Mostrar mensagens com a etiqueta Reflexões. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Reflexões. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

" A MARCHA DOS DIAS "


" Quem nos faz novos, são os velhos ... e quem nos torna velhos, são os que vão partindo"... 

Mais ou menos foi esta a frase ou pelo menos o sentido da ideia que li, algures, escrito também por alguém cuja autoria já não consigo reportar.

A correcção do pensamento exposto é duma assertividade absoluta que contudo escapa quase sempre à nossa reflexão.  Poucas vezes, ou nenhumas, pensamos que nas nossas vidas nos sentíamos jovens, novos, esperançosos e com horizonte, enquanto tínhamos uma "linha da frente" que ocupava a prioridade dos lugares de partida.
De facto, enquanto a fila à nossa frente, largamente recheada ia caminhando com a lentidão desejável, não nos sentíamos "em perigo". Afinal, porque desígnios absurdos do destino haveríamos de saltar lugares, desrespeitar a ordenação ditada, antecipar ilogicamente o expectável ??!!
Éramos então jovens, quando os pais, os tios, os avós, às vezes até os bisavós, respondiam à chamada por aqui.  Éramos novos, não cabia nas nossas conjecturas sequer, a suposição que poderia ser subvertida a chamada "ordem natural" das coisas ...

E o futuro ... porque existia muito futuro então, com mais de dois terços para andar contra apenas um terço já percorrido ... espreitava risonho, sem demais sustos, medos ou mesmo preocupações.
Era o tempo dos sonhos, dos projectos, das ideias fantásticas em apostas de caminhos bem sucedidos.  
É o tempo dos amores, das emoções avassaladoras, da entrega sem restrições, em dádiva total, acreditando, sem nuvens a escurecer o céu ...
Era o tempo do valer a pena, o tempo em que a energia e a disposição nos emolduram os dias, os tempos em que para cada preocupação ou dificuldade, parece existir ao virar da esquina uma solução satisfatória, e em que o cansaço não nos desarma ... nunca !
Somos novos, o timing é agora, a esperança ilumina-nos a alma e somos craques no salto de obstáculos ...
Acreditamos que tudo tem solução, tudo se ultrapassa ... claro que com mais ou menos trabalho e dedicação obviamente, mas em que nada nos parará ...

É a Primavera da vida.  Manhãs radiosas, promissoras, em que de tudo somos capazes, em que parece haver uma possibilidade ilimitada para as realizações que perseguimos, pessoais, familiares, profissionais e outras ... Em que acreditamos ... fácil, fácil ... claro que somos capazes ... porquê não ??

E assim, com aquele ímpeto, aquela aposta, aquela alegria com que despertamos em cada manhã, saltamos da cama com a determinação de vencer mais uma etapa, mais uma prova ... Não é hoje, é amanhã ... não é agora, será mais tarde ... mas lá chegaremos, afinal há tanto chão para andar !...

Só que os dias passam céleres, os anos correm depressa demais, a fila que era compacta começa a desfalcar-se ... para desgosto nosso.  Partem os avós, partem os tios, depois os primos mais velhos ... partem os pais ... partem os primeiros amigos, os vizinhos que nos compunham o quadro relacional diário.
Começa a haver demasiadas ausências de resposta à chamada ... demasiados lugares vazios ...
"Mau ... o que é isto "? Como não demos por isso, distraídos que estávamos ?!...
Por cada um que sai, outro dá um passo em frente ... E lá vamos nós, continuando na engrenagem ...

A casa envelhece, as pessoas que cruzamos envelheceram, os corpos, os cabelos, os olhos, os ouvidos, os dentes ... até as mãos, as benditas mãos que eram esguias, elegantes, sensuais no que faziam e no que tocavam, deram em se pintalgar sobre a flacidez que se acentua ... tudo, de um dia para o outro parece, deu em nos fazer negaças e sinais de luzes ... Atenção, confiram o lugar na fila ... analisem os espaços devolutos já, à frente dos vossos pés !!!

E deixámos de ser novos.  Os que partiram encarregaram-se de nos projectar adiante !
Se dúvidas tivéssemos, aí estão as dores, as limitações, o caminhar com esforço, o arfar se o caminho se encomprida, as insónias que se tornam companheiras inseparáveis ... 
Aí está a solidão, a mágoa pelo percebido, o cansaço, a falta de paciência para nos suportarmos e suportarmos os outros ...
E progride um recolhimento interior e uma desmotivação, mesmo pelas coisas que nos mobilizavam, com as quais vibrávamos, nos levavam a sorrir, empolgados quase sempre, não há assim tanto tempo atrás ... parece ...
E percebemos que envelhecemos definitivamente quando já não temos mais ninguém por quem chorar ...

Não será assim com todos, eu sei.  Há pessoas que, felizmente para elas, sempre vêem o "copo meio cheio", plenas de uma positividade permanente, face mesmo às contrariedades. Abençoadas maneiras de ser e sentir !
Eu sou uma pessoa extremamente negativa, dificilmente ultrapasso as barreiras sem um desânimo e um sofrimento atroz.  Reconheço que talvez exorbitando a dimensão dos obstáculos.  Antecipando-os mesmo, o que nada de saudável tem.  Fui demasiado protegida talvez. Tive os caminhos demasiado acolchoados também, o que indiciaria um golpe de sorte no destino. 
Engano.  Bem ao contrário, quem me quis ajudar, ou facilitar a marcha, acabou retirando-me as armas e os mecanismos para a luta e para a confrontação na selva diária que é a vida.  Acabo com menos capacidades a todos os níveis, do que quem aprende a esbracejar, a cair e a levantar, a não sucumbir.
Olho as minhas filhas, artilhadas até aos dentes para enfrentarem com denodo aquilo que lhes boicota os caminhos, que nem sequer têm sido de brisa e água fresca ...
E elas lá vão ... Tem dias que me pergunto como ?!

E assim vamos.  Assim vou... Penitencio-me pelo que escrevo.  Reconheço serem "uma seca" estes desabafos cansativos, enjoados e saturantes, como aquelas pessoas que encontramos na rua e sempre e só puxam do cardápio das doenças e só delas falam ... 
Eu sei que é assim, mas estou "atolada" em sentimentos negativos, colados à pele, os quais não consigo sacudir da alma e do coração, que me esgotam e exaurem inapelavelmente.
Afinal é esta a marcha dos dias ...

Anamar

domingo, 24 de dezembro de 2023

" OUTRA VEZ NATAL "



Ontem 22 de Dezembro, o Inverno chegou.  
Por aqui eu diria que mais parece ter chegado a Primavera, tão risonhos andam os dias, lindos, solarengos, claros.  O céu insiste no azul, um azul diáfano, quase transparente e luminoso, as temperaturas não são severas e a aragem que esvoaça, apenas esvoaça, vaporosamente.
A mata apresenta-se totalmente verde com todos os cambiantes da cor, como se um talentoso pintor tivesse ido por ali aguarelá-la.  As azedas, descaradamente já pintalgam todos os tufos nos cantos e recantos dos caminhos, e os pássaros, lembrando Março, pipilam pelas copas, como se já estivéssemos no mês dos ninhos.  A natureza continua totalmente baralhada ... como não, os animais e nós próprios ?!

Entretanto o Natal espreita.  Vinte e quatro horas nos separam da noite da Consoada.
No ano que agora finda fui passá-la no sul do país com parte da minha família.  Este ano conto passá-la aqui por casa mesmo.  Prevejo uma noite muito pouco animada, pois os três que se sentarão juntos na mesa de Natal têm poucos motivos para festejar. Estamos todos numa faixa etária já meio descolorida.  Depois, as doenças que atormentam uns e os desgostos recentes que atormentam outros, fazem prever uma relativa boa disposição apenas, para o convívio.  Acho que no próximo ano vou implementar uma reviravolta neste estado de coisas, pois isto parece estar mais para velório que para uma confraternização que nos deixasse animaditos.
Ou então vou para o quente da cama, como se nada fosse, e faz de conta que estou encerrada para balanço ...
Afinal, como dizia o meu pai, parece ser um dia igual  aos outros todos ... 
Em viagem profissional, viajante que era, se estivesse mais afastado, por esse Alentejo fora numa época em que as ligações e os transportes não eram fáceis, chegou a passá-lo onde quer que estivesse, não vindo sequer a casa ... Outros tempos ... outras épocas !...
Hoje nada disto parece fazer sentido, pois tudo fica ao virar da esquina.

Com os dias conturbados que se vivem por esse mundo fora em que o Homem parece ter apenas como objectivo de vida exterminar o seu semelhante, eu diria que o Natal já só faz sentido para a criançada, a quem o Pai Natal, cortando os céus no seu trenó, de saco às costas com os ansiados presentes, ainda consegue criar uma ambiência onírica nas suas cabecinhas.
O planeta Terra tão mal cuidado, tão agredido, tão negligenciado, só pode mesmo queixar-se dos atropelos de que é vítima, num crescendo incontrolável. Apesar das pseudo-intenções de contenção dos desvarios provocados, em cimeiras, conferências, encontros, plataformas, movimentos cívicos, etc, envolvendo as altas esferas responsáveis das maiores potências mundiais, o sucesso alcançado nas negociações, é diminuto ou quase nulo.
Sempre, vergonhosamente os interesses económicos, os lobbies financeiros gananciosos e incontroláveis, se sobrepõem às intenções, aos alertas e às tentativas de reposição da sensatez nos posicionamentos mundiais.
A Covid seguida de uma inesperada guerra às portas da Europa, numa Ucrânia tão devastada já, uma nova guerra de desfecho imprevisível no Médio Oriente, mergulhada numa sanha sanguinária como já não esperaríamos ver em pleno século XXI, culminando num genocídio de populações encurraladas pela insanidade dos beligerantes ... atrocidades pelo mundo fora, crimes cometidos aleatoriamente duma forma inesperada sobre inocentes apanhados de surpresa, extremismos e fanatismos religiosos descontrolados levando a ódios e vinganças ... subtraem-nos toda a convicção que ainda pudéssemos ter de acreditar nos valores desta quadra e consequentemente na pureza de coração e na humanidade dos nossos semelhantes.

E este cocktail desalentador e "explosivo", culmina internamente, com um país esfrangalhado, mergulhado em acontecimentos políticos inqualificáveis, uma espécie de  barco  que  perdesse  o  leme e  que  navega  em  mar  alteroso  sem  rota  ou  porto  que  se  aviste ...
Um cansaço !!!

Com todos estes "retalhos" demasiado lúgubres e pesados, me despeço.  Afinal, hoje já é Natal outra vez !! ...

Anamar

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

" INDEFINIÇÕES ..."

 


Quase em tudo na minha vida, queimei etapas, atropelei timings, acelerei processos.  Ou seja, quase em tudo na minha vida, meti as mãos pelos pés numa pressa e numa ânsia de rapidamente virar esquinas e ver mais além, de chegar rapidamente aos horizontes, só para ter mais horizontes, para que o tempo não se gastasse antes dos meus sonhos se consumirem.
Corro atrás do tempo, sempre, sou escravizada por ele, tenho a angústia da falta dele para cumprir os desígnios que persegui e persigo.
Por sorte do destino, ou dos acasos de vida, não me tenho dado mal.  Pergunto-me às vezes, como ?

Sou uma incoerência nata, sou uma utopia além da conta.
Agarro o tempo, mas não aproveito o tempo !  Estranho, isto !...
Nunca usufruo o momento.  Nele, já me angustio com o que vem a seguir, nele, eu já sinto saudade do que ainda não foi ...

Guardo contudo, religiosamente, as sobras, que é como quem diz, as memórias.  Essas já não têm para onde se perder.  Pertencem ao arquivo indelével da mente e do coração.
Nelas me espanejo em dias de repouso, quando o cansaço é muito e a tristeza me toma conta.  Então, entro nelas, como se de um "país de maravilhas" se tratasse, no espanto e no êxtase.  Percorro-as de frente para trás e de trás para a frente, num deleite único e inalienável.  É como se entrasse num mar sem ondas, doce e quente, como as águas de lá longe que busco quando posso ...
São espaços de interioridade, vedados, privados e únicos.  E re-experimento as emoções, as angústias e as mágoas, mas também as alegrias, as conquistas e as realizações.
Mas depois farto-me.  Termino a visita, saio pé ante pé e fecho a porta de novo, até uma próxima, até que um outro dia me amanheça a vontade louca de descer às caves das lembranças e verifique, com alívio, que elas ainda por lá estão.
Às vezes quero remexê-las, tirar-lhes o pó, mudá-las de prateleira, segundo a vontade de lhes pegar ou não.  Outras, abro e franqueio a entrada, simplesmente ... espreito pela talisca da porta entreaberta e nada mais.

E o tempo continua.  Sempre continua ...

E de igual forma me envelheço a correr.  Dei por mim, sem remédio, de um dia para o outro, entre momentos que não preciso, a ficar definitivamente envelhecida.  E espanto-me como não me apercebi, como de repente morreu uma e no seu lugar nasceu outra, que é, de certa forma, uma estranha em mim.  Não sei como foi, não sei quão distraída ou dispersa eu estava que não enxerguei a mutação a ocorrer.
Deve ter sido nos tempos em que deixei empoeirar os sonhos por já não valerem a pena, em que deixei de acreditar em estrelas, nasceres e pôres de sol no meu céu, em que perdi a inocência das grandes descobertas, e em que perdi a vontade de ter vontade de sorrir ...
Possivelmente foi isto.  E nisto, não se volta atrás, nunca se volta atrás, pois o caminho de regresso perdeu-se no nevoeiro.

O desconforto toma-me.  É como se vivesse dentro dum fato que não é meu, dentro duma pele que não me pertence, dentro de uma entidade que não me assenta e desconheço.
Olho-me no espelho e pouco identifico da que fui, busco no avesso e não encontro o rascunho.
E zango-me.  Zango-me com o espelho por não me ter avisado, e garanto a mim própria não voltar a cruzar quem integrou a película que chegou ao fim.
Adoro pessoas resolvidas.  Vou morrer sem o ser.  Mas há pessoas que vivem com certezas, que sabem exactamente com toda a tranquilidade as escolhas que devem fazer, que certificam com igual tranquilidade os caminhos que já pisaram, as lutas que dirimiram. 
Adoro gente sem equívocos, esclarecida, decidida, clarividente ...
Logo eu que sou um poço de interrogações, uma montanha de dúvidas, um trabalho por terminar, uma reflexão por fazer !...
E insatisfaço-me comigo mesma,
Para quando uma pausa no conflito de histórias sem epílogo ?!
Para quando a paz que o fim da turbulência que me assola, me transmitiria ?!
Para quando o fim da inquietude da obra inacabada que eu sou ?! 

Anamar 

domingo, 1 de outubro de 2023

" O CORDÃO UMBILICAL "

 




Não se pode viver a vida dos filhos ... não se pode viver a vida pelos filhos. 
O bendito cordão que cortamos à nascença, sempre vai marcando presença ao longo da vida, estou convicta que, verdadeiramente, na figura materna apenas.
Ouve-se dizer a propósito da relação entre pais e filhos, "mãe é mãe e pai é pai", exactamente reiterando essa ligação simbiótica e inapagável, tatuada pela biologia humana ao longo dos nove meses de gestação.
E tudo aquilo que partilhámos, essa chama vital que assegura a vida da criança até que fisicamente se separa da mãe, vai coexistir a vida toda transmitida por tantos outros cordões, tantas outros laços, tantas outras formas quase irracionalmente inexplicáveis.
A necessidade quase absurda de uma protecção constante que uma mãe sente em relação ao seu filho, o imperativo da sua presença cujas "asas" o defenderiam de todos os riscos, a ânsia de o poupar a todas as adversidades possíveis, chegam, em casos extremos roçando o patológico, a serem doentios.
Na natureza, as mães são defensoras e protectoras inabaláveis das suas crias.  
Assisti há poucos dias na minha viagem ao Quénia, à fúria de um bando de elefantes, encabeçado pela progenitora, na protecção de uma cria que estava ferida.
Racional ou apenas por razões biológicas, contra tudo e contra todos, viramos feras na protecção das nossas ... 

Hoje em dia, a desejada e desejável autonomia dos jovens em relação à casa paterna está objectivamente comprometida, consequência, além de outros factores sociais vividos neste momento, da crise que sobre todos se abate ... na qual ressalta a incapacidade material de se alcançar o legitimo direito à habitação.
É insustentável conseguir-se por aluguer ou compra, um espaço minimamente digno, ao alcance da maioria.  Se se faz face às despesas alimentares e outras do quotidiano, não se consegue de nenhuma forma ter acesso a uma renda especulativa ou à prestação bancária de um empréstimo, ainda que o mesmo tivesse sido alcançado.
Assim, é absolutamente dramático o que muitas e muitas pessoas singulares, ou famílias constituídas, estão a sentir, com o estrangulamento dos seus futuros.
As manifestações sociais multiplicam-se, as vidas hipotecam-se, não se seguem estudos superiores porque não há alojamentos compatíveis para os estudantes que da província acedem às Faculdades ... da noite para o dia, encurraladas e sufocadas, as pessoas caem na rua ...
Há dias, subindo a Av. Almirante Reis em Lisboa, deparei-me, para angústia minha, com sete ou oito tendas, só no espaço de um quarteirão, sob as arcadas de um prédio. Um verdadeiro acampamento em plena capital !... 
A tal, nunca ao longo das minhas já consideráveis décadas de vida, tinha assistido !
As televisões reportam situações idênticas, de pessoas que embora com empregos e respectivas remunerações, não conseguem suportar minimamente as responsabilidades diárias, e por isso dividem com outras em iguais condições, tendas aninhadas em parques ou espaços sem condições dignas de vida ... até que as deixem e não as escorracem para outros poisos. 
É o fim da linha pra muitos nossos concidadãos, é o que lhes sobrou num Estado e numa estrutura social que os marginaliza, os exclui ... porque simplesmente parece não haver mais caminho para andar.
Mães que acabam por entregar os filhos à guarda de instituições, porque o lugar de uma criança não pode ser uma tenda no meio duma rua ...

E depois há também os outros ... os que são despejados do caudal inestancável dos canais de emigração desde os países mais sofridos, e que buscam, numa Europa promissora, o sonho de um futuro, uma vida, subsistência, alguma dignidade e alguma paz ...
Vertidos das guerras, da violência, do vazio de horizontes, do abandono, da fome e da miséria, mais sós do que nunca, entregues à sua sorte, à exploração, às máfias e ao sofrimento, empilham-se às dezenas enlatados numa precariedade inimaginável, em quartos miseráveis, imundos, onde o sistema da "cama quente" é frequentemente o que têm ...
E são de facto uma fauna que pulula nas nossas cidades, bem aqui ao nosso lado, em olhares que a esperança há muito abandonou ...

Também  eles  têm  ou  tiveram  mães ... lá  longe,  numa  terra  que  já  só  deve  ser  uma  memória ...

Como aquele rapaz de vinte e oito anos, silencioso, de olhos tristes e vazios, que pediu para comer mas que teve vergonha de entrar no supermercado comigo, e preferiu esperar na rua.  O seu país, a família, a dor e a guerra, lá ... A dignidade também ...  
Cá, até o trabalho que tinha lhe falhou há um mês ... Tinha fome ...

A angústia é avassaladora.  Sabemos o hoje, nunca o amanhã foi tão incerto ! O viver tornou-se um pesadelo, e mesmo investidas do "super poder" milagroso das mães ... não podemos viver a vida dos filhos ... nem viver a dureza da existência pelos filhos !!...

Anamar

sábado, 12 de agosto de 2023

" LIVROS DE HISTÓRIAS ..."


A vida é um livro que, desfolhado, sempre conta uma história.  
É a história de vida de cada um, mais ou menos simpática, mais ou menos doída, mais interessante, mais difícil, com final feliz ou com um fim conturbado ... ou mesmo parecendo não ter fim, tanto o cansaço que arrasta ... tal qual o nosso livro de cabeceira, que umas vezes é lido na ânsia do conteúdo, outras vezes é "mastigado" e não nos sai das mãos, por enfadonho, cansativo, desinteressante ... chato !

A vida sempre começa pela infância, quase sempre os melhores anos, leves, despreocupados, em que os olhos se esbugalham face a tudo o que de novo se nos depara;  quase tudo é encantamento, porque é desconhecido, é experimentado, é história, é sonho ... quase tudo é feliz e alegre, como os contos, que o pai ou a mãe nos liam ao deitar.
Começamos a entender o mundo, começamos a olhar as coisas que nos cercam, começamos a experimentar, a registar, a observar, a saborear ... a concluir.  Dizem que as nossas primeiras memórias remontam aos quatro, cinco anos.
Costumam ser tempos felizes e promissores.  Deseja-se que de facto, o sejam !

Crescemos e as responsabilidades, as primeiras preocupações a sério, já as primeiras angústias, já as primeiras tristezas, crescem connosco.  
São os anos da aprendizagem, os anos dos bancos da escola, onde começamos a integrar-nos em grupo, onde as brincadeiras forjam reais amizades, onde convivemos e socializamos já com uma visão mais real e objectiva do mundo que nos cerca. 
Rumamos à adolescência e novos "mundos", novas realidades, novos caminhos, sonhos, objectivos e metas começam a desenhar-se. 
É período de outras descobertas, é o crescimento e suas dores, a tomada de consciência do nosso papel na sociedade, a maturidade a exigir-nos a seriedade inerente ao avanço dos anos.  Damos os primeiros passos p'ra valer, nas vidas profissionais, procuramos corresponder sem nos defraudarmos nem defraudarmos as expectativas em nós colocadas.
Na minha geração tacteavam-se os primeiros projectos familiares independentes.  Estudos terminados, iniciava-se a vida activa, e o encaminho sem fugir muito à regra, seria casar, ter filhos, continuar a senda ...
Fazia parte da engrenagem para que nos programavam, e não se questionava muito o porquê das coisas.  Era assim e ponto, na generalidade.
Eram poucas as pessoas, eram pouquíssimas as mulheres que "avistavam" novos horizontes e se permitiam ao voo.
Era a família que ficava, eram as idades do pai, da mãe a avançarem, e a separação era assim algo um pouco contra-natura, como se outro cordão umbilical se fosse de novo romper.
E se desse mesmo, ficávamos ... íamos ficando e encurtando o tamanho dos sonhos sonhados.  Afinal, era como que um pré-destino inevitável a cumprir ...

Tínhamos filhos ... claro, tínhamos filhos, e começava tudo de novo.  Agora em prol deles, sempre prioritários nas nossas vidas.
Passámos a sofrer as suas dificuldades, ficámos a viver os seus sucessos e os seus desaires, ficámos a projectar-nos nas suas vidas, literalmente "inchando" por cada êxito, chorando em silêncio por cada escolho dos seus caminhos, querendo que fossem mansos, tentando afastar-lhes os pedregulhos ...
Varremos quase sempre os nossos sonhos um pouco para baixo dos tapetes.  Às vezes, retirámo-nos mesmo o direito a sonhá-los ... Ficámos muitas vezes prisioneiros de solidões acompanhadas ...
E se o nosso percurso não teve acidentes de maior, estaria desenhado, eu diria, até ao fim das nossas vidas, no dia em que o tal livro dobrasse a última página !

Mas às vezes não era tão linear assim.  Às vezes, instalava-se no nosso caminho, um cerrado de "nieblas" e mau tempo.  E dissipá-las e andar adiante, revelava-se uma estóica aventura.
Escolhi ficar só com mais de meio século vivido.  Entendi que este presente que me era oferecido por cada dia que se iniciava, agora era mesmo meu.
E foi como se me tivesse aventurado em terreno baldio e desconhecido, entregue exclusivamente à minha sorte, com todos os custos inerentes, tendo que pagar, se fosse o caso, o preço que me fosse devido.
E quase voltei às primeiras páginas do livro, reescrevendo agora uma outra história.
Agora as cores já só podem ter os cambiantes laranjas, amarelos e os ocres do Outono.  Os verdes risonhos, os azuis de céus límpidos e a mescla dos borbotos a despontar, são só desperdícios largados lá atrás...
Mas a saga continua e quando os tempos de mornidão pareceriam adequar-se, quando a paz almejada e esperada pareceria óbvia e legítima ... quando inevitavelmente pareceria não haver muito mais história a contar ... até porque o cansaço de fim de jornada já se anuncia, eis que outras páginas exigem letras e frases, e parágrafos e ideias ... e tudo se impõe e regressa ao princípio, só que agora já não sou eu a protagonista das histórias, e só que agora pouco já posso fazer para dar o rumo escolhido e o final desejado às histórias que fosse contando !...

Anamar 

terça-feira, 30 de maio de 2023

" DA VIDA E DA MEMÓRIA "

 


O dia foi de sol e calor.  Ironicamente, na véspera, terça-feira 23 fizera um tempo agreste, com chuva e trovoada.  Um tempo de recolhimento, diria eu.
Mas a quarta-feira, cinco dias depois que a Emília nos deixara para sempre, a manhã era azul, florida, radiante de luz.  O tempo parecia querer despedir-se dignamente de alguém que fora embora cedo demais. 
O tempo parecia querer prestar as honras devidas a quem, injustamente acabara de nos deixar .

Era um "ser de luz"... Seja isso o que for, sempre assim a recordarei.  Uma mulher que partilhou a sua vida profissional comigo, colegas da mesma escola para mais de trinta anos, embora em áreas programáticas diferentes.  A Emília leccionava História, eu, Física e Química.
Foi uma mulher de conciliação, de concórdia, de humanidade, com uma bonomia estampada no rosto, sempre iluminado, sorridente, feliz. Tinha a doçura de um sorriso para todos, e com todos.
Uma postura que sempre manteve, de educação, de simplicidade, de verticalidade, de isenção, de competência, fez dela uma "senhora", pessoal e profissionalmente reconhecida pelos seus pares e por toda a comunidade  escolar.  
Sendo, como dizíamos, da geração dos professores mais antigos da escola, sempre foi uma figura de referência, uma personalidade consensual.

A Emília nasceu no Brasil, em S.Paulo há setenta e seis anos acabados de completar.  Tendo-se licenciado em História pela Universidade de Coimbra, passou, como professora Coordenadora da Casa da Cultura Portuguesa na Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza no nordeste do Brasil, um período da sua vida que sempre, pela forma como o referia, se pressentia ter sido muito feliz, saudoso, e realizado.  
Os colegas e amigos com quem privou então, também o referenciam como "tempos fantásticos, irrepetíveis, de memórias indefectíveis".
Por essas paragens a Emília deixou família e amigos ímpares, a quem uniam laços de cumplicidade,  afecto e uma ternura que transpareciam das suas palavras e recordações.
A cultura brasileira, os seus escritores, poetas e artistas sempre a acompanharam ao longo da vida; a vida social e política da sua terra, nunca foram ignoradas nem a elas foi estranha, em circunstância alguma.
Coimbra, sua referência de juventude, mas também Itália que conhecia profundamente de norte a sul e que amava de coração, Grécia, Turquia e tantos outros destinos que privilegiava nas viagens que realizava, foram marcos na sua vida. 

É fácil elogiar-se quem já partiu ... quem já não existe no nosso plano terreno.  Costuma dizer-se que toda a gente passa a ser de excelência, se já nos tiver deixado.  Infelizmente o ser humano tende a pautar-se dessa forma na avaliação dos que já não têm voz...
Em nada disso a Emília se enquadra.  Por mérito, valor, prestação de vida, partilha, sentido de justiça ... humanidade, mas também humildade, disponibilidade e amor ao seu semelhante, fizeram dela um ser GRANDE ... e por tudo isso é da mais elementar justiça e não mais, que eu aqui lhe devote o meu profundo reconhecimento, a minha gratidão e reitere o privilégio que tive, por ter sido merecedora da sua amizade em vida, e pelo legado deixado pela sua memória !...

Até sempre Emília !  Talvez por aí nos voltemos a cruzar.  Até lá, descansa em paz !!!

Anamar

terça-feira, 11 de abril de 2023

" VIDA "


Tenho pra mim que normalmente não dá bom resultado chafurdar no que a vida foi plantando lá para trás.  Fotos, escritos, papéis, pequenos objectos ... enfim, tudo o que teve significância e não tem mais, ou pelo menos não tem aquela que teve. 
Contudo, remexer em tudo isso não é mais do que uma incursão no tempo, que quase sempre nos deixa a perder por representar na maior parte das vezes, épocas já desfocadas, descontextualizadas, de memórias inquinadas, creio, pela distância e pela erosão que esse mesmo tempo nos foi deixando na alma e no coração.
Quando tento este exercício insano e desaconselhado, quase sempre me arrependo depois,  amargamente.  É como aquela velha constatação de compararmos o nosso estado de espírito antes e depois da ida a algum lugar que amámos.  À ida tudo é promissor, é como se fôssemos reencontrar tudo o que deixámos, exactamente nos lugares e no contexto em que deixámos ... para depois acabarmos  percebendo a dor da fraude sentida pelo tamanho do equívoco em que embarcámos ... por tontice, ingenuidade ou mesmo insensatez !...
E de nada valeu a pena ... de nada valeu o estrago e o amargor deixado, afinal !

A Páscoa passou. Ontem foi o domingo que encerra as celebrações.
Hoje na mata tudo continuava igual.  Os pássaros que elaboram verdadeiros e emocionantes concertos de cantoria, ou não estivéssemos numa Primavera generosa de dias bonitos, temperaturas elevadas e flores ... miríades de flores engalanando os arbustos em profusão ... não sabem que a Páscoa passou, não sabem que ontem foi Domingo de Páscoa, ou sequer que foi domingo ...
O que interessaria a um pássaro saber qual o dia que vivencia ?  A natureza, a vida, a sequência simples dos dias e das noites, o nascer e o por do sol, o dormir e o acordar, o instinto apenas, a orientá-lo no caminho da sobrevivência, é quanto basta.  Ele chega, cumpre o destinado e parte.  O seu desígnio biológico justifica-lhe a estadia ... não mais !
E nós ?  Nós "somos" ... hoje.  Amanhã já só dirão que "fomos"...
Também nós chegamos, cumprimos o destinado e partimos.  Partimos com a indiferença do Universo.  Partimos sob a pequenez, a insignificância e a irrelevância da nossa dimensão ... menos que um grão de areia no contexto da existência ... Partimos com o silêncio indiferente de tudo o que nos rodeou e não rodeia mais  ...
E vamos ainda "viver" por uns tempos ... se as memórias forem longas.  Depois, "fomos" apenas ...
Fomos aquele rosto imobilizado e gravado na película que ficou na moldura daquela mesa ... fomos aquele texto que escrevemos e ficou perdido no fundo da gaveta, aquelas palavras que expressámos, cujo eco também se vai esbatendo ... fomos o riso que talvez alguns ainda lembrem por uns tempos, o dichote e o humor sarcástico que nos acompanhava ... 
Depois fomos o que fizemos ... se fizemos alguma coisa que ficasse ...
Não mais !...

A Teresa olha longa e pesarosamente o Chico, que se arrasta, cujas patas não suportam o peso ou os movimentos do corpo.  O Chico que come deitado e que permanece deitado todo o tempo, ainda que olhe cá de baixo, do chão, o céu azul que a vidraça acima dele lhe desvenda.  O Chico que já só salta para os lugares que eram seus, em memória ... em desejo ... em sonhos ... porque de seu, o Chico vai tendo cada vez menos !
O Chico agora mia quando está só.  Não quer afastar-se de mim.  Não era hábito.  E esconde-se numa caixa que, como uma toca dissimulada e escura, o aninha.  O Jonas cheira-o insistentemente.  Será que a morte tem cheiro ?! Não sei.  Mas a sua presença por aqui, anuncia-se e assusta ...
A Teresa olha longa e pesarosamente e diz : " O Chico está quase a ir para a estrelinha "...

Hoje também, há cinco anos atrás a minha mãe buscou outra dimensão .  Mais uma estrelinha  que enfeitou o nosso firmamento.  Também de lá a Teresa garante dialogar com ela ...
Só que, lamentavelmente, somos crianças por tão pouco tempo nas nossas vidas !...

Partiu, partiu discretamente como sempre foi a sua vida, partiu sem queixume ou estardalhaço no silêncio íntimo dos seus dias ... partiu com a noção absoluta do descaso com que o ciclo da existência nos trata ... uma simples e anónima partícula da poeira em que se transformou ... matéria física que somos ... 
Não mais !

E cada dia que passa me faz mais falta, cada dia que passa lhe sinto mais e mais a ausência, cada dia que passa a minha orfandade se torna mais e mais absoluta e gigantesca !  
Cada dia que passa o silêncio que deixou me fere ensurdecedoramente ...  

E a vida é isto.  Viver é mais ou menos isto ...
Não mais !...

Anamar

segunda-feira, 20 de março de 2023

" CURTAS ... "



Tanto me lembro da minha mãe ... a propósito de tudo e de nada ! Uma frase, um pensamento, um ditado, sim, porque a minha mãe era uma mulher de adágios.  Colocava-os nas ideias e nas frases, com toda a propriedade e como uma menina travessa, meio comprometida, como quem fez uma pirraça, ria e dizia a propósito :   " Vocês um dia vão lembrar-se muito de mim ! " 
E não é que me lembro mesmo ?!... Mais ... lembro o seu ar encabulado e dou por mim também a ser uma mulher de provérbios ...
Somos alentejanas, província de características muito próprias e particulares.  Com vivências únicas, acredito, com estares bem distintos, com sentires talvez diferentes ;  até na linguagem, além do sotaque e da  entoação cantada, se consegue pressentir essa singularidade.

Fisicamente reencontro no olhar que o espelho me devolve, a expressão dos olhos dela e tal como ela, nas últimas etapas da vida, as lágrimas se me soltam sem censura ou auto-controle.  Fácil, fácil, me emociono com qualquer coisa, sobretudo se forem coisas que não se explicam, só se vêem, sentem, percebem ... chegam e tomam-nos de assalto, do nada, num piscar de olhos.
É uma borboleta amarela que volteia à minha frente pela mata, como se me abrisse o caminho e me convidasse a segui-la ... é o olhar terno e desprotegido de um animal entregue ao seu destino, é o silêncio encantado duma vereda onde o sol faz negaças p'ra entrar ... é  o  chilreio, o  pipilar,  o  trinado e o  assobio  das  aves  que  demandam  poiso  nas  copas altaneiras, ou o grasnido das gaivotas que aqui  por  cima  bailam  na  aragem  que  corre ...
É o sol que se põe de novo, é o rasto do avião que risca o céu e conta histórias de lugares distantes ... é o  som  da  brisa  que  vai  e  que  vem,  ou o  som  do  ribeiro  que só vai,  já não vem ...
Enfim ... o coração parece ter-me subido aos olhos ou ao pé da boca, como soi dizer-se.  
Um inexplicável nó, pouco previsível e justificado aperta-me a garganta, a voz embarga-se e a emoção toma-me de jeito ... e pronto, lá vão as lágrimas que rolam rosto abaixo... tal como a ela ...
Estou frágil, sinto-me com as resistências tombadas, ameaço tombar junto com elas ...
E afasto-me de todos, isolo-me o quanto posso, fujo do convívio ... não tenho a mínima margem de capacidade, paciência ou sequer vontade para abrir a alma, para franquear o espírito, para escancarar o coração.  
Não vale a pena.  Cada ser humano tem só por si, cada vez mais nos tempos que correm, a difícil empreitada de gerir os seus próprios destinos, a tarefa hercúlea de desembaraçar o seu próprio novelo, tem o que chegue para se ocupar, afligir e enlouquecer com todas as pirraças e todas as jogadas do seu próprio tabuleiro de xadrês ... para que possa, nem por instantes desviar o seu próprio foco para as maleitas do vizinho.  As pessoas vivem perdidas nos seus redutos, já ninguém ouve ninguém ou é capaz de percepcionar a invernia que vai ali ao seu lado.
Não há partilha, não há entendimentos cúmplices, as linguagens são meras conversas de surdos ... E depois, não há tempo, obviamente não há tempo ... e também já nem adianta !
Fica um vazio tão doídamente grande quando a vida, o afastamento, o tempo ... as vicissitudes que nos atropelam, levam pessoas próximas a desconhecerem-se, a perderem-se pelas esquinas, a virarem páginas, a silenciarem tudo o que era, o que foi, a zerarem histórias, emoções, momentos, risos, afectos ... sentindo a total e absoluta incapacidade de reverter as vivências.
É como se, em vida, assistíssemos e vivêssemos infinitas e irreversíveis partidas.
Parece que a nossa vida é agora uma mera sobreposição de despedidas ... nada mais !  Nada já se recupera, porque nós mesmos já partimos do nosso caminho, faz tempo !

Dou por mim com uma saudade sem fim de realidades que foram.  Os tempos intermináveis da Covid foram insensíveis coveiros nas nossas existências.  Foi um pouco assim como o "day after" de
uma catástrofe acontecida, um terramoto, uma cheia, uma guerra ... em que a realidade que nos acolhia, num virar de página se descaracterizou completamente.  Os sítios já não são os mesmos, as pessoas já não estão lá, as rotinas dos momentos vividos esvaziaram de significado... Como se o mundo tivesse, num abrir e fechar de olhos, sofrido um varrimento inelutável e sem volta !
Foi como se tivéssemos desaprendido de viver, de falar, de estar.  Agora, aquilo que queremos parece ser apenas paz, silêncio, um canto para pousar a cabeça.  Tudo o mais é cansativo, não nos gratifica ou acrescenta ...

E pronto, este é o meu estado de espírito neste momento... uma espécie de marasmo, uma rotina entediante, uma coloração de cores mortas sem os tons quentes e provocadores dos momentos felizes ...
Um desinteressante e fastidioso desfolhar de horas, dias e meses ... cinzentão, chato e cansativo !...

Anamar

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

" BALANÇOS ... "

 

Balanços, balanços ...

Por que raio somos impelidos a fazê-los, só porque o ano termina, se afinal "ele nasce outra vez" ... como  diz aquela maravilhosa e eterna melodia natalícia que todos conhecemos ?!

O dia trinta e um de mais um Dezembro que como um sinal de trânsito determina o fim deste trajecto de trezentos e sessenta e cinco que por aqui se foram escoando, é simplesmente mais uma marca que o ser humano inventou, como se o tempo não fosse um todo contínuo que temos a mania de fatiar ... anos, meses, semanas, dias ... horas ...
E dessa forma contabilizamos a vida, dessa forma despejamos nos nossos corações baldes de angústias, de ansiedades, de dúvidas e incertezas !
Dessa forma, criamos metas nas nossas cabeças, espreitamos fins de linha, receamos a aproximação do destinado, baseados em lógicas de esperança de vida, de estatísticas, de inevitabilidades ...
Como se fosse assim tão linear, o destino de cada um !...

E chego exactamente aqui com uma sensação de novelo de lã embrulhado nas pontas que se desgrenharam, com a sensação dum coração mais esburacado que o coador do chá, e com o cansaço de quem arrasta grilhetas atrás de si, pelos caminhos da vida.  Chego com a exaustão dum vazio irremissível, com o peso irresolúvel desse mesmo vazio ... ( Quem disse que a ausência de matéria não pesa horrores ??? )...
Quando estamos na idade produtiva, quando os planos e os sonhos esbracejam para terem espaço, e falta tempo e condições sobretudo materiais para os concretizarmos, acreditamos convictamente ... e ansiamos ... que, lá mais para a frente, há-de sobrar tempo, há-de haver paz, disposição e vontade, há-de haver disponibilidade emocional para se cumprir um percurso sereno, tranquilo, despreocupado e despido de angústias, aflições e incertezas destruidoras ...
Lá mais para a frente, será o tempo de recolectar, de usufruir, de saborear sem sustos ou sobressaltos, a nova qualidade de vida que nos é devida, afinal.
O Outono, também da existência humana, deverá ser um período de acalmia, de benefício, de paz ... o período da colheita do semeado em altura própria ...
Pois bem, chego exactamente aqui, como disse, com a sensação de ter feito quase tudo errado na minha vida, com a sensação de ter sido uma péssima administradora da mesma, com a desconfortável angústia da incapacidade de conseguir passar quase sempre a minha mensagem, clarificar a minha linguagem, traduzir com transparência tudo aquilo que quis transmitir, mostrar-me na total nudez da minha essência ... Com todos ... filhos, amigos, amores ...

Enfim, chego exactamente aqui carregando uma frustração sem tamanho, um desmesurado amargor no coração, uma sensação de derrota, de erro, de perda de tempo, de ineficácia, de fracasso ...
Não fui, simplesmente, capaz, hábil, convincente ... Quase tudo terá, portanto, sido em vão !...

Balanços ...
Antes de começar a escrever, sem uma linha norteadora, sem um assunto previamente equacionado, sem um propósito perseguido  ( apenas com uma sensação de profundo desânimo, cansaço e tristeza dentro de mim ), havia-me dito que balanços, não !  Bastava a penitência que me atribuo de escalpelizar o meu caminho ... bastavam as mãos vazias em colheitas que não deram frutos ... bastava a perda da ilusão e da inocência face ao que poderia ter sido e não foi ...
E afinal ... acabei incontornavelmente presa ao emaranhado dos seus inevitáveis tentáculos, em mais um ano que se está a acabar dentro de poucas horas.
Os balanços, afinal, sempre acabam dominando a mente humana !

Anamar

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

" REFLECTINDO ..."



 

A hora mudou e com ela mudou definitivamente o rosto da estação que vivemos.  O sol põe-se às cinco e meia, o céu está feio, cinzento, ameaçador de chuva, que aliás tem caído com intensidade e alguma frequência.
Verdade que precisávamos dela como garante de sobrevivência, digamos, porque a seca longa e severa fazia perigar o futuro de plantas, animais e do próprio ser humano, alterando o nosso quotidiano com restrições sérias na utilização da água mesmo para as necessidades básicas, sobretudo no interior do país.

Assim, anoitece mais cedo e o nosso fototropismo vira-nos consequentemente mais e mais para dentro de nós mesmos, impulsiona-nos mais e mais para um natural intimismo, uma sonolência parda e mansa, como se a Natureza e tudo à nossa volta fechasse para hibernação ... para paragem, em que tudo parece desacelerar ...
Há um silêncio que impera, uma cumplicidade connosco mesmos que nos conduz a uma introspeção ainda mais profunda, num convite à análise e à reflexão.
Estou mais ou menos nesse registo.  Revisito tempos, pessoas, momentos ... passeio-me pelos pensamentos e pelas memórias, interrogo as dúvidas, procuro respostas ... frustro-me com a ausência das mesmas ...
Há alturas na vida em que o ser humano parece desconhecer razões óbvias, sentimentos inquestionáveis, palavras insofismáveis ... em que o avesso de cada um emerge, submergindo até o que nunca seria submergível ...
E há alturas na vida em que consequentemente interrogamos o que pareceria  desnecessário  ser interrogado,  porque  era  assumido,  certo,  verdadeiro,  seguro ... intocável !  Não era matéria passível de ser duvidosa ...
Tal como há valores nas nossas existências que não nos faz sentido questionar, porque são valores assumidos integrantes da nossa essência, "ad eternum" norteadores dos nossos caminhos, algo que contra chuvas e tempestades temos como inabalável. Algo que á a nossa verdade, escrita, assimilada, entranhada debaixo da pele.
Não nos interrogamos por exemplo sobre o amor filial, sobre o amor paternal ... não nos passa pela cabeça pôr em dúvida os laços afectivos no seio duma família estruturada, ainda que nem tudo sejam águas mansas ou os ventos soprem de feição, sempre ...
É que são sentimentos tão testados já ao longo das nossas existências, valores tão postos à prova já tantas vezes ... barreiras vencidas a duras penas ... mas ainda assim ultrapassadas ... que, pelo menos a mim repugna sequer colocar como frágeis, quanto mais duvidosos ...
Os escolhos podem ferir os pés ... às vezes ... mas não há lugar para sequer o questionarmos ...
Como "soi dizer-se" ... estamos lá e não "abrimos" !...

Mas o ser humano é distinto dos seus pares, cada um tem a personalidade, o estar, o sentir e consequentemente o pensar e o agir diferente do outro.  E por tudo isso eu convivo muito mal com posicionamentos que não entendo, com posturas que me violentam, me desgastam e me esgotam.  Com posturas que me confrontam em julgamentos descabidos, avaliações sumárias que injustiçam aquilo que eu sou, que sempre fui e serei ... como se devesse ocupar um qualquer banco dos réus, como se o que defendo, digo e reafirmo, não valesse nada, como se eu fosse uma qualquer "contadora de histórias"...

E devendo já ser imune a tudo isto, ao contrário magoo-me profundamente, sinto-me defraudada, afasto-me e desaposto. 
E o cansaço é o meu sinal exterior de abandono !... 

Anamar

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

" OS MEUS SILÊNCIOS ..."



Quase sempre ao longo da vida guardei momentos, coisas, pessoas, sonhos e memórias que nunca pus em causa.
Não me lembro de verdadeiramente os enjeitar por nenhuma razão.  Tenho muita dificuldade em cortar todo o tipo de laços, mesmo quando parece que os mesmos esfiaparam e se desagregam.
Ao contrário, uma vez incorporados em mim, não despegam, como não despega um braço, um ombro, os olhos ... o coração !  
Não alienamos pedaços nossos, não prescindimos do que é extensão nossa, não descartamos o que nos passou para debaixo da pele ao longo da existência.  Aliás, se o conseguíssemos fazer, tal corresponderia a uma amputação da nossa própria história com toda a dor que isso acarretaria ... e eu, pelo menos, furto-me desesperadamente a isso.  Seria como se em vida eu me desapropriasse de parte da minha essência.
E isso bem basta que a morte se encarregue de o fazer, inevitavelmente ...

Por isso, ainda que faça um esforço de memória, não consigo lembrar nenhuma situação em que deliberadamente tenha colocado no "arquivo morto" nada que vivi, me pertenceu ou representou com protagonismo, pedaços de mim mesma.
Mesmo quando dolorosamente parece ter-se criado um fosso estranho sem ligação entre mim e isto ou aquilo, entre mim e este ou aquele ... ou quando parece que onde havia pontes francas e inquestionáveis se levantaram muros, ou se fecharam caminhos de comunicação ... tenho uma infinita dificuldade em aceitar o que na verdade preside a essa inesperada e ininteligível situação... 
Porque os momentos, as coisas, as pessoas, os sonhos e as memórias que me configuraram, foram tatuagens, foram registos indeléveis e intrínsecos no meu ser enquanto gente, foram marcas para todo o sempre que cresceram comigo e em mim ganharam raízes, não conseguindo percebê-lo de outra forma.
Seria quase monstruoso se o conseguisse.  Seria talvez negar-me a mim própria e a tudo o que fui sendo ao longo da vida !

O nosso trilho nunca é simples.  Viver não é tarefa fácil.  São muitos os vectores condicionantes, são muitas as marés adversas ... e o Homem é complicado por natureza.
Que  bom  seria  se tivéssemos a simplicidade  dos  animais  e  aligeirássemos  o "complicador" ...
Que bom seria se nos desarmássemos e usufruíssemos, simplesmente ... 
Que bom seria se não desvalorizássemos o essencial em função do que tomamos como certo e seguro, tantas vezes sem que o seja ...
Que bom seria se não nos tornássemos surdos e cegos com as inseguranças que tantas vezes  carregamos e nos dominam ...

Aprendamos a escutar os nossos silêncios ... lá onde a verdade emerge, o lugar onde despidos nos confrontamos, sem lugar a mentira, simulação ou disfarce.  Nós perante nós mesmos, sem camuflagens ou máscaras ... porque aí a verdade e a autenticidade desvendam-nos quase sempre a clareza da realidade que de facto não enxergamos ...

... porque, sempre, em qualquer circunstância, a palavra é de prata, mas "o silêncio é de ouro" !!!

Anamar

terça-feira, 4 de outubro de 2022

" A CASA QUE CONHECEMOS ... "



Há já muito, mesmo muito tempo que deixei de abordar dois dos temas que fizeram escrita obrigatória sistematicamente nos meus posts durante largos meses / anos :  a Covid 19 e posteriormente a Guerra, a avassaladora e inesperada Guerra que parece ter vindo para ficar, num ímpeto desmedido de reduzir a terra queimada o infeliz território da Ucrânia, na Europa de leste.

Ambos os temas, infelizmente, caíram-nos no colo dentro da maior imprevisibilidade.  
Quem diria que no contexto actual, na vivência de um século XXI começado há cerca de duas décadas apenas, a minha geração que tantas e tão conturbadas realidades adversas e dolorosas já atravessara, viria ainda a ser surpreendida, do nada, por duas tragédias de dimensões inimagináveis ?!
Uma pandemia devastadora e incontornável cujo despoletar algo acidental não pode ser imputado à intencionalidade do ser humano, e uma Guerra fratricida, um genocídio destruidor, desumano e infernal, injustificável e criminoso, essa sim, provinda da mente doente de um louco que colocou um país independente e soberano vivendo dentro das suas fronteiras em paz e prosperidade, às portas dum horror que não se entende, não se conceptualiza e não se aceita.
Da noite para o dia, a cabeça inescrupulosa e alucinada dum psicopata obsessivamente ambicioso e megalómano, o presidente russo Putin, determinou a invasão da Ucrânia pela Rússia, invocando razões absurdas, unilaterais e injustificadas.  
Desta forma, não só arrasou cidades, vilas e aldeias pelo poder das suas armas, como infligiu perdas humanas em milhares e milhares contabilizadas, não só entre os militares, mas sobretudo entre as populações civis apanhadas e encurraladas pelo conflito .   
O consequente êxodo incomensurável de ucranianos em fuga para toda a Europa, estimado em milhões de pessoas, sobretudo mulheres e crianças ( já  que os homens ficaram para trás alistados nas colunas defensivas ) na tentativa de se salvarem das atrocidades, não é descritível por palavras ...

A Covid, neste momento tornada praticamente uma doença já incorporada como a gripe sazonal que connosco convive, não estando erradicada, está contudo controlada pelo esforço científico e humano, desenvolvido, pela aposta vacinal em massa em todo o mundo e bem assim por todas as medidas profilácticas e terapêuticas de prevenção e tratamento, tomadas por todos os países em articulação, em todo o globo, num esforço colectivo desenvolvido mundialmente.
Por isso, a Covid 19 parece começar a ser já "passado" nas nossas vidas, não sem que tenha deixado contudo, um rasto de destruição e morte pela onda devastadora de milhões e milhões de vítimas por esse mundo fora ! 

A Guerra, essa continua, assumindo cada vez mais contornos de loucura e maquiavelismo.
Permanece instalada a política de terror com a ameaça sempre presente da utilização das armas nucleares por parte da Rússia, o que configuraria a destruição global do Homem pelo Homem.
No fundo, penso que verdadeiramente não acreditamos que isso possa vir a acontecer.  Talvez para mantermos a sanidade mental e vivermos a vida, dia a dia, com o equilíbrio possível.
Mas, como está em jogo a mente doente de um alucinado inconsequente que já provou e prova diariamente não ter limites ou contenção nos caminhos que segue ... tudo afinal será possível !
Melhor não o pensarmos.  Melhor continuarmos apenas sendo espectadores do filme de terror que se desenvolve lá longe, apesar de tudo ...

Muitas realidades distintas, a minha geração já viveu.  A muitos acontecimentos já assistimos ... de índole social, de índole Histórica, de índole política.  Muita conturbação, muita convulsão social, quase sempre causada pelos desmandos infligidos pelo Homem ... 
Conflitos, hostilidades movidas pela ânsia do poder, no desrespeito pelo nosso semelhante...
O planeta Terra a sofrer todo o tipo de agressões... Alterações climáticas absurdas e  incontroláveis por todos os continentes, atingindo proporções nunca vistas.  Inundações por chuvas indomáveis, fogos sem contenção alimentados por temperaturas fora de controle... Ventos, tufões, toda a ordem de  cataclismos a varrerem sem piedade o nosso mundo ... Secas extremas devastando espécies e destruindo eco-sistemas levando à extinção de muitas ... já não falando na fome, na miséria, na ignorância ... nas assimetrias sociais e na pobreza extrema instalada sem solução entre muitos povos da Humanidade ...
Toda uma barbárie à solta, não adivinhando futuros promissores para as gerações seguintes que por cá ficarem ...

Enfim, o mundo em que vivemos parece tornar-se cada vez mais, um lugar perigoso, um lugar "mal frequentado" e pouco adequado, como ironizando, costuma dizer-se ...
Mas não temos outro, efectivamente ! 

Tentemos pois usufruir esse Mundo, desfrutá-lo, saboreá-lo por cada dia que acordamos e podemos contemplar o milagre de um sol que se levanta e se deita, garantindo-nos a vida, de uma natureza pródiga que nunca nos defrauda e nos acolhe ... Maravilhemo-nos com a melopeia das ondas nos areais, ou perdendo o olhar na imensidão do mar sem fim ... Escutar o trinado dos pássaros no arvoredo, sentir a brisa mansa que nos perpassa o cabelo ... mas sobretudo sendo gratos, devendo respeitá-lo e cuidá-lo, pois ele é afinal, a única "casa" que conhecemos !...

Anamar 

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

" OUTONO OUTRA VEZ ... "

 


Hoje acordei outonal, como este Outono que começou entretanto, doce, aconchegante, envolvente.

Costumava dizer detestar esta estação, embora nela tenha nascido ... ou talvez por isso.  Mas isso fazia parte daquela angústia  e inaceitação mal resolvida comigo própria, que fui arrastando, enquanto me foi penoso, entendia e sentia ser demasiado pesado o fardo de viver ...
Estava psicologicamente fragilizada por certo, pelas peripécias que a vida me foi estendendo à frente, obstáculos que eu via vezes demais, quase sempre como injustos e demasiado devastadores para a minha robustez.  Inultrapassáveis mesmo ... derrotista que sou, pouco confiante e segura no meu próprio valor. 

Erro crasso !  
A vida vai caminhando, os anos vêm vindo e felizmente não trazem só aspectos negativos, mas também  aprendizagens, conhecimento e aceitação.  Começam a relativizar-se as coisas, a atribuir-se-lhes outro valor e outro significado.  Começa a olhar-se para trás e de repente, o que parecera negro, carrasco, mortalmente castigador, aparece como uma fonte de lições, de ensinamentos, de experiências, não necessariamente marcantes ou perturbadoras.
Começamos a perceber que a inteligência que possuímos nos deve posicionar como capazes de análises isentas, como alunos desarmados, intelectualmente objectivos sem avaliações persecutórias, ou melodramatismos excessivos, face ao que foi o nosso percurso.
Hoje, sou capaz de me sentir grata e não injustiçada, sou capaz de me sentir privilegiada e não vítima, sou capaz  de perceber o quão valeu a pena tudo o que há tempos atrás eu via como azar, destino ou pouca sorte ...
Hoje sou capaz de assumir uma paz e uma tranquilidade interiores, capaz de olhar o meu percurso, capaz de "me" olhar enquanto agente mas também enquanto espectadora do meu próprio existir, sem ódios, rancores, raivas ou angústias.
Hoje, sou capaz de "rever" a travessia e os que a dividiram comigo, valorizando o que de bom trocámos, o que me deixaram de si e o que levaram de mim, percebendo o bom, o gratificante, o inesquecível, e guardando numa caixinha especial na minha mente e no meu coração, com bonomia contudo, paz e tolerância não ressentida, o que de menos bom aconteceu ...
Tudo foi crescimento, tudo foi aprendizagem, tudo são afinal momentos, etapas, caminhos que haveriam de ser percorridos, experiências que haveriam de ser vividas, porquê, por onde, para quê ... ninguém sabe, talvez apenas porque vivendo-os, eles viessem a constituir um capital meu de crescimento, assim determinado quem sabe,  pelo destino !...
Tudo isso afinal, foi VIDA que eu pude viver !...

Hoje, quase sempre me sinto bafejada por ela, quase sempre me sinto mais paciente, quase sempre sou capaz de sorrir, e páro, muitas vezes páro e sorrio mesmo ... 
Basta que olhe à minha volta, para me sentir de facto feliz !  Basta olhar p'ra perceber como sou  abençoada.  Sinto-me pacificada interiormente muitas vezes, sobretudo nas horas de reflexão e meditação.  
E se o não sinto, reprogramo o meu coração e faxino a minha alma se ela claudica sem razão, num trabalho de reconstrução permanente.
Quando me sinto acarinhada por tantos e tantas, uns mais próximos que outros, é verdade, mas que ainda não me obliteraram nas suas vidas, percebo que alguma pegada tenho afinal deixado pelas veredas da existência ... E isso é muito bom, e faz-me muito bem pelo ânimo que me transporta ...

Hoje encontro-me aqui numa curva da estrada, num dobrar de caminho que me deixa ver com clareza o que os dias já percorreram, e me deixa perscrutar também, a linha do horizonte, desenhada longe ou perto ... o que for ... não me interessa ... não pode ou deve interessar-me.  
Apenas penso que terei paz a percorrê-lo, penso que terei olhos para o ver atentamente, penso que caminharei com as mãos abertas para o receber sempre, no bem e no mal, de acordo com as escolhas que fizer, as decisões que tomar, com as certezas mas também as incertezas ... 

... seguramente usufruindo com a maturidade que o Outono dá à Natureza, com a sabedoria dos frutos das árvores, que do verdor fulgurante da estação cessante atingiram a plenitude da doçura na estação calma, silenciosa, aconchegante, envolvente e doce que apenas há três dias nos acompanha ...

É assim também o Outono da vida ... tenho a certeza !!!

Anamar   

sábado, 3 de setembro de 2022

" AS CORUJAS INVISÍVEIS DO CREPÚSCULO ..."



 "Quando o tempo que está pela frente fica menor do que o que já passou", aplica-se direitinho ao avanço do ano.  Setembro abriu o último quarto de 2022, dará o cartão vermelho a um Verão que eu sinto não ter passado mas sim voado, e já nos deixa espreitar lá ao fundo mais um Natal a avizinhar-se ...
"Daqui a pouco é Natal" já se ouve dizer por aí, nas bocas de quem percebe objectivamente a celeridade do tempo.

Hoje um amigo escrevia, com notória nostalgia, sobre a partida de tantos habitantes da sua aldeia, pessoas e animais, com quem conviveu na já dezena e meia de anos em que por ali se radicou, referindo exactamente como os dias se fazem apesar dos lugares vagos, como acaba instalando-se alguma indiferença e distanciamento inevitáveis, impostos pela implacabilidade da vida que sempre continua e bem assim, como o esquecimento vai dominando os que por cá vão continuando ... 
É assim.  Todos o sabemos !

Há pouco chegou-me ainda às mãos um artigo dentro da mesma temática, o envelhecimento, cujo autor é o historiador Leandro Karnal, o qual foi republicado pela jornalista brasileira Maya Santana no seu espaço online "50 e mais - Vida adulta inteligente", do qual vou retirar alguns excertos, porque o achei, de facto, fabuloso. 
"Quando o tempo que está pela frente fica menor do que o que já passou" foi o título aposto a esta publicação, substituindo o original "as corujas invisíveis do crepúsculo", para que fosse mais explícito o tema da abordagem do escrito, uma profunda reflexão sobre o nosso caminhar para o fim da vida :

" Há maneiras bonitas de descrever o processo.  A metáfora poética da geada dos anos clareando os cabelos, por exemplo.
Como todo o conceito incómodo, o envelhecimento apresenta denominações diversas , desde o suave "melhor idade" até ao cruel "zona do desmanche".  Rubem Alves sugeria o lirismo de "pessoas com o crepúsculo no olhar".
O Outono não é um raio num céu azul ... Há sintomas prévios.  A primeira vez que nos chamam de "tio" é um alerta.  A percepção acelera-se quando alguém nos cede o lugar no metro lotado, ainda que com o sorriso generoso de um bom escoteiro ...Por fim o elogio que mata o último botão da nossa fantasia de juventude finda, é disparado : "Você está muito bem para a sua idade "... Pronto !  Chegámos lá : à região obscura do Cabo da Boa Esperança ".  Carimbamos o passaporte para a terra sem volta. O que está pela frente fica menor que o que passou.
Uma mulher de 30 anos olha com docilidade e insinua : " Você gosta de mulheres mais jovens ?"
O Dom Juan cinquentão estremece.  Em breve surge o primeiro refluxo após um pouco mais de álcool à noite.  As letras teimam em diminuir diante das retinas cansadas.  Incorporamos palavras complexas ao vocabulário : presbiopia, estatinas, colonoscopia ... A nossa casa fica cada vez mais confortável e a rua mais desafiadora.  A "nécessaire" de remédios aumenta a cada ano.
Há pessoas optimistas e pessimistas.  As duas posturas envelhecerão.  Lutar contra o tempo é como rebelar-se contra a lei da gravidade.  Angustiar-se com a idade é temer a chegada do fim do dia ou das fases da lua.  Não existe maneira indolor de viver o processo, mas há coisas objectivas a considerar.

Hegel notou que a coruja de Minerva levanta voo apenas com as sombras da noite.  Esta era a análise tradicional para indicar que a ave símbolo da reflexão e ponderação ( dedicada à deusa da sabedoria Minerva ) consegue subir no instante do declínio da luz.
A sabedoria nunca é alcançada cedo e nem sempre a tempo.  Não existem garantias, mas a tradição ensina que podemos melhorar com o tempo.  A diminuição dos movimentos rápidos dos anos do vigor máximo colaboram nesta conclusão. O carro vai mais devagar e a paisagem é mais clara, ainda que com óculos.
É uma idade de sinceridade.  Crianças, velhos e bêbados têm um compromisso maior com a verdade.  Nem sempre ficamos pacientes, mas cresce a autenticidade.  A idade madura abre os olhos para as coisas essenciais.  Idade do fim ?  Há controvérsias.  Para muitos é o momento de começar a fazer o que realmente gostam.
Quando o mundo não precisa mais ser conquistado, ele pode ser fruído.  Há mais tempo para isto.  Os ritmos podem ser respeitados.  Há vagas em estacionamentos e filas preferenciais.  De quando em vez, surgem netos, um estágio superior de paternidade e maternidade.  Alguns possuem mais dinheiro na maturidade do que na juventude.  Perdemos a obsessão com o julgamento alheio.  Quase sempre saímos do jogo da sedução.  As cabeças não se voltam assim que entramos.  Como muitos perceberam, aumenta a nossa invisibilidade para o mundo.
Na infância, eu achava que o "Homem Invisível" dos programas da televisão, poderia fazer quase tudo.  Os seres crepusculares podem !!!

As corujas voam mais livres no fim !!! "

Há os optimistas e os pessimistas, é dito no texto.
Há os que dizem "eu nem penso nisso", "eu convivo muito bem com o passar dos anos" ... E também os que garantem ":  eu orgulho-me de cada ruga do meu rosto, é um sinal de vida vivida, e isso é muito bom !"
Esta última afirmação normalmente sai de bocas femininas e perdoem-me se sou leviana na conclusão de que se trata duma profunda hipocrisia, uma espécie de tentativa de se escamotear o lugar onde dói mais ...
Costumamos perseguir bons cremes, boas marcas, bons resultados, plásticas e outras alternâncias ... certo ?...

Eu não me orgulho nem um pouco de sentir que o envelhecimento me confere prerrogativas.  Reconheço que talvez seja mais cómodo, mais fácil, sentir-me livre de alguns espartilhos cansativos que a sociedade impõe ao longo da vida, agora no declínio desta.  A vida profissional, a vida familiar, a vida social ditam regras impiedosas, quase sempre rígidas.  Os exemplos que devemos dar aos filhos, aos colegas, à sociedade duma forma geral são normalmente castradores de tão impositivos.  E não devemos/podemos afastar-nos dum impoluto desempenho ao longo dos anos. e isto é brutalmente cansativo e desgastante !
"Idade é estatuto", ouvimos dizer, como sinal de libertação.
"Para as crianças e para os velhos ninguém olha", dizia a minha mãe quando por vezes eu lhe exigia esta ou aquela postura mais severa e gravosa já no fim da vida.
Hoje, já me permito, também eu, transgredir um pouco.  Já me "borrifo" para o que pensam, acham ou mesmo dizem ...
Vivo mais descontraidamente, porque na verdade não tenho satisfações a dar, sou totalmente anárquica nas horas das refeições, nas horas da dormida, a pouco ou nada me submeto a terceiros ... pauto-me pelo meu calendário interior, tão só !  Faço quase sempre apenas o que me dá "na gana", e isso é de facto uma mais-valia neste timing da vida.
Depois, já não sou mãe, sou avó, e isso confere-me o "doce" da coisa.  Raramente tenho que opinar, menos ainda decidir e a responsabilidade dos acontecimentos nessa matéria, não onera sobre mim.
Giro o meu dinheiro e consequentemente as minhas "loucuras"...

Esta, a vertente agradável neste deslizar rampa abaixo...

O meu pai que partiu com 90 anos e se deslocava já há alguns com uma canadiana num braço, manteve a sua possível autonomia e independência até bem tarde.
Morando nos arrabaldes, quase todos os dias ia dar o seu passeio até à Baixa da capital, tomar o seu chocolate quente na pastelaria Suiça e frequentemente bater uma sorna nos confortáveis sofás do Montepio Geral, de que era cliente.
Olhando a sua visível e óbvia limitação motora, era frequente darem-lhe o "tal lugar" no comboio que utilizava.  Pois bem, lembro até hoje a sua exasperação pelo facto, sendo mesmo frequente recusar a gentileza ...
O meu pai nunca aceitou que envelhecia a olhos vistos, coitado ...
A minha mãe que também partiu com uma longevidade invejável, 97 anos, tinha um desgosto profundo ao constatar o evidente declínio que os anos lhe foram somando.
Extremamente autónoma quase até morrer, independente, dona da sua vontade ( quase sempre indomável ) e da sua mente que apenas no fim a atraiçoou, apresentou inevitavelmente, limitações físicas crescentes com o transcurso do tempo.  O prazo de validade da "máquina" foi-se aproximando do fim ... e ela bem o sabia.
Penso que quando ficou numa cadeira de rodas, dependente de terceiros, foi  finalmente  obrigada  a enfrentar o inegável, e  de  mansinho  foi  desistindo  de  viver.  Sempre  sob  protesto !
" A vida tudo dá e tudo leva" era a máxima que não cansava de repetir.  Olhava as suas fotos antigas e percebia-se claramente o profundo desgosto com que dizia : "desta Margarida já não existe nada!..."
A minha mãe também conviveu muito mal com o crepúsculo da vida !

E eu ?
Teria que ser obviamente semelhante aos meus pais, no abordar deste sensível tema.
Convivo pessimamente com a ideia da morte.  Todos os dias, posso garantir, que em algum momento esse tema aflora o meu espírito ... por isto ou por aquilo. Às vezes sem um nexo de causalidade aparente.  Ou porque mais um dia passou e menos um dia faltará, ou porque estando só em casa, num prédio sem barulhos ou movimentos tudo parece na maior solidão, ou porque constato que para subir a um banco devo colocar um outro intermediamente ... se não, já lá não vou ... , ou porque o ouvido vai dando sinais quando nos diálogos dos programas que assisto na televisão, metade é adivinhado e só metade percebido, ou porque, apesar de intervencionada cirurgicamente às cataratas e à miopia, pareço continuar a ver outra vez pior ... ou porque a rua ( como também se diz no texto ) , é lugar pouco fiável, bastando ver os trambolhões já dados só porque a maldita sandália embicou num desnível de meio centímetro ... ou porque já morreram não sei quantos colegas de sempre, e este e aquela estão com doenças sem horizonte possível, ou porque ... ou porque ...
Também eu olho as fotos de há dez, quinze anos ... e olho-me hoje.  E não aceito, e não quero e recuso este "el dourado" de vantagens, de compensações, de contrapartidas que o envelhecimento promete trazer.
Queria continuar a sentir-me a mulher inteira que eu era, queria continuar a poder sonhar todos os sonhos do mundo sem restrições ou limites, queria ter forças e vontade para cometer iguais loucuras, e acreditar nelas com igual verdade e veemência ... queria poder continuar a jogar o jogo da sedução ... ainda que eu saiba quão utópica sou ... quando os pés me pesam na terra embora as asas me levem acima dos píncaros ensolarados das escarpas, pelos céus rumo ao infinito da liberdade dos sonhos ...

Queria ser condor e não coruja ... ainda que estas voem mais livres no fim !!!...





Anamar

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

" UMA IMENSA MANTA DE RETALHOS "




O tempo muda e muda-nos.  
Não há um dia igual ao outro, um momento que se repita.
E quando olhamos para trás, nunca encontramos absoluto rasto do que fomos.   
Física e inevitavelmente, a que acordámos hoje pouco tem a ver com a que adormeceu há algumas horas.  Emocionalmente ocorre algo muito próximo ... e quando queremos descortinar onde encalhámos no percurso, nem sempre vislumbramos uma conclusão aceitável.  Por isso, "nunca" e "sempre" deveriam ser vocábulos a banir no nosso linguajar, simplesmente porque são conceitos inexistentes, apesar de quase sempre neles acreditarmos.

É com convicção, não tenho dúvidas, que num determinado momento garantimos que isto ou aquilo será impossível de se repetir, ou que isto ou aquilo que agora experimentamos, é matriz definitiva da nossa personalidade pelos tempos fora ...
E por tudo isso, por essa incoerência, quando nunca o sempre que julgamos óbvio, se repete, ficamos surpresos e incrédulos.  Afinal parecia que seria exactamente assim ... Impossível ser diferente ... achávamos !

A vida faz-se precisamente de mudança, de mudanças imprevisíveis.  O crescimento passa pelas dores dessas mudanças e pela sua aceitação, e é na gestão lúcida e assertiva das mesmas, que ele se processa saudavelmente.
De que servem saudosismos, rejeições, inaceitações, de que serve guerrearmo-nos em permanência se o que é inevitável não é passível de caminhar sob o nosso critério ?!
A inteligência está pois, em gerir pacificamente os diferentes estadios da existência, sem conflitualidade ou confronto, tirando de cada momento, de cada situação ou acontecimento, tudo aquilo que, até ao tutano, eles nos possam proporcionar.
O que verdadeiramente importa é ter capacidade de equilíbrio esclarecido e perceber as melhores formas de desenhar cada dia coerentemente, sem atropelarmos ou nos atropelarmos, sem nos violentarmos ou quiçá nos vilipendiarmos ... sem nos desrespeitarmos ou desrespeitarmos aqueles que connosco convivem.

Nada disto é simples, menos ainda fácil.
A vida equaciona-se diariamente como resultante de muitos vectores, fruto ou consequência das circunstâncias, quantas vezes perfeitamente imprevisíveis.  Ela é sempre uma resultante do que experienciamos, do tapete que se estende em cada momento aos nossos pés, de todo o background que nos enforma, das emoções, dos medos e das angústias, da coragem e da determinação ... mas também da esperança, do sonho e da força do acreditar em cada momento !
Porque a grande premissa que norteia a existência é exactamente a impermanência !  Essa é a maior verdade e a maior certeza !
Há que assumir a nossa história pacificamente, com a convicção de termos feito, em cada circunstância, as escolhas que com verdade, seriedade e autenticidade tomámos como as certas e as que não feriram ou violentaram aquilo que em consciência tivemos como correcto.
Dessa forma, pelo menos, teremos paz, alienaremos culpas ou penalizações desnecessárias, aliviaremos o julgamento inútil com que com frequência nos martirizamos, reduziremos insatisfações e conviveremos mais pacificamente com o nosso coração e o nosso espírito.
Se o conseguirmos, já terá sido um ganho !...

... porque afinal a Vida não é mais do que uma sequência interminável de pedaços costurados, todos eles tecendo uma imensa e imperfeita manta de retalhos !...

Anamar