quinta-feira, 30 de julho de 2009

"REQUIESCAT IN PACE..."



E de repente, às quatro da manhã dei em ter medo da morte...
Ela já rondava por ali.
Sentia o roçagar das suas asas pela penumbra da casa;
não eram bem asas...lembravam-me mais as alares dos morcegos nas grutas da Regaleira.

Era medo real que me tolhia, uma estranha sensação de desconhecer o tão naturalmente conhecido, a inabilidade de lidar com ela...

Estranho...absolutamente estranho...

Não queria fazer barulho, não queria acordar nada que me chamasse do quarto para fora.
No corredor persistia o escuro da noite. Um peso oprimia-me a respiração e um nó apertava-me mais e mais a garganta...
Uma entidade estranha pairava por ali...anunciava-se já, com horas de antecipação...

Lembro bem, com clareza...era um medo real!

O tique-taque do relógio, nítido no silêncio absoluto, fazia compasso com as minhas pulsações...
Tomara que fosse manhã, tomara que a madrugada chegasse depressa, que depressa eu tomasse de uma vez, aquele cálice venenoso de fel puro, acre e corrosivo que me esperava, à medida que a areia se extinguia na ampulheta do destino...
30 de Julho...hoje, como há dezassete anos...tal e qual...

Por cada vez que "ela" passava, o calafrio do seu toque deixava-me um arrepio no corpo todo, como se a sua capa negra me envolvesse também...

E ainda não eram cinco da madrugada...

Anamar

terça-feira, 28 de julho de 2009

"TALVEZ VER !... "



Hora da almoço, Avenida de Roma, "Sul-América"...na esplanada.

Aqui perto, o D.Leonor, onde, há eternidades, dei aulas.
Nas mesas, por aqui, almoça-se.
O calor aperta, os chapéus de sol mal mantêm alguma frescura.

Vim até Lisboa tratar de um assunto, aproveitando para ver uma amiga... sem pressas...ao sabor da brisa que corre e hoje é abençoada.
Vim olhando e "vendo" as lojas abertas, as fechadas, as actuais, as "demodées"...porque também as há na Av.de Roma...

Atraquei agora aqui, quase a "cair" na esparguete com frango da mesa ao lado, ou na alheira, vinho e café da mesa de trás.

Os diálogos das empregadas de loja, ou funcionárias de serviços aqui da zona(que parecem ter como ponto de encontro diário esta esplanada), são interessantes...
Dos cozinhados às crianças, às madeixas ou extensões recentes, às férias inevitáveis entre o Algarve e a Costa Alentejana... a conversa de circunstância flui por aqui.

Tudo a um ritmo de modorra, bem mais lento que o fluxo de trânsito circulante dez passos à frente.

Topam-se as relações entre as pessoas...
O parzinho do secundário com as férias grandes acabadas de iniciar, de olhos embevecidos e em bico, num amor de Verão, a entornar ternura, ou se calhar desejo, pelos cantos...

O casal oscilante entre os sessenta dele e os vinte e tais dela, com sotaque a Brasil, toda fresca, desempoeirada, bem "sacudida"...estilo "Cheguei"!!...
Ele com ar entontecido, atoleimado...noutra galáxia!...
Não percebe a "generosidade" da pequena (esbanjadora, de olhos de bolo em balcão de pastelaria), por tudo quanto a rodeia e mexe...
nem percebe que o mancebo solitário que "lê" distraidamente um livro na mesa ao lado, a "come" por entre as folhas...

Há também os autóctones, que vê-se bem que o são...senhoras gordinhas, sem malas nem carteiras na mão, ou sequer ar cuidado. Vêm por aqui, a pequenas necessidades, ou passear o cão em hora de aperto.

E há os casais idosos, que passeiam de braços dados, como manda o "figurino", ao ritmo dos anos, e se calhar ainda, ao ritmo das "avenidas novas" dos anos 50...

E há também o mendigo que mendiga, tentando manter o ar da Av.de Roma (porque até para isso o "status" importa...)
Exibe um ar ainda distinto, traído pela biqueira dos sapatos, que escancara um "sorriso" lixado...
Vendo bem, não sei se será mesmo mendigo, ou já um "filho da crise", que atira as classes sociais de degrau em degrau para baixo...

"Penhalta Novias" na minha frente...
Mas quem quer ser "novia" hoje em dia?? Será que ainda querem??...
Lembro dez anos atrás, quando por aqui me esfalfei com a minha filha, também ela na convicção de que com um lindo vestido, o pacote da felicidade viria completo!...
Todos temos direito às nossas ilusões...

E depois, há os pombos, sempre presentes nesta Lisboa, e os pardalitos que não se ouvem por entre a folhagem, mas que continuam atrevidos e descarados...

E tudo isto foi Lisboa, numa tarde de Julho, em que não me apetece ir para casa, em que não me apetece pensar na vida, não me apetece "sentir" o destino...apenas me apetece olhar...e talvez "ver"!...

Anamar

"AO SOM DE STRAUSS..."



Este fim de tarde hoje, não passa de uma agonia em laranja...

Lá ao fundo o sol já se pôs, e apenas uma poalha entre um azul desmaiado e uma faixa ainda acesa, de ocre pálido, desenha esfingicamente os contornos do casario.

Não há pássaros no céu, os sons começam a esbater-se e o silêncio a imperar por aqui...
Vozes distantes, um cão que ladra...tudo indiviso, tudo aparentemente inerte...

A agonia do sol no horizonte, foi uma agonia também dentro de mim.
O sol amanhã levanta-se, e no outro dia, e no outro...e assim, dia após dia, vida após vida, gentes depois de gentes...

Estive a ouvir música com o Óscar.
Coloquei num gira-discos de prato, um vinil que já não ouvia talvez para mais de cinco anos...Valsas Vienenses...
Eu acho que o Óscar "curte" valsas vienenses...e eu também...

Transportei-me com elas para todos aqueles sítios para onde a memória, sempre à nossa revelia, nos transporta.
Deixei-me ir, simplesmente, impelida por uma indiferença adormentada, como quem se balança num barco parado, pela brisa da tarde.
Quis parar a mente, mas não fui capaz. "Rodei" para trás, "rodei" para a frente, revi e antecipei...

Daqui a dois pores-de-sol o Óscar já cá não está...

Talvez eu oiça Strauss de novo, talvez eu me passeie pelo Danúbio, talvez eu o veja ali aos meus pés, com os ouvidos atentos e os olhos amendoados fixos em mim...

A "casa dos passarinhos" com os pinhais em redor, a liberdade a um salto do muro, as sestas dormidas debaixo das hortenses pelas tardes de Verão...tudo isso pertence a outros pores-de-sol...tudo isso pertence a outra vida, que está quase a extinguir-se...

Anamar

"IRÓNICO...OU TALVEZ NÃO..."



Teoricamente a esta hora já estou de férias.
Efectivamente, amanhã é o primeiro dia das ditas, e como já é meia noite dada...tudo perfeito!

O meu quarto, por acaso excessivamente quente tendo como comparação a temperatura do exterior auscultada há pouco, ao ir fechar as janelas da sala maior, ainda me faz sentir mais sufocada, mais cansada, e com um profundo desânimo e vontade de dormir.
Junto de mim, uma chávena de leite e um pacote de biscoitos, que como compulsivamente.
Lá fora...o Óscar...ainda...

Tirando isso, apenas uma "irónica ou talvez não" sensação de fraude, de ludíbrio, de vontade de sumir, como alguém acabado de chegar de uma maratona e está esvaziado do objectivo que o levou a fazê-la, ou alguém que amarinhou uma montanha na esperança de uma paisagem apaziguadora, bela, calma do outro lado...e constata que não é nada disso...

Este ano de trabalho foi madrasto, absoluta e completamente madrasto em termos profissionais, familiares, pessoais...
Uma espécie de cocktail explosivo ou de jantar que esturrou na panela.

Neste momento, e porque os tempos que se me avizinham não são de mar "flat", são sim de grandes decisões, viragens de página, com as inerentes angústias, dúvidas e incertezas, sinto que não estou com "estaleca" para tudo o que por aí vem...
Dou por mim a antecipar angustiadamente situações que teriam o seu tempo, dou por mim a delapidar as "munições" que tão necessárias me virão a ser, a desgastar esforços que precisarei arregimentar... dou por mim sem grande capacidade de reacção positiva a tudo o que experimento, e que neste contexto, obviamente se reveste de tonalidades carregadas...

É como se de dia para dia estivesse a perder alguma da ingenuidade que ainda conservava face à vida, é como se estivesse a deixar fugir-me dos dedos o crer em muita coisa em que acreditei, é como se de repente tivesse sido obrigada a "crescer", e a deixar lá atrás a criança que eu era e que ansiava nunca molestar.

Hoje, sou uma pessoa pior, mais dura e inflexível, se calhar menos generosa e muito mais defendida, menos crédula (por não conseguir mesmo encontrar no que acreditar), mais amarga...talvez brusca e repentinamente envelhecida...

e pergunto-me que é feito da minha capacidade inesgotável de me extasiar perante as coisas, as pessoas, os sentimentos??!!

que é feito do meu poder incondicional de entrega??!!

que é feito do caudal de afecto, sem tamanho, contenção ou medida, que jorrava em torrente incontida se acreditasse que valia a pena??!!

que é feito daquela sensibilidade acutilante que me levava às lágrimas, na emoção duma canção escutada, ou face ao mergulho laranja do sol sobre o mar lá ao fundo, ou ao marulhar leve das águas de um córrego por entre as rochas??!!...

Não sei...de facto não sei!
Sinto-me exaurida e se calhar, aos poucos e poucos fui-me esquecendo de mim pelo caminho...

Irónico......ou talvez não!...

Anamar

sábado, 25 de julho de 2009

"POR QUE TEMOS QUE SOBREVIVER AOS NOSSOS BICHOS??..."


Posted by Picasa


Por que é que temos que sobreviver aos nossos animais???

Eu sei que muitas pessoas não vão entender nem ter sensibilidade para perceber do que falo.
Primeiro...se muitas pessoas lessem as merdas que eu escrevo...
Segundo...se muitas pessoas curtissem verdadeiramente animais de estimação. E eu sei que cada vez menos gente, por comodismo, desinteresse ou falta de gosto ou sensibilidade mesmo, o experienciam.

Pois é...hoje, eu estou particularmente vulnerável a este tema.
Primeiro...porque o Óscar, meu gato companheiro de quinze anos da minha atribulada vida, tem pela frente, a curto prazo, a decisão minha (imaginem), de ser abatido.
Logo o Óscar, o gato mais "humano" que conheci...

O Óscar veio p'rà minha mão ainda tinha os olhos azuis do leite da mãe, abandonado que fora, junto com ela e mais quatro irmãos, nos baixos de um prédio...à consideração dos transeuntes...

O Óscar sempre foi uma "peste", desde que se tomou como gente.
Infligiu uma mordidela com direito a pontos, na mão duma ajudante de veterinária incipiente...
"exigiu" a presença de um veterinário-homem, para levar as primeiras vacinas, quando não tinha mais do que quinze centímetros de estatura...
pôs o meu ex-marido a andar de casa para fora (porque detestava animais), até que ele capitulou, para regressar à casa mãe...visto que o Óscar veio p'ra ficar...
odiou a minha filha mais velha, com quem, ao tempo, disputava o mesmo lugar do sofá...e a mim, a quem elegeu como dona, exteriorizava as suas meiguices, muitas e muitas vezes, personalisticamente, com arranhadelas ou mordeduras...
Portanto, tudo como o ser humano mais genuíno...

Tantas vezes lhe lancei impropérios: "Irra, que até a fazeres festas és bruto!!!!"

O Óscar atravessou comigo quinze anos da minha vida, dividindo as alegrias, as ausências, as boas e más disposições, os choros, as angústias, as fraudes...
Dividia e entendia...

Tenho para mim, que quando me olhava e só não me lambia as lágrimas porque nunca se sabia o que "viria" dali...ele me percebia, e à sua moda tentava reconfortar-me.
O Óscar, adoptava miados adequados, num diálogo que os dois cumpliciávamos.
Nunca refilava das minhas "galderices" de fim de semana, nunca tinha ciúmes ou exigia.
Sempre me esperava à porta, quando eu metia a chave e corria a lingueta na fechadura...e logo se "ensarilhava" nas minhas pernas, quase me fazendo cair, numa procura de alguma compensação para tão parcos afectos, às vezes...

O Óscar está muito, muito doente...
e parecendo adivinhar que o tempo de que dispõe lhe está a fugir, reivindica, solicita, mendiga, muitos muitos carinhos... Logo ele, que sempre foi senhor do seu nariz e só "dava" quando muito bem entendia...(daí eu dizer que ele é o gato mais humano que eu conheci...)

E vou ser eu, que terei que decidir dos seus destinos.
Vou ser eu que vou determinar, porquê e quando, o Óscar vai terminar os seus dias entre nós, ou melhor, perto de mim...

Vai haver um destes dias, em que eu vou acordar, e sei que nesse dia preciso, terei de pegar nele ao colo, metê-lo na transportadora (como num qualquer passeio à "casinha dos passarinhos", onde ele foi totalmente livre e feliz, há anos atrás), falar-lhe de mansinho...desta vez sem saber o que dizer-lhe...e sentindo que o estou a trair, levá-lo ao encontro da injecção da paz, levá-lo ao encontro definitivo da separação com a sua casa, o seu companheiro de todos os dias ( a Rita, que não vai perceber nada...), levá-lo até ao sono repousante, nas minhas mãos, dizendo-lhe baixinho, como sempre faço para o acalmar: "está aqui a doninha....já passou..."

Só que nesse dia, o Óscar não voltará para o que era seu, nem sequer para uma dona talvez relapsa e escassa na paciência, na partilha, nos afectos...

E quando penso em quanta generosidade tem a relação de um animal com um ser humano...
e quando a comparo inevitavelmente com a conturbação, a exigência, a insensibilidade, o egoísmo, a traição das relações inter-pares, no domínio dos ditos "racionais e sensíveis"...sinto uma revolta e quase um ódio, que não descrevo...

Desculpem o tema...Como habitualmente, não leiam.
Isto, também não interessa a ninguém! Interessou-me a mim pôr no papel, porque estou profundamente triste, profundamente defraudada...porque a vida me vai tirando tudo...e a relação com um animal nosso, é estritamente particular...muitos o sabem...

Não sei como vai ser...não sei onde vou arranjar coragem...
Uma coisa eu sei: na sua última viagem, eu não falharei ao Óscar.
E ainda que morra por dentro também, vou ter que arranjar as forças necessárias para lhe suster a cabeça, olhar os seus olhos, seguramente confiantes, e aguentar o peso do Mundo, que eu sei que nesse momento vai desabar sobre mim...uma vez mais!!!...

Anamar

sexta-feira, 24 de julho de 2009

" I DREAMED A DREAM..."

Não, não sou a Susan Boyle, embora viva com dois gatos e tenha quarenta e sete anos...

Sim, tenho quarenta e sete anos seguramente...isso afianço! Esses, e mais alguns!

A Susan Boyle é feia, gorda, mal jeitosa...pelo menos por fora. Tem duplo queixo, suponho que um buço que está mais p'ra bigode que p'ra buço, nunca foi beijada...mas "sonhou um sonho"...acalentou uma esperança...acreditou num desígnio qualquer, escrito num qualquer sítio.

Veio dum vilarejo, perdido em nenhures, despida das "armadilhas" da "civilização", inocente sobre a "selva" que a esperava animada de um sorriso sarcástico de comiseração...

Não vou abordar o "caso" que constitui Susan Boyle.
Ele já fez correr tinta que chegasse, já colocou caras de parvos em muitas caras que se julgavam espertas, já despertou muitos estudos psicológicos, sociológicos, antropológicos...
Ele, já abanou consciências e já trouxe ao cimo hipócritas "mea culpas"...
Ele, já fez o presidente Obama antecipar um discurso, para não colidir no horário, com Susan...
Portanto, de Susan, do seu "vozeirão" e do seu sonho, já se falou que baste.

Vou apenas referir o misto de admiração e "inveja", que eu que não sou tão feia assim, tão gorda assim, tão mal jeitosa assim...
eu, que não tenho ainda duplo queixo, nem buço ou bigode, que já fui beijada milhentas vezes, que vivo na "civilização" ...
a "inveja" que eu sinto, dizia, de não ter aquele crer interior, aquela esperança desusada, aquela vontade imperiosa, aquela ingenuidade desarmada, aquela pureza de alma, que (apesar da sua canção lhe dizer que "há sonhos que não podem ser"...) permitiram que ela sempre os tivesse sonhado!!...

Anamar

quinta-feira, 16 de julho de 2009

"OS CORDELINHOS INVISÍVEIS"



Teresa estava na porta daquela igreja.

Era uma noite de Junho, de um Junho quente como são os Junhos em Lisboa.
Lá dentro, na luz difusa duma capela, velava-se um corpo.
O cheiro misto da cera das velas e das flores, impregnava o ar até à entrada.
Deveria haver um silêncio profundo e pesado, mas havia um "brouhaha" de vozes que fingiam estar em surdina mas não estavam.

Teresa estava estática, gélida, hirta e morta também, só não estava a ser velada ainda...apesar do seu coração e da sua mente, estarem naquele esquife lá dentro, partilhando já aquela tumba, com quem fora o amor da sua vida.

Sempre o respeitara, o venerara quase, por isso jamais quebraria ali o juramento feito a um pedido seu.
Se algo lhe acontecesse, um dia, ela não deveria estar presente, apesar de a sua vontade a impelir para o interior daquela capela, apesar do seu sentir lhe dizer que deveria ser ela quem havia de estar à sua cabeceira, deveria ser ela a aconchegar-lhe o último leito, a por-lhe a última flor nas mãos, a dizer-lhe as últimas frases de amor ao ouvido (sabendo que ele a escutava, já do outro lado, que ele a via já do outro lado e que também já a amparava e aquecia num sopro de força e coragem).

Conheceram-se havia longos e longos anos.
Ela, quase uma menina ainda...ele, homem feito, com responsabilidades assumidas na vida.
Amaram-se, partilharam-se, entregaram-se...
Dos sonhos aos projectos, das vontades às esperanças, do possível ao impossível...tudo dividiram, em tudo acreditaram.
Viviam com sofreguidão cada minuto que usufruíam, cada tarde passada nos sítios que se tornaram por isso, "seus", cada pôr-de-sol que os extasiava, cada música que os inundava, cada gesto de afecto que os preenchia e lhes tornava plena a vida, quando se separavam e de novo sós, enfrentavam os respectivos caminhos.
Ambos sabiam pertencerem-se, ambos sabiam que "os cordelinhos invisíveis" do tudo que os ligava, falariam sempre do outro, mesmo na sua ausência física.

Fora um amor tão completo que bastava, tão bonito quanto generoso, tão forte e seguro que nunca fora exigente, de uma aceitação do possível, por saberem que a Vida lhes reservara um quinhão apenas...no entanto, com o tamanho do Mundo!

E decorrera uma vida...

Os anos acrescentaram a cada um, menos vigor, menos frescura, um cansaço acumulado de uma esperança que se ia desvanecendo aos poucos e poucos.
O futuro parecia começar a fechar-se, sobre algo que parecia não "querer" realizar-se nunca...
Contudo, Teresa sempre acreditara, que nem que fosse por um dia, havia de partilhar com aquele homem, por inteiro, a sua vida.
Nesse dia, deixaria para trás tudo e todos, dobraria aquela esquina sem nada nas mãos, carregando apenas consigo, todo o amor que lhe preenchera o coração...e não olharia para trás sequer...

E era Junho, um Junho quente como são os Junhos em Lisboa.
Na porta daquela igreja, naquela noite de um Verão que era um Inverno profundo dentro de si, Teresa estava morta...e ninguém ainda dera por isso!!...

Anamar

"TODO O TEMPO DO MUNDO..."



Tal como eu, o senhor abeirou-se das caixas da fruta.
Sorria, sorria muito, perguntava se eram docinhas...as ameixas...embora me pareça que ele as não definia muito bem, com um olhar que mais adivinhava do que divisava.

- "Boas p'ra comer já! Um torrão de açúcar!" - dizia a vendedora.
"Só é preciso ter cuidado não engula o caroço!"...

E ele ria, ria muito e agradecia.
- "Atenda esta senhora! Eu tenho todo o tempo!"

Olhei de soslaio para ele, para a bengala em que se apoiava para manquejar menos, para o riso rasgado no rosto...para os olhinhos "piscos" de criança-avelhentada.
Agradeci e detive-me naquela última frase: "Eu tenho todo o tempo!"...

Acedi à balança, eu e a vendedora.
Ele ficou mais atrás, com olhos gulosos para as "línguas de gato" ali à mão.

"Este senhor é muito engraçado...Tem noventa e quatro anos e diz que não quer viver mais...que está farto do corpo que carrega..."

Olhei-o de novo...agora com algum espanto e admiração. A cara pregueadinha continuava iluminada pelo sorriso.

Saí.
Nos meus ouvidos ficaram ainda palavras de apreço por me ter conhecido...
Afinal, pouco mais que dez minutos e três ou quatro frases trocadas!!...
Um provável lampejo de sol numa vida que está cansada de continuar a fazer-se, num corpo demasiado "pesado" para ser carregado já!

Mas ria, ria sempre, gratuitamente.

Nunca ele saberá que também iluminou a minha tarde, por entre os pêssegos e as ameixas!...

Anamar

terça-feira, 14 de julho de 2009

"A HORA DA BRECA..."



Estes fins de tarde matam-me!!...

Quando o laranja se vai apagando lá ao fundo, e o casario começa a piscar os "olhinhos", lembrando que a noite não demora em chegar...
Quando uma estranha quietude se abate sobre tudo e todos, os ruídos se atenuam, o chilrear dos pássaros cessou no arvoredo dois lanços abaixo da minha janela...
Quando um adormecimento parece invadir tudo quanto é vivo, uma letargia triste, recolhida e silenciosa invade a Terra, anunciando o fim de mais uma "etapa"...
Quando só os aviões, à razão de um por cada dois minutos, cruzam o espaço lá em cima, parecendo querer transportar para longe, com eles, o meu pensamento, as minhas divagações ou até o meu "desajuste" a esta hora do dia/noite...

é que eu me sinto absolutamente só...
só e órfã do Mundo, uma sensação de abandono doído, verdadeiramente estranha, como se, com o dia que finaliza, finalizasse também um pouco de mim.

As manhãs sempre são auspiciosas. Afinal, nunca se sabe o que nos reserva aquele dia que ora se inicia.
As tardes são plenas no que há para ser feito ou vivido.
As noites, noite dentro, mercê do sono que ainda que renitente sempre acaba cedendo, levam-nos a um descanso que tende a ser (às vezes nem por isso), apaziguador, retemperador.

Mas os pôres de sol, são mesmo sóis que se põem no nosso ocaso...
As sombras avolumam-se, as paredes agigantam-se, os "fantasmas" do nosso imaginário corporizam-se, e uma sufocação que sobe das entranhas, aperta a garganta e mareja os olhos de água...
É verdadeiramente uma hora "da breca"!!...

E então eu penso o que será de mim, quando esta ociosidade agora sentida (porque o período escolar terminou), passar a ser a nota dominante de um sempre, de todos os dias (com laranjas em fundo ou cinzentos a pincelar os céus, com recortes de casario lembrando cubismos de Picasso, ou neblinas instaladas e gotas gordas a despencar lá do alto)... o que será de mim, pergunto-me e apavoro-me, porque todos os dias haverá uma hora "da breca" e eu não tenho arte para sair dela!!...

Anamar

sábado, 11 de julho de 2009

"A BABILÓNIA É AQUI MESMO..."

O ser humano não se entende...

Decididamente, na sociedade actual, com os valores coexistentes, o ser humano está cada vez mais de costas voltadas entre si.
As linguagens são cada vez menos inteligíveis, os códigos de conduta, de comunicação imperceptíveis ou desvalorizados, os seres estratificados em opiniões, posturas de irredutibilidade ou fundamentalismos extremos.

As pessoas são detentoras das suas "razões", de que dificilmente abdicam, sequer discutem, são donas e senhoras de verdades absolutas de que não prescindem, arvoram-se insensivelmente conhecedoras de valores cujo conteúdo não é sequer passível de uma discussão académica...

As pessoas estão autistas, teimosas, fazem-se de "surdas-mudas" por comodismo.

Pais não entendem filhos e vice-versa, namorados toleram-se depois da "chama" extinta (a maior parte das vezes pela incapacidade de uma análise calma, objectiva e correcta das situações menos boas), casais constituídos defendem os seus "redutos", por falta de tolerância, maleabilidade, incapacidade dialéctica...até amizades se rompem por situações mal resolvidas, mal interpretadas, nunca esclarecidas...

Está-se a criar uma sociedade sem diálogo, espartilhada numa solidão e num individualismo atroz, em que o sofrimento cresce exponencialmente à falta de solução para estes "cancros" afectivos.

Sim, porque são "pechas" ou lacunas de afecto que estão na base desta construção excessivamente musculada do ser humano.
São convicções inabaláveis, raramente susceptíveis de alteração. Parece que o Homem sente, que fazer inversões nas suas posições é sinal de fragilidade.

A vida "corrida" e "anónima" da grande cidade e das "colmeias humanas", potencia de facto, o isolamento, o "salve-se quem puder", a falta de maleabilidade das mentes e dos corações...

Que é feito das tertúlias calmas e agradáveis entre conhecidos e amigos nos cafés, nos locais de encontro, nos serões junto às lareiras, sem horas, onde, saboreando um bom vinho, tudo é abordável, tudo se analisa, tudo se discute "na boa", sem hostilidades ou ofensas, porque sempre opiniões diferentes trouxeram luz à discussão??!!

Não há tempo, não há vagar, as pessoas estão escravizadas pelos relógios, pelas rotinas, pelas responsabilidades.
Ou então, não estão sensíveis à questão, porque...têm as suas opiniões formadas, estão fossilizadas em convicções, quantas vezes por teimosia nunca estremecidas, ou têm mais o que fazer no escasso tempo de que dispõem...

Se este é o panorama do nosso "quintal", das nossas relações, do nosso pequeno "mundo", como poderemos sonhar que no Mundo gigante que nos alberga, povos tão diferentes uns dos outros, com valores e interesses tão diversificados, se entrelacem, dêem as mãos, comummente se entendam??!!

Será isto sinal de avanço e civilização, ou de regressão e desrespeito instalado??!!...

Anamar

segunda-feira, 6 de julho de 2009

"DESCULPEM QUALQUER COISINHA"!...



Não ando com pedalada p'ra estas coisas...

Não ando nem com inspiração para escrever nada, porque, dá-me ideia, olho mas não vejo, ou seja, a bem dizer, ando um pouco "robotizada" no meio da multidão.
Não sei se é cansaço, desmotivação, descrer ou a remota sensação dentro de mim, que caracol, "eremita" ou avestruz, me serviriam na perfeição ser, para ficar "out" neste mundo de não valer a pena...

Talvez seja só cansaço mesmo, na recta final de mais um ano de trabalho a "esbaldar-se" em trabalhos em catadupa, cerca de um mês que me falta para as almejadas férias.

E por férias mesmo, me ocorreu escrever estas insípidas linhas que aqui deixo.
Podia chamar-lhes "as férias dos portugueses", "o sonho possível" ou "o pesadelo vivido"...qualquer coisa que há muito já não constatava ocorrer e que lembra o meu tempo de mocinha, nas primeiras idas à praia em autonomia paterna, inserida no grupo de amigos.

Ora bem...De que falo mesmo??

Neste sábado, ao regressar do pequeno almoço no Escudeiro, e porque a minha praceta é zona de interface de autocarros para os mais diversos destinos, deparei-me com um cenário que me é de facto familiar, mas de que já não dava conta há muitos anos.
Filas e filas de famílias inteiras, roupas reduzidas, chapéus ou bonés nas cabeças, sobretudo dos putos logo de manhã já ligados a "pilhas", chapéus de sol debaixo dos braços ou ao ombro do "chefe da orquestra", e geleiras nas mãos, certamente bem aviadas. Pelo menos, o ar derreado com que aqueles que as transportavam exibiam, assim o fazia supor...

Para além disso, o semblante afobado, a correria, a agitação e a "algarviada" que por ali se ouvia, deixavam adivinhar a ansiedade da chegada às areias, a pressa de mergulhar o pé na água fria ou o desespero da perda de mais uns raios de sol, até que os areais da Caparica, da Torre ou de Algés, fossem alcançados.

Os portugueses a fazerem as "férias da crise"...
Os portugueses a fazerem de conta que as Caraíbas, os Brasis ou as Maldivas estavam por ali, à mão de semear, no desenho que a imaginação lhes emprestava...
Os portugueses, sem "cheta" nos bolsos, depois de um ano de trabalho, a fazerem de conta que estão felizes com as férias de que os acharam merecedores...

Que importa que seja p'ra lá de tempo o itinerário de ida, e p'ra lá de tempo o itinerário de vinda (mais penoso ainda pelo esfalfanço, pelos escaldões na ânsia do "bronze", pelas criancinhas que já não regressam pelo seu pé e são jogadas nos ombros...)?!...
Que importa que o "bandulho" tenha sido cheio de sandwiches e mais sandwiches, croquetes, sumóis e trinaranjus, "bjecas" e uns iogurtezinhos...porque qualquer vitualha numa esplanada está p'las horas da morte?!...
Que importa que amanhã a odisseia recomece e que os dias se esvaiam rápido, anunciando o fim das "férias"...Que ao chegar a casa ainda se vá fazer a janta, mesmo que o corpo suplique cama?!...
...se este é o sonho que nos é permitido sonhar, se este é o luxo que nos é permitido usufruir, ou se este é o "pesadelo" que nos foi destinado, porque somos pobres, porque somos este povo acomodado e paciente, porque nascemos neste bairro económico, somos filhos desta turba que não sabe o que são remunerações milionárias, cúmulo de pensões chorudas, "offshores" ou coisas no género!!...

Menos mau que temos este sol, este céu azul, este marzão e esta costa pródiga...e deles ainda não nos cobram impostos!!...

Anamar