terça-feira, 30 de janeiro de 2024

" EU NÃO DEIXO O VELHO ENTRAR !... "

 


Esta é a resposta que o admirado nonagenário actor Clint Eastwood deu ao cantor country Toby Keith, quando lhe perguntou qual era o seu segredo para se manter activo e brilhante, na sua idade.
"Quando me levanto todos os dias não deixo o velho entrar "

O meu segredo é o mesmo desde 1959 : mantenho-me ocupado.  Nunca deixei o velho entrar em casa.  Tive que arrastá-lo para fora, porque o cara já estava confortavelmente instalado, me dando um pé no saco a toda a hora, não me deixando espaço para nada além da nostalgia.

Você tem que se manter activo, vivo, feliz, forte, capaz.
Está em nós, na nossa inteligência, atitude e mentalidade.  Somos jovens com independência.  Você tem que aprender a lutar para não deixar "o velho entrar."
Aquele velho que nos espera, parado e cansado na beira da estrada para nos desanimar.
Não deixo entrar o velho espírito, o crítico, hostil, invejoso, aquele ser que perscruta o nosso passado para nos amarrar com queixas e angústias remotas, traumas revividos, ou ondas de dor.
É preciso virar as costas para o velho fofoqueiro cheio de raiva e reclamações, sem coragem, que nega a si mesmo que a velhice pode ser criativa, determinada, cheia de luz e protecção.

Envelhecer pode ser prazeiroso e até divertido, se você souber usar o tempo, se estiver satisfeito com o que conquistou e se continuar tendo a ilusão, acrescenta Clint Eastwood, uma lenda com dez nomeações para os Óscares, dos quais ganhou quatro estatuetas, todas elas depois de já ter ultrapassado o limiar dos sessenta anos.  A isso se chama "não deixar o velho entrar em casa " ...

Essas palavras atingiram o cantor country Toby Keith tão profundamente que o inspiraram a compor a música " Don´t let the old man in ", dedicado ao lendário actor.

Nota : Tradução brasileira 


Clint Eastwood é desde sempre uma das minhas referências na sétima arte, primeiramente como actor, depois como realizador ou director cinematográfico.
Com ele sonhei em variadas películas, das quais guardo memórias inesquecíveis. Filme estrelado por ele, era garantido que seria assistido por mim. Era uma época em que, por razões particulares, eu estava extremamente desperta e era frequente espectadora semanal de uma sessão de cinema.
Era programa, eu diria que quase obrigatório, dos sábados após o jantar, até mesmo em sessões da meia noite. Depois de um jantarzinho simpático e feliz, rumava quase sempre a uma das nossas salas de espectáculos em demanda do filme já previamente escrutinado durante a semana e eleito para encerrar o dia.
Foi uma altura em que, mercê da assiduidade, eu estava completamente entrosada na programação semanal em exibição.
Hoje, pouco vou ao cinema. Estou totalmente por fora do cine cartaz por sala, na nossa cidade.
Os actores que ainda ocupam lugar na minha cabeça e coração, são aqueles "monstros" cujos nomes tenho marcados dentro de mim. Quase todos já ultrapassaram o seu culminar apoteótico ... quase todos são "lendas" que preencheram, com as histórias que me contaram, dias felizes da minha vida ...
Eastwood foi um deles, um "grande", um enorme senhor, detentor dum talento que ainda hoje, já nonagenário o torna um ícone, uma figura mítica, um expoente inalcançável nesta arte que nos leva ao sonho, que nos aligeira os dias, nos subtrai, quantas e quantas vezes, ao cinzento desinteressante e cansativo de realidades pouco compensatórias e gratificantes ...
Invictus, Gran Torino, Cartas de Iwo Jima, Million Dollar Baby, Mystic River e o inesquecível e maravilhoso As pontes de Madison County, foram películas vistas e revistas que sempre me empolgam e preenchem por cada vez, como se da primeira se tratasse ...

Clint Eastwood é uma personagem absolutamente incontornável, multifacetado e completo. Dez indicações para os Óscares, das quais venceu quatro, é a única pessoa nomeada para melhor realizador e melhor actor numa mesma película.
Lúcido, capaz, objectivo, mantém uma performance invejável para os seus já vividos noventa e três anos, sendo inolvidavelmente uma honrosa referência para a sétima arte mundial.
O seu segredo, parece resumir-se a uma mente laboriosa e ocupada, que se recusa a parar, a uma nunca considerada desistência, a um foco permanentemente perseguido, a uma criatividade incessante, a uma aposta e uma assertividade espantosas bem como uma alegria irresistível de viver e de sonhar ... em suma , um empenho e uma vigilância para "não deixar nunca, o velho entrar "!!!
Absolutamente admirável, fantástico e fascinante !!!

A propósito de Eastwood, lembrei outra figura igualmente ligada ao mundo da magia e do sonho, desta feita brasileiro, um ícone novelístico, um actor igualmente carismático, que também completará em Março próximo, 94 anos ... Lima Duarte cuja vida parece ser muito idêntica à de Clint Eastwood.
Também ele não se entregou ao inevitável desgaste dos anos, também ele recusou sossobrar às inevitáveis limitações da escorrência do tempo, também ele continua, tanto quanto se conhece, a ocupar o seu cérebro, a exercitar as suas capacidades físicas, a viver intensamente numa fazenda que possui perto de S. Paulo, mergulhado na natureza, onde se refugiou definitivamente, aquando da pandemia de Covid.
Ali, usufruirá seguramente de excelente qualidade de vida, viverá uma existência saudável, partilhada com os seus cavalos, cães, as suas infinitas memórias e a paz inerente a uma vivência plena, realizada e feliz ...
Ali, certamente continuará a considerar-se útil, importante na vida dos seus e da sociedade, e provavelmente até continuará a alimentar e a regar as suas fantasias, já que o sonho comanda a vida !...
Também ele fechou , obviamente, a porta a que o "velho" pudesse entrar !!!...

Anamar

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

" SOBRE TUDO E SOBRE NADA ... "

 


Acho que já escrevi sobre quase tudo.  Por "tudo", entenda-se aquilo que me mobiliza, sejam acontecimentos do dia a dia, sejam perfis humanos que me tocaram, sejam experiências que no fundo do meu ser me acompanham, me empolgam, me assustam, me emocionam ... enfim, o mix de sentimentos que ao longo dos tempos vão recheando a minha vida !
Talvez por isso sinta em mim, nos últimos tempos, um vazio de necessidade de escrever.  Sempre acho irrelevante, sempre acho que não acrescento ou retiro nada de importante a qualquer tema, sempre me parece redundante qualquer posicionamento meu, por o considerar insignificante, sem interesse justificativo, ou mesmo desnecessário.
E o que tenho escrito, do que já escrevi, raramente rebusco para lembrar, raramente releio achando que vale a pena, raramente tenho paciência para revisionar, anos decorridos, uma outra vez,  o que quer que seja !
Isso aqui neste espaço, mas também em memórias mais longínquas.  Até porque desinserindo de contextos aquilo que se escreve, correm-se graves riscos de avaliações erróneas ou interpretações falsas.
Ontem, falando com uma pessoa conhecida, dizia-me esta que relê com frequência os diários que ao longo das décadas e décadas da vida, tem escrito.  Referia ter vinte e tal diários escritos, desde a juventude, quando ainda se passeava pelos bancos da faculdade, aos quais acede.
Acho isso fantástico e até interessante.  Eu não tenho paciência para tal !

Precisava dar uma virada na minha vida.  Está demasiado monótona e cinzenta, sem nenhuma ou pouca emoção, está cansativa, sem graça, totalmente rotinada, sem colorido ou loucura.
Contudo, embora tenha esta clara visão sobre o estado das coisas, falta-me totalmente o "combustível" para atear uma labareda interessante ... e o motivo prende-se exclusivamente ao óbvio peso do tempo que, como a minha mãe dizia , tudo dá e tudo leva ...
Não será, é claro, uma questão exclusivamente minha.  Muita gente, ou quase todos, referem exactamente queixas semelhantes, uns com mais, outros com menos capacidade reactiva, coragem e fé para apostarem na reversão possível deste lastimoso estado de coisas.
Eu, sou das mais tristes, das mais desistentes, das mais revoltadas ... acabando também por ser ironicamente, das mais acomodadas ... como se a minha insatisfação fosse na proporção daquilo que a vida me deu, daquilo que vivi, dos sonhos que criei, dos filmes que inventei ... Tudo proporcionalmente grande, tudo inevitavelmente irreversível, tudo em excesso, tudo imenso, como a pessoa extravasante e intensa que sempre fui. 
Fui ... e que não consigo ser mais !... "tudo dá e tudo leva ... "
Tudo  suficientemente  "dramático",  como  já  me  disseram ... tudo  astronomicamente  pesado !...
E como acho que falar destas queixas, destas insatisfações, deste cansaço é verdadeiramente uma "pepineira" que não interessa a ninguém, remeto-me mais e mais ao meu silêncio, ao meu canto, ao meu lugar.  As pessoas, individualmente, nesta vida tão conturbada, já têm chatices que cheguem, problemas que lhes tirem o sono, preocupações que as acabem, e vão-se também isolando, vão também encontrando pouco espaço ou disponibilidade nas agendas diárias, vão procurando formas construtivas de viver e sobreviver, e de não se deixarem sucumbir pelo cansaço, pelas angústias, pelas preocupações e pelo cinzentismo de vidas, quase todas já, crepusculares !  E fazem muito bem !

Entretanto ando cada vez mais irritada, com uma postura noticiosa, dos mídia, no relato de acontecimentos que vão ocorrendo na nossa realidade diária.  Trata-se fundamentalmente não dos conteúdos, mas da forma de abordagem das questões.  
Passo a explicar :  a terminologia adotada passou a ser de "um idoso, uma idosa ... " sofreu isto, aquilo, aconteceu-lhe isto ou aquilo ... etc, etc.
Deixou de ser "um homem, uma mulher ..."
Uma criança, está perfeitamente identificada, um jovem, também.  Até aos cinquenta continuamos como  "homens ou mulheres", designação de imediato extinta dos sessenta para cima !  
Aí, não há safa, adquirimos automaticamente o rótulo do idoso ... do "velhinho", do "empata", do "cota" pejorativamente falando.  
E é um desespero, porque ainda que provavelmente bem escorreitos física e mentalmente, quantas e quantas vezes, caímos em desgraça e passamos a fazer parte da turba cinzenta do pensionista, do desocupado, de quem não tem nada p'ra fazer, do que está cá para onerar o sistema ... do que "empata" ... finalmente, do sujeito passível de uma qualquer desgraça a engrossar a estatística do "idoso" !!!

Bom, isto foi apenas um desabafo, ironicamente aqui abordado para aliviar o peso da malfadada conotação ... da incómoda injustiça social !
Que saudade do tempo em que em última análise, eu era apenas "uma mulher de tantos anos "... etc, etc, etc !!!...

Anamar

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

" SEMPRE SEREMOS AS NOSSAS MEMÓRIAS ... "



O tempo fechou totalmente.  O meu horizonte, aqui do alto da minha janela, circunscreveu-se apenas aos prédios próximos.  São cinco horas duma tarde gélida e chuvosa.  Estamos sob a influência duma frente glacial polar que coloca Portugal sob condições adversas, com temperaturas severas bem abaixo dos valores normais para esta época, embora estejamos como se sabe, em pleno inverno.

É segunda-feira, dia de caminhada, hoje não realizada.  Havia comprado um saco de comida para os gatos da colónia da mata, só que, deixar lá o saco sob a chuva que cai poderia comprometer o seu aproveitamento.  Assim, levarei amanhã em que não se prevê mau tempo.
Aqueles mais de vinte animais que ali vivem, dão-me conta da cabeça e do coração.  
Se no Verão é aprazível a zona da mata onde estão os abrigos engendrados pelo senhor Sérgio que deles, à custa de dedicação, esforço físico e monetário, cuida diariamente, agora no Inverno, com este tempo carrasco que se faz sentir, aquilo vira um pesadelo de frio e humidade ... pobres bichos !!!
Estou aqui sentada frente ao radiador que o Jonas não permite que eu desligue, a pensar nos desgraçados que não nasceram em berço de ouro ou que o destino jogou na rua, pela maldade e insensibilidade humanas.  E dói-me a alma !

Num dia, como disse, perfeitamente insuportável, e felizmente sem nenhuma necessidade de ir à rua, fiquei por aqui a escrever, a ouvir música, a passear-me pelo computador, sem objectivo definido.
Entre fotos arquivadas de pessoas conhecidas ou amigas falecidas no período da pandemia, apareceu-me a foto do Rui Mendes, aquela figura pequenina, bastante desengonçada, mercê do problema físico que o atormentava.  Artista plástico que trabalhava aqui na Câmara da Amadora, não sei bem em que área, sempre com um aspecto negligenciado mesmo a nível de cuidados de higiene e limpeza, o Rui  frequentava o Pigalle a que eu também ia para o café da manhã.  Convivia pouco, as pessoas evitavam a sua companhia.
O Rui era portador de nascença, duma doença grave e rara, do foro hemático  que desde sempre lhe lera a sentença duma esperança de vida limitada, inclusive já atingida.  Semanalmente deslocava-se ao Hospital de S.José onde levava uma determinada injecção sem a qual a sua vida perigava.
Sempre vivera só com a mãe, a qual esteve acamada durante alguns anos, e era ele que a tratava e a rodeava do conforto possível.  O Rui, mercê daquela responsabilidade, tinha então a sua sobrevivência como o foco da sua vida. Até que ela partiu.
Após o seu falecimento o Rui ficou só e mais abandonado ainda.  
Depois veio a Covid e fomos deixando de saber uns dos outros. A tertúlia e o convívio diário que se ia mantendo com aqueles que acabavam tornando-se figuras familiares, extinguiu-se.
Os sucessivos confinamentos, encerraram-nos entre quatro paredes, quebraram-se laços, extinguiram-se pontos de encontro, fecharam até definitivamente muitos outros.  E do Rui e da sua bonomia e boa disposição, no rosto sorridente com a barba de "pai natal" bem branquinha, fui deixando de ter notícias.
Até que, quando já deitávamos um pouco a cabeça de fora, indagando junto da Cátia do Pigalle, soube acidentalmente que o Rui também partira, num qualquer dia de Novembro de 2020, mergulhados que estávamos em plena Covid ...
Entristeci.  Fiquei mais pobre e mais só. 

Não mantive com ele nenhum laço privilegiado de amizade além do que me conferia a tertúlia quase diária de alguns momentos, em conversa de circunstância ... pouco mais.
Não interessa ... o Rui atravessou num determinado período a minha vida, e é hoje mais um lugar vazio nas memórias que ao longo dos tempos me compõem a existência.
Que esteja em paz ! 
Mais de três anos volvidos, quem lembrará hoje o Rui Mendes ?!...😢😢

Anamar

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

" FIM DE LINHA ... "

 


Ontem, olhando os títulos que circulam nos tablóides, deparei-me com o do suicídio de dois jovens respectivamente de quarenta e sete e trinta e oito anos, figuras públicas ambos, do nosso meio artístico. 
Ambos modelos, artistas na área da ficção, ambos com filhos ... aparentemente com histórias de vida em fim de linha.
Ela com três filhos, com um arrastar de uma vida sem escapatória, da qual terá desistido.  Ele, com um bebé de três anos, e mergulhado, também ao que parece, numa depressão profunda que o terá atirado para o tapete ...

Até aqui, infelizmente são apenas situações mais comuns e frequentes do que o imaginável, inseridas num panorama que quase sempre nos escapa, obviamente porque não se referem a ninguém com visibilidade mediática.
Mas são seguramente situações extremas de dor, de cansaço, de desistência, para as quais a sociedade foi absolutamente incapaz de ter uma resposta preventiva, atempadamente. 
São dramas sangrantes bem frente aos nossos olhos, são pessoas para quem todas as portas parecem ter-se fechado, pessoas que esbracejaram até à exaustão e a quem nenhuma bóia de salvação foi atirada.  Ao contrário, os horizontes cerraram, a borrasca abateu-se e as forças, certamente, esgotaram a capacidade de resistência.
E atinge-se aquela altura em que os corações esgotaram o limite de esperança, aquela altura em que todas as armas são depostas, aquele momento em que a escuridão é de tal ordem que nada já interessa. As perspectivas inexistem, os projectos defraudam-se, o futuro some da história, os afectos já não têm força pra segurar o que quer ou quem quer que seja ...
E pronto ... arranca-se a ficha da tomada !  Fim de linha !...

Todas as pessoas que têm a coragem de consumar este acto tresloucado, merecem o meu mais profundo respeito.  A coragem necessária para fechar os olhos e "saltar", é duma dimensão inalcançável !
A sociedade não soube protegê-las, não soube responder-lhes, "vê-las" ... não soube sequer acarinhá-las.  Andamos todos demasiado ocupados a salvar-nos, demasiado insensíveis para sequer percebermos, lermos as entrelinhas, vermos os sinais dos que, bem ali ao nosso lado, os foram deixando ...
Não conseguimos visualizar a luz vermelha da desistência, a piscar-nos.  Não conseguimos sentir o grito de socorro que quantas vezes nos é lançado, das mais diversas formas...  Não temos capacidade para descodificar palavras, olhares, ouvir frases aparentemente enviesadas ...
Estamos todos demasiadamente distraídos ... a esbracejar também por aí ... às vezes também apenas à procura dum nexo, dum rumo, duma alvorada a levantar-se ...
O mundo torna-se insuportável, desaprendemos de viver.  Às vezes guardamos ainda no fundo do nosso âmago um lampejo de esperança que sonhamos, mas em que na verdade não acreditamos.  Não sabemos o que buscamos, apesar de vivermos cercados de uma poluição informativa, de uma poluição de soluções, caminhos aparentemente fáceis e acessíveis, num mundo do parecer e cada vez menos do ser ...
E vamos indo, calcorreando as veredas que às vezes apenas nos confrontam duramente com uma solidão a que parecemos também já não pertencer, e em que o túnel da desesperança estreita mais e mais, convidando-nos a partir ... 
À nossa volta já não existe mais sinal de pertença ... o cansaço não dá tréguas, a voz estiola na garganta e ir embora é a solução que nos resta ...

Há então aquele segundo maldito em que o vazio se estende mesmo até à alma e em que a exaustão nos apaga por dentro.  São instantes de silêncio, de escuridão ... de abandono imenso e total ...
Já não fazemos parte deste chão, já aqui não pertencemos ... e simplesmente, partimos !...

Nada mais faz sentido .  A linha chegou definitivamente ao fim !

Anamar

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

" ÀS VEZES A GENTE SÓ QUERIA UM MIMO ..."



Dia 3 do primeiro mês do ano que há pouco se iniciou.  
O tempo, profundamente instável, presenteou-nos com um dia escurecido, abóboda cinzenta pesada, com chuva ininterrupta desde ontem.  Dia bom para estar à lareira, ou não a tendo, dia bom para deixar perder a vista até onde ela chega, através das vidraças, por onde os pingos escorrem desenhando linhas incertas e imprecisas.
Hoje foi o funeral de uma colega de trabalho, contemporâneas que fomos a vida toda na mesma escola e antes disso, colegas de liceu, da mesma turma, no tempo em que éramos estudantes.  Tínhamos portanto exactamente a mesma idade.  A doença "da moda" vitimou-a depois de prolongado sofrimento, ao que parece.
Fui ao velório ontem.  Hoje, poupei-me.

Com o avanço dos anos, estou a atingir um grau de fragilidade enorme, absurdamente preocupante.  Sempre fui saudável, costumava dizer que nem as "simpáticas dores de costas" que se tornavam amigas inseparáveis das pessoas minhas contemporâneas ( inevitáveis parecia ), queriam nada comigo.  Nem coluna, nem "cruzes", nem pernas, nem braços me atormentavam.
"Sortuda" ... era assim que me diziam, era assim que me considerava ...
Só que, sem eu dar por isso, de repente, de supetão, apanhando-me na curva da estrada, parece que tudo se me chegou. Ou então sou eu que de repente também, dei em viver com medos, com temores assombrados, com fobias idiotas... E aquela mulher destinada a varar a bitola do tempo, ficou da noite para o dia, como um passarinho assustado.  
Deito-me e até que o sono faça a caridade de me levar para os seus braços, passam por mim todos os filmes possíveis.  Sozinha em casa, com o gato aos pés, em cada noite que chega, a reprise assustada vai desfilando.  Tudo fica passível de acontecer.  Tudo é mais do que provável que aconteça ...
E fico encolhidinha entre o macio dos lençóis e o quente aconchegante do édredon, tentando sonhos e não pesadelos ...

Eu sei que a vida se fez, que os anos foram indo.  Sei que os filhos cresceram, que as crianças que eram não são mais, que hoje estão aí aos comandos das próprias vidas e próprias responsabilidades.  
Olho-lhes as rugas à socapa, para não darem conta da fortuita avaliação ... Sei-lhes as dificuldades, as preocupações. E lamento-as.  E sofro com elas ...  
Percebo-lhes o tempo de que não dispõem, o muito que têm que fazer ... Falar-lhes da dor do joelho que me atormenta, é pura ousadia ... lamentar que os olhos ainda que operados, não voltaram a ser o que eram e que os ouvidos também me atraiçoam despudoradamente, é falta de senso...
Não caibo nos cólos que já aninhei ... nem posso embalar-me nos braços que já embalei ...
O equilíbrio ... ( Queres o quê ? Tens a idade que tens !... )... é inquestionável, pieguice e exigência absurda, esperá-lo afinado ...
E tudo o mais ... o medo do "escuro", do frio, da dependência ... os degraus da escada ... o esquecimento, a confusão que se gera quando à nossa revelia os neurónios resolvem fazer um baile de trapalhões na cabeça, que até há algum tempo atrás, era finória, esclarecida, decidida mesmo nas curvas do caminho ...

E acontece tudo num piscar de olhos ?!  E de repente a estrada fica caótica no trânsito do raciocínio ?!
E sabotam-nos os pensamentos, esvaziam-nos as ideias, fazem-nos tropeçar nas palavras como se precisassem de bengala para andar ?!
E de repente ficamos estranhos face ao espelho.  Nem fisicamente ele nos devolve a grata imagem que ainda, esbatida, lembramos de nós mesmos ...
E foi apenas há meia dúzia de anos !...

Falar  estes  despautérios,  com  quem ?  Expor  esta  avalanche  de  mágoas  onde  e  para  quê ?  
Desvendar estas ironias tontas, em praça pública ?  Ridículo !  Será que também perdi o senso do razoável, do lógico, do real ?... 
Ou simplesmente conflituo com a inevitabilidade da vida, recuso o percurso inexorável comum a todos, digladio o destino ... escrito sei lá por quem ?!...

E é isto !

É que às vezes a gente só queria um mimo !...

Anamar