domingo, 28 de fevereiro de 2021

" NO TEMPO DOS NINHOS ..."


A Primavera anuncia-se pelos quatro cantos da mata.  Os dias solarengos, de um sol doce e manso, têm aquecido, e tudo quanto é planta acordou do sono letárgico do Inverno e começou a abrir os pequenos borbotos verdes que  numa espécie de passe de mágica, desenham incipientes os primeiros projectos de folhagem.

É impressionante o ritmo biológico com que tudo desenvolve num curto espaço de tempo, como se a Natureza tivesse pressa em fazer-se presente de novo.
Os pássaros, igualmente, andam numa afobação que se percebe, e cantam saltitando de galho em galho .  Afinal é época de acasalamento, época de ninhos e arranque familiar.

É inevitável que recue no tempo, ao tempo em que aqui por casa se apostava na observação desse milagre.  
As miúdas eram pequenas e eu queria mostrar-lhes a maravilha da vida animal, a renovação das espécies, os ciclos da vida das aves, o respeito por tudo e todos os que dividem o planeta connosco..
Sem outro tipo de animais em coabitação, vetados por quem assim o entendia, os pássaros eram, por assim dizer, os mais acessíveis de poderem dividir um apartamento connosco, sobretudo tendo na altura ainda espaços abertos, com varandas não fechadas, coisa que viria a acontecer mais tarde.

Por isso, depois do "milagre" das transmutações do bicho da seda, nas suas metamorfoses  espectaculares, depois de ter havido peixes em aquários portadores de maternidade, para que a multiplicação pudesse operar-se com as condições necessárias, passou-se à criação de canários e periquitos, em viveiros mandados construir para que tudo ocorresse na perfeição.
Tratavam-se de uma espécie de armário com várias divisões lado a lado.  Cada uma dessas células familiares podia ou não, comunicar com a vizinha, mercê dum anteparo removível, e tinha um tabuleiro inferior  com areia, p'ra facilidade de limpeza.   O dito armário possuía  portas à frente, que se fechavam  para protecção das aves contra a frieza destas noites ainda nada seguras. 
Cada "apartamento" tinha os respectivos comedouros, bebedouros, banheira e suporte para a colocação dos ninhos na altura certa.  Nada faltava.
Procedia-se então à aquisição das várias espécies de aves, ao Sr.Joaquim, que sendo criador, vendia junto ao jardim.  
E havia-as lindas e variadas.  Os canários "mosaico", os "cobre", os amarelos mais comuns, os laranja quase vermelhos, os que no cimo da cabeça possuíam uma espécie de chapeuzinho de penas ... os brancos ... Todos grandes "tenores", sobretudo !!! 😁😁
Os periquitos que mais palravam do que cantavam, ostentavam colorações fantásticas, entre os azuis, verdes, amarelos, brancos e cores mistas.

Depois, bom, depois era acompanhar diariamente os rituais de acasalamento.  
Primeiro deixávamos que se escutassem, nos chilreios dos machos particularmente afinados e cortejantes, na conquista da parceira.  Depois juntávamos os casais por "habitação", colocavam-se os ninhos e providenciava-se-lhes sisal ou desperdício, para que as fêmeas, passado algum tempo,  iniciassem a laboriosa missão da confecção dos mesmos.  As canárias começavam então a procurar com frequência o cestinho já devidamente acolchoado, até que, numa bela manhã, o primeiro ovo surgia no fundo.  
Ao ritmo de um por dia, a postura fazia-se então, e começava o choco.  Para evitar a disparidade de dias entre os nascimentos, os ovos retiravam-se e colocava-se em seu lugar, um ovo falso até ao fim da postura, que podia ir até 5 ou mais ovos.
A fêmea pouco de lá saía para que os ovos mantivessem o calor que lhes disponibilizava, e frequentemente o macho ajudava à sua alimentação.

E era uma ansiedade constante.  Será que ... será que ??

Por volta de treze, catorze dias de incubação, os ovos eclodiam finalmente, e os filhotes totalmente despidos de penas, eram  dependentes em permanência, do calor constante de um dos progenitores e bem assim, do seu fornecimento alimentar.  
Depois ... bem, depois era o desenvolvimento normal de qualquer ser vivo, dia após dia, até ganharem o colorido das penas, a independência do voo, a autonomização dos pais ...
O milagre da Vida a repetir-se, sempre com o mesmo fascínio e encantamento !!!

As minhas filhas rejubilavam com cada coisa nova a que assistiam, com o pedacinho da Natureza, desta forma trazida até elas !  Sobretudo a mais nova, que até hoje é fascinada por tudo o que respeita à Vida nas suas diversas formas, com um respeito profundo pela "Mãe" que nos acolhe e aconchega durante a nossa passagem pela Terra !

Hoje deu-me p'ra lembrar tudo isto !...
Porque é quase Primavera, porque os pássaros nos brindam com os seus  concertos maravilhosos, porque a Natureza generosa se engalana de novo ... porque a esperança de que tanto precisamos, é verde também, como a folhagem luminosa que começa a despontar no azul dos dias ...

... e porque a menina que nos seus seis ou sete anos  se encantava  com  a sabedoria do Universo, completa amanhã já quarenta e três, e tem uma filha com três, a quem tenta transmitir todas as lições aprendidas !  
A Teresa é aquela menina que "acaricia" as flores  que nunca arranca nem pisa, acarinha os animais com quem se perde em longas conversas, e é incapaz de maltratar qualquer um ...

O tempo dos ninhos já foi ... Resta-me hoje uma terna memória e uma saudade infinita, também daqueles que todos nós éramos, então !!!...

Anamar

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

" INQUIETUDE "

 


Estou sentada frente à janela, com o casario desinteressante e monótono estendido até ao horizonte, com um céu uniforme, cinzento e fechado em abóboda desconfortável por cima, e as árvores divisadas aqui e ali, totalmente despidas da folhagem.

É um característico dia de Inverno.  Triste e desanimador, silencioso e vazio.
Está frio, ou eu tenho.  E nem sequer sei se este frio é do corpo, ou se me desce da alma, que hoje consegue estar mais escurecida que esta escuridão pardacenta que nos envolve.
Era dia de caminhada, mas não saí.  Não me animei mesmo, a descer.  Recusei o sacrifício que seria hoje, tê-lo feito.  Há uma indiferença em mim sobre o que  vivo e gostaria de viver, sobre o que sinto e gostaria de sentir, sobre esta sensação de perda que canibaliza as minhas emoções.
Estou exangue, sem luz, sem chama ... amodorrada num cansaço interior que se projecta nestes dias gelados que são a minha vida.
E já não me espanto ... menos ainda, reclamo.  Parece óbvio.  Parece fado a cumprir ...
Estou ... apenas estou.  Viva, porque respiro, eu sei.  Não muito mais !
Acho que me assemelho a uma folha tombada daquela árvore nua.  Vejo-a, castanha, seca, encarquilhada, jogada no chão pela aragem desabrida que corre lá fora.  Uma folha sem nenhuma importância, uma folha em que ninguém repara, uma folha calcável a qualquer momento.  Uma folha que rola da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, sem relevância, sem lógica ou sentido. 
Aleatória, acidental, mera partícula largada no tempo indiferente ... quase invisível ... transparente ...
Uma folha sem história !

Estou na gare de uma estação vazia.  O comboio dobrou a curva ao fundo.  E eu apenas espero um outro que venha, quando vier.  Espero.  Porque atingi o meu tempo de esperar.  O tempo de fazer, já foi.  O de viver, também.
Bagagem não levo.  Nada me fará falta.  Os sonhos ficaram.  Gastos, é verdade.  Mas ficaram.
As emoções também.  Afinal, eu sinto-me aquela folha castanha, encarquilhada e seca jogada no chão pelo destino.  Não esqueçam que até as folhas castanhas, encarquilhadas e secas terão um destino a cumprir, acredito, apesar de não parecer ...
E o destino, a gente não discute.  Com o destino a gente não briga mais, porque sê-lo-ia irrelevante, e de nada serviria.
Estou cansada.  Demasiado cansada.  Pareço ter chegado duma longa jornada, tumultuosa, errónea e  inútil.  E o amorfismo que sinto bem presente nas minhas veias, imobiliza-me na estrada, como se só devesse esperar.  Pareço viver um tempo sem tempo, nebuloso ... um tempo parado no meio dos parêntesis da vida, nada mais !...

Anamar

domingo, 21 de fevereiro de 2021

"DEPOIS DA TEMPESTADE ... dizem ..."


 

Ontem, como aqui contei, foi um dia de uma tenebrosa tempestade.  A depressão Karim, desta feita, atravessou-nos o país, imbuída de muito más intenções ... 

Precipitação com valores anómalos, vento forte a acompanhar as chuvadas ininterruptas, cheias com prejuízos avultados por vários pontos do país, a orla marítima alterosa, com ondas de mais de dez metros de altura, e outras manifestações de fúria, deixaram se possível, em estado de maior calamidade, a calamidade que já nos cerca !
Hoje, o dia é de sol, no meio de nuvens enoveladas é verdade, mas com muito azul por entre os rasgões.
Não fora o vento desabrido que vai soprando, e isto até daria para animar um pouco.
Parece afinal confirmar-se uma vez mais que "depois da tempestade, a bonança chegará !"

Poderia ser um bom princípio a tomarmos como tranquilizante, na borrasca reiterada que é a nossa vida.  Poderia.  Talvez, bem lá no fundo acreditemos nisso.  As pessoas dizem, admito que sem grande convicção : "calma, que isto vai acabar um dia.  Afinal, sempre tudo o que começa, acaba ... " ou dizem "nem sempre bem, nem sempre mal ..." ou ainda "não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe !"...
As crianças já cansaram de pintar arco-íris com a estafada frase : " Vai ficar tudo bem !" - que também se via por aí, quando todos estávamos menos cépticos e mais animaditos.
Só que neste momento acho que não há santo que nos salve. Até o vocabulário se ajeitou à situação.  
Hoje, num telejornal colocaram a seguinte questão a um médico psiquiátrico :" Faz sentido ou não, falar-se em depressão pandémica ?"
Obviamente que faz, e obviamente acredito não haver uma viva alma que em maior ou menor grau, mais leve ou mais gravosa na sintomatologia associada, a não sinta.
Há dias, também referi aqui, as estatísticas apontarem para mais de sessenta mil pedidos de ajuda na área da saúde mental, por parte dos portugueses, nos últimos meses, tendo existido desde sempre, como é do domínio público, linhas de apoio para o efeito.

A coisa é de tal forma real e preocupante, que foi disponibilizada na Web uma aplicação da Escola de Medicina da Universidade do Minho, que não é mais que uma ferramenta gratuita, direccionada a uma autoavaliação da saúde mental de quem a ela aceder.
É sigilosa e orientadora de cada um, no sentido de alertar, orientar e monitorizar individualmente os sintomas ansiosos e depressivos, fornecendo informação acerca do seu estado.
Promove a divulgação de estratégias a serem utilizadas na área das neurociências, e pretende igualmente "aumentar a literacia em saúde mental, em simultâneo com a automonitorização de sintomas, e a capacitação da população na autogestão da sua própria saúde.
Desta forma, pretende desenvolver-se a consciencialização para a necessidade ( se for o caso ) de recurso a serviços e a profissionais qualificados, de acordo com a maior ou menor gravidade, dos sintomas reportados".
Simultaneamente, cada pessoa tem também acesso a ferramentas de gestão emocional, melhoria do sono e adopção de estilos de vida mais saudáveis, de acordo com Pedro Morgado, investigador e docente da Escola de Medicina e responsável pela equipa que desenhou e desenvolveu a referida plataforma.

Por considerar bem importante esta informação, deixo aqui o sítio onde ela é disponibilizada : saudemental.p5.pt

Claro que já acedi, e claro que, sem surpresas acrescidas, reconfirmei o "autodiagnóstico" que já possuía.  Sem grandes alarmismos, verificam-se sintomas moderados de depressão, com sugestão de uma avaliação consistente por profissionais da área.
Portanto, por aqui nada de novo !

É assim comigo e seguramente com a maioria das pessoas, acredito, porque o ânimo e o estado de espírito que se denota em quase todos, isso denunciam.
Dias idênticos, com recorrência a rotinas que de tão iguais se confundem nas nossas cabeças, tempo excessivo de vivências traumáticas desgastantes, um desconforto acentuado pelo arrastamento temporal de um estadio penalizante, levam à apatia, ao desinteresse, ao cansaço que de psicológico se revela mesmo físico em cúmulo, e a uma incapacidade de conseguirmos transmitir alguma normalidade às nossas vidas.  
Um túnel que não deixa vislumbrar nenhuma luz ainda, um grau de expectativas gorado vezes sem conta, um acreditar que se desfaz a cada dia ... uma esperança que se exaure ... todo este mix explosivo,  embrulhado no medo e na incerteza que continuam a povoar-nos,  levam a uma exaustão, a uma astenia, a limites stressantes que nos sentimos verdadeiramente incapazes de ultrapassar ... em última análise, à doença !

Este é, infelizmente, o meu retrato da nossa realidade.  Não consigo adoçá-lo de nenhuma forma ...

Se  descobrirem  outro,  mais  esperançoso, benevolente  ou  favorecedor,  avisem-me  por  favor !!!

Até lá, só espero que continuem a ver retalhos de azul, mesmo quando as nuvens teimam em não sair bem de cima das nossas cabeças !  Já seria um bom começo !!!


Anamar

sábado, 20 de fevereiro de 2021

" ASSIM VAI O MUNDO ... E NÓS, TAMBÉM !"

 



Isto é um desatino total !

Saí da cama já ia para o meio-dia .  Também, esperava-me lá fora um dia de tempestade, e a chuva torrencial que caía, fazia-se ouvir claramente, mesmo no interior do meu quarto.
Aliás, fui "simpaticamente" alertada por sms da protecção civil, logo às nove da manhã !
Modernices !   Antigamente - enfim, não precisa ser muito antigamente - chovia no Inverno com toda a normalidade do mundo !  Aliás, o "anormal" seria não chover no Inverno.
Desde que inventaram a "patacoada" de dar nomes às depressões, chuvas mais intensas, ventos mais fortes ... enfim, às borrascas normais das estações que deveriam, contra tudo e contra todos, cumprirem o calendário ... dá nisto !  
O tempo e as "depressões",  que quase sempre, do lado do Atlântico nos ameaçam "à ganância" !....  😞😞
Simpatias e solidariedades com os humanos ( eu acho !... )😁😁  nós, que andamos todos esfrangalhados por aí, oscilando entre os Xanax, os Diazepans, os Valiuns, Lexotans ou quejandos ... ou, simplesmente, uma valerianazinha de um Valdispert, que como o Melhoral, não faz bem nem faz mal !!!...
Também há quem fique pelo chazinho de tília, que já a minha mãe me impingia em época de exames, porque relaxava e induzia o sono, ou seja, era tranquilizante.
Bom, isso era o que ela dizia .... 😏😏

Mas isto está tudo desarticulado, de facto !
Continuamos no regime apertado duma quarentena feroz, pelo menos para quem a cumpre.  
Os dias são iguais às noites e de novo iguais aos dias.  Já não há pachorra para aqueles "fait divers" da primeira quarentena, nos idos de Março de 2020, em que tudo era novidade, o medo imperava e a resistência humanamente possível, estava no seu auge.
Foi o tempo das trocas de cumprimentos, manhã, tarde e noite, o tempo dos vídeos p'ra rir, p'ra distrair, para aprender, para espairecer ... o tempo dos "passeios virtuais" a todos os lugares inimagináveis do mundo ... o tempo dos concertos online, dos espectáculos de toda a ordem, sempre e apenas com a telinha de permeio ...
Agora, o cansaço a todos os níveis, físico e psicológico, deixou-nos "nas lonas" e a apatia, a indiferença, o desinteresse e uma tendência talvez natural de deixar correr e de já estarmos por tudo, como "soi dizer-se", angustia-me bastante.
Com este confinamento, como seria de esperar, os números trágicos da pandemia, desceram para patamares mais aceitáveis.  O SNS pôde finalmente dar uma respirada, ainda ténue, contudo.
No entanto, com a saturação que nos domina, será espectável, será previsível ( ainda por cima conhecendo o povo português ), que quando o país reabra, embora com medidas de segurança determinadas, rapidamente se volte a cair no laxismo, no facilitismo e no disparate como aconteceu no Natal, de que pagamos a factura, até hoje !

Existe, de facto, uma depressão generalizada e quase já nem dela nos queixamos, o que de alguma forma, me preocupa mais.
A minha filha dizia-me há pouco : " sintoniza o canal das viagens ... sempre te distrais "
Apeteceu-me bater-lhe ... 😁😁  Só pode estar a brincar comigo !  Então eu que me sinto vilipendiada, extorquida, "assaltada à mão armada" mesmo, porque não posso pôr o pezinho num avião, porque não posso sequer quase ir até à esquina ... eu, em que metade de mim é sonho e a outra metade é invenção ... vou ser masoquista ao ponto de ver ao vivo e a cores os lugares onde quereria ir, os lugares para onde, sei lá se ainda vou poder ir ... os lugares para onde, sei lá se ainda vou ter tempo útil para ir ... saúde, vontade e dinheiro para o fazer ???!!!!  
E ficar muito feliz com isso ???!!!  Ora valha-me a santa !!!
P'ra me deprimir ainda mais ?!  P'ra me sentir mais  injustiçada pelo destino, porque nesta roleta russa que é a Vida, veio caír na minha geração, mais este "bilhete premiado" ??...
É dose !!!

Entretanto, quem me ler vai já dizer, ou já está mesmo a dizer ( como já mo disseram, a pensar que me animavam e era uma medida correctamente pedagógica de me atacar a nostalgia ... ) :  "Injustiça é estar numa cama de hospital ... injustiça é estar ligado a um ventilador ... injustiça é ter morrido com a peste que nos dizima !  Isso sim, é injustiça !"
E eu fico outra vez com vontade de bater em alguém ... Claro que tudo isso são motivos válidos e não pueris, do sentimento de injustiça e desgraça.  Tudo isso, será o que realmente importa !  
Mas bolas, tudo é relativo neste mundo ! É melhor ter casa do que ser um sem abrigo !  É melhor ter comida p'ra por na mesa e não precisar de recorrer aos bancos alimentares !  É melhor ter uns trocos no bolso, do que ir mendigar na porta de um supermercado ! 
Tudo isso é verdade, mas também tudo isso é demagógico !  Eu sei lá  o que o destino ainda me reserva ?!  Eu sei lá o que me espera no dia de amanhã, se neste momento conheço apenas o dia de hoje, e mal ?!  E também, porque não estou à espera de nenhum paraíso "post mortem" ( já que não sou católica ), o que me faz sentido é o que vivo, o que sinto, o que me alegra ou me entristece, aqui, enquanto vou acordando todos os dias ...
E também, porque sou humana e em consequência, saudavelmente imperfeita !!!
Será egoísmo ?  Egocentrismo ? Ou simplesmente idiotice ??  ( isto sou eu a pensar sozinha ... 😁😁)
Neste momento, também não me interessa rigorosamente nada !  Estou assim, e pronto ... cabotina, talvez !!!

Ando a reler tudo o que escrevi no ano tão particular que foi 2020.  
Com os meus textos, desde que iniciei este blogue em 2008, tenho feito livros, para que o registo fique em suporte de papel, para as minhas filhas, primeiro ... para os meus netos à posteriori.
Lendo-os, pode de facto, "ler-se" muita coisa sobre mim e sobre os tempos que atravessei.  Vou no vigésimo volume.
O encadernador que sempre mos tem feito, dizia-me este ano : "Vê-se bem que a senhora esteve confinada!"
Ao que lhe respondi : "Pela espessura do livro ... certo ?"
Na verdade, e voltando a desfiar a crónica quase diária que mantive, onde ia dando conta do que ocorria no país, na sociedade, no mundo ... sobretudo em mim ... fiquei agradada por tê-lo feito, pois à distância, e depois de tantos altos e baixos, com o distanciamento mais desapaixonado sobre as vivências, pode ver-se desenhada com alguma clareza e fiabilidade, a crónica duma época, que vivíamos, que vivemos e que continuamos a atravessar, com tudo o que ela enferma de dificuldades e toda a panóplia de sentimentos que, num mix meio louco, nos tomou e nos foi destruindo aos poucos !

Neste momento, já quase tudo se disse, já quase tudo se escalpelizou, se narrou, se explorou e se analisou, sobre tudo mesmo , de todos os ângulos e pontos de vista.
Neste momento nada já é inovador, eu diria que já só algumas / poucas coisas, serão notícia.

Penso que os dois grandes tópicos actuais,  que angustiam e / ou assombram as sociedades mundiais, serão, por um lado o angustiante surgimento de estirpes mutantes do vírus da Sars Cov2 ( que têm furado as redes sanitárias protectoras dos povos, que têm driblado os estudos, e obrigado os cientistas de todas áreas e convicções, a acelerarem ainda mais, face aos estudos e aos conhecimentos obtidos até agora ... numa real corrida contra a prejuízo ) 
e por outro, a morosidade acontecida, também contra o previsível, por incumprimento irresponsável dos compromissos das farmacêuticas, na distribuição atempada e pré-determinada das vacinas, e bem assim, algum atabalhoamento com avanços e recuos, nas estratégias prioritárias inicialmente definidas para as campanhas de vacinação.
Existem várias vacinas a circularem pelos diversos países, consoante também, as suas capacidades económicas, como era inevitável que acontecesse.  
Na União Europeia, a cota determinada para cada estado membro, parece ter sido robustecida em alguns casos, por compras directas irregulares, de quem tem dinheiro no bolso.
O Homem, sempre no seu melhor !!!
Depois, tem havido alguma confusão, geradora de maiores inseguranças.  
Assim, se a vacina surgiu como a "salvadora" do mundo, a "luz ao fundo do túnel" para o cidadão comum, eu diria que os dados sobre as mesmas não são geradores de tanta tranquilidade.
Primeiro, a informação sobre os graus de protecção desta e daquela e a sua capacidade de imunização, parecem ir oscilando ao longo do tempo.  
Depois, as determinações sobre as faixas etárias a beneficiar com a inoculação das mesmas, também têm sido passíveis de controvérsia. Por exemplo, a informação sobre a vacina de Oxford da AstraZeneca, que inicialmente fora desaconselhada para pessoas acima dos 65 anos, parece agora não ter fundamento, e neste momento até ser mesmo indicada para esta faixa etária.
Também, o conhecimento da capacidade neutralizante da eficácia das vacinas pelas novas estirpes do vírus que estão a surgir em velocidade de cruzeiro, está igualmente a implicar alguma apreensão e a exigir reformulações quer da respectiva concepção, quer nas dosagens adequadas a serem ministradas, potenciando de novo, mais insegurança nas populações.
Israel, o país com maior imunidade de grupo alcançada até este momento, mercê da eficácia da campanha de vacinação, acena agora com a criação de uma medicação no combate à Covid19, que parece surgir como eficaz.  
A concretizar-se esta informação, a cura da pandemia e sua eventual erradicação no mundo, poderia passar por uma terapêutica adequada, combatendo estes lobbies económicos das farmacêuticas, produtoras e competidoras das vacinas, que se digladiam nos milhões que estão escandalosamente a arrecadar em todo o planeta !

Teremos que aguardar ainda muito, certamente, até que haja clarificações seguras de todas estas questões !

Bom, não alongo mais esta já longa crónica, com a qual procurei fazer um balanço actualizado do estado das coisas, e claro, no meio delas, do meu estado de espírito, precário, débil, tíbio ...

Veremos se pelo menos amanhã, a Natureza nos favorece, para não termos que amanhecer repetindo : "Estou tão farta disto tudo !"...


Anamar

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

" NADA E TUDO "



Hoje acordei em perda.
Acordei com um buraco no peito, como se me afundasse, sem apelo, numa profunda e inevitável cratera.
Acordei desmoronada ... desmanchada por dentro, tão vulnerável como um barco à deriva que tivesse rebentado a sua única amarração ao cais ...

É domingo de Carnaval no calendário, é Dia de S.Valentim, de novo data socialmente determinada de há alguns anos a esta parte, e consequentemente é o Dia dos Namorados, em que o Amor deverá ser vivenciado e glorificado institucionalmente, pelo menos ... 
Amanheceu um dia glorioso, de uma luminosidade de Primavera antes de tempo, ela que já se anuncia por aí, com as flores a despontarem numa Natureza sempre generosa e pródiga.
Amanheceu, mas foi difícil que eu me convencesse a sair da cama e espreitasse o sol que iluminava um céu limpo totalmente azul ...
Afinal, eu sentia-me mais vazia do que nunca, mais amputada do que nunca, mais só do que nunca !
Vazia de ânimo, devoluta de vontade !

Vivo numa pandemia assassina, da qual nem sequer imagino se saio ilesa, ou se simplesmente engordarei as estatísticas.
Vivo com as perdas todas que um ano já de desgaste profundo, foi infligindo à minha força física e anímica.
Vivo com as ausências dos que foram, e dos que estão à distância de um abraço apenas imaginado.
Vivo com as memórias e as lembranças, dos momentos, das palavras, dos cheiros e das cores.  Vivo com o som do vento que me soprava então o cabelo, ou com o tamborilar das chuvas nas madrugadas de aconchego.
Vivo e convivo com aquela que fui e não sou mais, como se me estranhasse na minha própria substância. 

Fui para a janela deste meu sétimo andar, tribuna privilegiada, onde em mim o sol pousava manso e doce. Onde por cima de mim, só tinha o céu e as gaivotas que faziam gala da dança que exibiam ...
Excluindo o acesso às superfícies comerciais lá em baixo, pouca gente na rua.
Um homem estendia a mão à caridade alheia ... p'ra dar de comer à família ... dava p'ra escutar.
Olhei em frente ... lá onde a D.Helena não voltará a assomar....
Olhei o terraço ... lá onde o Sr.Fernando não descerá outra vez ...
Olhei as dezenas e dezenas de motos, bicicletas e até um carro hoje vi, de entrega de "take-away"... um trabalho que se arrasta até bem noite dentro, com chuva, frio, ou intempérie, cumprido por faixas desfavorecidas da nossa população ...
Olhei o meu prédio onde no terceiro andar tenho a vizinha de uma vida, a morrer de cancro, numa degradação que não consigo aceitar ...
Lembrei o Pedro, lembrei o Rui, lembrei o Sr.Eduardo ...
Pergunto-me : E a D.Maria dos Anjos ?  Que será feito ?  E o viúvo da Dra.Joana ? E o Sr.Silva, o Sr. Ivo, a D.Milu e o seu grupo do Pigalle ?  E o Pigalle em si ... meio moribundo também ?
Tantos que adornavam a minha realidade, e que não mais responderão à chamada ...
A moldura humana que dava significado à minha existência, está irreconhecível.  O meu dia a dia, com as rotinas confortáveis e seguras que me levavam para a rua encontrar amigos, sentar  na  mesa, conversar ... tomar  café ...  inexistem.  Não  sei  se  algum  dia  se  reabilitarão ...

Os dias são demasiado longos e demasiado curtos.
Longos, porque pegam uns nos outros numa espécie de caminho insosso, sem nuances, derivações ou alternativas.  Uma paisagem igual, que não motiva nem convida.  O hoje pega com o ontem e com o amanhã, e quase já não descortinamos bem, onde estamos ...
Demasiado curtos, porque neste quase não valer a pena o recomeço, com o sol a dormir às seis da tarde, a escuridão desce e sufoca, tenho a sensação de ter saído da cama ainda há pouco e já estar a regressar ... 
Nos dias em que a caminhada integra o cardápio, sou obrigada a descer e a sentir o mundo lá fora.  Confesso que muitos deles, já sem nenhum élan para a fazer.
Nos dias em que fico em casa, pela vontade e a motivação serem nulas, não invisto em quase nada e quase nada me apetece fazer.  Circulo por aqui, passo demasiado tempo a contemplar o vazio lá fora.
Tento escrever, e cada vez com maior frequência é um esforço fazê-lo.  É uma sensação idêntica à que experimento com os dias ... pareço ter tudo e não ter nada para dizer !...

E pronto ... com razoável atraso em relação ao dia em que a iniciei, esta crónica sai hoje ... chocha, insípida, cinzenta, tão cinzenta quanto, ao contrário do domingo, esteve o dia de hoje ... bem mais igual a mim própria, afinal ...

Anamar

domingo, 14 de fevereiro de 2021

" NEM SÓ DE DESGRAÇAS VIVE O HOMEM ! "

 

12 - 02 - 2021


Como sabem, este meu espaço integrou desde sempre,  postagens variadas, indexadas a várias categorias ou etiquetas.

E uma delas chama-se " CURIOSIDADES ".

Sendo assim, reparemos nesta data vivida há dois dias atrás.

Leiam-na da esquerda para a direita e da direita para a esquerda !...

Leiam-na de cima para baixo e de baixo para cima !...

E então ?  Já perceberam, certo ?  É absolutamente indiferente, qualquer orientação na leitura da data da passada sexta-feira, portanto !

Sempre se lê : " Doze do dois de dois mil e vinte e um " , correcto ???


Esta data, ou melhor, esta especial e curiosa coincidência, advém de a mesma ser classificada como um AMBIGRAMA e simultaneamente um PALÍNDROMO !


E esta, hein ?   As coisas que se aprendem  na Internet !!! 😁😁😁

É giro, não é verdade ?


Anamar

sábado, 13 de fevereiro de 2021

" A GERAÇÃO DO ÁLCOOL-GEL "

 



Eu não acredito que já há mais de um ano, os temas dos meus textos rodam em torno da pandemia !
Há um ano já que comecei a escrever uma espécie de "crónicas de caserna" sobre a realidade de que nos dávamos conta diariamente, e bem assim dos sentimentos ao rubro que por aqui íamos experimentando !
Eu não acredito que há mais de um ano, os meus escritos começavam já então, com as benditas frases : "foi decretado o estado de emergência" ... "o país está totalmente confinado " ... " as ruas estão desertas" ... "hoje foram também encerradas as escolas, e as crianças e jovens iniciam, a partir de casa, o ensino à distância "... ou, " todos os trabalhadores com profissões passíveis de um desempenho a partir de casa, passam a exercer tele-trabalho" ... " pais com crianças de idade inferior a doze anos, têm direito a assegurar o seu cuidado, mantendo-se nas residências" ... e por aí adiante.
Há mais de um ano, eu falava dos artefactos conhecidos e inevitáveis a integrarem o nosso dia a dia, as nossas rotinas, num quotidiano que se instalou e parece não desgrudar nunca mais, das nossas vidas ... as máscaras, a lixívia, o álcool-gel, a higienização ininterrupta das mãos, com muita água e sabão ... O café que não se pode tomar na rua, as filas nas superfícies comerciais, o número limitado e a conta-gotas das admissões nos estabelecimentos ainda abertos ... o distanciamento social em todos os lugares ...
Há já um ano que a realidade de todos nós mudou totalmente o figurino, nas rotinas, nos sentimentos, nas vivências ...
Tudo em nome de uma nano-partícula viral que ousou tomar conta dos nossos destinos !

E hoje, passado já um ano, continuando remetidos, eu diria, à estaca zero, prosseguimos uma via sacra sem vislumbres auspiciosos.
Estaca zero  não é sequer o caso, porque passado um ano as cotas dos nossos parâmetros valorativos ( do que era na altura, uma pandemia que parecia iniciar-se benevolente para Portugal ),  desceram abissalmente p'ra uma cratera sem tamanho ou dimensão ... o que, se calhar, se nessa altura no-lo tivessem contado, talvez não tivéssemos acreditado.
Os números de casos de infecção, o número de óbitos, o número de doentes em Cuidados intensivos, a gravidade do cansaço e da exaustão sentida  nos hospitais, nas famílias, na sociedade de uma forma geral, eram  uma brincadeira, se os compararmos à nossa actual realidade diária.
Aprendíamos então novos esquemas de vida, adaptávamo-nos então a realidades estranhas que tiveram que se nos entranhar na alma, tacteávamos  então uma adaptabilidade física e emocional a um todo que não conhecíamos, sequer ouvíramos falar, sequer imagináramos ...
Sempre na esperança que tudo fosse apenas por algum tempo, que o pesadelo nos desse tréguas num tempo não excessivo, pelo menos não acima do que fôssemos capazes de suportar ...

E como em tudo na vida, a tudo o ser humano se ajeita ... primeiro estranha, depois entranha, foram transcorrendo os dias, depois das noites novas madrugadas se perfilaram, depois da Primavera as estações seguiram o rumo normal, os dias azuis chegaram no prazo correcto e espectável, a seguir às chuvas e às intempéries o sol falava-nos de praias onde não iríamos, de viagens que não faríamos, de espectáculos que não veríamos ... a solidão forçada das paredes cerradas das casas donde não saíamos, como último reduto ou trincheira desta guerra sem tamanho,  lembrava-nos dia após dia a falta do abraço, do beijo e do colo, pesava-nos dia após dia a ausência dos que só víamos através de plasmas e que só ouvíamos através de aparelhos, as noites não dormidas trazíam-nos o medo, o cansaço, a angústia, a incerteza que adoece e dói ...
E no limbo entre o estar morto ou ter a certeza de estarmos vivos, fomos cumprindo calendário, ansiando que o ano assassino terminasse logo, tal a força da sua flagelação ... como se, virada a última página do 2020, a regeneração de tudo, até de nós mesmos, estivesse em rampa de lançamento !
Parecia que uma nova aurora despontaria nos primeiros alvores de uma madrugada que seria  finalmente "mãe", porque já bastava a força carrasca do pesadelo que havíamos vivido ...

Hoje é sábado de Carnaval ... só porque a convenção assim o determina.  E hoje vivemos o que os homens da Ciência chamam-se de quarta vaga, em Portugal das mais violentas que flagelam o mundo ! 
Hoje, novamente as medidas de contenção, os parâmetros restritivos, as limitações, vigoram inapelavelmente, num estado de emergência e confinamento, imposto por um Janeiro absolutamente catastrófico e devastador.
Hoje sabe-se que estatisticamente a saúde mental dos portugueses claudicou.  Nos últimos meses mais de sessenta mil pessoas pediram apoio psicológico.
Hoje no país, chegou-se a mais de quinze mil mortos, mais de oitocentas pessoas carecem de máquinas p'ra respirar e o número de infectados atingiu o patamar de cerca de oitocentos mil .
Hoje já dispomos de vacinas, num número muito abaixo das necessárias.
Reforça-se a testagem a valores diários de exigência muito séria.
Hoje, as estirpes de vários tipos, atestam que o vírus não se conforma e promete continuar a reduzir  a terra queimada, os caminhos que calcorreia !  As gerações do meio são fustigadas.  Existem muitos jovens entre os doentes graves e os óbitos.
Hoje, a OMS fala no uso de duas máscaras sobrepostas, dada a virulência, nomeadamente da estirpe britânica que já se instalou numa percentagem aterradora.
Hoje, com um sol primaveril a anunciar um confinamento ainda mais difícil de cumprir, continuamos em "prisão domiciliária" ... e há quem pergunte : "mas será que algum dia deixaremos de usar máscara ?  Será que voltaremos a ser capazes de conviver com um depois com a normalidade do antes, sem que sintamos que algo não está bem ?"
Que consequências seríssimas no domínio psíquico e até físico, virão a experimentar as nossas crianças, os nossos adolescentes, os nossos jovens ... pela inversão de todos os hábitos, necessidades óbvias,  rotinas interiorizadas, a amputação dos afectos, da relacionação, da partilha e da interajuda, na normal construção de personalidades que exactamente percorrem um estadio da vida determinante nas suas formações ?!

Só a História, um dia quando for feita, o reportará. Já cá não estarei para o conhecer . 
Só ela, com o devido distanciamento temporal, necessário e suficiente, poderá avaliar com segurança, o grau de adaptabilidade capazmente alcançado, de superação e de resiliência desta heróica "geração do álcool-gel" !

Anamar

domingo, 7 de fevereiro de 2021

" RUMO AO ARCO-ÍRIS "

 


Gosto de escrever.  Já o disse quinhentas mil vezes, de muitas e variadas formas ... verbalmente, em prosa ou mesmo em verso.  
Disse-o num poema, há anos, que " escrevo porque respiro ... e escrevo p'ra respirar "...
Irónico portanto, que nestes tempos em que milhões de pessoas pelo mundo, lutam em camas de hospitais p'ra respirarem ... eu queira aqui, neste meu canto, respirar escrevendo, e o não consiga, vezes demais ...

Adorava ter histórias interessantes para contar além das banalidades duma vida cinzentona.
Adorava ter sido uma pessoa sem raízes ou amarras, e ter tido coragem p'ra defender convicções ... que dessas mesmo, sempre duvido.
Adorava ter tido a força e a determinação, só que fosse de um bocadinho dos sonhos que sonho ... sem sair daqui, desta cadeira, essa sim, que parece ter cavado raízes neste chão que piso.
Adorava ser crisálida de borboleta promitente, ou mesmo pena de gaivota livre e solta, em céus sem fronteiras.
Adorava ter a esperança da árvore despida, que trepa ao firmamento, e sabe que se vestirá de verdes esplendorosos, assim que a Primavera espreite.
Adorava ter sido alguém neste mundo, além de mero passageiro de malas às costas em estação vazia, e  que olha o comboio lá longe, dobrando a esquina ...
Adorava ... mas não sou !  Nunca fui.  
Nunca arranquei da vida que me foi escrita à nascença.  Nunca enfunei velas p'ra valer, mesmo com ventos de feição.  Sempre me deixei aprisionar, e estendi os pulsos p'ra que a vida me algemasse ...

Pus no mundo talvez, aquela borboleta que conseguiu ganhar as asas que eu abortei.  Pus no mundo talvez, uma cópia carregada da utopia que me alimentou.  Pus no mundo alguém que transporta em si a coragem e a fé que eu não tive, de dar o murro na mesa, de virar o rumo e a estrada para o lado em que acredita que o sol nasce em cada manhã ...
De ter a esperança, com que o tempo justifica a caminhada ... 
Ainda !...

Mas eu ... eu não fui além disso.
E eu sei do sofrimento e do cansaço de quem esbraceja nas ondas, com a praia ainda distante ...
Eu sei  do descolorido de dias tão cinzentos e frios como estes que me atravessam a alma.
Eu sei da mesmice de mim própria, frente a um "espelho" dia a dia menos generoso.  
Sei que o que andei já não tenho para andar, e também sei que o que tenho para andar se não compadece da idade do coração e da alma.
Porque essa, recusa o determinismo dos dias e recusa a tirania dos tempos.  Essa, põe-me uma mochila de sonhos nas costas, e leva-me madrugada fora para lá, para o lugar onde as pernas não me carregam mais,  mas para onde a vontade, ganhando esta nuvem que aqui passa, seguiria de boleia até ao infinito ... além, onde mora o arco-íris ...

E assim completaria a travessia !...

Anamar

" PENSAMENTOS SOLTOS "

 


Hoje amanheci azeda.  Ou melhor ... mais azeda, se possível.  Tão cinzenta quanto este cinzento escurecido aqui por cima, onde só algumas gaivotas esparsas, parecem não se entender com os caminhos do céu.

Para andarem por aqui, é porque,  lá longe, nos lugares que não vejo e adivinho, o senhor das algas e dos limos, das areias e dos rochedos, deve estar irritado !

É sábado, de mais um fim de semana chuvoso, com vento frio e desabrido agitando a última folhagem caduca, do plátano das minhas traseiras.  É quase noite e as gaivotas já foram.  Significa que mais um dia igual, está a chegar ao fim.
Neste momento da vida, já não sei das horas, dos dias, quase dos meses ...
O ritmo diário repete-se numa sinestesia incontrolável.  Os sons, as cores, os cheiros e todas as outras sensações primárias fazem uma mescla difusa e indistinta, dentro do nosso ser.  Está a criar-se em cada um de nós, um adormecimento doente, uma anestesia egoística, uma indiferença injusta ...
Deixei de perseguir notícias.  Vejo por uma única vez um telejornal diário.  Não é que aprenda grande coisa ... apenas não quero sentir-me totalmente desinformada.
Sei vagamente que os doentes que ocupam camas de intensivos já vão nos novecentos, creio.  Sei que existem estirpes mutantes do vírus assassino, para todos os gostos ... As que preferem gente jovem e as que dizimam os velhinhos.  Sei da prevalência também, dos que no meio da tabela, começam agora a  preencher totalmente, as camas dos hospitais.
Oiço as ambulâncias que caminham para o Hospital, aqui relativamente próximo ... sei que mais próximo ainda, em terrenos da Academia Militar está instalado um contentor frigorífico com vítimas que aguardam vez nos crematórios, em regime "non stop" ... e também sei que não há uma só vez, daquelas que me levantam durante a noite, que de imediato eu não pense em quantos terão dado, nessa mesma noite ( em que o conforto da minha cama me aninha ), o seu último suspiro ... e quantos mais não verão sequer a luz da madrugada a fazer-se ...

Isso tudo, eu sei.  Mas sou-vos totalmente franca : a crueza dos números, a dureza da dimensão da desgraça, a sensação do sufoco inultrapassável, sentidas há tempos atrás ... já não me mexem.
Eu sei do cansaço que me tira o norte, sei da aleatoriedade da existência, por cada dia.  
Comigo, com os meus, com os amigos ... com os conhecidos.  Mas, ou já não tenho robustez psíquica, ou já não acredito em finais felizes, ou já ganhei uma imunidade de compaixão, contra quase tudo !

Tantos dramas que se vão conhecendo nestes tempos de agrura, de tantos nos despedimos sem nos despedirmos, que estranha sensação de fuga permanente experimentamos !...
Fuga do que não se vê, sabe-se e pressente-se.  Fuga da sombra, fuga dos outros, barricados em permanência que estamos, como em leprosarias inventadas !...
E é uma prova de força por cada vinte e quatro horas que ultrapassamos.  É um teste de sobrevivência por cada dia seguinte que alcançámos com sucesso e segurança.  É um desafio anónimo ganho, de superação individual, por cada semana que o calendário vai derrubando, continuando vivos !...
Acredito que nós, os desta faixa etária, a minha, em que nos resta apenas olhar, em que nos resta apenas pensar, por cujas cabeças passa de tudo porque de tudo já passámos nesta vida ... e porque o lugar que nos cabe é o da rectaguarda, o da espera e não o da acção ... sujeitos passivos que somos, no último quartel das nossas existências ... acredito, dizia, que suportamos ainda mais penosamente, esta dolorosa e incerta travessia. 

Afinal, não somos mais o homem do leme desta embarcação em mar encapelado, não somos mais os timoneiros nem sequer dos nossos destinos, não somos mais os decisores de coisa nenhuma, porque nada depende de nós, e nada nós podemos objectivamente determinar, acautelar ou solucionar.
Não nos protege a adrenalina dos que nem tempo têm para pensar.  Não nos favorece sequer, o excesso de tempo inútil e vazio em que se resumem os nossos dias, em que até as brincadeiras com que nos mimávamos no início da tragédia, já surtem efeito ...
Apenas ( e já faremos o necessário e o suficiente ), podemos e devemos, sem nenhuma garantia antecipada contudo,  tomar conta da nossa protecção individual, porque protegendo-nos, estaremos também a proteger a sociedade da qual fazemos parte, estaremos também a proteger os que diariamente, nas linhas de fogo, se dão por inteiro além do humanamente possível, estaremos a dar uma nova chance a um novo amanhã ... porque quero acreditar ... há-de haver AMANHÃ depois da Covid !

Anamar