domingo, 31 de dezembro de 2023

" SEM PALAVRAS ... "

 


" Sou uma criança ... nascida para viver, não para morrer !... "

Não sei porque não escrevi, até hoje, sobre mais uma guerra devastadora no planeta. Um genocídio ... mais um, levado a cabo pelo ser humano desprovido cada vez mais de sentimentos de empatia, compaixão, fraternidade.  Uma guerra sem contenção ou fronteira, insensível, absurda, cruel, um conflito sem limites, totalmente radicalizado onde parece não haver mesmo cabeças a pensar, que dirá corações a sentir ...
Com a guerra na Ucrânia sem sinais de acalmia, com o ódio, a prepotência, a ganância, a total indiferença face ao sofrimento alheio a grassarem exponencialmente,  a observância do respeito pelos valores humanos é algo completamente ignorado.   
Por isso, a violência e todo o tipo de crimes de guerra são a realidade vivida por todos aqueles que resistem, e as imagens que nos chegam diariamente, são indescritíveis, terríficas, duma dimensão que nos questionam se são homens ou monstros que os praticam.
E são os mais vulneráveis e desprotegidos, velhos, crianças e até os animais companheiros das vidas, os que mais sofrem, perdidos que estão no tempo e no espaço, jogados aleatoriamente no meio de bombas, de mísseis, de drones ... no meio do inferno nem nos piores filmes de terror imaginado ...

Chegámos ao fim de mais um ano, a folha do calendário vira, lentamente, dos confins do planeta, varrendo fuso a fuso todas as terras, desde as mais perdidas às grandes e insensíveis capitais ...
Logo mais, será a meia noite por aqui.
O dia está triste, melancólico, enfadonho.  Cai uma chuva miúda pouco convincente.
As gaivotas pairam em voos erráticos neste cinzento uniforme de borrasca.  Gosto de as ouvir, gosto de as ver em bandos dispersos em gritos reclamantes, com o mar em tempestade na costa.
Eu estou profundamente melancólica e triste.  Olho esta manta de rasgões que é o Mundo à nossa volta, e não enxergo uma réstea de azul que aconchegasse ou iluminasse os corações ...
As pessoas, afobadas, têm urgência de se desejarem votos e votos de paz, saúde, felicidade, como se conseguissem aturdir-se com as bolhinhas do champanhe que mais tarde irá estoirar,  como se fizéssemos todos de conta que além das nossas fronteiras pessoais, tudo está e estará perfeito.
O tempo, o tempo magistralmente cantado por Drummond de Andrade, numa visão redentora, positiva e quase feliz, para mim representa uma implacável, infalível torrente impetuosa como as imagens que a televisão nos passa quando os tornados, as tempestades, assolam aqui e ali o planeta, semeando dor e morte.  Ninguém contém, ninguém refreia ... ninguém domina !!!  Assim é o tempo !...
Não consigo assumi-lo de outra forma, com outro rosto, com outro rumo ...

Este será o último post aqui no meu espaço, no ano que agora finda.  Em cima da mesa, todos os textos que escrevi, aguardam a vez de o encadernador os transformar em mais um livro, respeitando este a 2023, e onde se arquivam todos os pensamentos, todas as histórias, todas as emoções diversas que me assolaram ao longo dos últimos trezentos e sessenta e cinco dias.  
São o meu espólio pessoal que ficará para quando eu partir, ser dividido pelas minhas filhas, e que não é mais do que eco dos meus sentires, expressão das minhas dúvidas, angústias, mágoas ... mas também sonhos, esperanças, desejos ou vontades.  São reposição de tudo, tudo aquilo que é a minha essência, tudo aquilo que simplesmente sou eu, sem filtros ou máscaras ...
Muito pouco expressivo será o livro deste ano ... tão pouco escrevi ... tanto abandonei esta válvula emotiva de escape, na minha vida !!
Certamente, sinal de muita coisa, de muitos vectores acontecidos, de desânimo ... sobretudo de falta de vontade e de aposta !

Bom, e agora relendo tudo isto que escrevi, penso que sei exactamente porque o não escrevera antes.  
Dentro de mim experimento uma impotência atroz, um desespero e uma tristeza sem tamanho !  
Penso que de alguma forma sucumbi à dureza da realidade, à negritude das imagens, à violência dos sons, à dor das palavras, à crueza dos sentimentos, á incapacidade de acreditar no ser humano.  E desisti de escrevê-las !
As palavras soam-me vazias, curtas, incapazes, ocas, distantes ! 
Ouvindo este vídeo dos meninos de Ramallah, percebo claramente que não há uma só palavra, em nenhum alfabeto, que dita, dimensionasse com verdade, autenticidade e realismo a ausência do AMOR, que afinal será sempre a chave de tudo !!!

"SEM PALAVRAS", portanto !...



Vídeo -  Coro de Ramallah Friends School   ( 2023 )

Anamar


Nota :  Adiciono o vídeo com o poema declamado, de Drummond de Andrade




domingo, 24 de dezembro de 2023

" OUTRA VEZ NATAL "



Ontem 22 de Dezembro, o Inverno chegou.  
Por aqui eu diria que mais parece ter chegado a Primavera, tão risonhos andam os dias, lindos, solarengos, claros.  O céu insiste no azul, um azul diáfano, quase transparente e luminoso, as temperaturas não são severas e a aragem que esvoaça, apenas esvoaça, vaporosamente.
A mata apresenta-se totalmente verde com todos os cambiantes da cor, como se um talentoso pintor tivesse ido por ali aguarelá-la.  As azedas, descaradamente já pintalgam todos os tufos nos cantos e recantos dos caminhos, e os pássaros, lembrando Março, pipilam pelas copas, como se já estivéssemos no mês dos ninhos.  A natureza continua totalmente baralhada ... como não, os animais e nós próprios ?!

Entretanto o Natal espreita.  Vinte e quatro horas nos separam da noite da Consoada.
No ano que agora finda fui passá-la no sul do país com parte da minha família.  Este ano conto passá-la aqui por casa mesmo.  Prevejo uma noite muito pouco animada, pois os três que se sentarão juntos na mesa de Natal têm poucos motivos para festejar. Estamos todos numa faixa etária já meio descolorida.  Depois, as doenças que atormentam uns e os desgostos recentes que atormentam outros, fazem prever uma relativa boa disposição apenas, para o convívio.  Acho que no próximo ano vou implementar uma reviravolta neste estado de coisas, pois isto parece estar mais para velório que para uma confraternização que nos deixasse animaditos.
Ou então vou para o quente da cama, como se nada fosse, e faz de conta que estou encerrada para balanço ...
Afinal, como dizia o meu pai, parece ser um dia igual  aos outros todos ... 
Em viagem profissional, viajante que era, se estivesse mais afastado, por esse Alentejo fora numa época em que as ligações e os transportes não eram fáceis, chegou a passá-lo onde quer que estivesse, não vindo sequer a casa ... Outros tempos ... outras épocas !...
Hoje nada disto parece fazer sentido, pois tudo fica ao virar da esquina.

Com os dias conturbados que se vivem por esse mundo fora em que o Homem parece ter apenas como objectivo de vida exterminar o seu semelhante, eu diria que o Natal já só faz sentido para a criançada, a quem o Pai Natal, cortando os céus no seu trenó, de saco às costas com os ansiados presentes, ainda consegue criar uma ambiência onírica nas suas cabecinhas.
O planeta Terra tão mal cuidado, tão agredido, tão negligenciado, só pode mesmo queixar-se dos atropelos de que é vítima, num crescendo incontrolável. Apesar das pseudo-intenções de contenção dos desvarios provocados, em cimeiras, conferências, encontros, plataformas, movimentos cívicos, etc, envolvendo as altas esferas responsáveis das maiores potências mundiais, o sucesso alcançado nas negociações, é diminuto ou quase nulo.
Sempre, vergonhosamente os interesses económicos, os lobbies financeiros gananciosos e incontroláveis, se sobrepõem às intenções, aos alertas e às tentativas de reposição da sensatez nos posicionamentos mundiais.
A Covid seguida de uma inesperada guerra às portas da Europa, numa Ucrânia tão devastada já, uma nova guerra de desfecho imprevisível no Médio Oriente, mergulhada numa sanha sanguinária como já não esperaríamos ver em pleno século XXI, culminando num genocídio de populações encurraladas pela insanidade dos beligerantes ... atrocidades pelo mundo fora, crimes cometidos aleatoriamente duma forma inesperada sobre inocentes apanhados de surpresa, extremismos e fanatismos religiosos descontrolados levando a ódios e vinganças ... subtraem-nos toda a convicção que ainda pudéssemos ter de acreditar nos valores desta quadra e consequentemente na pureza de coração e na humanidade dos nossos semelhantes.

E este cocktail desalentador e "explosivo", culmina internamente, com um país esfrangalhado, mergulhado em acontecimentos políticos inqualificáveis, uma espécie de  barco  que  perdesse  o  leme e  que  navega  em  mar  alteroso  sem  rota  ou  porto  que  se  aviste ...
Um cansaço !!!

Com todos estes "retalhos" demasiado lúgubres e pesados, me despeço.  Afinal, hoje já é Natal outra vez !! ...

Anamar

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

" UMA LUFADA DE AR FRESCO "


Hoje acompanhei uma amiga de toda a vida a um cartório notarial onde ela foi fazer a escritura de um apartamento adquirido há cerca de dois meses. 
Tem ela talvez mais uns três anos que eu, e há tempos atrás essa mudança na sua vida seria impensável.  Ou talvez ela a não quisesse verdadeiramente questionar.
Tendo contraído poliomielite em criança, e tendo ficado com sequelas da doença, o que lhe conferia em permanência  algumas restrições motoras, sofreu, em acréscimo, um acidente grave fará exactamente um ano agora em Dezembro, com uma consequente lesão na coluna, que a atirou para uma recuperação longa e difícil, e uma perspectivação diferentemente obrigatória da sua vida futura, no dia a dia. 

A  Fatinha que sempre viveu exclusivamente com a mãe, teve uma vida com a normalidade possível.  Era e é totalmente autónoma, viveu em pleno a sua vida profissional até à aposentação, com sucesso absoluto e competência reconhecida, e depois da mãe ter falecido passou a aproveitar essa liberdade imposta, para viajar, com um grupo de colegas de profissão.
Sem dificuldades económicas, deambulou, de leste a oeste, pelo mundo inteiro.  Aproveitou portanto, o melhor que pôde, a disponibilidade que a vida lhe ofereceu.

Havia um senão.  A Fatinha viveu e vive ainda num prédio antigo, num segundo andar sem elevador, o que, se até aqui ia dando, melhor ou pior, para ir levando, depois da fatídica queda sofrida há um ano, as dificuldades aumentaram substancialmente, e ela passou a ter uma vida praticamente confinada ao espaço habitacional, limitada portanto na sua liberdade de movimentos.
As amigas insistiam que ela deveria encarar a sua realidade e mudar de casa o quanto antes, alertando-a para o normal avolumar das dificuldades face à implacabilidade do decurso dos tempos, o que parecia não fazer muito eco junto da Fatinha, ligada sobretudo emocionalmente ao espaço adquirido pela mãe e sempre com ela partilhado.

Até que,  um qualquer clique inesperado, fez eco na sua cabeça.  Acho que, da noite para o dia, decidiu que o rumo seria não pactuar com uma aparente negação da realidade, encará-la de frente e decidir a vida.  Assim o fez, e desencantou o imóvel à medida dos desejos em velocidade de cruzeiro.
Em dois meses, a Fatinha encontrou um apartamento fantástico, localizado num lugar de excelência, com todos os requisitos necessários e mais ainda.
E hoje foi então realizada a escritura do mesmo.

Fui buscar esta história, porquê ?
Porque, à minha frente estava uma Fatinha decidida, resolvida, com a felicidade de objectivos cumpridos, que alimentou sonhos e está a realizá-los.  Uma mulher que sempre aparentou ser dependente, até meio atrapalhada face à vida, com uma experiência pouco desenvolvida, já que sempre viveu com excessiva rede protectora enquanto a mãe foi viva, surge agora já neste timing  com disposição, vontade, confiança e fé ... sem fantasmas ou medos, parece ... pelo menos com a coragem necessária a iniciar mais um ciclo, ou a recomeçar uma nova estrada !
De alma aberta a novos sonhos !

Mexeu comigo este episódio, um destes dias explico porquê ...

Anamar

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

" IRRESOLÚVEL ... SERÁ ? "



Referi aqui vezes sem conta, como me isolo gradualmente mais e mais, numa indisponibilidade emocional para conviver, sair de casa, cumprir programas, espairecer ...
Argumentando uma real falta de paciência, uma intolerância óbvia para as trivialidades diárias, um cansaço para as minudências do dia a dia, afasto-me, silencio-me, remeto-me ao espaço confinante da minha casa, e consequentemente adio ou remeto para melhores ocasiões, encontrar pessoas, partilhar momentos, dividir conversas nem que seja simplesmente em frente a uma chávena de café.

Telefonar, só em "desespero de causa", ou seja, quando as escapatórias já não existem.
Não recuso nada, digo sempre sim a tudo, ou melhor, não me inibo de prometer qualquer coisa, só que ... sempre sem data marcada.
"Ah sim, claro, temos que tomar um café ..." , "vamos, afinal já passou tanto tempo ... ", "havemos de almoçar ... quando agora o tempo melhorar" ... etc, etc.  Tudo com a mais séria intencionalidade.  Quando prometo e me comprometo com a disposição, até tenho intenção de cumprir, e até pareço já saborear a pequena felicidade dessa promessa.  Só que, depois, desinvisto totalmente, e o passo seguinte é ou fazer-me de desentendida ou inventar uma súbita impossibilidade para me fazer presente.

Sinal de envelhecimento, disse-me assim de caras, frontalmente, uma conhecida que já não via há algum tempo e que é, ao contrário de mim, toda gaiteira.  Eu ri-me, achando que ela estava inteiramente certa.
Acho que o imobilismo que me domina, a inércia que me envolve e esta espécie de "paralisia" onírica, conduz-me a um estado de letargia muito pouco saudável.  Pareço atascada num lamaçal que me está a limitar na vida diária.
Deixei de me entusiasmar, deixei de me empolgar com o que quer que seja, estou remetida a um "silêncio" interior, a um torpor desmotivador, em relação ao mundo.  É como se estivesse numa hibernação emocional doentia, como se estivesse por aqui esperando apenas que o tempo passe.  E isso em termos de saúde física e mental não é positivo.
Faço esforço para interagir, à conta de não ter paciência.  Fico indiferente e pouco disponível face a quase tudo, num abandono patológico.  A verdade é que a realidade pouco me motiva ou entusiasma.  Notícias terríveis pelo planeta, que já não sei se é melhor conhecê-las, se não.  Que me martirizam e penalizam profundamente, sem remédio à vista, deixando-me com o peso da impotência ainda maior sobre o coração.
Até as viagens que não há muito tempo atrás sempre eram motor de arranque para eu ficar feliz, não conseguem alavancar-me para novos sonhos, desejos ou vontades.  Nada. Vibro, mas não como dantes me acontecia.
"Velhice" ... martela-me os ouvidos ...

Esta terra que habito está descaracterizada.  A Covid deu conta do convívio, da partilha, dos encontros entre as pessoas.  Deixámos de sair tempo demais, confinámo-nos em períodos demasiado longos, os espaços nossos conhecidos alteraram-se fisicamente, uns fecharam, outros vocacionaram-se de outra forma.  As pessoas, afastadas umas das outras não conseguiram reabilitar os hábitos, os laços, os interesses.  Morreu muita gente, outros saíram das grandes cidades e rumaram à terra, onde por vezes possuíam casa, deixámos de saber dos destinos de muitos ... e fomos ficando mais sozinhos.  Nós e os nossos novos esquemas de vida, numa readaptação às exigências dos tempos.  
Em suma, tudo mudou, muita coisa, irreversivelmente !
Eu entristeci ...

Não consigo engendrar uma estratégia remediadora que me impelisse para diante, que me iluminasse de novo os olhos, que me acelerasse as batidas do coração, que me tirasse desta podre zona de conforto e me restituísse o sorriso ao rosto.  Nada que me fizesse acreditar que a minha alma afinal ainda é jovem, ainda arrisca, que ainda ousa, como dantes... que ainda tem rasgos de loucura ... Uma estratégia que me faça de novo pular as baias, mergulhar no impossível sentindo-o possível ... que "me livre da morte em doses suaves" ...

O cansaço é progressivo, e vou ficando por aqui ...
Talvez, como diz Pablo Neruda ... irresoluvelmente, a "morrer devagarinho ..."

Anamar

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

" REVISÃO DA MATÉRIA "

 



O dia está profundamente cinzento.  Uniformemente escuro.  Ainda não parou de chover, chuva grossa, agressiva, forte.  Bate nas vidraças com ímpeto, não facilita a vida a quem, nas ruas, tenta cumprir as rotinas diárias.  Corre-se, procuram-se abrigos, porque a inclemência do temporal não deixa margens ...
Queiramos ou não, a interioridade a que este tempo nos remete, leva a uma introspecção incontornável.  
Afinal será Dezembro dentro de horas, o Inverno está por dias e consequentemente, o caminho que percorremos nas nossas vidas está claramente a par do ciclo da Natureza.

É já uma estrada em que o que andámos bate objectivamente o que temos para andar, em tempo e em qualidade, e em que à nossa volta, as pessoas, as conversas, as preocupações que nos tomam, os sentimentos e até a forma como respondemos emocionalmente ao dia a dia ... são em tudo muito próximos, senão idênticos, às vivências daqueles que nos cercam.
Uns mais optimistas, outros menos, efectivamente todos de uma maneira geral partilhamos similitudes sensoriais.  
Convivemos preferencialmente com pessoas da mesma faixa etária, que já cessaram a actividade profissional, com famílias dispondo de uma lógica autonomia, com as independências naturalmente adquiridas, pessoas que ou têm uma vida familiar cujo desenho se mantém desde sempre, ou se encontram sós pelas mais variadas razões.  De qualquer forma, temos todos obviamente uma linguagem muito próxima, posturas e reacções comuns.  Quase todos nascemos e crescemos nas mesmas décadas, passámos por experiências semelhantes, crescemos em figurinos com forma e linguagens comuns, habituámo-nos a olhar o mundo de forma parecida ... até os sonhos e os trilhos percorridos para os alcançar, foram formalmente próximos.
Portanto, não será estranho que as nossas conversas sejam idênticas, as preocupações também, as angústias e as incertezas idem, até as sensibilidades se tornaram indiferenciadas.
As doenças, as limitações de natureza física ( mas não só ), que diariamente nos vão surpreendendo, as dificuldades materiais que indistintamente se experienciam fruto da sociedade e dos tempos que atravessamos, a falta de paz com a conjuntura sócio-política universal que nos rodeia, a insegurança e as incertezas que diariamente nos surpreendem ... em suma, o dia de amanhã ... ponteiam as nossas conversas, assombram os nossos sonos.
Os filhos quase sempre estão longe, física e emocionalmente muitas vezes.  A vida corrida, exigente, de competição, com valores e interesses diversificados já bem distintos dos nossos ( afinal, outra geração, outra visão e foco ), não lhes deixa folga, disponibilidade ou mesmo vontade para se fazerem presentes.

Nós, os do costume, já nos rimos às vezes, porque na verdade, andando andando, e reclamando, ainda assim lá vamos parar às doenças, lá vamos parar à solidão, ao isolamento, à resistência a sairmos de casa, de convivermos, de combinarmos programas.  Falta de paciência para ouvir, falta de complacência para entender e aceitar ... intolerância mesmo...
Antes ficar em casa, o telefonema amanhã se devolve, o chá fica para outro dia ... Saturação mesmo ! "Pachorra", nenhuma !

E vive-se, vive-se muito do que era, como era, como foi, o que foi, nos registos do passado.  Revisita-se vezes sem conta esta data, este acontecimento, estes dias ... num saudosismo que dói, que objectivamente amachuca, pois nos flashes que nos descem, o cenário está lá, apenas nós hoje somos apenas meros comediantes duma peça cujo pano já fechou ...
E fica estranho. É uma brutal sensação de desconforto ...

Hoje estou melancólica, ou melhor, mais melancólica.
Talvez o dia ... talvez o telefonema ou a tentativa de chamada a uma grande amiga com demência profunda, com quem já não consegui trocar mais que duas ou três palavras ... talvez um livro fantástico que estou a ler ... talvez ... talvez tudo isto e apenas isto, me tenha encapsulado no silêncio que acabou a envolver-me nesta tarde cinzenta e chuvosa.

Anamar

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

" OUTRA VEZ NATAL ... "

 


São pouco mais de quatro horas e a noite espreita.  O dia fechou completamente e até já chove lá fora.
As gaivotas recolheram.  Andava aqui por cima um bando em desnorte, rodopiando na aragem, como se sem rumo estivesse. Ouviam-se claramente os gritos que emitem ... não sei interpretá-los.  
Uma coisa é certa, parece terem recuado da orla marítima, prenúncio de tempestade.  Ou não seja verdade que "gaivotas em terra" sempre denunciem borrasca lá longe...
A meteorologia bem a sinaliza.  Parece que as próximas anunciadas chuvas que aí vêm, se devem à aproximação de "rios atmosféricos", uma nomenclatura recente, creio eu.
Pelo menos tem sido nestes últimos tempos que esta "novidade climatérica" surgiu no nosso léxico.  Antes, ou eu andei distraída, ou ainda não tinha dado por tal, na linguagem comum ... 

Entretanto é quase Natal.  Novembro, o "tal" mês para mim, encerra as portas já amanhã.

De ano para ano, esta quadra mais me cansa.  Aliás os únicos Natais que recordo com doçura e alegria foram os Natais da minha infância, aqueles que eram vividos com a família nuclear ainda intocada, em casa dos meus avós.  Até aos meus treze anos sempre esta quadra era passada no Alentejo, na casa grande, com pais, avós, tios, primos ... enfim, todos para quem estes dias de lazer eram pretexto para uma confraternização que reunia até os que lá não viviam.
Morávamos então em Évora, a escassos trinta e cinco quilómetros de distância.  As aulas haviam terminado, estávamos em férias, o meu pai em período de balanço na firma, e como tal o trabalho que desenvolvia permitia que fosse feito naquela mesa baixinha, dentro da grande lareira de parede a parede, que ocupava o fundo da cozinha dos meus avós.
A seu lado, de manhã à noite ardia o madeiro imenso que vinha rebolando pelo quintal fora, já que não havia viva alma que pudesse arrastá-lo de outra forma.
O meu pai, cutucava o lume, mexia as brasas, usava incansavelmente o abanico, e consequentemente enchia-se de cinza da cabeça aos pés ...  Mas isso, que importava ? Era o preço do consolo que representava o calorzinho com que eram aquecidas as noites gélidas do Alentejo !
As chamas bruxuleavam e o seu luzeiro era cúmplice dum conforto inigualável.  Os chouriços, as linguiças e as morcelas, como roupas num varal, dependuravam-se por cima das nossas cabeças, num fumeiro que reunia os enchidos da matança anual.  
Ao jantar, numa mesa que aos meus olhos de criança parecia não ter fim, quase sempre era o perú a fazer as honras, enquanto que os doces de tradição, arroz doce, aletria, leite creme, bolo de buraco ... do que me lembro... completavam o cardápio.  Lá pela meia noite, depois da Missa do Galo, a carne de porco frita, as filhós, as azevias, os mexericos e a pinhoada, aguardavam-nos, feitos pelas mãos de quem não fora à igreja.´
E os cantares ao menino Jesus, soltavam-se das bocas de quem, com a barriguinha cheia, entrava na desgarrada.
E eram de uma paz e de uma cumplicidade os sentimentos que ali se partilhavam.  Contavam-se histórias, lembravam-se pessoas, ríamos, assinalávamos os faltosos e mesmo aqueles que noutra dimensão haveriam de estar a ver os que ainda tinham lugar cativo na mesa da consoada ...

Eu era uma menininha de seis, sete, dez anos ... pra quem, uma roupa nova para estrear, umas sombrinhas de chocolate, uns lápis da Regina, umas libras igualmente de chocolate, brilhando do ouro que fingiam, já estavam de bom tamanho e chegavam bem para na manhã seguinte me transbordarem  de alegria, quando já, de olhos arregalados, descia ao sapatinho ...
E era assim, não me lembro sequer de um livro ou um brinquedo, juro que não lembro !...

Há memórias que se nos colam à pele sem que façamos o mínimo esforço para tal.  Há outras que "deletamos" mesmo sem querer ... novamente não carecendo de qualquer vontade ...
Há momentos que ficam, com cheiro, som e cor para sempre. 
 
Eu ia com a minha avó à Missa do Galo.  Só as duas e o frio daquela noite gelada.  A Igreja da Saúde resplandecia com uma luz clara, onde a talha dourada reflectia a luz dos círios acesos. Cheirava a cera, lembro claramente que cheirava. O xaile da minha avó era macio, fofinho, tinha uma cor azulada escura como veludo.  A minha mão pequenina cabia nele na perfeição.  O lenço adamascado cobria-lhe a cabeça totalmente branca.
Os cânticos ressoavam , amplificados pela abóboda bem alta da Igreja e o Menino Jesus na toalhinha de linho era dado a beijar no fim da cerimónia.  
E era tão lindo aquele querubim róseo, de caracóis dourados !!!
Cá fora o céu estava escuro.  A vila tinha poucas luzes nas ruas e por isso a luz das estrelas piscava lá no alto.  E o ventinho, aquele sopro cortante que corria e nos gelava a ponta do nariz, lembrava que era Dezembro, que nos esperavam lá em casa as iguarias e as doçuras, o calor aconchegante do lume aceso, a magia da noite que havia de nos envolver, a união familiar, o afecto a pingar dos corações ... e que era Natal outra vez !...

Anamar

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

" INDEFINIÇÕES ..."

 


Quase em tudo na minha vida, queimei etapas, atropelei timings, acelerei processos.  Ou seja, quase em tudo na minha vida, meti as mãos pelos pés numa pressa e numa ânsia de rapidamente virar esquinas e ver mais além, de chegar rapidamente aos horizontes, só para ter mais horizontes, para que o tempo não se gastasse antes dos meus sonhos se consumirem.
Corro atrás do tempo, sempre, sou escravizada por ele, tenho a angústia da falta dele para cumprir os desígnios que persegui e persigo.
Por sorte do destino, ou dos acasos de vida, não me tenho dado mal.  Pergunto-me às vezes, como ?

Sou uma incoerência nata, sou uma utopia além da conta.
Agarro o tempo, mas não aproveito o tempo !  Estranho, isto !...
Nunca usufruo o momento.  Nele, já me angustio com o que vem a seguir, nele, eu já sinto saudade do que ainda não foi ...

Guardo contudo, religiosamente, as sobras, que é como quem diz, as memórias.  Essas já não têm para onde se perder.  Pertencem ao arquivo indelével da mente e do coração.
Nelas me espanejo em dias de repouso, quando o cansaço é muito e a tristeza me toma conta.  Então, entro nelas, como se de um "país de maravilhas" se tratasse, no espanto e no êxtase.  Percorro-as de frente para trás e de trás para a frente, num deleite único e inalienável.  É como se entrasse num mar sem ondas, doce e quente, como as águas de lá longe que busco quando posso ...
São espaços de interioridade, vedados, privados e únicos.  E re-experimento as emoções, as angústias e as mágoas, mas também as alegrias, as conquistas e as realizações.
Mas depois farto-me.  Termino a visita, saio pé ante pé e fecho a porta de novo, até uma próxima, até que um outro dia me amanheça a vontade louca de descer às caves das lembranças e verifique, com alívio, que elas ainda por lá estão.
Às vezes quero remexê-las, tirar-lhes o pó, mudá-las de prateleira, segundo a vontade de lhes pegar ou não.  Outras, abro e franqueio a entrada, simplesmente ... espreito pela talisca da porta entreaberta e nada mais.

E o tempo continua.  Sempre continua ...

E de igual forma me envelheço a correr.  Dei por mim, sem remédio, de um dia para o outro, entre momentos que não preciso, a ficar definitivamente envelhecida.  E espanto-me como não me apercebi, como de repente morreu uma e no seu lugar nasceu outra, que é, de certa forma, uma estranha em mim.  Não sei como foi, não sei quão distraída ou dispersa eu estava que não enxerguei a mutação a ocorrer.
Deve ter sido nos tempos em que deixei empoeirar os sonhos por já não valerem a pena, em que deixei de acreditar em estrelas, nasceres e pôres de sol no meu céu, em que perdi a inocência das grandes descobertas, e em que perdi a vontade de ter vontade de sorrir ...
Possivelmente foi isto.  E nisto, não se volta atrás, nunca se volta atrás, pois o caminho de regresso perdeu-se no nevoeiro.

O desconforto toma-me.  É como se vivesse dentro dum fato que não é meu, dentro duma pele que não me pertence, dentro de uma entidade que não me assenta e desconheço.
Olho-me no espelho e pouco identifico da que fui, busco no avesso e não encontro o rascunho.
E zango-me.  Zango-me com o espelho por não me ter avisado, e garanto a mim própria não voltar a cruzar quem integrou a película que chegou ao fim.
Adoro pessoas resolvidas.  Vou morrer sem o ser.  Mas há pessoas que vivem com certezas, que sabem exactamente com toda a tranquilidade as escolhas que devem fazer, que certificam com igual tranquilidade os caminhos que já pisaram, as lutas que dirimiram. 
Adoro gente sem equívocos, esclarecida, decidida, clarividente ...
Logo eu que sou um poço de interrogações, uma montanha de dúvidas, um trabalho por terminar, uma reflexão por fazer !...
E insatisfaço-me comigo mesma,
Para quando uma pausa no conflito de histórias sem epílogo ?!
Para quando a paz que o fim da turbulência que me assola, me transmitiria ?!
Para quando o fim da inquietude da obra inacabada que eu sou ?! 

Anamar 

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

" POR ESTES DIAS ..."

 


Por estes dias fui e vim de viagem como relatei, entretanto contra minha vontade, aniversariei ...😉😉, coisa que me irrita profundamente não poder controlar ...😁😁 
Enfim, retomei as rotinas de sempre, porque a vida faz-se todos os dias .
Este ano o dia caíu em cheio num domingo ( também nasci num domingo de acordo com as informações maternas ), e como tal, estava mesmo a pedi-las que eu juntasse a família toda, não só porque há séculos me não propunha partir para um evento desta envergadura, mas porque sendo domingo não havia desculpas por parte dos participantes de se demarcarem da respectiva presença. 
Dessa forma, a minha filha mais velha calar-se-ia com as acusações habituais de que sou uma egoísta e comodista, que nunca me disponho a tais confraternizações como as matriarcas das famílias "normais" fazem ... e patati e patata ...
Reconheço-lhe de facto alguma / bastante razão, pois fujo abissalmente ao paradigma da família funcional, e como também a afectividade e a proximidade entre os elementos da nossa micro-estrutura familiar não são a marca reconhecida, pautando-nos bem ao contrário, com uma imensa falta de partilha e cumplicidade  ( sobretudo com o referido núcleo ... ), desde que nos saibamos com saúde e sem particulares contratempos, mantemos o distanciamento prudente para que alguns conflitos não possam eclodir mais violentamente.
Devo referir que as maneiras de ser e pensar entre mim e ela são totalmente opostas, os valores que defendemos também, os interesses e preocupações raramente se afinam, a forma de estar na vida, e ver o mundo ao redor, igualmente. 
Como tal, existe potencialmente uma mistura explosiva iminentemente pronta a deflagrar à mínima fricção, que se deve evitar a todo o custo.
A fórmula "familiarmente correcta" de convivência pacífica, passa portanto por nos sabermos bem de saúde, sem problemas significativos de outra ordem, sem grandes ondas, perturbações ou turbulências.
E assim vamos andando !...

Entre as duas irmãs, e porque a mais nova é substancialmente parecida comigo, logicamente o "status quo" é idêntico, e portanto a situação é paralela.
O relacionamento é feito "com pinças", sempre num equilíbrio ameaçado. O que uma entende não entende a outra, o que uma defende nada tem a ver com os objectivos da outra, e assim sucessivamente.
Não foram poucas as vezes em que ao longo do almoço eu espetei beliscões na mais nova, ou lhe dei pisadelas por debaixo da mesa, por iniciar caminhos "suicidas" nos temas abordados.  Já sabíamos onde iriam dar, e sinceramente, não tenho pachorra ou folga emocional pra grandes embates que de nada valem a pena e a lado nenhum, nos levam ...

Como se vê, uma verdadeira e interessante animação, foi o meu almoço de anos !

Chegados ao fim, apresta-se a necessidade das arrumações.  Tudo sai dos lugares e tem que voltar, tudo se suja e há que limpar, etc, etc, etc.
A minha realidade diária é de uma pacatez total. Sou eu e o meu gato, com um esquema de vida e rotinas que preservam os espaços e as coisas, pelo que os dias se passam sem grandes afobações ou tarefas exaustivas.  Cheguei portanto à noite, totalmente feita em fanicos.  
Pude constatar claramente o que o avanço do tempo nos causa, em capacidades, resistência, frescura.  Há alguns ( não necessariamente muitos ) anos atrás, estas tarefas eram realizadas com uma perna às costas, a frequência com que se promoviam por ano estes convívios, era largamente maior, e o grupo que desta vez se sentou à mesa era bem mais alargado, por evento.
Pois, mas o tempo é carrasco e não se compadece !...

O cansaço físico e a falta de disposição que me confina grande parte dos meus dias à casa, sem que me anime a grandes outros programas, é acompanhado igualmente dum exasperante cansaço mental e emocional.
Hoje em dia, o nosso mundo alargado, as realidades doídas que se vivem lá fora, o horror que nos aturde de todos os lados, a dor que dói mais porque não se entende ou justifica, são um "ruído" assustador, deprimente e mortal !
Há uma "poluição" emocional tão desestabilizadora que nos mata aos poucos.  A impotência experimentada, o cansaço da dor das imagens sem alívio, de duas guerras a grassarem em simultâneo, a cegueira e a surdez do Homem que parece ter-se transformado numa espécie amputada de sentimento ou emoção, num estado de alucinação ou loucura, deixam-nos também a nós em desvario, petrificados, gélidos, anestesiados ... em choque !

No nosso universo estrito, que é como quem diz, na nossa realidade diária, num país que estrebucha mergulhado em corrupção, compadrio, desonestidade ... crime ... e em que cada um procura tirar o melhor quinhão para si, apenas para si, mesmo que tenha que pisar, trucidar, levar na avalanche todos os que se meterem à frente ... a vida é feita a pulso, tostão por tostão, degrau a degrau, subindo um e descendo quantas vezes, dois ... num esforço e num desencanto sem tamanho.  
Numa competição feroz e doentia, num oportunismo descarado,  numa insegurança tormentosa, as esperanças fenecem, os sonhos estiolam, o cansaço torna-se patológico ... o reconhecimento e a compensação quase nunca acompanham as competências, o esforço e a dedicação ... 
Bem ao contrário !...
E tudo isto derruba, esgota, instala o cansaço, exponencia a incerteza e adoece a alma.  E atrás de uma alma doente, é fácil um corpo desistir ...
Afinal, fica difícil, muito difícil costurar os pedaços !...

Enfim, já me alonguei neste mix atordoante a preto e branco ...
Só que ... foi assim por estes dias ...

Anamar

domingo, 5 de novembro de 2023

" MARROCOS - do Atlântico ao deserto ... "



Marrocos já vai sendo uma memória... Mais uma memória singular e inesquecível, como para mim sempre são todas as viagens.
Todas elas são aprendizagens, são enriquecimento, são lazer, novidade, certeza de sair mais plena no regresso.
Conhecer sempre mais mundo, ou melhor, juntar mais mundo ao meu mundo é um privilégio e um fascínio que não canso de repetir.  
Afinal habitamos um planeta comum, a que uma multitude de espécies diversas conferem diferenças, particularidades, peculiaridades irrepetíveis.  E sendo embora "vizinhos", quando daqui saímos, nem uma gota de água deste oceano imenso cruzou os nossos destinos !

Deveria ser possível a qualquer um de nós, poder ver, sentir, perceber, tocar-se com o mundo lá fora, com os seres, as cores, os cheiros, as vozes, as palavras, os costumes ... em suma, a realidade que existe, pois assim seria mais fácil para cada um conviver com a diferença, aceitar a igualdade dos desiguais, cumpliciar com os sonhos dos que têm em comum connosco, o facto de sermos humanos apenas ... e trabalhar a tolerância, a empatia, a generosidade, a aceitação do outro !

A viagem de doze dias em que percorri Marrocos de ponta a ponta, entrando por Tânger e saindo por Casablanca, tendo rodado praticamente por todo o país, esteve comprometida, quando no passado 8 de Setembro o país foi assolado por um terramoto de intensidade significativa, que provocou mais de três mil mortos.  Só em segurança a Agência de Viagens a efectuaria, o que veio felizmente a concretizar-se.
E em boa hora, porque se trata dum país efectivamente muito particular, que eu lamentaria agora  profundamente não ter conhecido.

Marrocos é fundamentalmente uma terra de cor e som, um país em constante efervescência, com um povo hospitaleiro, humilde e sacrificado.  Com uma clivagem abissal entre as classes sociais, regido por uma monarquia absoluta e ditatorial, apesar do monarca ser conhecido como aberto a mudanças constitucionais, dividindo o poder com o primeiro ministro e o parlamento, a pobreza e miséria são extremas, face à sumptuosidade da vida de verdadeiros sultões e magnatas que constituem uma faixa social privilegiada, envolvida em luxos e riquezas astronómicas.
O rei Mohamed VI, é descendente duma longa linhagem de governantes que fazem parte da dinastia alauita, originária de povos que chegaram na região no século XIII, vindos da Arábia.  Assumiu o trono em 1999 após a morte do pai Hassan II e é igualmente considerado o chefe religioso no país, que é de maioria islâmica.  As mesquitas proliferam em todo o território, mesmo nas aldeias mais inóspitas do Rift, ou do Alto Atlas, enquanto que as catedrais católicas são praticamente inexistentes.
É divorciado e tem dois filhos, vivendo preferencialmente fora do país, apesar de nele possuir dezasseis sumptuosos palácios.  Assim, a sua residência fixa-se quase sempre, em Paris. É detentor de inúmeros automóveis de luxo e igualmente coleccionador de cavalos de raça provindos dos quatro cantos do mundo.

Falar sobre este país de uma diversidade espantosa, conseguir relatar, ainda que por aproximação a globalidade das suas características de culturalidade tão diferente da nossa, configurar-se-ia uma tarefa hercúlea e impossível.
Assim, vou remeter-me apenas a alguns aspectos talvez mais marcantes, face à minha sensibilidade.

As cidades, com uma arquitectura hispano-mourisca típica do norte de África e da Península Ibérica, têm características e designs absolutamente ímpares.  Influenciado por diversas culturas, tribos, árabes, romanos, berberes e colonizadores europeus que moldaram o seu estilo arquitectónico,  no Marrocos de hoje, prevalece como maior influência,  a islâmica, sobretudo nos ornamentos. 
Pode claramente observar-se esta afirmação na arquitectura das mesquitas, riads, souks, kasbahs, palácios e madraças.
As casas de adobe grassam nas zonas rurais do interior e nas cordilheiras longínquas do Rift ou do Atlas.
As medinas ou "cascos viejos", um emaranhado labiríntico de ruelas, que mais não são que o miolo histórico das cidades, são um mirabolante mundo de comércio onde tudo se vende nos souks, de comida a bens de consumo, numa agitação e numa promiscuidade de raças, cores, tipos e costumes.  Ali, tudo se regateia, as gilabas denunciam a miscigenação das etnias, os turbantes coloridos encimam rostos, na maioria ainda cobertos quase na totalidade com os véus do preceito religioso.
Os animais vivem da caridade dos habitantes.  As centenas de gatos e cães surgem de e em todos os lados, e vivem esfomeados.  Os burricos e as mulas, são quase em exclusividade os meios de transporte que cruzam as medinas, onde o brouhaha  parece nunca silenciar ...
As cidades do norte e da orla costeira, como a antiga Mogador hoje Essaouira, a "noiva do Atlântico", ou El Jadida, a Mazagão do tempo dos descobrimentos, assim como Fez, Arzila e outras, ostentam ainda sinais históricos deixados pela presença portuguesa, como as muralhas, os escudos em pedra ou os canhões por entre as ameias das fortalezas.  
Na orla atlântica, são cidades de fachadas brancas e azuis, a cor da espuma e das ondas, abertas e luminosas, onde os alíseos soprando, esculpem a paisagem ...
Cidades piscatórias, de barcos, gaivotas e gatos, de bom peixe e marinheiros nos portos, sabem à maresia que perpassa.
No interior, nas montanhas do Rift, a noroeste, surge uma pequena cidade isolada, na calma da cordilheira ... a inesquecível cidade azul do Marrocos, Chefchaouen, cuja fundação remonta ao século XV.  Para mim, foi o expoente máximo desta viagem, situa-se entre Tânger e Tétouan.  
A sua medina é absolutamente ímpar, com todas as ruas de paredes tingidas de azul, onde se pode caminhar, tirar fotos e observar calmamente a vida local,  os souks vendendo lamparinas marroquinas, peças de couro ou metal, roupas, panos, tapetes, especiarias e tinturas.
Foi a existência desta beleza única, a responsável máxima pela minha deslocação a Marrocos !

Pra não alongar excessivamente a minha narração, que fica a anos-luz do que lá vi e experienciei, refiro apenas o nascer do sol no deserto, em Erg Chebbi, onde subi lentamente, encaminhada por um berbere na condução de um dromedário, e onde a magia do silêncio da madrugada se acendeu aos poucos com as cores róseas, lilazes e laranja do primeiro esgar do sol por detrás das dunas do Saara !...
Jamais o esquecerei !...

Finalmente a "cidade ocre", Marraquexe, a cidade turística por excelência, onde o tipicismo da Praça Djemaa el-Fna, a maior de todo o continente africano, uma praça com o mundo inteiro dentro, mistura um furacão de experiências culturais e gastronómicas.  Os bazares labirínticos fervilham, os cafés com terraços panorâmicos onde se toma o chá de menta enquanto em fundo, do minarete da mesquita Koutoubia ( 70 metros e 800 anos de História ) se ouve o muezzim chamar para a oração do fim do dia.
Os encantadores de serpentes, as videntes a lerem as mãos, as pintoras artísticas da henna, os saltimbancos mágicos, os aguadeiros, os domadores de simpáticos macaquinhos e suas palhaçadas, convivem com as tendas ou os carrinhos com as ofertas gastronómicas de apelativo cheiro às especiarias, aos grelhados, às tagines ou ao sumo de laranja incomparável ...
Djemaa el-Fna é um espaço único, carismático, vibrante ... quase mágico !

O dia fora quente, a viagem aproximava-se do fim a passos largos, mas o cansaço não cedia à insaciável busca do bizarro, do desconhecido, do novo ...
Agora a brisa da noite já corria, mas a profusão das luzes, o colorido dos toldos, a música imparável, o recorte negro da Kotoubia em contraste com o sol já moribundo, e a magia de um chá de menta tomado no Grand Balcon du Café Glacier, encerraram indelevelmente da melhor forma possível esta incursão ao coração marroquino !...

Bslama Marruecos ... choukran !






Anamar


terça-feira, 3 de outubro de 2023

" E AFINAL ESTOU VIVA !..."


Moro ao lado do Centro de Saúde da cidade que habito.  E moro aqui fará cinquenta anos no ano vindouro.
Ao longo dos tempos, não muitas vezes, devo convir, recorri ao mesmo, quase sempre exclusivamente para a obtenção de receituário, prescrições de análises ou exames de rotina, pouco mais.
Sempre fui absolutamente saudável e até hoje, tirando uns comprimidecos para o meu amigo colesterol não se armar "em pintas", nada tomo a nível de químicos.
Acresce que, sendo beneficiária da ADSE, por questões de praticidade, já que os Centros de Saúde funcionam como bem se sabe, prefiro quase sempre pagar do meu bolso a parte que me cabe e procurar médicos com ou até sem convenção com este subsistema de saúde. 
A médica de família que então tinha, era-o também dos meus pais, pois havia conseguido que o seu agregado familiar  fosse anexado ao meu, já que haviam perdido a respectiva médica na unidade da freguesia a que pertenciam, por esta se ter afastado.  
Assim, com o avanço dos anos e a inerente dificuldade de locomoção, sobretudo quando o meu pai acamou, a Dra.Dulce passou a responder também pelo apoio de que necessitavam.
Era o tempo de, apesar de eu viver, como poderá dizer-se "porta com porta" com o "meu" Centro de Saúde, eu descer frequentemente pelas cinco da manhã para conseguir a bendita senha para o que precisava para os meus pais.

A Dra. Dulce foi posteriormente embora também, e o nosso agregado familiar iria com ela para o novo centro para onde foi, numa freguesia ainda bem mais longe de casa, o que pelas razões que expus, inviabilizava mais ainda a situação.  Ficámos então sem médico de família, entregues em cada circunstância, aos chamados médicos de recurso..
Tal situação nunca mais se resolveu apesar de n exposições que fiz, de n reuniões que tive com a responsável pelo Centro, com a Assistente Social, e todas as estruturas responsáveis, e em que solicitava que pelo menos os meus pais pudessem ser apoiados duma forma estável por um médico fixo atribuído.  Lembro que o meu pai estava acamado, algaliado, com ameaça de escaras consequência da situação, carecendo de tratamentos de enfermagem ao domicílio, tinha 90 anos e a minha mãe, idosa, também com limitações motoras, com necessidade de acompanhamento na área da cardiologia e outras patologias associadas à idade, precisariam de estabilidade e segurança na área da saúde.
Não foi possível reverter-se a situação.

Os meus pais entretanto partiram, a minha mãe viveu os dois últimos anos na casa da minha filha, que sendo enfermeira, chamou a si toda a logística e apoio que em excelência prestou à avó até falecer.
Também já aqui não residia, e eu, cansada de todo este filme, simplesmente desliguei.

Em Outubro de 2018, ano da morte da minha mãe, resolvi reanalisar a minha situação no SNS e reactivei a minha inscrição.  Foi-me informado já ter atribuída uma médica de família, mas inexplicavelmente, pertencente a uma Unidade de Saúde Familiar noutra freguesia a alguns quilómetros de casa.
Ainda assim, resolvi fazer a marcação de uma consulta, via informática, pelo site do SNS, a fim de estabelecer um primeiro contacto com a médica referida, para uma primeira abordagem.  Foi-me informado não dispor a mesma de horário na especialidade requerida, obviamente de clínica geral.
Meteu-se todo este período conturbado de antes e pós Covid, e não sendo nada urgente, voltei a silenciar deste lado.

Há cerca de um mês acedi de novo ao site e voltei a fazer uma nova tentativa de marcação de consulta para a Doutora que não tenho sequer o grato prazer de conhecer e que já terá pensado ser eu por certo, um espécime extinto ...😁😁

Ontem, para felicidade geral, constatei que afinal ... estou ainda viva ... ainda sou um dos números da Segurança Social, e tenho FINALMENTE uma consulta marcada, pasme-se !!!

Ora bem, tamanha emoção trouxe-me à escrita, claro, porque trata-se duma conquista mais importante que Aljubarrota, ou até mesmo o Buçaco ou S.Mamede, para começar pelo princípio !!...

E estou tão, mas tão emocionada, tão mas tão agradecida, tão mas tão feliz e realizada, por ver como o SNS me tratou tão bem ... marcando-me no fim deste folhetim, a auspiciada consulta ... só que, para o dia 1 de Março de 2024 ... só cinco mesinhos depois ... 
Mas também, o que são isto, 5 mesinhos nos tempos que correm, e na vida de uma pessoa, Dr. Pizarro  ??!!😂😂😂

A ver se não morro até lá !!!

Anamar

domingo, 1 de outubro de 2023

" O CORDÃO UMBILICAL "

 




Não se pode viver a vida dos filhos ... não se pode viver a vida pelos filhos. 
O bendito cordão que cortamos à nascença, sempre vai marcando presença ao longo da vida, estou convicta que, verdadeiramente, na figura materna apenas.
Ouve-se dizer a propósito da relação entre pais e filhos, "mãe é mãe e pai é pai", exactamente reiterando essa ligação simbiótica e inapagável, tatuada pela biologia humana ao longo dos nove meses de gestação.
E tudo aquilo que partilhámos, essa chama vital que assegura a vida da criança até que fisicamente se separa da mãe, vai coexistir a vida toda transmitida por tantos outros cordões, tantas outros laços, tantas outras formas quase irracionalmente inexplicáveis.
A necessidade quase absurda de uma protecção constante que uma mãe sente em relação ao seu filho, o imperativo da sua presença cujas "asas" o defenderiam de todos os riscos, a ânsia de o poupar a todas as adversidades possíveis, chegam, em casos extremos roçando o patológico, a serem doentios.
Na natureza, as mães são defensoras e protectoras inabaláveis das suas crias.  
Assisti há poucos dias na minha viagem ao Quénia, à fúria de um bando de elefantes, encabeçado pela progenitora, na protecção de uma cria que estava ferida.
Racional ou apenas por razões biológicas, contra tudo e contra todos, viramos feras na protecção das nossas ... 

Hoje em dia, a desejada e desejável autonomia dos jovens em relação à casa paterna está objectivamente comprometida, consequência, além de outros factores sociais vividos neste momento, da crise que sobre todos se abate ... na qual ressalta a incapacidade material de se alcançar o legitimo direito à habitação.
É insustentável conseguir-se por aluguer ou compra, um espaço minimamente digno, ao alcance da maioria.  Se se faz face às despesas alimentares e outras do quotidiano, não se consegue de nenhuma forma ter acesso a uma renda especulativa ou à prestação bancária de um empréstimo, ainda que o mesmo tivesse sido alcançado.
Assim, é absolutamente dramático o que muitas e muitas pessoas singulares, ou famílias constituídas, estão a sentir, com o estrangulamento dos seus futuros.
As manifestações sociais multiplicam-se, as vidas hipotecam-se, não se seguem estudos superiores porque não há alojamentos compatíveis para os estudantes que da província acedem às Faculdades ... da noite para o dia, encurraladas e sufocadas, as pessoas caem na rua ...
Há dias, subindo a Av. Almirante Reis em Lisboa, deparei-me, para angústia minha, com sete ou oito tendas, só no espaço de um quarteirão, sob as arcadas de um prédio. Um verdadeiro acampamento em plena capital !... 
A tal, nunca ao longo das minhas já consideráveis décadas de vida, tinha assistido !
As televisões reportam situações idênticas, de pessoas que embora com empregos e respectivas remunerações, não conseguem suportar minimamente as responsabilidades diárias, e por isso dividem com outras em iguais condições, tendas aninhadas em parques ou espaços sem condições dignas de vida ... até que as deixem e não as escorracem para outros poisos. 
É o fim da linha pra muitos nossos concidadãos, é o que lhes sobrou num Estado e numa estrutura social que os marginaliza, os exclui ... porque simplesmente parece não haver mais caminho para andar.
Mães que acabam por entregar os filhos à guarda de instituições, porque o lugar de uma criança não pode ser uma tenda no meio duma rua ...

E depois há também os outros ... os que são despejados do caudal inestancável dos canais de emigração desde os países mais sofridos, e que buscam, numa Europa promissora, o sonho de um futuro, uma vida, subsistência, alguma dignidade e alguma paz ...
Vertidos das guerras, da violência, do vazio de horizontes, do abandono, da fome e da miséria, mais sós do que nunca, entregues à sua sorte, à exploração, às máfias e ao sofrimento, empilham-se às dezenas enlatados numa precariedade inimaginável, em quartos miseráveis, imundos, onde o sistema da "cama quente" é frequentemente o que têm ...
E são de facto uma fauna que pulula nas nossas cidades, bem aqui ao nosso lado, em olhares que a esperança há muito abandonou ...

Também  eles  têm  ou  tiveram  mães ... lá  longe,  numa  terra  que  já  só  deve  ser  uma  memória ...

Como aquele rapaz de vinte e oito anos, silencioso, de olhos tristes e vazios, que pediu para comer mas que teve vergonha de entrar no supermercado comigo, e preferiu esperar na rua.  O seu país, a família, a dor e a guerra, lá ... A dignidade também ...  
Cá, até o trabalho que tinha lhe falhou há um mês ... Tinha fome ...

A angústia é avassaladora.  Sabemos o hoje, nunca o amanhã foi tão incerto ! O viver tornou-se um pesadelo, e mesmo investidas do "super poder" milagroso das mães ... não podemos viver a vida dos filhos ... nem viver a dureza da existência pelos filhos !!...

Anamar

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

" VIAJAR ENTRE VIAGENS "

 


Parece uma coisa meio absurda ... Afinal, viajar entre viagens é o quê?

Já tive um post totalmente escrito, pronto a publicar, e eis que num passe inesperado de mágica, foi o mesmo "comido" pelas tecnologias que não domino o suficiente, das quais não me defendo e me exasperam profundamente !
Golpe rude para quem já anda a escrever tão pouco, tendo em conta que o que havia a explanar a propósito, sucumbiu no que fora escrito ...
Incapaz de refazer aproximadamente o texto elaborado, a fúria subsequente zerou-me toda a capacidade de o retomar.
Assim sendo, com algumas semanas de permeio vou hoje tentar deixar aqui, certamente apenas um simulacro da abordagem que havia feito, não mais !  Sempre assim sucede quando se perde qualquer coisa que até nos havia satisfeito razoavelmente ... Tudo o que se tente posteriormente, não atinge a fasquia desejada !

Ora bem, "viajar entre viagens" é o que normalmente mais faço, quando ao chegar de uma acabadinha de fazer e da qual venho invariavelmente sempre plena e feliz, recomeço da estaca zero, que é como quem diz, recomeço a pensar no próximo destino ...😁😁, que poderá pertencer simplesmente ao domínio  do  real  ou  ao  dos  sonhos ! O gozo  é  o  mesmo !... 😃
É um período de tempo, mais ou menos longo, dependendo dos condicionalismos, e em que tudo é permitido.
É um período de lazer absoluto, em que tanto posso pensar numa viagem futura com muitos dígitos, como numa mais modesta ... pela simples razão de que nesse timing, não existindo disponibilidade económica absoluta e obviamente nenhuma ... tudo se resume portanto a uma mera diversão.
Sonhar é gratuito, inventar também, "passear" pelas propostas tentadoras das agências, idem ... analisar, esquematizar, recolher informação sobre lugares apetecíveis, sem compromisso ... sempre me levam por aí fora, sem limites ou barreiras, a "viajar" sem sair do sofá.
Leio a propósito, busco a propósito, escolho, planeio, defino estratégias ... itinerários fascinantes, paisagens únicas, paragens aliciantes e irrepetíveis, melhor altura do ano... chego a analisar o clima mais propício para o efeito ...
Enfim ... divirto-me e deixo o espírito ir, ir, como aquela ave rumo ao horizonte ... E eu, com ele !...

Sou um espírito inquieto.  Sentir-me confinada a um espaço, a uma rotina, aos dias que se repetem, aos mesmos rostos, às mesmas conversas, à mesma realidade - afinal todos temos inevitavelmente as nossas - deixa-me neurótica, desanimada, entristece-me, cansa-me, satura-me.  
A vida vivida nas cidades, com os muros, as casas, o betão, sem escapatórias ou alternativas, os ruídos desinteressantes e fastidiosos como companhia, as casas encavalitadas em edifícios de gente maioritariamente desconhecida e indiferente, isola-nos, larga-nos mergulhados em nós mesmos, apenas em nós mesmos.
O casulo que acabamos por construir à nossa volta, creio que por defesa, porque na verdade os dias são vividos num mergulho doentio não aberto ao exterior, mas num vórtice concêntrico de silêncios e desinteresse, passa a ser um reduto estranho em que nos fechamos, e não mais ...
E nada disto nos dá saúde, sequer alegria.  Nada disto nos ilumina os dias, ainda que das janelas se perscrute um céu azul e se adivinhe um sol generoso lá fora ... Porque cá dentro as luzes vão sendo reduzidas e outonais ...

Lembro que o meu pai, viajante de profissão, qual pardalito de ramo em ramo, que não considerou nunca a hipótese de ficar em trabalho fixo na sede da firma ( apesar da mesma se sediar em Lisboa e esta ser a sua cidade de coração ), quando teve que parar mesmo ( passando a ir diariamente para o escritório resolver apenas questões contabilísticas, burocráticas e enfadonhas ), entristeceu, desinteressou-se gradualmente de viver, envelheceu, perdeu todo o gosto pela existência e passou simplesmente a arrastar-se, em cada dia que começava.
Parecia um prisioneiro sem cela, um pássaro de asas cortadas em gaiola aberta ... O seu olhar perdeu o brilho, ensimesmou, silenciou por dentro, começou aos poucos a cortar laços de comunicação à sua volta ... definhou e partiu, não muito tempo depois ...
Em suma, o meu pai deixou simplesmente, sequer, de poder "viajar entre viagens" ... e esse era o seu oxigénio ! 

Parece uma coisa meio absurda ... Neste momento acredito ser uma característica genética... talvez uma questão de sobrevivência !
A  interpretação  alternativa, é  que  não  estarei  bem  de posse das  minhas  faculdades  mentais ! ... 😁😁😁

Anamar

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

" ÁFRICA "

 



Identifico-me com África ... identifico-me profundamente com África !...

Talvez por ter nascido numa geografia de traços comuns com aquele continente, me sinta numa espécie de "regresso a casa" quando ali chego.
Trata-se duma terra sem horizontes, uma terra avassaladoramente sem limites ou contenções, onde a palavra liberdade se encaixa na perfeição.  
É uma terra de silêncios, onde a música que ecoa dimana apenas da brisa perpassante ... quando a há.  
Tudo o mais são os trinados das aves de ramo em ramo, ou a linguagem dos animais na savana.  Tudo o mais é o bafo sufocante que emerge do chão, aquele chão ocre ou sanguíneo, agora que, sendo seca a época, a água inexistente não pôde acordar o verde da mata.

África é a natureza pujante. É um cântico à existência.  É um hino à Vida.
As coisas são simples, porque são genuínas.  Porque África é verdade!
O desprendimento, o desapego, a humildade, a inexistência de exigência face à vida que se detém, a alegria de simples fruição do que os dias nos concedem, são lições de vida a aprender diariamente ...  nós, os que filhos da época do estrago e do desperdício, numa sociedade de consumo feroz, sempre queremos mais e em que a palavra insatisfação ocupa quase sempre o nosso quotidiano.

A paisagem repousa a alma, quando os olhos se perdem na imensidão da terra que alcançamos.  
As acácias erguem-se garbosamente solitárias contra o céu.  Os animais, das aves aos répteis e a todos os outros que povoam o território, convivem no respeito pelas leis da sobrevivência.  Matam p´ra comer, acordam ainda os alvores do dia se não prenunciam, dormem sestas nas sombras abençoadas ou pastoreiam sem descanso nas planuras a perder de vista.
As hierarquias são respeitadas, os clãs definidos, as relações familiares inquestionáveis.  A protecção aos mais fracos e vulneráveis, aos mais jovens e inexperientes, e aos doentes ou incapacitados, são garantidas pelos grupos, liderados pelos machos alfa ou pelos anciãos respeitáveis.
Os cheiros da terra, do capim seco, as árvores esquálidas e esfíngicas em recorte na paisagem, os pôres e nasceres de sol na fogueira laranja do alvorecer ou na mornidão da dormência da tarde, com a sua magia ímpar transportam consigo uma energia primordial de útero materno. 
 
Não é à toa que, cientificamente, a "terra natal" do Homem moderno parece coincidir com a região a sul do Zambeze ( norte do Botsuana ), área de salinas que albergou um imenso lago, o qual pode ter sido o nosso lar ancestral, há duzentos mil anos ...

Tudo é autêntico em África. As etnias respeitam as origens, continuam vivendo nas normas e costumes.  A pobreza é avassaladora, a alegria também.
O calor abrasador não impede os jogos e as brincadeiras das crianças descalças, no chão de terra batida, em convívio pleno com os animais que ciscam em coabitação.  O ranho desce-lhes à boca, as roupas já sem cor definida, às vezes desajustadas no tamanho, quase sempre com rasgões e buracos alegram-lhes os dias.  A escola vive-se na tribo, ensinada pelo mais letrado da aldeia, aprendida nos bancos de madeira, debaixo da acácia que sombreia ...
Os meninos de África são únicos.  Os seus sorrisos tímidos de inocência e deslumbramento iluminam-lhes os rostos e denunciam-lhes a pureza da alma ... 
A nós, inundam-nos os corações e tactuam-nos a mente "ad eternum" ...
Por tudo isto, o Quénia ficará comigo para sempre !...

Anamar

sábado, 12 de agosto de 2023

" LIVROS DE HISTÓRIAS ..."


A vida é um livro que, desfolhado, sempre conta uma história.  
É a história de vida de cada um, mais ou menos simpática, mais ou menos doída, mais interessante, mais difícil, com final feliz ou com um fim conturbado ... ou mesmo parecendo não ter fim, tanto o cansaço que arrasta ... tal qual o nosso livro de cabeceira, que umas vezes é lido na ânsia do conteúdo, outras vezes é "mastigado" e não nos sai das mãos, por enfadonho, cansativo, desinteressante ... chato !

A vida sempre começa pela infância, quase sempre os melhores anos, leves, despreocupados, em que os olhos se esbugalham face a tudo o que de novo se nos depara;  quase tudo é encantamento, porque é desconhecido, é experimentado, é história, é sonho ... quase tudo é feliz e alegre, como os contos, que o pai ou a mãe nos liam ao deitar.
Começamos a entender o mundo, começamos a olhar as coisas que nos cercam, começamos a experimentar, a registar, a observar, a saborear ... a concluir.  Dizem que as nossas primeiras memórias remontam aos quatro, cinco anos.
Costumam ser tempos felizes e promissores.  Deseja-se que de facto, o sejam !

Crescemos e as responsabilidades, as primeiras preocupações a sério, já as primeiras angústias, já as primeiras tristezas, crescem connosco.  
São os anos da aprendizagem, os anos dos bancos da escola, onde começamos a integrar-nos em grupo, onde as brincadeiras forjam reais amizades, onde convivemos e socializamos já com uma visão mais real e objectiva do mundo que nos cerca. 
Rumamos à adolescência e novos "mundos", novas realidades, novos caminhos, sonhos, objectivos e metas começam a desenhar-se. 
É período de outras descobertas, é o crescimento e suas dores, a tomada de consciência do nosso papel na sociedade, a maturidade a exigir-nos a seriedade inerente ao avanço dos anos.  Damos os primeiros passos p'ra valer, nas vidas profissionais, procuramos corresponder sem nos defraudarmos nem defraudarmos as expectativas em nós colocadas.
Na minha geração tacteavam-se os primeiros projectos familiares independentes.  Estudos terminados, iniciava-se a vida activa, e o encaminho sem fugir muito à regra, seria casar, ter filhos, continuar a senda ...
Fazia parte da engrenagem para que nos programavam, e não se questionava muito o porquê das coisas.  Era assim e ponto, na generalidade.
Eram poucas as pessoas, eram pouquíssimas as mulheres que "avistavam" novos horizontes e se permitiam ao voo.
Era a família que ficava, eram as idades do pai, da mãe a avançarem, e a separação era assim algo um pouco contra-natura, como se outro cordão umbilical se fosse de novo romper.
E se desse mesmo, ficávamos ... íamos ficando e encurtando o tamanho dos sonhos sonhados.  Afinal, era como que um pré-destino inevitável a cumprir ...

Tínhamos filhos ... claro, tínhamos filhos, e começava tudo de novo.  Agora em prol deles, sempre prioritários nas nossas vidas.
Passámos a sofrer as suas dificuldades, ficámos a viver os seus sucessos e os seus desaires, ficámos a projectar-nos nas suas vidas, literalmente "inchando" por cada êxito, chorando em silêncio por cada escolho dos seus caminhos, querendo que fossem mansos, tentando afastar-lhes os pedregulhos ...
Varremos quase sempre os nossos sonhos um pouco para baixo dos tapetes.  Às vezes, retirámo-nos mesmo o direito a sonhá-los ... Ficámos muitas vezes prisioneiros de solidões acompanhadas ...
E se o nosso percurso não teve acidentes de maior, estaria desenhado, eu diria, até ao fim das nossas vidas, no dia em que o tal livro dobrasse a última página !

Mas às vezes não era tão linear assim.  Às vezes, instalava-se no nosso caminho, um cerrado de "nieblas" e mau tempo.  E dissipá-las e andar adiante, revelava-se uma estóica aventura.
Escolhi ficar só com mais de meio século vivido.  Entendi que este presente que me era oferecido por cada dia que se iniciava, agora era mesmo meu.
E foi como se me tivesse aventurado em terreno baldio e desconhecido, entregue exclusivamente à minha sorte, com todos os custos inerentes, tendo que pagar, se fosse o caso, o preço que me fosse devido.
E quase voltei às primeiras páginas do livro, reescrevendo agora uma outra história.
Agora as cores já só podem ter os cambiantes laranjas, amarelos e os ocres do Outono.  Os verdes risonhos, os azuis de céus límpidos e a mescla dos borbotos a despontar, são só desperdícios largados lá atrás...
Mas a saga continua e quando os tempos de mornidão pareceriam adequar-se, quando a paz almejada e esperada pareceria óbvia e legítima ... quando inevitavelmente pareceria não haver muito mais história a contar ... até porque o cansaço de fim de jornada já se anuncia, eis que outras páginas exigem letras e frases, e parágrafos e ideias ... e tudo se impõe e regressa ao princípio, só que agora já não sou eu a protagonista das histórias, e só que agora pouco já posso fazer para dar o rumo escolhido e o final desejado às histórias que fosse contando !...

Anamar 

quinta-feira, 27 de julho de 2023

" UM OUTRO DIA ... A VIDA A RETOMAR O RUMO ... "


Hoje no "Dia dos Avós" ao que parece, a Teresa quis falar comigo em Face Time.
Já há algum tempo que não nos víamos, pois a mãe teve uns dias de paragem laboral, depois chegou o pai para o habitual período em Portugal, e com tudo isso, a Teresa não veio cá para casa.
Entretanto ocorreu o desenlace triste com o Chico, o gato bonacheirão que ela adorava e a quem podia fazer todo o rol de brincadeiras, festas e tudo o que lhe ocorresse, porque o Chico nunca soube o que eram garras ou dentes.
Agora, eu que sempre fui chamada de "avó dos gatos", já só coabito com o Jonas que sendo igualmente dócil e muito manso, é medroso, o que o torna arisco e distante.  A Teresa, o melhor que consegue é fazer-lhe uma festa fugidia quando ele passa por ela meio a correr, e esse facto, mesmo assim deixa-a exultante e eufórica.  "Avó, consegui dar uma festinha ao Jonas !"- diz-me feliz da vida.

Pois antes de falarmos o que quer que fosse, a Teresa tinha uma pergunta "séria" a fazer-me: queria saber se eu tinha feito o funeral ao Chico.
Não consigo descortinar qual o contexto mental em que na sua cabecinha se insere esta preocupação ...
Tentei desmistificar a questão, e garanti-lhe que tinha dado ao Chico tudo o que ele merecia, lhe tinha dado muitos beijinhos dela e lhe tinha dito que nós gostávamos muito dele.
A Teresa olhava p'ra mim com uma dificuldade imensa em conter as lágrimas que teimavam assomar-lhe aos olhos.  Estava, como costumamos dizer, "embaçada", entupida com a emoção que a tomava e quase a denunciava.
Perguntei-lhe : " Estás  triste,  meu  amor ?  " Que  sim ... ( só com a cabeça ).   "A  avó  também !"💔💔

Acho que lhe poderia ter dito muito mais, para a consolar, sei lá ... coisas do tipo "ele estava doente e agora já não sofre mais" ... ou, a imagem poética com que sempre reconfortamos uma criança na hora duma perda difícil : "foi para a estrelinha onde tu sabes que está a Bi e tu vais olhar para o céu à noite e descobrir, de certeza, a estrelinha mais brilhante que lá está.  É essa, tu já sabes ..."

A realidade e a dureza da vida, que sempre tentamos escamotear ... o sofrimento, que sempre tentamos poupar a quem amamos, também me bloqueou e emudeci.
Terão tempo por certo, para que a inocência seja perdida, e a idade adulta seguramente não os poupará dos escolhos que inevitavelmente terão que enfrentar.  E assim tentamos proteger como podemos, sobretudo as crianças.

Felizmente, facilmente o seu foco de atenção mudou.  
O  cão de que gosta muito e o gato preto também, diabético também ... o "gordo" como lhe chama ... que provavelmente será qualquer dia o novo desgosto da Teresa, pois a sua saúde é precária e a idade também já lhe pesa ... chamaram-lhe a atenção à chegada a casa.
O meu embaraço desfez-se, finalmente !

Por aqui, voltei-me de novo para Enya.  Já há tempos não escutava a sua música, ela que foi minha companheira em permanência, anos e anos.
Mas parece que Enya me está destinada quando busco conforto, interioridade, silêncio, cumplicidade.  Enya representa anos da minha vida, foi imagem de muitos momentos marcantes, e continuará por certo a sê-lo.
A sua voz liberta-me, apazigua-me, transporta-me a uma dimensão celestial, velada, ao silêncio e à penumbra dos claustros de uma catedral onde, no meio da loucura e da adversidade, nos reencontramos connosco mesmos !...

Anamar