ( que exige um tratamento longo  para que tenha eficácia, direi mesmo, "sine die" ),  a um prejuízo acentuado no âmbito da parte muscular e articular do paciente, com restrições na qualidade de vida, e bem assim,  a ser potenciador de alterações cerebrais, como a demência ... o leque de aspectos negativos secundários inerentes, assustam-me e desmotivam-me totalmente.
Depois, ouvem-se algumas vozes da comunidade científica, denunciantes destas situações, com desaconselhamento do uso deste químico, e igualmente se escuta um ping-pong de opiniões sobre a mesma prescrição, desmistificando o colesterol como vilão no nosso organismo, e denunciando  e desmascarando um empolamento intencional e miserável da verdade, montado em prol do  "lobby farmacêutico", que a comercialização destes medicamentos beneficia.
O dinheiro e os interesses económicos das multinacionais sem escrúpulos, sempre à frente, trucidando, se preciso for, o ser humano !!!...

Bom, e portanto, SIM ou NÃO ?
Leio, busco na Internet, falo com gente da área, profissionais de saúde, e fico mais ou menos na mesma ... ou seja, quem fala a verdade, neste imbróglio ???!!!
Trata-se de uma  patologia  silenciosa e falsa, que só é detectável em exames e investigação adequados, ou por alguma "surpresa" grave que nos espreite ao dobrar de uma esquina ...  E aí, poderá já ser tarde !...

"Nieblas" ... sempre as benditas nieblas, poalha viscosa de desinformação, dúvidas e incertezas !...
E nós por aqui, indefesos ... como a mosca presa na teia de uma aranha monstruosa, contra a qual jamais terá capacidade de fazer frente !!!

Anamar

domingo, 19 de janeiro de 2020

" SEI LÁ QUE NOME DAR A ISTO ... "




E o bando dispersou.
Eram muitas, há pouco, patrulhando lá de cima o que suponho ser bem desinteressante aqui por baixo ... um casario sem rei nem roque, uma floresta de betão com alguns assomos de verde, para fazer de conta.
Sei que gaivota não é bicho de jardim, não é bicho de floresta, mata ou serra.  Gaivota é bicho de arribas, de falésias a pique, de rochedos salpicados de sal.  Gaivota é bicho de azul, de rendilhados de espuma, de caramujos, de algas e de peixe de marés distraídas.
Adormece-se se a onda ajuda, pica a fundo sobre as cristas, se ela é rude e se impõe.
Gaivota é bicho de ser livre.   Perspicaz, atrevida e desafiadora, não entendo por que perde tempo a andar por aqui ...
Por essa razão perdoei à minha, que partiu há muito.   Partiu, mas levou-me com ela nas asas do sonho, para bem longe deste cativeiro ...

O céu hoje é um céu de Primavera, num glorioso dia de Inverno.  O seu azul diáfano, a sua luminosidade de doçura perceptível, o calor tímido do seu sol, é um doce envolvimento para o coração e para a alma.
Da janela, repousada em varanda de privilégio do meu sétimo andar, pouco se atreve a tapar-me o horizonte.  Pouco se atreve a escurecer-me a luz.  Pouco se atreve a boicotar-me o pensamento que se solta e voeja longe, mais e mais longe ... sempre mais além ...

O rasto de um avião aqui por cima, traçou uma linha perfeita na tela do firmamento.  Um avião, seja qual for, é um caminho, é um projecto, é uma viagem, é uma história.  Sempre é uma história na vida das pessoas. Uma história contada ou inacabada.
Um avião, é uma chegada e uma partida.  É um encontro onírico.  Para mim, sempre o é.
E lá vou eu ... atrás do rasto, atrás das asas ... atrás do sonho !

Vem aí a tempestade "Glória", dizem os serviços meteorológicos oficiais.
Que saudades dos tempos em que a voz de Anthímio de Azevedo, tudo simplificava no pequeno écran ...
As tempestades não tinham denominações absurdas.  Eram tempestades e pronto. O Inverno era o Inverno, com sabor a frio, a chuva, a ventos, mais ou menos fortes, dias seguidos ... os que fossem .
O Inverno eram as golas altas, os gorros fofos, as luvas que hoje esquecemos no fundo das gavetas.  Eram os pés encharcados, os guarda-chuvas partidos nas reviravoltas das esquinas. Eram as gripes, os espirros e as tosses persistentes.  Era o Vicks Vaporub que a mãe nos punha antes de dormir ...
O Inverno era o que abria as portas à Primavera, e esta ao Verão que antecedia o Outono, no tempo certo, sem surpresas ou desvarios.
As castanhas comiam-se assadas quando o S.Martinho nos batia à porta.  Os morangos e as cerejas assomavam com a doçura mansa da Primavera. As favas desciam-nos à mesa pelas Páscoas.
Era assim.  Sabíamos e esperávamos com gosto, com desejo, com alegria ... porque sabíamos que era exactamente assim !
As coisas eram conhecidas e seguras.  Sabíamos perfeitamente com o que contar, sem sustos ou atropelos. 
Hoje acontece tudo, sempre, em qualquer momento.  Perdeu a graça !...

Hoje sabemos muitas coisas.  Coisas de mais.  Aliás, sabe-se tudo, em tempo real.  E pasmamos com a evolução das tecnologias, com o avanço do conhecimento e da informação.
Mas morre-se nos hospitais, não da doença que lá nos levou, mas de uma bactéria residente, que parece estar ali, para abater quem entrou com uma apendicite ...
E morre-se, porque um inocente avião em rota comercial, é derrubado "por engano" por um míssil, no meio de confrontos absurdos e incontroláveis, em guerras políticas e fratricidas, comandadas de secretárias a milhares de quilómetros de distância.
E há fogos sem norte ou rumo, que devastam, destroem e matam, dia após dia ... homens, plantas, animais ... a Natureza sem defesa, consumida e reduzida a cinzas.  Seguem-se inundações catastróficas, num caos e num desmando que o Homem, afinal, não controla ou aquieta.
O planeta zanga-se.  Zanga-se e avisa.  Zanga-se e castiga.

O futuro mostra-se como as areias movediças do deserto, como as dunas móveis que se fazem e desfazem, à nossa frente ... incerto e duvidoso ... assustador !
O trabalho, o mérito, a isenção, o esforço, a verticalidade, parecem não garantir a dignidade e a realização de ninguém.  São outros os valores que movem o Homem de hoje.  São outros os "requisitos" garante da segurança nos dias vindouros. Os baluartes da sociedade são falaciosos, as estruturas que deveriam pugnar pelos seus direitos, e defendê-la das arbitrariedades que nela grassam, têm pés de barro e mostram-se ineptas, ineficazes e incapazes de proteger os cidadãos.
Manda o poder. Todo o poder ... material ou não ! Impõe-se sem escrúpulos.  De todas as formas de que dispõe.
Enfim, as tempestades vão muito além das meteorológicas !

Bem ... onde o pensamento me trouxe, numa viagem sem bilhete, intemporal e não programada !...
Comecei na minha janela, olhando o espaço sem limite ou fronteira, deitado aos meus pés, há algumas horas atrás ... e termino, quando o sol já faz as malas para dormir ... saboreando uma chícara aconchegante de café, de novo junto à minha janela, quando as gaivotas já buscaram guarida e só os pombos idiotas perambulam por aqui.
O plátano agora esquálido e esfíngico, despido da folhagem que ainda esperará para voltar, parece dormitar como os velhos à lareira.
De resto, o silêncio do fim de dia aproxima-se a passos largos.  Afinal, foi mais um dia de Inverno com um glorioso semblante primaveril !...


Anamar

sábado, 18 de janeiro de 2020

" OS PEQUENOS PRAZERES ... "



Levantei-me tarde, aliás como é hábito.  Herdei do meu pai os genes da apreciação de uma boa manhã na cama, não importando a hora do recolhimento.  Essa, pode ser qualquer uma, ao sabor das circunstâncias e dos momentos.
Já varei muita madrugada entretida cá nas minhas coisas,  já me amanheceu o dia sentada ao computador frente à janela de sempre, já escrevi muito de meu nas horas silenciosas e cúmplices, perdidas noite adiante.
Mas aquela oportunidade de tempo sem tempo, no entremeio da fofura dos lençóis, no ninho aconchegante e quente do édredon ... essa, é uma benesse sem tamanho, é um privilégio que me compensa da obrigatoriedade de encarar mais um dia, com ou sem vontade, no desencasular face à luta diária que sempre nos espera !
Sou tipicamente uma mulher da "noite".  Funciono do lusco-fusco, adiante.  As manhãs ... sobretudo as horas da alvorada deprimem-me, violentam-me, incapacitam-me os neurónios, tornam-me totalmente disfuncional ...
Sobretudo nesta época do ano em que se pressente borrasca lá fora, em que se ouve o vento agreste a soprar, em que se adivinham  nuvens cavalgantes e encasteladas cobrindo a abóbada por cima das nossas cabeças ... em que a chuva copiosa tamborila ou açoita a vidraça ...
Foi o caso desta noite, em que por cada momento consciente entre o sono e os sonhos que me acompanharam,  saboreei  a  doçura  do  estar  bem ... de  tudo  estar  mais  ou  menos  perfeito !...

Depois, cumpri a caminhada que me imponho  três vezes por semana, na procura de mais qualidade de vida, com a satisfação do dever cumprido.  Sim, porque não sendo eu uma pessoa que me reconheça disciplinada, sobretudo nesta área, conseguir manter um projecto, uma determinação e uma realização, sabe-me efectivamente a uma verdadeira e prazeirosa conquista.
Hoje, em itinerário alternativo à mata enlameada e intransitável pelas chuvas caídas, inaugurei satisfatoriamente o percurso que apelidei de "inverno" ...

O sol acabou espreitando pelo meio de algumas nuvens esparsas que viriam a adensar-se e a fazerem cara feia, agora ao fim do dia.
Almocei de prato na mão, sentada sobre a máquina de lavar roupa, junto à janela, saboreando a generosidade de uma luminosidade dourada, doce e envolvente, dos raios que me inundavam.
À minha frente, o casario desgovernado, que me permite olhar horizontes longínquos,  mais adivinhados do que alcançáveis, transportava-me ao sabor do sonho, na liberdade das gaivotas que por aqui preguiçosamente planavam.
Há quanto tempo eu não me oferecia este descompromisso de formalismos !... Há quanto tempo eu não me permitia esta coisa de poder ser como eu quisesse, sem demais preocupações, presenças ou obrigatoriedades !...
Bebido o cafezinho de fim de refeição, sem urgências ou afobações, esperava-me uma tarde ociosa sem programas determinados.  E poder fazer isto, aquilo  ou aqueloutro conforme me desse na telha, tinha um sabor abençoado.

Vim para o computador  mexer e remexer em pastas, documentos, fotografias arquivadas, testemunhos de eventos, momentos que o foram, registos que marcam inesquecíveis acontecimentos, indelevelmente guardados por esta ou aquela razão, mas que se pretende que perpetuem aquela fatia das nossas vidas.
São memórias inapagáveis, são formas de nos trazerem o passado ao presente, de uma forma tão vívida que parece que o vivemos outra vez.
Revi o vídeo do lançamento do meu livro "Silêncios" que fará em Maio, três anos decorridos.  Rever as pessoas, sentir toda aquela festa, toda aquela emoção, todo aquele "conto de fadas" de um dos dias mais felizes da minha vida, deixar-me de novo envolver naquele regaço de carinho e afecto, trouxe-me outra vez as lágrimas aos olhos.
Olhar as pessoas, ver os seus rostos na alegria com que me homenagearam, escutar as palavras proferidas na Biblioteca Piteira Santos ... "beber" Énya no seu "Only Time" que nunca se apagará do meu coração ... foram presentes bem acima do que eu alguma vez sonhara, do que eu alguma vez mereceria ...

E pronto ... anoiteceu entretanto.
O meu sábado foi um conforto de alma pejado de pequenos prazeres, soltos e leves, uma  verdadeira dádiva  que  me  concedi,  com  o  sabor  da  liberdade,  da  irreverência  e  da  plenitude  de simplesmente  ser  e  saber-me  mulher,  na  posse  das  minhas  vontades, opções  e  escolhas !...

Afinal, a vida também é feita destes pequenos e saborosos retalhos ... acredito !!!...

Anamar

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

" EM BALANÇO ... "




Dei por concluído mais um volume - repositório de tudo o que publico aqui  neste meu espaço pessoal - o correspondente ao ano agora findo, de 2019.
Desde que iniciei a escrita deste blogue no passado 2008, uma iniciativa que surgiu entre a curiosidade e a experimentação, já completei dezoito volumes em suporte de papel, que guardo religiosamente na prateleira da minha estante.
São testemunho vivo da concretização de um projecto pessoal, que vale o que vale, não tem nenhum tipo de pretensão ou convencimento, e que é simplesmente algo que ficará um dia quando eu partir. Será um legado meu que falará daquilo que eu sou, daquilo que foi o meu percurso, as minhas preocupações, as minhas dúvidas, as minhas conquistas e os meus desaires, os meus sentires ... alegrias, tristezas, o que foi capaz de me emocionar ... em suma, um retrato nu desta que eu sou.

Cada palavra, cada linha, cada texto que aqui foi registado, foi-o com o desassombro, com a independência que me concedo, com a liberdade que me permito, com a autenticidade que me desenha.
Cada sentimento expresso, foi-o por escorrência simples e natural da minha pele e do meu coração.  Sem censuras, sem barreiras, sem crivos ou filtros.  Sensata ou insensatamente ... prudente ou imprudentemente ... Nunca isso me coartou, preocupou ou limitou.
Tal como na vida em que nunca aceitei cangas, baias ou fronteiras, e simplesmente me assumo com a genuinidade  que me confere uma coerência e uma verdade que sempre busco e respeito, também aqui sou eu frente a mim mesma ... em espelho de lealdade e verdade, sem fraudes ou distorções.

Sempre escrevi o que a voz me ditava, nunca me obriguei ao socialmente adequado ou correcto, sempre ignorei o "ruído" exterior, fingi não perceber intencionalidades ou interesses.
Nada foi "trabalhado", retocado, travestido pelo parecer bem, pela aceitação, pela conveniência.

E só por isso valeu a pena !
Hoje leio-me, e ao ler-me reabro a estrada, espreito as bifurcações, sinto as hesitações das encruzilhadas ... percebo as dúvidas, as angústias das incertezas nesta arte de marear, tantas e tantas vezes em meio de tempestades alterosas ...
Hoje, reassumo os batimentos acelerados dos cansaços do caminho,  respiro de novo as pausas nas sombras de paz e água fresca, com que a vida ... com que as vidas alternam nos nossos percursos ...
Hoje, congratulo-me pelo crescimento que descortino, gratifico-me pela maturidade conquistada, aceito com bonomia e paz  as cicatrizes deixadas pelas horas menos felizes, enxugo as lágrimas inevitáveis escorridas pelos tempos ... aquieto o coração, vezes de mais escalavrado e sofrido ...
Hoje, ao ler-me, "vejo-me", "descubro-me", "orgulho-me" ... "reconheço-me" ...

E apesar dos pesares, não sou capaz de me zangar com esta existência de tropeços, quedas, desacertos e incompletudes, porque sei do esforço diário desenvolvido para o acerto, porque sei do desafio imposto para a superação, porque sei da luta permanente travada  para a não desistência, porque sei da coragem e da esperança que bebi às colheradas para não soçobrar no campo de batalha ...
Por tudo isto, dia a dia me agiganto, me respeito mais e mais e me admiro ... se tal me for permitido ...
Em jeito de balanço, direi apenas que esta "herança" que deixo, talvez seja a mais preciosa que poderia  deixar, porque é uma dádiva integral de mim, na globalidade física e espiritual da mulher que eu sou !...

Anamar

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

" E A PRIMAVERA AINDA DEMORA A CHEGAR ... "




O ano começou há exactamente uma semana .  É um recém-nascido peremptório, teimoso e cheio de artimanhas.
Veio carregadinho de vontades imperativas, sem dar cavaco a ninguém.
Prometo que não vou falar daquelas frases "kitsch", tipo  "uma nova página a ser escrita",  " vêm aí 366 novas oportunidades ", "o tempo passa sozinho, mas és tu que viras a página" ... " meta para 2020 : ser feliz! " ... e bla bla bla ... tipo receitas do Pantagruel ...
Irrita-me o vazio de frases feitas e irrita-me a bonomia de mão passada pela cabeça ... deixa lá, vai ser melhor, não desistas dos sonhos, depois da tempestade vem a bonança ... basta acreditar ... e etc, etc, etc ...  Tudo lindinho, tudo fofo, tudo iluminado ... com os corações pseudo plenos de paz na Terra, amor e boa vontade !
Como se tudo fosse exactamente assim ... como se a vida, o tempo, a nossa existência fossem exactamente bombons  embrulhados  em pratas coloridas ...

Acho que estou gradualmente a perder a capacidade do sonho.  A capacidade do acreditar.  A capacidade da esperança.  E tudo isto é grave ... é mesmo muito grave !
A estrela do presépio não assomou por aqui.  Não  me ensinou caminhos,  e  o  meu "deserto" está mergulhado na profunda escuridão de todos os desertos, onde só o firmamento vive ponteado de fogachos longínquos, alguns  inexistentes, apagados e mortos ... à semelhança de muito, do tanto que inventamos.
A sua luz ficou lá atrás dos tempos e das eras ...

Entra ano, sai ano, correm horas, dias e meses, no desfiar implacável de amanheceres seguidos de ocasos.  Ilusoriamente acredita-se que tudo será privilegiadamente diferente, só porque  o  calendário ( essa invenção de mau gosto ), deixou pingar a sua última página ...

Um Inverno, agora generosamente solarengo, pintalgado de azuis e laranjas, enfeita-nos os dias, promete-nos alvoreceres auspiciosos.
Não faço intencionalmente previsões.  Não desenho metas ou pinto cenários, obviamente.
Vou só vivendo ... tão simplesmente.  Vazia ... ou melhor, esvaziada de ilusões.  Acho que essas, feneceram, tombaram quais folhas caducas, das árvores de finais felizes, que se despem impiedosamente, rumo ao sono retemperador e intimista da estação que vivemos.

E a Primavera que ainda demora a chegar ...

Anamar