terça-feira, 31 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 20






Vigésimo dia de uma tortura que não tem fim à vista !
As notícias continuam a ser devastadoras, a angústia veio para ficar, alimentada pela incerteza crescente, de pouco mais termos que uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma ...
Esta vida totalmente atípica, surreal e castigadora, fica progressivamente mais difícil de levar adiante.

Hoje, vivo também a dor da perda de um amigo.
Um amigo recente, é verdade, que conheço há cerca de três anos apenas, por convivência em círculos comuns, mas que ainda assim, foi assimilado totalmente por mim.  Completava hoje 75 anos, e parece ter escolhido o dia, para fechar, duma forma completa, o seu ciclo de vida.
Ironias do destino !...
Inevitavelmente lembrei a minha mãe, que partiu no dia dos seus 97 anos ...

Não sucumbiu à Covid 19, mas sim a uma doença incurável instalada há alguns anos, que o degradou progressivamente e o confinou a uma cama há cerca de pouco mais de um mês.  Neste momento, com um sofrimento atroz, minimizado simplesmente pela morfina ministrada.
Faz hoje exactamente três meses que a passagem de ano foi feita em sua casa, a seu pedido, rodeado dos poucos familiares directos que tinha, e de alguns, poucos, amigos íntimos.
Mostrara o desejo de que a passagem de 19 para 20, fosse em alegria, em boa disposição e em fraternidade ...  E assim foi !...
Foi uma despedida silenciosa, nos nossos corações ...  Todos os que tiveram com ele, ao longo da sua existência, uma partilha das histórias, das vivências, do bom e do menos bom, desde os tempos da faculdade ... pensavam, creio eu, que o Vicente já não estaria connosco por muito mais tempo !...
Com o caos que vivemos, nem sequer o poderemos acompanhar até ao fim ...

Sinto-me angustiada e meio perdida.
As notícias de toda a ordem, os artigos de opinião, as informações, tudo o que circula e nos bombardeia de manhã à noite, são de um filme de terror nunca antes visto.
Os números dos Estados Unidos, do Reino Unido ... ou, se nos circunscrevermos à Europa, nomeadamente de Espanha e Itália, os países mais afectados ... paralisam-nos.
Espanha contabiliza cerca de 8200 óbitos em 95000 infectados,  Itália, 12500 em 106000 infectados ... Portugal 160 mortos, nos cerca de 7500 abrangidos pela propagação do vírus.
Entretanto  nas redes sociais são difundidos vídeos sobre vídeos, das mais diferentes origens. A "media" invade-nos, quase não nos dando margem para a assimilação, menos ainda para a reflexão e possível formação de opinião sobre eles.

Alguns, notória e visivelmente panfletários, outros intencionalmente alarmistas, deixam-nos sem chão e titubeantes sobre que análise correcta, eles nos merecem.
Há toda uma amálgama informativa, uma poluição ou ruído suspeito que nos deixam que nem baratas tontas, sem descortinar o que será ou não verdadeiramente credível !
Sinto-me de dia para dia, como que pisando um terreno minado.  Sinto um receio terrível de manipulação das sociedades, com fins menos nobres e assustadores !
Pasmo, como muita gente que deveria ser esclarecida, pragmática e reflexiva, embarca em tudo o que lhe cai nos espaços informativos.
Desde mails a "venderem" explicações religiosas e apocalípticas para esta punição planetária, outros que defendem teorias fortemente consistentes, capazes de influenciar pessoas de excessiva boa-fé, em conspirações  demasiado bem "boladas" e urdidas meticulosamente, para alcance de desígnios políticos e sociais maquiavélicos ...
... de tudo roda frente aos nossos olhos, numa montagem perfeita de desinformação, contra-informação e outras intencionalidades, aproveitando a ignorância, a impreparação, e a falta de cultura de um povo, que sabemos terreno fértil a estas investidas ...

E depois, continua  o medo, o medo tenebroso que grassa e nos deixa, no mínimo, apreensivos.
O panorama português, parece mostrar alguma contenção e controle do flagelo ... ainda !
Todos os dias receio ver que a actualização das notícias, nos possa trazer  um "boom" explosivo, como aconteceu em Itália e em Espanha ...
Apavoro-me olhando as perspectivas de uma América, cujo presidente terá em cima de si, para a História, o ónus do avanço da pandemia, por incúria, estupidez, arrogância ... BURRICE, obviamente ...  E claro, por miseráveis interesses pessoais, económicos e políticos !
E apavoro-me mais ainda, com a entrada do vírus no Brasil, verdadeiro barril de pólvora dada a sua extensão, a sua população e as suas assimetrias sociais, com condições de infinita miséria e desprotecção.  De novo, pela mão de um presidente inclassificável, um atrasado mental à solta, um provocador inconsciente ... um ASSASSINO potencial e impune !!!

Com tudo isto, sinto-me demasiado cansada !...

Hoje, o meu "diário de bordo" não ajudará ninguém ... pelo que me penitencio.
Talvez hoje seja eu quem precisaria de colo, de um abraço, de um carinho ... Daqueles ... interditos ... pele com pele !!!

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !




Anamar

segunda-feira, 30 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA "- HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 19




Ontem falhei a minha crónica de caserna ... o meu diário de bordo ...

Há dias assim, em que por mais que espremamos os já parcos neurónios válidos, pouco adianta ... porque nada minimamente interessante conseguimos parir ...
E ontem, foi um deles.  O meu dia 18, pouco tinha p'ra contar, e o cansaço que silenciosamente como este virús maldito, nos vai dominando, mas que se vai sentindo como uma peste que avança, deixa-nos assim, amarfanhados, sem chama, sem luz ... sem vontade ...
Todo o élan do início, toda a adrenalina que parecia tornar-nos invencíveis, claudica já, como a força e a coragem, claudicam também.

Mas depois de uma pausa, depois de mil e duas vezes ( porque mil e uma já havíamos gasto ) nos dizermos que a resiliência é coisa do nosso povo, que a coragem é coisa da nossa geração, e que a força p'ra continuar é coisa da juventude de que não queremos abdicar nunca ... sacudimos a água das penas, olhamos adiante, ainda que o horizonte pareça estar turvo lá longe, abanamos a alma e o coração ... e "ala que se faz tarde" ...
Recomeçamos a injectar-nos doses cavalares de esperança, recomeçamos a esgrimir argumentos com o lado escuro do nosso eu, lembramos que temos exemplos sérios e responsáveis que dar às nossas crianças, aos nossos jovens, aos nossos netos e filhos e, talvez por isso, também por isso, como uma árvore ancestral, fincamos mais fundo ainda, as raízes, compomos o aprumo e seguimos ...

A mata está cheia de novas flores.  Eclodiram do nada, parece ... com a chuva mansa que foi caindo de um céu uniformemente cinzento.
Mas era uma chuva mansa ... adoçou-me o caminho, aconchegou-me os pensamentos, fez-me mesmo sorrir, à medida que as gotas me pingavam sobre a cara.
A música que agora me acompanha no trajecto, silencia ao transpor os portões ... porque na mata manda quem lá vive ... e do chilreio da passarada não prescindo ...
É um hino à Vida, um hino à esperança, um hino ao amor ...

O tempo é curto.  A vida é breve.  Não há lugar a desperdícios, e apesar de vivermos neste momento um hiato nas nossas existências, há que valorizá-las sempre, rodeando-nos do essencial, escolhendo o fundamental, preferindo aquilo que nos compensa ... saboreando com deleite o que nos dá gosto !...
Em suma ... de uma vez, aprendendo a viver !...

Ofereço-vos a propósito, um poema que me chegou às mãos.  Um poema sensível, realista ... um poema que nos abraça e nos aquece, fazendo-nos sentir quão necessários, importantes e imprescindíveis mesmo, é cada um de nós, no Universo !!!

 " MINHA  ALMA  ESTÁ  EM  BRISA "

Contei meus anos e descobri que tenho menos tempo para viver a partir daqui, do que o que eu vivi até agora.
Eu sinto-me como aquela criança que ganhou um pacote de doces ;  o primeiro comeu com prazer, mas quando percebeu que havia poucos, começou a saboreá-los profundamente.
Já não tenho tempo para reuniões intermináveis em que são discutidos estatutos, regras, procedimentos e regulamentos internos, sabendo que nada será alcançado.
Não tenho mais tempo para apoiar pessoas absurdas que, apesar da idade cronológica, não cresceram.
O meu tempo  é muito curto para discutir títulos.  Eu quero a essência, minha alma está com pressa ... Sem muitos doces no pacote ...

Quero viver ao lado de pessoas humanas, muito humanas.  Que sabem rir dos seus erros.  Que não se consideram eleitos antes do tempo.  Que não ficam longe de suas responsabilidades.  Que defendem a dignidade humana.  E querem andar do lado da verdade e da honestidade.
O essencial é o que faz a vida valer a pena.
Quero cercar-me de pessoas que sabem tocar os corações das pessoas ...
Pessoas a quem os golpes da vida, ensinaram a crescer com toques suaves na alma.
Sim ... Estou com pressa ... Estou com pressa para viver com a intensidade que só a maturidade pode dar.
Eu pretendo não desperdiçar nenhum dos doces que eu tenha ou ganhe ...
Tenho a certeza de que eles serão mais requintados do que os que comi até agora.
Meu objectivo é chegar ao fim satisfeito e em paz com os meus entes queridos e com a minha consciência.

Nós temos duas vidas.  A segunda começa quando percebemos que só temos uma ...

                                                     Mário de Andrade


Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

sábado, 28 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA "- HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 17

AS  ANDORINHAS






E depois há dias assim ...
Não sei se foi das raízes, se é mesmo o maldito espelho que não está a ajudar nada !
Levantei-me já cansada, com o peso nas costas ... Acho que não é bem nas costas, mas mais para o meio do peito ...
Ainda na cama, ligo o telemóvel que durante a noite não tem ordem de dar um pio, e pronto ... deparo-me com a tragédia bem vívida, bem real ... outra vez à minha frente.  Não era pesadelo nocturno !...  Mais de cinco mil infectados ... cem óbitos !
E nem espiolhei ainda a realidade dos países mártires ...
Países de coragem, de luta, de abnegação, força e fé !  Fé nos seus povos que continuam a esbracejar, titanicamente,  como já li, numa praia enfrentando o tsunami...
O soco  seco, no estômago, fez-me retomar a realidade.
Ficar na cama seria uma opção.  Aquela, era a que eu queria, podendo apagar em sonhos de esperança, o pesadelo.
Mas, disse para mim mesma, que não era solução !  Afinal ... logo, amanhã, depois , a realidade nunca escamoteável, estaria sempre além das minhas janelas, sem apelo ...

Assim, mesmo estando também "escaqueirada" da lesão muscular contraída na passada segunda-feira, lá me levantei.
Para abrir a janela do quarto, passo por um famigerado espelho, e foi aí que voltei a constatar o inevitável :  Rosto macilento, olheiras vincadas de noites mal dormidas, "preguinhas" de apreensão no meio da testa, conferindo-me um cenho carregado ... e claro ... uma auto-estrada previsível no meio do cabelo, que está reclamando à minha revelia, a cor com que Deus Nosso Senhor me acha ajustada nesta altura do campeonato !.....
Torci o nariz e pensei :  hoje, o "restaurador" comprado no super  e cuja eficácia desconheço, terá que entrar em acção.  Porque ... pelo menos isso !  O meu astral não poderá piorar à custa destes dramas femininos !
A questão era saber se escolhera bem o tom... Vamos que de repente eu me torne tricolor, como as gatas ?!...  😄😄😄

Passando adiante na minha história, voltei a meditar sobre a "nojentisse" crescente, exibida sem pudor, humanidade e moral, pela Europa de norte.  Xenófoba, discriminatória, egoísta, e desconhecendo a palavra solidariedade, "estranha" e exige esclarecimentos  (de alguma forma ), que justifiquem a incapacidade dos países do sul ( com menos recursos, economicamente mais desfavorecidos e fortemente golpeados neste momento pela catástrofe ), para enfrentarem a desgraça que sobre eles se está a abater ...

"Nojenta" classificou e bem, António Costa, a declaração infeliz, desapropriada e inclassificável, do ministro holandês, em recentes declarações.
Mas  infelizmente, não apenas a Holanda inviabilizou a aprovação das eurobonds, medida tentada no Eurogrupo como solução possível para mitigar economicamente a recessão dramática que eclodiu e avançará, e que é tão destruidora para as sociedades dos países economicamente mais débeis, como o coronavírus ...
Os senhores do dinheiro, economias mais fortes e folgadas, com a Alemanha a liderar, fazem perigar a unidade e o espírito que subjaz ( já não sei ... ) à criação da União Europeia.
Valores tão básicos e importantes como a solidariedade dos povos, está a esfrangalhar miseravelmente, nobres princípios, objectivos e metas, mentores da criação dessa Organização.
Parece esquecerem-se os compromissos assumidos da erradicação da pobreza, reforçando-se a coesão económica,  e o favorecimento do desenvolvimento sustentável das sociedades com essa mesma coesão,  a promoção da paz e do bem estar dos cidadãos em liberdade e justiça ... entre outras linhas programáticas de base, que nortearam a criação da referida instituição ...

Nos tempos do "sonho" ... porque agora, na altura em que deveriam ser lembrados, respeitados e postos em prática ... o egocentrismo das potências dominadoras surge nas formas mais hediondas ....
Afinal, "casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão" !.....
O Homem no seu pior !....

Mas pronto ... as andorinhas voltaram !
Vi-as ontem, rodopiando na mata.  Olhei e sorri aos seus voos rasantes, portadores de esperança, de renovação, de certeza, de confiança e de promessa ...
De que tudo voltará a ser como foi ... de que a vida voltará a saber sorrir-nos ... de que as Primaveras continuarão a despontar, como as flores ... de que a Vida vencerá a Morte ...
... e que haverá outros Marços azuis e não negros ... de alegria e felicidade para todo o Mundo !...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !




Anamar

sexta-feira, 27 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 16


CU-CU ...

Cheguei ...

Já me tinham estranhado ???

No meu décimo sexto dia de reclusão, pouco tenho para vos contar.
Hoje foi dia de caminhada, e só esse facto acende um sol na minha vida !...  Como eu, havia mais quem aproveitasse as potencialidades daquele espaço, para fazer desporto, ou simplesmente passear ao ar livre, só, ou com os seus animais de companhia.
Isso só é possível porque ninguém se cruza com ninguém, e as pessoas vêem-se de bem longe, em veredas diversas.
Usufrui-se da Natureza pujante nesta altura do ano, da forte oxigenação do ar, do silêncio,  dos sons únicos dos pássaros que livremente voejam por ali ... e da paz, que nos impregna a alma !
Parece que até o medo, a angústia e o peso da preocupação ( porque a preocupação pesa mesmo horrores, no nosso coração ), ficam lá fora, além dos portões.
Os melros de bico amarelo, residentes na mata, trinam em melodia afinada, as borboletas de cores vistosas perpassam de flor em flor,  e ... vi hoje ... as andorinhas já cá estão !!!   Sempre sorrio enternecida, quando as olho !...

A minha programação definira para hoje, uma tarde de teletrabalho.  Melhor dizendo, uma tarde para cumprir uma lista exaustiva, previamente elaborada, de chamadas telefónicas.
Família de longe, amigos de longe e de perto ... enfim ... a tentativa de, do longe se fazer perto ...
Cada telefonema foi um esvaziar do coração, de quem estava do outro lado.  Percebe-se claramente que todos estão sequiosos de falar, de exteriorizar as emoções, contar das aflições, narrar os episódios da vida anormal que se vive, numa realidade que foi atropelada pelo destino ...
E como é bom, sabermo-nos queridos por todos e tantos !...
Os afectos são, neste momento, mais vitais ainda, à sobrevivência física e psíquica de cada um de nós.  São um elixir doce, de vitaminas encorajadoras, de força  e ânimo ... que com frequência começam a faltar-nos !

E hoje fico por aqui.
Aqui da minha janela ... literalmente ... vejo a estas horas já, as ruas totalmente desertas.  Os carros passam avulsos.  Faz-se silêncio à medida que a noite cai.  As luzes por detrás das vidraças  são o único testemunho de vidas.
É estranho  ... mas fico feliz por isso !

Mesmo sem querer, o meu pensamento voa até aos hospitais ... percorro os corredores, adentro as enfermarias, vejo a luz difusa ... oiço os toques sincopados e ininterruptos das máquinas ... Olho os corpos silenciosos estendidos nas camas ... e vejo-os a eles ... anjos sem asas, de rostos marcados, olhos macerados pelo cansaço ... medo também, estampado nos rostos ...
E ergo, daqui, do conforto da minha casa, uma só palavra, em surdina ... OBRIGADA !...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

quinta-feira, 26 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA "- HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 15






NA  CORDA  BAMBA !...

Ontem deitei-me profundamente angustiada, desanimada, desencorajada ... apavorada.
Os números da pandemia pelo mundo fora, ultrapassam o meu conceito de pesadelo.
Dizia  para mim, que por mais pensamentos positivos que fizesse, por mais aparente descontracção que fingisse demonstrar  desde logo para mim mesma ... por mais auto-convicção, de que é só preciso ter calma, resiliência e paciência ( porque um dia destes o folhetim acaba, a página vira e acordamos libertos do que havia sido, tão somente, um brutal pesadelo ) ... de pouco serviu.
Sentia-me perfeitamente encurralada, perdida em estrada sem escapatória ...
Eu que quase me desabituara de chorar, agora, do nada, as lágrimas caem-me cara abaixo, num estado de espírito esfarrapado e num desequilíbrio que me assusta.  Lembro muito a fragilidade emocional da minha mãe, nos últimos anos, de quem dizíamos a brincar, ter o coração ao pé da boca ...

Ouvi a propósito, ontem, um depoimento de um psicólogo que dissecava as dificuldades sentidas por este regime de excepção que nos enclausura, sem fim à vista.
E retive algo que me parece muito importante : dizia ele, que um dos primeiros passos para suportar com sanidade este cárcere forçado, é ter aceitação dos nossos estados de espírito, sem brigarmos connosco mesmos, por os acharmos de fragilidade inadequada, por sentirmos que o auto-controlo que em situação normal é imprescindível à nossa segurança, se está a esboroar.
Aceitarmos pacificamente a angústia, a incerteza, a ansiedade ... convivermos com o desânimo e o medo ... como respostas obviamente normais,  à violência traumática a que estamos sujeitos.
Se tivermos que chorar ... pois que o façamos.  Se tivermos que gritar ... idem.
Não desvalorizarmos ou sufocarmos qualquer tipo de emoção, é fundamental.

Depois, sentirmos que para além de nós, estamos a vivenciar fenómenos comunitários.  E estamos solidariamente a "trabalhar" também, para os ajudarmos a minorar, e a resolver uma causa comum.
Esse sentimento de altruísmo, fortalecer-nos-à  e ajudar-nos-à a reerguermo-nos e a sentirmo-nos mais "gente" ...

Falar e expressar os seus sentimentos, dividir com a família e os amigos ( neste momento, obviamente por via virtual ), as dificuldades, os desânimos, o medo e tudo o mais que nos povoe o espírito, sem medo de julgamentos e até mesmo de nos expormos, por parecermos não tão fortes quanto acharíamos ser-nos exigível , ou julgarmos estar a sossobrar à pieguice ... será outro passo a dar ...

Contactar sempre com os nossos afectos, por longe que estejam.
As novas tecnologias são, neste campo, uma benção,  que há anos atrás nem sequer cogitaríamos quanto !...
O toque, a presença física, a voz real, a pele, o colo, o abraço ... o beijo ... vitais para o ser humano, agora impedidos de os usufruir, terão que ser remediados com as comunicações, seja de que natureza forem ...
Uma criança de tenra idade, a quem de repente são subtraídas as presenças de avós, de tios, primos, a ambiência habitual e segura da escolinha, dos amigos, dos professores ... enfim, as figuras de referência afectiva ... tudo ao mesmo tempo ... precisa também readquirir a estabilidade e a normalidade possíveis para que, sem poder entender o que a rodeia, não sofra um traumatismo emocional com consequências gravosas excessivas ...

Depois, teremos que instalar rotinas neste novo esquema de vida.  São obviamente rotinas totalmente diversas  das nossas conhecidas rotinas, da vida fora da "guerra" ... mas ainda assim, rotinas ...
Quaisquer umas ... o que nos der na telha fazer, sem obrigatoriedades ou excesso de zelo.  Sem "forcings" desnecessários .  Até porque temos todo o tempo do mundo !
Vamos mesmo surpreender-nos com as aptidões e capacidades que possuímos, sem o saber !
A vida é vista com outros olhos, os valores assumem outra dimensão, tudo está forçosamente relativizado.  Não se corre mais, para nada !!!
E por isso ... sem stress !...

Acordei com a determinação de que hoje seria dia de faxina, e por isso, a "Margarida-empregada" passou a receber ordens da "Margarida-patroa" ... areia dos gatos, rega das plantas, limpeza de pó ( de uma só das divisões ... nada de exageros ... e sem batotas ! ), arranjo das casas de banho ... etc, etc, etc ...
Como "adoro", sempre adorei e me realizei com todas estas ocupações domésticas 😌😌😌 ... resolvi, para "minorar os estragos",  seguir os conselhos da minha filha mais velha ( parecida comigo pelo menos nesta área ) ... e com a janela aberta  e a  música aos berros, desatei a aspirar furiosamente, como se não houvesse amanhã !...

Acreditem ... dá um resultadão !!!

E por hoje, é tudo.  Até amanhã !  Continuem bem, por aí ...

Anamar

quarta-feira, 25 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 14

" VAMOS ... "




Já não olho o relógio .
Sei que o dia começa quando os primeiros alvores da madrugada me penetram a penumbra do quarto.  E sei que a noite começa quando o sol adormece, lá longe no meu horizonte.
E o dia começa quando entende começar ... e a noite cai quando entende ser a hora ...
Nada depende de mim, ou é como eu quero ...

Sei que os segundos parecem minutos e estes parecem horas.  Sei que as horas duram dias e as semanas não passam, apesar do meu desejo.
Tudo corre ao ritmo que tem que correr, e o Homem é uma mera partícula na engrenagem da vida ...

Sei das absurdas estatísticas dos números que nos assombram as noites, e sei da força de palavras como solidariedade, partilha, afecto, coragem, generosidade ... entrega ...
Mas também sei o poder destrutivo do medo, da angústia, da incerteza, da dor ... do cansaço ...
E também pouco depende de mim, ou da minha ânsia de repor tudo  o que era aparentemente normal ou conhecido ...

Vi hoje que as glicínias  floriram ...
e a Primavera que não fora avisada, continuou carregando as braçadas de flores frescas, os pássaros e as mariposas que volteiam pela mata ... como sempre ...
E eu olho-os e percebo da indiferença da Natureza face à pequenez do Homem ...
Tudo é perfeição fora do caos que nos atormenta.  O sol continua a brilhar, e o riso das crianças sempre será o bálsamo com que o Universo nos apazigua os corações ...

Hoje, as ruas estão ainda mais desertas, as cidades mais vazias e indiferentes ao frio gélido que nos atormenta a alma.
Hoje é o décimo quarto dia do pesadelo que atropelou as nossas vidas.
O silêncio que se escuta e que torna a noite um fantasma aterrador, é pesado, estranho e incompreensível ... e sofre-se esse silêncio por detrás de cada vidraça iluminada !
A distância e a ausência atormentam e matam aos poucos ...

Mas se tudo parece ser porque tem que ser, talvez não tenha que ser o que não quisermos que seja ...
Vamos mudar as regras deste louco tabuleiro de xadrês !... Vamos subverter as cartas viciadas desta tômbola maquiavélica !... Vamos acreditar que podemos, e que a saudade da ausência se transforma na força da presença de todos os que amamos !... Presença de todos os que ansiamos voltar a abraçar, vontade do sonho que desejamos em breve voltar a sonhar ... desejo da vida adiada que acreditamos poder reinventar ... coragem para erguer do chão o peso da desistência ... esperança em dias azuis de Marços que hão-de vir ...

Vamos ...

Eu, continuo em casa !...

Até amanhã !   Fiquem bem, por favor !

Anamar

terça-feira, 24 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 13





FORÇA  PORTUGAL !

Hoje não estou boa companhia para vocês.
Arranjei ontem uma lesão incomodativa na lombar, ao fazer inadequadamente um esforço que me empanou os movimentos.  À conta disso dormi precariamente, e à conta de não ter aliviado a cabeça com um sono retemperador, acordei angustiada, cansada, sem ânimo ou vontade.
Ficara a ouvir as notícias da pandemia mundial até tarde, e o panorama de Portugal em particular, desestabilizou-me totalmente.
Toda a mentalização que tento fazer, todo o positivismo de que procuro imbuir-me, me abandonou.  Entrei em stress, ansiedade e medo.  Sentia-me acossada, com aquela sensação de impotência de estarmos na iminência de um perigo, sem termos para onde fugir ...
Os relatos das diferentes realidades sociais que se vão conhecendo, apavoram-me.
Desde logo o ambiente vivido em meio hospitalar, com profissionais a atingirem níveis de exaustão que fazem perigar a sua saúde, não falando já do contágio de que são vítimas, por insuficiência nos meios de protecção pessoal ... o horror que atinge as instituições que albergam idosos, entregues à sua sorte, sem nenhum tipo de protecção e quase sempre com condições precárias de cuidados, assistência sanitária e outras ... o abandono dos sem-abrigo, eles que só por si e já em condições normais, constituem uma preocupação social acrescida ... não falando depois, de uma displicência notória bem visível, apesar do estado de emergência, nos hábitos dos cidadãos que continuam a desafiar a sorte e as regras, expondo-se, mas sobretudo pondo em risco a vida dos seus concidadãos, com os comportamentos erráticos que assumem, parecendo ignorar tudo o que os rodeia ...
Tudo isto me está a fazer um mal sem tamanho !

Hoje não era dia de caminhar, e nem fisicamente o poderia, mas era o dia da semana destinado a comprar alguns bens alimentares, pelo que desci  protegida como habitualmente para este fim, ao Continente situado em baixo, no meu largo.
Pensava eu que talvez em plena hora de almoço, a afluência fosse menor ... Três quartos de hora na rua, ora num pé ora no outro, sem posição para estar ... lá entrei.
Muitas faltas ... prateleiras desfalcadas.   Para azar meu, o que precisava não constava.  Comprei o resto, e subi a pôr em casa as compras, para voltar a descer, tentando outra superfície comercial, ainda perto.
Outra fila de metros e metros. Ora um pé  ora outro, suportava o meu mau estar físico e o meu desespero.
Apesar do distanciamento de segurança entre as pessoas, para todos os efeitos são locais de exposição, logo, de risco ...
Quanto mais rápido tencionara desenvencilhar-me das compras, mais tudo se complicara ...

No regresso perguntava-me até quando se alastrará este estado absolutamente anormal de vida ?  E até quando as nossas resistências física e anímica o suportarão ?  E até quando as famílias aguentarão a pé firme e coesas, todos os atropelos que este esquema desestruturante desencadeia ?  E até quando as crianças e os jovens suportarão sem maiores danos, o regime de clausura, de horizontes fechados ?  E como sairão de tudo isto e como resistirão, os nossos velhos, maioritariamente confinados a espaços exíguos, precários e de solidão profunda ?...
Infinitas perguntas ... ausência total de respostas !...

Entretanto a Alemanha recebeu doentes italianos com Covid 19, numa ajuda humanitária inestimável ... as empresas em Portugal reestruturam-se em tempo record, para fabricarem equipamento, máscaras e viseiras para os profissionais de saúde ... reabilitam-se ventiladores  na posse de entidades públicas ou privadas, colectivas ou individuais, que estão inactivos, carecendo ou não de reparação...  ( acredita-se poderem ser recuperados 200 ventiladores, nesta plataforma solidária, criada através das redes sociais ) ... João Nascimento, um jovem estudante de Neurociências em Harvard, sensibilizado com o quadro devastador em Itália, lançou um repto para a criação urgente de novos dispositivos, e em apenas dois dias, existem já cerca de 800 especialistas dispostos a colaborar com João Nascimento e com uma empresa de Guimarães, que se propôs produzi-los ... médicos mesmo aposentados, responderam de prontidão no socorro dos que precisam ... e fizeram-se presentes ... fazem-se doações avultadas, para o combate à pandemia, por parte de figuras públicas.  Cristiano Ronaldo não poderia estar obviamente indiferente ...
Todo o país tenta mobilizar-se, numa luta que é desigual, na qual não podemos sossobrar e da qual teremos que sair ganhadores ...

Tudo isto, me povoava ainda mais o espírito, hoje que me sinto particularmente fragilizada e sensível ...
Por mim passou um autocarro, praticamente vazio, a cumprir horário.  No visor do destino, podia ler-se :  "FORÇA  PORTUGAL" ...
... e a quatro e quatro as lágrimas me escorreram pela cara ...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor .

Anamar

segunda-feira, 23 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA "- HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 12





SOLIDÃO

Não, não estou em solidão !  Estou apenas só, num isolamento voluntário, de que hoje cumpro o décimo segundo dia. E isso são coisas absolutamente diferentes !

O dia iniciou-se com a calma e a normalidade de quem tem todo o tempo do mundo para tudo o que inventar fazer.  Tomei o pequeno almoço e segui para a caminhada habitual.
Neste momento, é o único período do dia em que me sinto verdadeiramente liberta.  E saboreio-o até me esbaldar de sensações de paz e harmonia com tudo o que me cerca.  É uma espécie de clímax vivido no meio da Natureza, como não canso de repetir.
O sol, embora não excessivamente forte, acaricia-nos por dentro, e tudo quanto tem cor, tem mais cor ainda, com a sua luminosidade clara, de início de Primavera.

Como sempre, aquela hora e meia que me concedo, afastada de tudo e todos ( em que os sons são apenas a orquestra da passarada, os cheiros são os que emanam das árvores e arbustos em plena floração, o silêncio, que é audível,  é o perpassar leve da brisa na ramagem, e a felicidade é o que experimento por poder  desfrutar de tudo isto, numa comunhão mais que perfeita ) ... é um espaço mental que me reservo, p'ra me articular, p'ra ordenar ideias, expandir emoções, falar-me em surdina sobre todas as minhas interrogações, angústias e incertezas ... e desta forma alcançar um estado de alma equilibrante, absolutamente vital nos dias que vivemos.  Em suma, é o meu momento zen do dia que encaro ...

E pensava eu então, na palavra solidão ...
Houve alguns períodos da minha vida em que talvez a tenha efectivamente experienciado  no corpo e na alma.  Períodos obscurecidos de ausência de esperança, de desânimo, de abandono ... Períodos em que as paredes deste quarto se alteavam na proporção da minha desistência ... Períodos em que, virada para dentro de mim apenas, num confinamento doentio e triste, não enxergava muito além do horizonte  curto  que  conseguia ver ... horizonte  toldado  por  uma  neblina  cerrada de manhã de Inverno ...
Hoje, olho à distância esses dias mais conturbados e cinzentos da minha vida. Hoje, com mais maturidade, distanciamento e objectividade, relativizo todo esse pretérito, e sinto-me abençoada e grata por ter chegado até aqui, e por ter hoje esta alegria de viver.

E de repente, uma entidade estranha com uma dimensão entre 50 e 200 nanometros de diâmetro, tomou lugar nas nossas vidas, sem pedir licença, entrando de intruso e destruidor.  E tudo se põe de imediato em causa, e tudo se repensa, se sopesa, se valoriza.
E de repente, o que não era importante, passou a ser.  E tudo o que o era desmedidamente, talvez não tivesse justificação para o ser.
E de repente, o tempo atrás do qual corríamos de manhã à noite, ficou sobrante nas nossas vidas.
E percebemos como a solidão que achávamos que vivíamos, era uma mentira, face à riqueza das nossas existências.
E aprendemos o valor da palavra solidariedade.  E reaprendemos o significado das palavras amor, amizade e esperança ...
E reolhámos os nossos, e passámos a falar-lhes com outra paz e outra bonomia.  E relembrámos como era rir com eles, nos tempos em que os nossos filhos ainda nos sentavam o colo ... e que a vida, sem sabermos porquê, distanciou ...

E no verde da mata ... que também é verde da esperança ... despi o susto, apaziguei a alma e sorri. 
E percebi que estou mais acompanhada do que nunca, como se, constantemente infinitas janelas se abrissem ( como em Itália se cantava para espantar o medo ), e delas todos os rostos de todos os que me amam, aparecessem e dissessem : VAI  FICAR  TUDO  BEM !!!...

Até amanhã e fiquem vocês, também bem !

Anamar

domingo, 22 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 11






ESPERANÇA


Hoje apetecia-me  baldar-me ... apetecia-me fazer-me de songamonga, de esquecida, ou fugir ( p'ra onde ?... não tenho !... ) ... Afinal hoje é que não tinha mesmo nada de especial para vos contar, neste décimo primeiro dia de clausura.

O dia amanheceu lindo de sol, e depois, apanhando-nos distraídos, começou a semear nuvens aqui e mais além, que se foram avolumando e tornando a tarde bem mais desmotivante.
Disseram-me tratar-se de cirros, nuvens formadas na alta troposfera a 10000 Km de altitude, associadas a tempo agradável, cuja orientação indica a orientação do vento.  As coisas que as pessoas sabem ! ...
Levantei-me meio estremunhada pelas dez e tal, ainda atarantada por uma insónia malfadada que me atazanou o espírito a partir das seis da manhã.   Ora estamos exactamente numa época em que as insónias são de todo desaconselhadas, já que criam terreno fértil para que as sensações mais depressivas nos atormentem.  E foi o que me aconteceu.
Neste clima de medo, insegurança, paranóias, cansaço já a instalar-se , neurastenia crescente propiciada pelo isolamento voluntário já longo e sem fim à vista, uma insónia é um desastre total !
Nada de bom nos assalta, pulamos de desgraça em desgraça, de preocupação em preocupação, como rastilho em restolho deixado ...

Decidi portanto e rapidamente preparar-me para uma caminhada, que funciona como um copo de tinto para levantar o astral.
Temperatura amena  como disse, excesso de pessoas nas ciclovias e vias pedonais, procurando a higienização  mental e o desenferrujar de articulações meio paradas, fruto da permanência e uma inactividade acrescida, em casa.  Contudo, não mais do que pares  circulavam, e ainda assim, bem afastados uns dos outros.
O regresso a casa e o encarar de uma nova semana, que será por certo apenas mais uma de uma grande história nas nossas histórias, o voltar ao silêncio de uma casa onde apenas eu e os gatos atestamos que por aqui há vida ... quase me atiravam p'ra uma fossa danada, e nem o "sentir" que por todos os lados as vivências são as mesmas, as dificuldades também, e nem o saber que todos arrastamos correntes para melhor ou pior irmos conduzindo adiante este barco, no meio de uma tempestade sem tamanho ... me animava.
Sei exactamente que é a hora de, de longe nos sentirmos perto.  Sei exactamente que por detrás de cada janela iluminada, haverá o esforço comum da solidariedade que nos devemos, e que importa respeitar .  Sei exactamente que advirá da robustez das cadeias criadas, o sucesso na vitória ...

Sei tudo isso, mas ...

Foi então que o telefone tocou e foi a vez de, do Kiko ao António passando pela Vitória, naqueles seus discursos parcos de palavras, nas idades desajeitadas que detêm, os meus miúdos me dizerem "olá avó ... como vai isso por aí ?"...
E pronto ... lavou-se-me a alma outra vez.  E estou novinha em folha para amanhã recomeçar uma nova semana ... com esperança, confiança e certa mesmo que a vida se reinventa, se reorganiza e arranja as formas mais sub-reptícias de nos compensar, de nos amparar  e não nos deixar despencar para o abismo existencial !

Até amanhã e façam o favor de continuarem benzinho ... 😄😄😄

Anamar

sábado, 21 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 10



Hoje, sábado dia 21 de Março de 2020 ... queria escrever-vos um poema.
Um poema que encerrasse toda a esperança que esta Primavera estranhamente chegada às três e cinquenta do já passado dia 20, nos trouxe ... ou pelo menos tentou.
Um poema que honrasse o dia, também ele Dia da Poesia.
Mas, não consegui.
Nada me sai de um coração tão entupido de emoções, que carecia como do pão para a boca, de esvaziar, de soltar as palavras encalhadas, de aliviar o sufoco no peito e na alma ...
Mas não consegui.
Olho o dia, que se abriu cinzento derramando chuva copiosa de um céu que parecia chorar as lágrimas que todos nós, se calhar não conseguimos chorar por aqui.
Olho o dia, que agora reabriu um sol tímido, tornando mais azuis os rasgões que já espreitavam promissores ... e penso : a nossa história é isto mesmo ! É o azul depois do negro ... é a bonança depois da tempestade ... é a vida depois da morte ... é a esperança depois do desespero ... é a alegria depois do cansaço ...
É a Primavera depois do Inverno ... é a luz depois das trevas !

Hoje, sábado dia 21 de Março de 2020, os números sobem absurdamente em Itália, sobem em Espanha, sobem nos Estados Unidos e em Inglaterra e no resto do mundo ... e no meu país ...
E o medo cresce, exponencialmente com esses números.  E a impotência parece tolher-nos e imobilizar-nos.
Queria dizer-vos tudo o que sinto.
Mas não consegui.
E no entanto, nunca se disse tanto em tão poucos dias.  Nunca tantos corações se abriram em tão pouco tempo. Nunca tanto se falou, se contou e se riu também ... porque há que exorcizar os fantasmas e fazer de conta que o terror não levará a melhor e não nos dominará !
E arregaçar as mangas, porque o flagelo não passará enquanto soubermos a palavra AMOR !
Nunca tantos heróis se corporizaram.  Nunca tantos laços se estreitaram, tantos elos de cadeias invisíveis se apertaram ... tantos braços se deram ...

Hoje dia 21 de Março de 2020, no meu décimo dia desta caminhada de susto, queria escrever-vos um poema ...

E porque não consegui, deixo-vos simplesmente este emocionante vídeo da BBC que vocaliza por certo, tudo o que todos queriam dizer ... tudo o que eu tinha querido dizer ...
... e NÃO  CONSEGUI !

Até amanhã !  Por favor, fiquem bem !




Anamar

sexta-feira, 20 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 9








"  A  GENTE  FICA ... "


Hoje amanheceu cinzento, com chuva copiosa fazendo jus às nuvens encasteladas aqui por cima.
A Natureza parecia prantear a desgraça que assola a raça humana.
Ainda na cama, como vos contei, passo a limpo a programação do dia.  Mais um, o nono do meu isolamento, ainda totalmente bem de saúde  assim como todos os meus.
Hoje seria dia da caminhada pela mata, que neste momento me é imprescindível para a manutenção de um equilíbrio físico, mas sobretudo psicológico.  A possibilidade de poder continuar a realizá-la no Estado de Emergência que se vive, foi para mim, uma medida absolutamente gratificante.
Depois, seria dia de algumas compras, visando um período dilatado de tempo em que as provisões me asseguram a não necessidade de descer ao super mercado.

No caminho até à mata, que faço com  ritmo estugado, ninguém comigo se cruzou. Parecia mais uma manhã de domingo, do que um dia útil.  A mata estava deserta como seria expectável, até porque chovia.  Era uma chuva mansa e doce, que tornava mais  vívidos todos os verdes da policromia que me rodeava.  As árvores e arbustos agora em rebentação franca, com uma pujança e uma beleza, que só a Primavera que amanhã chegará  garante, emocionam-me, renovam-me, dão-me esperança e coragem.  A Natureza que nunca nos falta, aí está cumprindo o ritual da VIDA !
Os pássaros  todos, saltam, pipilam, esvoaçam e empoleiram-se de ramo em ramo.  No chão, placidamente, um habitante do bosque catava o que comer.  Nem deu por mim.  Estaria feliz !

Durante o caminho, dobrando os recantos, percorrendo os atalhos, respirando aquele ar leve e puro que nos enche os pulmões e acaricia a alma, pensei e conversei longamente com a minha mãe, de quem particularmente agora, o seu cólo me faz tanta falta !
Sei exactamente qual o diálogo que travaríamos.  Sei exactamente tudo o que me diria, o carinho com que me reconfortaria, as palavras com que me tranquilizaria ... se estivesse por aqui ...
E sei-o porque as pessoas partem ... mas ficam.  
Ficam no que disseram ao longo dos anos, no que fizeram ao longo das vidas, no que partilharam ... no que deram ! Ficam na forma como deixaram o seu "sinal" impregnado no nosso ser.
Porque o amor é uma corrente de fios invisíveis que não se destrói. Atravessa os tempos e as vidas ...

E depois continuei, pensando na gratidão que sinto para com a humanidade, que  neste  momento   está  mais  presente,  é  mais  solidária,  mais  desperta,  mais  próxima ... mais  " gente " !
Quando ligo o telemóvel pela manhã, os sinais de alerta de vária ordem inundam o meu acordar, às vezes ainda meio entorpecido.  E são as mensagens, as comunicações via whatsapp, as palavras enviadas por messenger, os mails, o tlim-tlim do Facebook ... os telefonemas mais de perto ou mais de longe, trazem-me os amigos, trazem-me as vozes familiares, os afectos dos que não se tocam mas se sentem ... e sempre nos dizem : " estou aqui deste lado, para o que der e vier " ...
Trazem-me os rostos de quem as saudades apertam.  Trazem-me o sentir de quem, mesmo de longe se faz presente, numa palavra, num conselho, numa gargalhada, num apoio.
E mesmo os que não conhecemos, organizam-se, juntam-se para informar, para nos actualizar as notícias, para nos dar sugestões ... para nos mostrar que não estamos sós neste mar encapelado ... se mais não for, para nos dizerem : "ergue-te, aguenta com força, com coragem e sem medo.  Haveremos de vencer a dor, haveremos de vencer a batalha ! "

Desculpem ... hoje não estou muito inspirada.  Sinto-me cansada, assustada ... doída na alma e no coração ao ver quão galopante avança este vírus destruidor.  A impotência assola-me, exponencialmente com ele ! ...

Ousei pegar numa postagem de uma amiga lá da minha terra, do meu chão, do meu Alentejo ... e vou colocá-la aqui, porque sei que gostará até, que eu o faça.  Obrigada Lucinha ! 

"Nenhum homem é uma ilha isolada, cada homem é uma partícula de um continente, uma parte da Terra.  Se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria casa.  A morte de qualquer homem diminui-me porque sou parte do género humano.  E por isso não perguntes por quem os sinos dobram ... eles dobram por ti ! "     
                                                                     John Donne

Até amanhã.  Façam o favor de ficarem bem !

Anamar

quinta-feira, 19 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 8

" A  CANSEIRA  DAS  NÃO - ROTINAS "

Dou em acordar angustiada.  Burrice minha, porque ninguém me manda devorar notícias até às duas da manhã ...  Depois, obviamente o sono fica prejudicado.
Assim, naquele período em que estamos mas não estamos exactamente bem acordados, muita coisa revolve os meus neurónios.
Em primeiro lugar tentei situar-me no tempo, já que o período que vivemos nos deixa um pouco "off" em relação ao calendário. 
Aí pensei, pois, hoje é quinta-feira, quase já fim de outra semana, que agora demoram a passar ... e hoje é dia 19, dia de receber a pensão mensal ... Pois é ... e logo de seguida ... é verdade, hoje é Dia do Pai !
O meu, partiu há quase vinte e oito anos, e ainda assim continua bem presente na minha vida e no meu coração.  Onde estiver, para onde estiver lhe envio um enorme beijo com todo o meu amor e infinita saudade, e como sempre faço, lembrei-lhe quão preciso, mais do que nunca, da sua protecção e ajuda, que sei não me faltarão ...
Depois continuei a cogitar e voltei a sentir o peso sufocante dos dias que atravessamos.  Hoje é o meu oitavo dia de isolamento voluntário.
Expectei ser um dia algo diferente.  Afinal  hoje acordei no meio do Estado de Emergência em Portugal, decretado ontem pelo Presidente da República, o qual inclui e define as medidas restritivas comportamentais em relação à sociedade, no sentido desesperado de estancar o avanço do vírus mortal.
Pois bem, ao dirigir-me à janela, poderia dizer-se "grosso modo" que a manhã de sol que se fazia, repetia as rotinas do dia a dia, com pessoas circulando nas ruas, parando para darem dois dedos de conversa, sentando-se na esplanada do café que existe no meu largo, ou mesmo sentando-se nos bancos a apanhar sol, como no dia mais normal deste mundo !...

Entretanto Itália contabiliza quase 3500 mortos ... e pelos vistos, as pessoas ainda não entenderam a coisa ...

Debaixo de édredon,  esquematizo diariamente, o que vai ser o meu dia, este, o oitavo do isolamento voluntário a que me propus, como disse.
E aí, começa o filme ... tomar banho e vestir... pacífico ... Hoje não faria a caminhada profiláctica, por isso a roupa a usar seria a normal.
Iria ao pão, porque se acabara o último, comprado.  Teria que ir ao talho e adquirir ainda mais algumas coisas que estavam em falta. Dessa forma ficaria aprovisionada para cerca de mais uma semana.
A máscara e um par de luvas esperavam-me antes da saída.
Pôr o quê, primeiro ?  Ato a máscara à cabeça, calço as luvas e julgo-me apta a sair ... só que, penso, será que tenho dinheiro na carteira ?  Vou para abrir o porta-moedas mas lembro ... bolas, o dinheiro está infectado ... e faço o quê ? Volto a tirar as luvas, porque assim como assim, as mãos estarão desinfectadas ( acabei de as lavar e passar por álcool ). Pelo menos preservo para já as luvas ...  Conto o dinheiro, fecho a carteira.  Volto à casa de banho ... nova lavagem criteriosa, novamente álcool a desinfectar.  Regresso, calço de novo as luvas e ... agora sim, estou apta a seguir ....
Oh não !... O telemóvel repousa bem à minha frente, só que nem o vi ... Vou ter que o levar, pois podem querer comunicar comigo, e não respondendo, instalo a preocupação do outro lado ... A última vez que o desinfectei com álcool foi ontem. Já não deve dar ... Bolas ... e agora ?  Volto a tirar as luvas para lhe pegar, verificar o monitor e meter na mala ... Casa de banho de novo.  Nova lavagem e desinfecção das mãos ...
Bolas !!!...  ( não é bem isso que vocifero ... mas adiante !...)

Eis-me finalmente na escada.  Fecho a porta à chave ... tranquila, tranquila ... Nestas chaves sou só eu que mexo, não há crise !...  Enquanto faço este raciocínio laborioso, desvio o foco de atenção, claro, e apesar de ter na mão uma folha de papel com que tencionava carregar no botão para chamar o elevador ... népia ... já o tinha chamado com a mão desprotegida, obviamente !
Fula, fula , chamei-me uns quantos nomes e tentei aliviar o espírito ... afinal aqui no meu patamar vem pouca gente, pois é o último do prédio ... só eu e o senhor Lourenço, vizinho do lado ... ah, mas esse não está infectado !....
Mal assim concluí, disse-me : burra ... como se as pessoas tivessem cara de infectadas ou rótulo na testa !!!.... Olha ... que se lixe ! ( também não foi bem isso que eu disse ... mas adiante ! )
E segui para a rua.

Regressei, e hoje era dia de faxina ( assim o decidira ... sim, porque eu programo-me ... 😄😄😄 )
Lavei, cozinhei, reguei as plantas que parecem estar mais satisfeitas comigo em casa, tratei da logística dos gatos, tratei das casa de banho, da cozinha ... e consegui almoçar às quatro da tarde !... 😌😌
Sentei-me agora ... esfalfada.  Pensei queixar-me ao sindicato.  Mas como estou a laborar no regime de "Olívia patroa - Olívia costureira " ( lembram por certo a nossa saudosa Ivone Silva ... 😃), percebi que não valia a pena.  De resto, estou a fazer teletrabalho ... envio as instruções do computador do quarto para a cozinha, e policio-me sobre o desempenho !!!...

Bom, e tinha como sabem, encontro convosco hoje, para vos dar conta do que foi mais um dia por aqui, da minha janela, onde vivencio, em  comunhão com todos vocês, as dificuldades, as canseiras, as tristezas, o medo e a angústia que afinal todos experimentamos, neste pesadelo que nos assola.
Hoje procurei que os meus escritos  desanuviassem um pouco  tudo o que se vive, esperando que de alguma forma se tenham divertido com todo o meu desnorte, na ausência das minhas rotinas de sempre !
Afinal,  há momentos em que me sinto mais tonta do que um polícia bêbedo !!!... ihihih

Até amanhã e fiquem bem, se fazem favor !

Anamar   

quarta-feira, 18 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA "- HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 7




"Aqui da minha janela" pretende ser a compilação de folhas de um caderno que vou tentar escrever diariamente, neste período tão especial, tão particular e tão difícil das nossas vidas ... para que se algum dia pudéssemos esquecê-lo, o não esqueçamos !

Hoje, 18 de Março de 2020, às portas da Primavera, foi decretado o estado de emergência no meu país.  Procura assim conter-se esta escorrência assassina, de um vírus desembestado que atropela, trucida, aterroriza e mata ... indiferente, indiferente ao céu azul e ao sol dourado que nos ilumina ... indiferente aos sonhos e às vidas, que estão agora suspensos e esperam ... apenas esperam ...

A história vem mais detrás ... Hoje é o sétimo dia do meu isolamento social voluntário.
Mas ela vem ainda mais detrás ...
Chegou num dia em que as notícias davam conta de que em Wuhan, lá no outro lado do mundo, numa China tão distante que nos parecia inalcançável,  um vírus estranho, desconhecido e inesperado, desatara a matar gente.
As sinetas tocaram e a China armou-se até aos dentes. A China reinventou-se, cerrou fileiras, não abriu guardas.
Um país que consciencializou à força da dor, que aquela era a hora e que não havia lugar a hesitações, vacilações ou descaso, reorganizou toda a sua sociedade, em torno da luta que teria de travar-se.
Os médicos, os enfermeiros, todo o pessoal de saúde iniciaram  uma luta sem tréguas, dia e noite. A cidade de Wuhan foi  "encerrada" dentro de um perímetro sanitário de total isolamento.
As pessoas confinaram-se às suas casas, acataram e respeitaram integralmente todas as indicações das autoridades, disciplinaram os seus dias, sem cedências ou facilitismos, com ordem e responsabilidade.
A solidariedade social intensificou-se, a entreajuda instalou-se, a coragem e a transcendência emergiu ... e sobre Wuhan continuaram a voar pegas azuis ...

Morreu muita gente, morreu gente demais, num desafio que parecia não ter fim.  Mas hoje, reabilitada aos poucos a realidade em Wuhan, a China avança agora rumo à Europa fustigada a seguir, com altruísmo, partilha e ajuda.
De lá vieram médicos, de lá veio a voz da experiência mártir, de lá chegam ventiladores para mitigar quem já tem pouco ar a respirar ...

Porque, depois da China, Carnaval passado,  num continente que parecia suficientemente distante para estar tranquilo,  na Europa  os alicerces cederam.  A Itália iniciou uma escalada assustadora de casos de contágio, seguida da Espanha, da França, da Alemanha, do Irão, da Coreia ... e de um número interminável de países.  Portugal também não foi poupado.
A epidemia do Coronavírus, transformou-se em poucos dias, numa pandemia, no seu alastramento à escala do planeta.
Todos os organismos mundiais, nacionais e regionais na área da saúde e em todas as esferas sociais e políticas desenvolveram medidas concertadas, estratégias de acompanhamento, monitorização e combate ao flagelo.
190 mil infectados e mais de 8 mil mortos estremecem o globo. De leste a oeste, de norte a sul, sem respeitar fronteiras, credos, cores, ou línguas.

Portugal enfrenta neste momento, a subida exponencial da curva de infectados. Hoje, caminhamos para setecentos doentes.
Todos os especialistas na área da saúde e em todas as áreas complementares a esta, todas as estruturas sanitárias, todos os organismos sociais na pirâmide do poder e da responsabilidade se uniram, acreditando que haveremos de vencer esta calamidade atroz.
As escolas fechadas, as pessoas confinadas a casa, as ruas desertas, o país parado, as protecções pessoais usadas sem negligência ou esquecimento, uma reorganização activa implementada nas famílias, agora com vivências diárias obviamente mais complicadas de gerir, fronteiras encerradas, controle total de entradas e saídas do país, da mobilidade dos cidadãos, quarentenas voluntárias ou profilácticas  e consciencialização das populações, são medidas visíveis e obrigatórias.

Depois de um estado de alerta, e depois da Reunião do Conselho de Estado ocorrida hoje, o Presidente da República decretou o estado de emergência por um período de duas semanas, passível, se necessário, de ser alargado.

Continuarei a minha história amanhã, e amanhã e amanhã ...
Irei contando o que vejo, o que sei e o que sinto, aqui da minha janela ...

No móvel da entrada da minha casa, repousa a caixa das luvas descartáveis, juntamente com a máscara diária a usar, se necessitar em absoluto, de descer ...
Contar-vos-ei,  do olhar de relance que lhes deito ao passar, sonhando com o dia em que ali já não estejam, por desnecessárias ...
E contar-vos-ei também, como as vidas das pessoas se entrecruzam diariamente, com a proximidade que os nossos dispositivos electrónicos nos permitem ...
E farei as reflexões que me ocorrerem, na expectativa de pelo menos, eu, uma vez na vida, me esforçar para ver o "copo meio cheio" ...
Falarei da solidariedade, da angústia, da solidão, do sofrimento ... mas também das saudades, do medo ... da esperança e da certeza da vitória ...
Falarei do cansaço que às vezes me toma, e também dos afectos, que onde quer que estejam, têm braços compridos e sempre nos afagam ...
Falarei de como passo os meus dias.  De como engano o tempo.  De como tento manter a minha sanidade mental ...
Até porque, como diz este vídeo fascinante que escolhi para ilustrar este meu texto ... " A Primavera não o sabia" ... e sempre virá para nos restabelecer a confiança, a esperança, o sonho ... a VIDA !!!

Até amanhã !

Anamar

segunda-feira, 16 de março de 2020

" ATRÁS DAS GRADES "



Passei dias, passei meses, anos, décadas ... passei séculos e milénios ...
Lendo isto, praticamente me julgo uma lenda.
Ensinei muita gente que foi por esse mundo ensinar ainda mais gente ... e aprendi sempre com os que foram por esse mundo ensinando outros tantos ...
Fui vivendo, olhando, vendo e fascinando-me com tudo o que o Homem atravessou, os desafios que superou, as dificuldades ultrapassadas e os êxitos alcançados ... hoje, neste ano de 2020, do século XXI, no novo milénio ...
Maravilho-me com a sua capacidade de superação, a sua resiliência, o seu afinco, a aposta e a entrega que faz face às ondas alterosas, se o mar está de borrasca.
Encanto-me com a altivez e a coragem com que deita a cabeça de fora de novo, e se ergue outra vez, se a tempestade tenta submergi-lo.  E a convicção, a fé e a força com que se reergue, mesmo que tudo pareça perdido ...

A minha geração é, também ela, uma geração de resistentes.
Lembrava um destes dias, alguns, só alguns marcos históricos que me vieram à mente, e que escreveram a letras de ouro ou letras de sangue, toda a História de uma época.  Assinaláveis momentos, acontecimentos, períodos absolutamente marcantes e determinantes na vida humana.
Desde a chegada à lua em 1969, o domínio espacial com a exploração cada vez mais aprofundada e desenvolvida, projectou o Homem para os domínios do Universo longínquo.
A clonagem com o surgimento da ovelha Dolly em 96, maravilhou o mundo científico.
A fertilização "in vitro" e a gestação em corpos que não o materno, trouxe as "barrigas de aluguer" ( na década de 60 ) como alternativa em dificuldades de gestação para muitas mulheres.
Os testes de DNA, e a descodificação total do genoma humano foram alguns dos passos gigantescos no domínio da Ciência.
Assistiu-se ao desenvolvimento industrial no planeta, com a China a ascender a segunda potência económica.
Em termos sociais e políticos, a criação da União Europeia foi um marco histórico determinante na organização geo-política mundial, a que recentemente o Bréxit, veio dar novo figurino ...
O domínio da tecnologia é absolutamente imparável e de alcance inimaginável. A era da cibernáutica com a criação e desenvolvimento dos computadores, dos smarthphones, tablets e afins ... os iphones, os relógios inteligentes, todo o mundo digital, as redes sociais, a impressão em 3D, a invenção dos drones, toda a forma de comunicação e actuação, à distância apenas de um clique, na instalação de uma aplicação nos nossos dispositivos ... as redes wifi, as vídeo-chamadas, as tele-conferências entre outras, são invenções inestimáveis ao serviço do Homem.
Na Medicina igualmente se travaram lutas e venceram batalhas. Surtos epidemiológicos foram combatidos com novos fármacos, vacinas, testes de diagnóstico e mil outros meios auxiliares.  O HIV, o ébola, a Gripe das aves, o SARS, a pandemia da Gripe A, o dengue, a pandemia do vírus H1N1 altamente virulento conhecida como a Gripe espanhola, a febre das vacas loucas, entre tantos outros surtos, em paralelo com a luta sem tréguas permanente, e também sem fim à vista, frente ao desenvolvimento do câncer.
O muro de Berlim caíu em 89. O declínio do socialismo no leste europeu, provocou a dissolução da União Soviética  e pôs fim à Guerra Fria.
Em Portugal a ditadura também haveria de cair  em 25 de Abril de 74, arrastando com ela a descolonização dos territórios portugueses em África, e bem assim a instauração da Liberdade e da Democracia no nosso país, pondo fim a uma guerra que devastou e sangrou Portugal.
Mas foram e são muitos, os cancros sociais que afectaram e continuam a afectar o planeta.
Várias guerras e conflitos nos atormentaram e atormentam.  Quem não lembra a Guerra do Vietname que durando vinte anos, destroçou os povos daquela zona e varreu mortalmente os exércitos que para lá eram enviados ?
Quem não lembra a Guerra do Golfo ( 90-91 ), a invasão da ainda União Soviética ao Afeganistão ( 79 ), os conflitos perenes no Oriente Médio, as crises sócio-políticas que empurram em direcção à Europa, hordas e hordas de migrantes, por esse Mediterrâneo fora, em busca de um lugar de paz e de Vida ?
Quem não lembra os atentados terroristas e a insegurança social vivida em tantas zonas do globo ?  Quem não lembra a Queda das Torres Gémeas naquele 2001 sempre presente, a partir do qual o Mundo nunca mais foi o mesmo ?
E a grande crise económica de 2008 que levou à recessão mundial de que até hoje sofremos sequelas e cuja memória não se apagará,  particularmente agora, quando, fruto do colapso sanitário do planeta, nova recessão parece já alinhar-se no horizonte ?
E os problemas climáticos que nos assombram o futuro, com catástrofes mundiais, cheias, incêndios, tufões devastadores ... uma panóplia desgovernada de desmandos, que a Terra parece vir cobrar com a justeza de quem se sente vilipendiada e maltratada pelos seus habitantes ?...

Enfim ... isto sou eu a pensar, a reflectir, a concluir, neste dia 16 do mês de Março de um ano que parece amaldiçoado, com todo o tempo do mundo para o fazer, numa auto-quarentena, num isolamento voluntário profiláctico, no Portugal onde começaram agora a chegar os ventos destruidores vindos de leste ... o tsunami mortal corporizado na Pandemia COVID -19.
Estamos num ano bissexto, e diz o conhecimento popular que ou é muito pródigo ou muito travesso.  Este, dispensa outras apresentações.
O Mundo está parado. O Mundo está a viver uma guerra sem fronteiras, sem contenção, sem trincheiras ... sem quartel ! Não há memória de alguma vez termos vivido, sequer estado perto, de algo assim.
Os países estão isolados.  Na Europa a Itália está totalmente devastada, num cenário sem precedentes.  Segue-se-lhe Espanha, com quem Portugal vai encerrar fronteiras, a França, a Alemanha e muitos outros países, espalhados por vários continentes.  Há total contenção e restrição de livre circulação.  Os aeroportos são depósitos de aviões parados.  De este a oeste, do hemisfério norte ao sul ...
Os hospitais não têm já capacidade de resposta, anuncia-se uma ruptura humana e material que parece insolucionável.  As cidades são fantasmas, as ruas estão desertas, as pessoas confinadas a casa.
É um cenário de terror e devastação o que se vive.

Sai-se à rua apenas para abastecimento, quer de géneros alimentares quer de farmácia.  Usam-se luvas descartáveis e máscaras protectoras, esperando que o maldito vírus, que se propaga com uma facilidade e uma velocidade indescritíveis, não descubra nenhuma brecha penetrante, por cada vez que nos expomos um pouco. O afastamento social determina a segurança de cada um .
Portugal conheceu hoje a sua primeira vítima mortal.  Há cerca de 190000 infectados pelo mundo e mais de 7800 mortes já registadas.
Nos hospitais, os técnicos de saúde receiam um recrudescimento de casos.  Muitos deles também já foram infectados.  As famílias estão desarticuladas.  As crianças e jovens estão em casa, com as escolas de todos os graus, encerradas.  Os adultos cujo trabalho lhes permite, trabalham de casa, executam tele-trabalho.
Os outros vão em frente.   Não há como não ir ...
Está no horizonte próximo, daqui a quarenta e oito horas, a aprovação do Conselho de Estado, para a declaração do Estado de Emergência no país.  Nunca tal havia ocorrido antes.

E eu por aqui ...
Fazendo parte de um grupo de risco, devido à faixa etária em que me incluo, estou atenta em permanência a todas as medidas, informações e desenvolvimentos que circulam na comunicação social.  Sofro por todos, em especial pelos meus, obviamente.  Sinto-me encurralada, sem espaço de manobra, sem nada poder fazer para minorar o que se vislumbra no horizonte.
Tenho uma filha na área da Saúde, a trabalhar num dos Hospitais de referência em Lisboa.  Condições precárias, até mesmo a nível de protecção pessoal destes técnicos de saúde...
Vivo apavorada com a hipótese de que ela possa vir a ser contaminada.  Tem uma filha de dois anos e o companheiro trabalha fora do país na Comunidade Europeia.
Não há rede de apoio.  A família é muito pequena.  Não me "deixam" avançar para ficar com a Teresa, se a questão vier a colocar-se.  E a angústia que isso me transmite, associada ao medo que tenho tentado controlar, mas que está a ultrapassar-me, começa a desequilibrar-me física e psicologicamente, e a tornar as minhas noites, num vazio de sono e descanso !

Ao acordar de manhã, neste isolamento voluntário que me confina a este quarto, nesta casa de silêncios, onde apenas os meus dois gatos me acompanham ... longe da família, dos amigos, dos conhecidos ... dos afectos ... afastada dos lugares, com as rotinas comprometidas e com as notícias trágicas a pingar a um ritmo alucinante na televisão, no telemóvel, no computador ... sem um fim à vista ... sem uma melhora que se vislumbre ... sinto-me prisioneira, atrás das grades onde o MEDO, a IMPOTÊNCIA e o DESESPERO me confinam ...
E digo-me  em jeito de tentar tranquilizar-me, racionalizando,  que o Homem sempre se transcende, sempre se reergue e renasce ... mesmo que a onda pareça ser incontível !!! Essa é a sua História de Vida !!!
E que a seguir à tempestade, um céu azul e uma Primavera a despontar daqui a cinco dias, nos aguardam !!!



Anamar

terça-feira, 10 de março de 2020

" SEM AVISO PRÉVIO ... "



Voltei a escrever, no Pigalle.
O Pigalle voltou a ser um espaço quase devoluto em que as pessoas habituais sumiram.  E desta feita, a culpa não é do café, nem do tanto quanto aqui já referi noutros escritos.  A culpa é dos tempos que se vivem ...
O Mundo ficou, sem aviso prévio, em estado de sítio em poucos dias.  Não bastando os abalos sociais, as guerras, as incertezas, a violência e a dor instalados e que fazem parte sempre da nossa realidade ... assim, do dia para a noite, no espaço de dois meses e pouco, as nossas vidas confrontaram-se com angústias, dúvidas, incertezas acrescidas ... com perguntas sem resposta, com previsões sem fundos sustentáveis, com uma precariedade existencial que nos confrontou bem de rompante, com uma fragilidade sem tamanho, pelo facto de sermos apenas, habitantes do Planeta Terra.
Uma epidemia ( à beira de uma pandemia ),  que não conhece fronteiras, grassa como uma labareda incontrolável de este a oeste, de norte a sul, devastando, escarnecendo, restringindo, aniquilando e destruindo as pessoas, as famílias, as sociedades ... o Mundo !

De repente, sem aviso prévio, sem sinal visível, o tornado, o tsunami, o flagelo abateu-se sem anúncio, sem pedido de licença, sem autorização para entrar.  E foi entrando.  Nem sequer de mansinho, mas aos magotes de infectados, de mortos e de apavorados, por todos os continentes já.
E de um dia para o outro, as cidades viraram fantasmas, os países viraram assombrações e as nossas vidas  ficaram assim uma coisa suspensa no ar, sem sabermos bem como gerir algo que desconhecemos !
As nossas existências vivem num limbo estranho, dia após dia, num ganho por cada dia, se não foi nesse ainda, que nós, os nossos familiares e amigos, fomos  apanhados na torrente destruidora ...
Vivem-se sentimentos imprecisos, não identificáveis, de um desconforto sob o domínio de um alarmismo inevitável que parece não se controlar.
Erguem-se as vozes nas áreas da saúde, sociais, governamentais, políticas ... num apelo ao controle e à possível tranquilidade das populações, tentando-se  que as "rédeas" na sociedade, não fujam ao domínio das entidades responsáveis, o que seria um desastre ainda maior, já que o medo, o alarme colectivo e o desnorte, em situações limite, nunca conduzem a bons resultados.
Mas a comunicação social, com a facilidade da notícia ao minuto, bombardeia-nos em permanência, com os números, as estatísticas, e a actualização mesmo das notícias referentes ao outro lado do mundo.
Dá-nos  conta  de  uma  Europa  que  se "defende" a  ferro e fogo  do  avanço de  um vírus  que desde a  China, galga  a  passadas  largas  muros, fronteiras,  marcas, barreiras, céus e mares ...
Um vírus que desafia e exige soluções em tempo record, a toda a comunidade científica, no sentido de se encontrar uma terapêutica, uma vacina, uma medida profiláctica eficaz ... qualquer coisa que trave com urgência, esta onda desrespeitosa de uma calamidade que parece incontrolável.
Temos países em caos organizacional.  Temos países cerrados ao contacto exterior, quer por decisão interna ( no desespero de impedir a total circulação de cidadãos ), quer pelo boicote feito ao seu acesso por parte dos outros países, na tentativa, desta forma,  de uma contenção da epidemia.
Temos ruas vazias, o comércio fechado, os cafés e locais de convívio e encontro, igualmente encerrados.  Há zonas ditas "vermelhas", em que a incidência do risco é superior.  As pessoas remetem-se e trabalham a partir de casa, tentando proteger-se e reduzir o contágio.
Respeitam auto-quarentenas, ou quarentenas sanitárias impostas.
Itália encabeça esta lista, mas a França, a Espanha e a Alemanha sucedem-se, com o agravamento do número de infectados.
Em Portugal, as restrições às rotinas, estão aí.  Relacionamentos sociais restringidos, eventos públicos cancelados, escolas fechadas, teatros, museus e outros espaços igualmente encerrados, provas desportivas e outras,  à porta fechada, e bem assim  suspensas outras iniciativas passíveis de reunir os cidadãos com alguma proximidade.

Não me lembro de alguma vez ter vivenciado sequer algo próximo disto.
Parece que começamos objectivamente já, a viver um estado de sítio caótico que eu imagino viver-se nos países que atravessam conflitos de guerra, miséria e desestruturação social.
Não se conhece o dia de amanhã, não se sabe da real segurança das pessoas  no âmbito das suas necessidades de sobrevivência, das capacidades de resposta na área da saúde, seja em termos de estruturas físicas hospitalares, seja em termos de respostas humanas ... Enfim, começo a sentir-me numa espécie de "gheto" social.
Saio pouco, vou ao café mas não fico, relaciono-me com os que me rodeiam, com algumas precauções.  Faço as minhas caminhadas como sempre, porque as considero espaços terapêuticos de revitalização das defesas e qualidade de vida.  Não utilizo transportes públicos, vou normalmente às compras mas evito proximidades desnecessárias com terceiros.
Não estou assustada por mim.  Estou mais preocupada com a "minha gente"... filhas expostas naturalmente nas suas actividades profissionais, sendo que, por ser enfermeira num dos hospitais de referência, a mais nova vive na "linha de fogo", sem protecções especiais facultadas ao pessoal que aí trabalha, com uma criança de dois anos que frequenta uma creche, e que com o pai a trabalhar no estrangeiro pouca serventia tem no apoio presencial familiar ...
Preocupo-me com os outros três miúdos, frequentando estabelecimentos e graus de ensino diversos e praticando actividades desportivas, com treinos e trabalho de ginásio, onde naturalmente os contactos são muitos e variados ...
Enfim, preocupo-me com a crise económica que todo este caos arrasta, nacional e internacionalmente, com consequências gravosas, altamente penalizantes para o nosso país que vive no "arame", e igualmente em termos da conjuntura mundial ... Tudo isto iremos pagar ... tudo isto nos sairá  do bolso em termos próximos futuros ...
A Síria ficou para trás, o Irão e suas ameaças nucleares, do Brexit pouco já se fala, os migrantes sofrem na carne e na alma mais dores em cima das que detêm ... os nossos escândalos "privados" ( as "guerras" institucionais, os buracos económicos, as corrupções e a escandaleira da justiça ... até as crises futebolísticas acaloradas que rendem semanas de entretenimento ... ), de Trump e suas enormidades, de Bolsonaro e seus alarvismos, das injustiças sociais confrangedoras e gritantes ... da fome, da miséria, até das alterações climáticas, o Homem abriu um parêntesis e tenta unir-se em torno da causa única : salvar a Humanidade ...

O corona vírus chegou num belo dia do fim de 2019, em Wuhan na China, mas já alcançou protagonismo e capacidade de aterrorizar e fazer tremer até as maiores e mais fortes potências mundiais !
Afinal, o ser humano é efectivamente um grão de poeira face àquilo que não domina, não controla e não conhece.
Ao ser humano resta neste contexto, experimentar e exercitar um desafio que talvez nunca lhe tenha sido colocado tão prementemente na era moderna : a solidariedade, a partilha, o trabalho grupal, a união de esforços, a entreajuda, sem cor, sem raça, sem língua, sem fronteira ... em torno de uma causa comum ... salvar a sua espécie !!!



Anamar