terça-feira, 31 de julho de 2012

" PENSAMENTOS À SOLTA "



As pessoas só morrem de verdade, quando as matamos no nosso coração ... Ao contrário, há muitas que já partiram e continuam bem vivas, exactamente por isso ... porque estão dentro de nós.

Ontem falava-vos em perdas.
Às vezes nem sei por que busco determinados temas, ou por que eles vêm ter comigo para que sobre eles reflicta.
Falava-vos a propósito de Julho, que para mim parece ser recorrente tratar-se de um mês de perdas, um mês de mágoas, também de saudade,  também por tudo, de reflexão ( as minhas intermináveis reflexões ), porque cada vez mais acho que na Vida nada acontece de facto, por acaso ou circunstância.

Tem dias em que penso que tudo é mera aleatoriedade, puro jogo, em que se ganha agora, para se perder amanhã, em que pouca coisa parece ter lógica ou faz sentido ...  vai simplesmente ocorrendo.
Mas há acontecimentos, momentos que me "abanam" de tal forma, que, porque me oscilam as bases, me retiram o equilíbrio, me descontrolam o norte, me retiram o chão firme e seguro ...  me obrigam a estacar e a sentir que parecem ser momentos de viragem, parecem ser intencionalmente, momentos em que a "roda livre" em que vamos andando, dia após dia, deverá parar, deverá pausar ...

São momentos em que parece  importante "fechar para balanço", regressar à "concha", recolher à "toca", voltar ao "útero materno "...
Normalmente são momentos de expurgação, de meditação, de crescimento, de reequilíbrio, da tal "aferição" que tantas vezes refiro nos meus escritos.

No dia a dia, o ser humano caminha em "piloto automático", quase na generalidade ;  penso que o posso afirmar sem grande margem de erro.
Uns de uma forma, outros de outra, por esta ou aquela razão ou esquema de vida, cria-se uma espécie de insensibilização às realidades, de que já nem damos conta, e vamos caminhando sempre, porque urge fazê-lo, por sobrevivência, porque os dias se sucedem aos dias, e há que ir acordando em todos eles.

Gera-se um "adormecimento" no ser humano, em que parece realmente que todos, uns atrás dos outros, não somos mais que o hamster na sua roda ensandecida, ou o atleta no tapete rolante.
Fazemos quilómetros de percurso, e não saímos do mesmo ponto ...

É então que inesperada e subitamente muitas vezes, algum desígnio ( não sei qual ), desencadeia um qualquer terramoto, um qualquer acontecimento crucial e determinante, como se alguém se colocasse bem na nossa frente, desligasse a passadeira, ou imobilizasse a roda, e nos dissesse : "Pára !  É hora de tréguas de Vida !..."

E surpreendidos a princípio, porque muitas vezes colhidos de surpresa, começamos então a reduzir o ritmo, a afastar as cortinas do nevoeiro que nos uniformizara o caminho, o qual já não questionávamos, porque nos adaptáramos a ele.
Sentamo-nos então na beira da estrada, na sombra de um pinheiro manso, cuja copa é doce e acolhedora, porque até pela forma que exibe, é uma abóbada celestial ... e com o azul até ao horizonte, com o silêncio a esbanjar-se à nossa volta, com as borboletas e os pássaros a voejar aqui e ali ... tentamos começar a respirar até ao âmago, o oxigénio que escasseava e não tínhamos dado por isso ...
Semi-cerramos os olhos, despertamos os ouvidos, para que o coração comece então a pulsar em alívio e paz.

E choramos, se calhar choramos muito, aliás é desejável que choremos tudo de uma vez, e desesperamo-nos naquela quietude de  beira de estrada ;  se calhar gritamos interrogações bem em voz alta ( porque também ninguém nos ouve ), se calhar revisionamos tudo o que foi e já não é, como foi possível que o fosse e não seja mais, e sempre nos fazemos aquela pergunta, inerente à presunção arrogante do ser humano se sentir realmente importante : " Porquê eu ?  Porquê a mim ?... "

O pinheiro manso não responde, o azul do céu não se compadece, o som do mar não nos apazigua, as borboletas e os pássaros continuam indiferentes, nos seus caminhos a trilhar, as lágrimas acabam secando ... e finalmente estamos nós frente a nós mesmos, como a solidão do soldado no campo de batalha ... meros sobreviventes ... AINDA !!!...

Percebemos então que há sinais, sinais que temos que aprender a interpretar, para os quais teremos que estar despertos ,  percebemos que talvez tenha sido assim, porque simplesmente tinha que ter sido assim ... e que talvez haja uma lógica e uma verdade, subjacentes a isto a que chamam " VIVER " !!!...

Anamar

segunda-feira, 30 de julho de 2012

" A HERANÇA "




Ainda estamos em Julho ... para mim, cada vez mais, um mês muito marcado.

Hoje faz vinte anos que o meu pai partiu, três que o Óscar me deixou ... mês de partidas, e as partidas são sempre demolidoras.
As partidas nunca nos deixam incólumes. O tempo abate-lhes a destruição, mas nunca, nunca as apaga ... sejam que partidas forem.

Todas correspondem a ausências, voluntárias ou não, de seres que fizeram parte integrante das nossas vidas, e se o fizeram, é porque foram importantes para nós e determinantes no nosso percurso.

E se o fizeram e deixaram de o fazer, subtrairam parte de nós, que sempre carregam com eles.
E sem um pedaço, por pequeno que seja, não estaremos nunca mais, inteiros !

Detesto que este meu espaço seja um lugar de correio ou aferição.
O que é facto, é que sendo um canto intimista onde fundamental e inevitavelmente veiculo emoções, estados de alma, sentimentos, acaba por o ser, digamos que à minha revelia.
Isso advém obviamente também, da transparência do que escrevo, do que digo, de como sempre me posiciono, da frontalidade, verdade e pouca inteligência que acabo por usar na exposição que faço da minha pessoa ( imprudentemente, reconheço às vezes ), defendendo-me pouco, e talvez perdendo, por isso.

O povo diz que "o mal e o bem, à cara vem" ...
A escrita é uma forma aproximada de "dar a cara", e como tal, é fácil que a minha, seja um barómetro do muito que se passa dentro de mim.
Às vezes arrependo-me e reflicto sobre isso ... outras, "borrifo-me" simplesmente, e "pairo" sobre essa sensação desconfortável, é verdade.
Contudo, escrever só por escrever, sobre temas avulsos, como que "por encomenda", como que "a metro", não é seguramente a "minha praia".
Por essa razão, nunca aceitei nenhum furo jornalístico, em colunas de opinião ou outras, que já me propuseram, ou sequer publiquei o que quer que fosse.
Em boa verdade, as palavras que por aqui largo, são meras folhas largadas ao vento, que exactamente por isso, não têm uma direcção definida, não são obrigadas a ir por aqui ou por ali ;  são livres, não se encaminham para nenhum lado, e destinam-se a ser destruídas e  perdidas no remoinho dessa mesma aragem ...

Tocam aqui e ali ;  farão sorrir alguns desprevenidos ( como aquele golpe de vento que nos levanta a saia, quando menos esperamos ) ; talvez levem alguns a apanhá-las, e curiosos queiram ver o que aquela folhinha que lhes esbarrou nas pernas, ou que poisava na relva ou no banco daquele jardim, continha ...

Não são mais que aquela folha de jornal esmaecida, fora de dia e de mês ... que o "sem abrigo" lê, naquele tempo sem pressa, que é a sua vida ...

Não são mais que aquela revista serôdia, que as pessoas largam junto aos contentores, depois de lida e esmiuçada ...  Pode ser que alguém ainda aproveite ... felizmente as letras não se gastam !...

Todos conhecemos aquela imagem ou frase feita, de "abrir um buraco na areia e falar lá para dentro", como forma de extravasar o que nos "entope", e que ninguém tem obrigação de escutar, aturar, sequer entender ...
E também, poucos teriam tempo para isso, porque hoje já não há tempo para grandes coisas ...
E depois, a areia cobre rapidamente qualquer buraco que nela se escave.  É "volátil", escorregadia, macia, movediça, instável ... e o buraco aberto, rapidamente se encerra, encerrando consigo os desabafos de quem os fez ...
Outras vezes, dar um grito no escuro também resolve o sufoco no coração.
E porquê no escuro??
Porque no escuro, ninguém vê donde vem, para onde vai ...  Perde-se anonimamente pelo "éter", transportando em si, toda a carga que nos perturba ou atormenta ...

Eu, escrevo ...

Às vezes resolve, outras não ;  umas vezes é terapêutico, outras simplesmente profiláctico ... outras, nem uma coisa nem outra ...
Contudo, tenho uma veleidade ou  ambição, devo  confessar, embora nunca venha a saber se se concretizará ...

Uma vez que todos os meus conteúdos coexistem em suporte de papel também, constituindo uma espécie de "colecção" muito pessoal, deixá-los-ei depois de mim, para os meus netos, que talvez possam um dia, quando tiverem idade madura, ter curiosidade em conhecer a avó que tiveram ;
uma avó meio estranha, reconheço, fora dos arquétipos ou padrões tradicionais, meio ensandecida e pouco convencional ;  rebelde sempre, contra-corrente também ...
Sempre no pico da alegria ou no maior fosso de sofrimento, com uma insatisfação permanente de Vida, uma exigência e uma busca imparável de felicidade ;  uma ingenuidade de criança ou uma ânsia adolescente, num corpo e numa mente de mulher madura ...

Digamos que será mesmo a única "herança" que verdadeiramente lhes deixarei, por genuína, "despida", autêntica, sem preço ou valor material ...

Exactamente e só, EU mesma, a nu, como se em cada post estivesse frente a um espelho mágico, que tivesse em todos os momentos, a capacidade de me ler até à alma !!!...

Anamar

sábado, 28 de julho de 2012

" TEMPO "


O tempo sem tempo ...
...  é aquele que passa e parece que não passa, porque não passa nunca !
É feito de dias e noites, e dias que são quase sempre noites.  É sempre um tempo de desespero, de desesperança, de esperar sem ter o quê.
Não é o tempo das Vidas, porque esse, ao contrário, corre tão rápido que nem temos tempo de o agarrar.
É o tempo da morte, porque essa é certa e chega depressa.
Aliás sempre está lá no virar de uma qualquer esquina de que nem nos tínhamos apercebido ...
e há também o tempo, que não dá tempo para viver o que quer que seja.
É enganador, faz-nos acreditar em dias de sol, e no máximo, há dias de arco-íris, porque sempre chove ao mesmo tempo.

O tempo em que rimos é tão curto, que não cabe no tempo sem tempo.  Esse, é aquele em que choramos ... e bolas, choramos quase sempre !...

Aquele que passa, espantosamente é um tempo de esquecimento.  Tem mata-borrão, ou melhor, tem mesmo borracha, e vai esbatendo, esbatendo, até que o que passa, já passou de vez, sempre contra a nossa vontade.
Só nos deixa restinhos, rabiscos, flores secas, pedrinhas que nunca secam, ou então as músicas, que numa vitrola partida, tocam, tocam exaustivamente, sempre as mesmas, como se a vitrola  se tivesse engasgado, ou então sadicamente é para nos magoarem bem, bem até ao fundo ...

O tempo que passa é um tempo sem piedade, que se ri de nós, promete Primaveras e Verões, e depois, quando já estamos quase convencidos, traz-nos Outonos e Invernos, e vai-se tornando no tal tempo sem tempo.
Mas depois é tão safado, que nunca nos deixa ficar os mesmos, por cada minuto do seu precioso existir ...  Não !... 
No minuto seguinte, conseguimos sempre estar mais amargos e doídos que no minuto anterior, e a droga é que os minutos fazem horas e dias e meses e anos ...
E, bom ... depois também já não temos vontade sequer de usar relógio, ou de olhar para as flores que já secaram mais ainda, nem para as pedras que não secaram, mas que estão cobertas do pó que nunca limpámos.

Os ouvidos endureceram de tal forma, que apesar dos decibéis acima do certo, não os alcançam, e a vitrola emudece de vez ...
E olhamos os sítios, os espaços, os objectos, e verificamos que eles já não fazem sentido, e até duvidamos que alguma vez o tivessem feito ...
E é quando começamos a pensar se não estivémos mesmo enlouquecidos, ou se foi o tempo sem tempo que nos deixou assim ...

E o que foi e parecia nunca poder deixar de o ser , deixa mesmo, e damos por nós desvairados, à procura na gaveta da mente, do que a gaveta do coração nos garante que estava lá ...
Lá, onde??!!...
Abanamos a mente, como num "shaker",  bem batida, a ver se o que está em baixo vem para cima e vice-versa, mas não !...
E a certa altura acreditamos que nunca houve gaivotas, nem céus azuis, nem pores-de-sol, nem mimosas em flor, nem mar de carneirinhos ...
Nós é que pensámos, e vimos tudo nun filme em 3D, em que Énya vinha ao nosso encontro pela sala fora, e nos cantava ao ouvido "Only time" !...

Estão a ver ??
Até Énya sabe que "só o tempo" sabe das coisas, e nós somos meros "aprendizes de feiticeiro" ...

E a estrada a percorrer é longa, o caminho muito, muito comprido, pelas matas, pelos mares, pelas florestas, com chuva impiedosa a açoitar-nos.
E vamos indo, mesmo que não pintemos o céu com estrelas, como ela também nos diz ...  e o tempo sem tempo, em caminho paralelo ali bem ao nosso lado !...
Se paramos, de cansaço, ele segue, e custamos a alcançá-lo, porque sempre nos leva a dianteira.
Nós tropeçamos muitas vezes, caímos vezes sem conta, mas ele não se compadece ... segue escorreito, porque não padece de pernas, alma e coração enfraquecidos ... simplesmente porque não os tem.

Até um determinado segundo, de um qualquer dia ( sempre quando ele quer, e porque tudo ocorre num escasso segundo ), em que nos barra a caminhada, nos espeta com um sinal de stop, até mesmo de sentido proibido ou de estrada sem saída, bem na nossa cara ;
e pronto, somos obrigados a estacar, porque dali para a frente não há mais saída ...
É tal qual aquela praia deserta que os meus pés descalços percorriam, percorriam pelo nascer do sol, e que os manglares cortavam lá ao fundo.
Dali para a frente ficava só o meu olhar perdido, que encompridava, encompridava ( a esmiuçar se para lá, ainda haveria tempo ), e o tic-tac que não era de nenhum relógio, mas simplesmente do pica-pau no tronco do coqueiro, que se reclinava para as águas mansas ... a fazer ninho ...

E pronto ...  Hoje estou assim ...

Talvez porque o tempo, o outro, esteja cinzento, chuvoso, dormente, desalentador, e eu pressinta que o tempo sem tempo que caminha ainda no trilho paralelo aqui mesmo ao meu lado, está aqui está a barrar-me a caminhada, e então, sem apelo nem agravo, vou ser obrigada a parar ...

Mas talvez então, eu já esteja tão entorpecida, tão abençoadamente exausta, tão inerte, que estará na altura certa para que o meu tempo deixe de verdade de ser TEMPO !!!...


Anamar

sexta-feira, 27 de julho de 2012

" A VITÓRIA "


   NOTA : Esta foto não é actual


A Vitória esteve comigo quase uma semana, estadia que por tão longa, foi de algum modo, inusitada.
Desta feita, colégios terminados, actividades de férias também, e o drama de muitos pais que ainda trabalham :  onde colocar os filhos?
No caso da minha filha, com três crianças, em que o mais velho tem onze anos e o mais novo, cinco, pior ainda.

Eu relaciono-me melhor com raparigas do que com rapazes, talvez por ter criado apenas filhas ;  como tal, amando os três por igual, sinto-me mais confortável no relacionamento com a miúda, que neste momento tem oito anos.

A Vitória, na sua pouca idade, é uma mulherzinha na postura, nas atitudes, mesmo nas conversas.
É cordata, pelo menos comigo não tem teimosias ou birras ( que talvez ainda fossem previsíveis e aceitáveis para os poucos anos que tem ), colabora se solicitada, conversa e também se entretém sem muitas exigências.
A minha casa é desprovida de grandes entretenimentos para crianças.
Existir, eles existem.  Foram guardados há muitos anos em arcas, estão na arrecadação, e nunca lhes mexi mais, a partir do momento em que deixaram de ter serventia, pela inexistência de crianças em casa ;
assim, existe apenas um armário com livros infantis, da mãe e da tia, lápis de cor, canetas de feltro, papéis para desenhar, claro e obviamente televisão, com aquelas séries intermináveis de que os miúdos se tornam dependentes.
Para além disso, arranjei um programa de cinema fora de casa, com as inevitáveis pipocas ( que compartilhámos a meias até que ambas ficámos "atafulhadas", e nos ríamos já do enjoo que sentíamos ), arranjei uma ida à piscina para uma tarde de brincadeira interminável ( só o frio nos correu de lá ), e também estava prevista a "minha" caminhada, coisa que a Vitória, desportista que é, teria adorado ... mas, deu-me uma famigerada preguiça, e acabei por a não encaixar no nosso "calendário de actividades" ...
Na sua próxima estadia comigo, proponho-me fazê-la !...

A Vitória é uma compincha ,  é desinibida, "enturma-se" facilmente, e interage extremamente bem, quer com crianças, quer com adultos.
O convívio com mais dois irmãos e respectivos amigos, a frequência do colégio, as actividades no Sporting, de todos eles também, e uma preocupação sistemática e atenta que os pais têm de os "despertar" para iniciativas culturais, e eventos interessantes que possam motivá-los, de acordo com as respectivas idades, juntando certamente, como é lógico, àquilo que de genético ela transporta, fazem dela uma criança extrovertida, faladora, obviamente simpática.

Tenho com ela, ou melhor, sinto dentro de mim uma ligação meio inexplicável e imperceptível, de empatia, que talvez não seja abusivo dizer, de "mulher para mulher" ou de "mulher para futura mulher", uma espécie de conivência de sentires, de cumplicidades, que até pode não vir a verificar-se ( porque sem dúvida é prematuro afirmá-lo, e futurologia não faço ), mas que objectivamente percepciono.

Não sendo a mãe, e ocupando portanto na "hierarquia familiar e afectiva", um lugar privilegiado, sinto uma disponibilidade de mente e de coração, mais descomprometida, menos cerceada, que é propiciadora sem dúvida, de uma aproximação bem real ao adulto que vai desabrochando dentro dela.

Percebo perfeitamente agora, como é diferente o estatuto de pais e de avós, e percebo perfeitamente a razão por que na Vida, e de uma forma geral, quase todos sempre estamos indelevelmente marcados por estes ...
O relacionamento é de facto específico, especial, bem diverso do que foi enquanto pais, e é real aquela afirmação meio complacente e humorística, de que o papel dos pais é educar ... o dos avós, "estragar" !...

Claro que este "estragar", refere-se à adição de "melaço" que os "pais com açúcar" ( como alguém com brilhantismo definiu os avós ) conferem a uma ligação, que mercê das circunstâncias inerentes à Vida, é mais liberta, mais descomprometida, mais indulgente, mais tolerante, de maior entrega, menos espartilhada e possuidora da experiência, da sabedoria, da dádiva, do desejo de deixar em boas mãos e passar adiante, tudo o que de bom e mau, a Vida nos ensinou.

É uma relação que beneficia de algo extraordinário, que enquanto pais, logicamente não pudémos deter ... que é Tempo.
Efectivamente, Tempo é o que não faltará aos avós ... Tempo é o que os avós terão de sobra, e o facto de o serem numa fase da Vida em que há "espaço" em demasia, por vezes, nas respectivas Vidas, os netos são também por isso, um factor equilibrante de que ambos, avós e netos, usufruirão !

Bom ... sei que a Vitória, ao que parece, gostou muito da estadia em casa desta avó que começará a conhecer melhor, espero, com todas as suas incoerências, incompletudes, defeitos e virtudes, senso e loucura, com preocupações logicamente pedagógicas e de formação, mas também permissiva e aberta aos pequenos disparates, que não são mais que prevaricações saudáveis ...

E isso, deixou-me profundamente feliz.

Vou tentar cultivar ao meu jeito, esta ponte de afecto entre nós, porque sinto que não estou a enganar-me ao expectar depositar nas suas mãos, a corporização daquele futuro que não tive, daquela Vida que não fui capaz de viver, daquela desejada "vingança" de existência ... em suma ... daquela "VITÓRIA" nos sonhos que eu só sonhei !!!...

Anamar

quinta-feira, 26 de julho de 2012

" DE NOVO ... "


Retomo aqui neste "canto", o psiquiatra  Pedro Afonso, de que coloquei um texto assaz interessante, há escassos dias.

Tive acesso a uma outra reflexão do mesmo profissional de saúde, sobre um tema que já abordei e explorei com alguma exaustão : As redes sociais na Net,  o papel que cada vez mais desempenham, e o espaço que ocupam  na vida dos cibernautas, de todas as idades e estratos sociais.

E porque é de facto um assunto que me mexe, e porque achei interessante a análise feita, que de algum modo corrobora a minha opinião a propósito ... deixo aqui o texto publicado pelo referido médico , para vosso conhecimento e reflexão.

Redes sociais não, obrigado


Pedro Afonso, Médico psiquiatra, Público,15-03-2010


Ninguém pode ficar indiferente ao enorme sucesso das redes sociais da Internet,
contando já com milhões de utilizadores. Mas que riscos e consequências estarão
ligadas a esta nova forma de relacionamento social virtual? Sem cair em
estereótipos, e em fundamentalismos redutores, julgo que há uma tendência neste
recente instrumento de relacionamento humano introduzido pela Internet.
Neste caso parece existir uma busca pela auto-valorização e uma necessidade
exibicionista de atenção e admiração. Esta última característica torna-se bem
visível pela forma como se arrecada "amigos", aos milhares, como se fossem
troféus de caça social. Portanto, na amizade, desvalorizou-se a qualidade para se
dar a primazia à quantidade, o que não é mais do que um reflexo da sociedade de
consumo nas relações sociais.
As relações sociais virtuais da Internet são bastante diferentes das relações sociais
reais. Alimentam-se fantasias e cada um mostra aquilo que tem de melhor: a
beleza, o êxito, as férias fantásticas, os momentos de felicidade, etc. Habitualmente
o indivíduo promove-se na rede social como uma pessoa de sucesso, expondo as
suas vitórias e ocultando propositadamente os seus fracassos. É nesta imensa
revista cor-de-rosa, irreal e fantasiosa, que as pessoas se relacionam umas com as
outras, evitando as regras da verdadeira rede social, bem mais complexa e difícil.
Seja como for, parece não existirem dúvidas de que se criou um certo consumismo
social, sem esforço, e acessível a alguns toques no teclado do computador. Porém,
as redes sociais da Internet, no sentido em que são redes virtuais e menos
complexas, podem surgir como uma forma de resistência à aquisição de uma
verdadeira aprendizagem social, promovendo a regressão e a imaturidade.
A amizade criada no mundo real demora tempo a consolidar-se e passa por
diversas provas que nada têm a ver com as pseudo-amizades do mundo virtual. Por
essa razão, nenhum relacionamento através do computador substituiu a
experiência da presença humana: a troca de olhares, a expressão facial, os gestos,
o tom de voz, etc.
As redes sociais favorecem o empobrecimento do relacionamento social - criandose
novas formas de solidão - porque as relações pessoais reais são mais ricas e
profundas.
Não se pode discutir as redes sociais da Internet sem falar em segurança. Por
diversas vezes, as polícias têm alertado para os perigos de se divulgarem
informações pessoais na rede. Por exemplo, uma vez colocada uma fotografia
pessoal na rede social, ela poderá ficar na Internet para sempre, perdendo-se por
completo o seu controlo. Curiosamente, este fenómeno reflecte um paradoxo.
Numa altura em que se investe cada vez mais em segurança, através da
videovigilância, alarmes, etc., na Internet as pessoas expõem-se cada vez mais,
abrindo as portas da sua vida privada, sem reflectir nos perigos que isso
representa.
Importa sublinhar que as redes sociais reflectem o que há de melhor e pior na
natureza humana, com a diferença de possibilitar aos indivíduos perturbados
psiquicamente - que existem em largo número em todas as sociedades - actuarem
facilmente dissimulados, diminuindo a possibilidade de serem detectados. As redes
sociais tornam-se assim uma ferramenta útil para as mais vis maquinações. Um
magnífico caldo de cultura para que várias mentes perigosas possam florescer e
movimentar-se facilmente na cobardia do anonimato, encorajados pela diminuição
dos vários mecanismos de prevenção e segurança de que a sociedade dispõe.
Espantosamente, milhões de pessoas passam cada vez mais tempo nesse mundo
virtual agarrados obsessivamente ao computador. Este é um sinal preocupante de
desumanização da nossa sociedade uma vez que esta emigração maciça para o
mundo virtual pode revelar-se como um início de psicose colectiva: como esta
realidade não é conveniente, as pessoas refugiam-se noutra imaginária.
O crescimento vertiginoso das redes sociais demonstra que o Homem, outrora
sonhador, com ideias e valores, está a capitular. Desistiu de lutar por uma
sociedade melhor, cedeu ao facilitismo, e renunciou viver neste mundo. Por tudo
isto, adaptando um slogan antigo, talvez valesse a pena dizer: redes sociais não,
obrigado.

Anamar

quarta-feira, 25 de julho de 2012

" LEVAR A CARTA A GARCIA "

Há pessoas que parece nunca terem crescido.

Confrontamo-nos por vezes, no nosso caminho, com cabelos embranquecidos que não tinham por que o estar, com posturas tão absolutamente "naïves", que nos pasmam.
São pessoas muitas e muitas vezes traquejadas na Vida, às vezes com uma escola de existência muito sofrida, com traumatismos existenciais que funcionaram da forma inversa, ou seja, em vez de conferirem uma maturidade "protegida", digamos assim, parece que a retiraram.

São eternos meninos grandes que parecem recusar-se a ficar adultos.
Indivíduos que sofreram uma regressão personalística, e não um avanço.
Creio que complicam em vez de simplificar, enchem-se de tarefas, avolumam outras ... tarefas sem fim, que nunca se dão feitas, mas que lhes "alimentam" a inquietude de espírito.
Mergulham em imbróglios complicados de resolver, mas se os não tiverem também não vivem ...
Os problemas nas suas cabeças, agigantam-se, porque se instala um imobilismo, um cansaço atroz e uma estagnação psicológica, que os tolhem mentalmente, os emperram psicologicamente, os indisponibilizam emocionalmente, os paralisam, convencendo-os contudo, que as soluções sempre aparecerão ... só que no dia seguinte ...

E esse dia seguinte, é um dia seguinte não se sabe de que semana, de que mês, de que ano !...
No entanto, essa convicção instala-lhes alguma paz no coração, enquanto nela vão acreditando.
Para eles sempre estará só numa questão de tempo, a resolução de determinados aspectos da Vida, quando, para quem está de fora e distanciado, é absolutamente claro, que essas posturas são absolutas "fugas para a frente", auto-justificações inconsistentes, conclusões e convicções infantis, contudo necessárias para viverem e minimamente se sustentarem, em termos de alguma estabilidade, e se se pode dizer, tranquilidade, ainda que a prazo ...

Em tempos, na minha escola, existiu um presidente do Conselho Directivo, que vivia a correr daqui para ali, carregando papéis nas mãos, numa afobação extrema.
Quando abordado, todos já sabíamos de cór, qual a frase resposta : "Agora não posso ... mais tarde ! Desculpa !"
A eficácia do seu desempenho enquanto por lá esteve, ficou muito a desejar ;  contudo, a personagem em causa envelheceu a olhos vistos, durante o seu período de vigência, e ninguém terá dúvidas que aquele homem sofria a bom sofrer, com as responsabilidades que lhe pesavam, que aquele homem se esforçava para um excelente desempenho, se embrulhava desesperadamente nos problemas ... e pior ... convencia-se que os resolvia ...

Eu entendo estas posturas de ingenuidade, como uma procura de auto-satisfação, ou  mesmo de uma "carícia" pessoal imprescindível ao próprio "ego", porque, sem nenhuma prosápia, esse indivíduo está convicto estar a fazer um bom trabalho, a desenvolver o esforço adequado a conferir-lhe sucesso no que faz ... em suma, que apresenta competência nos desempenhos.

Nada disto que afirmo vem imbuído de juízos de valor negativos, pejorativos, desabonatórios, sobre as pessoas em causa .

Falo em tese, da percepção que me fica das coisas, tão só !...
Aliás, quem seria eu para o fazer ??!!...

Penso que se trata de distúrbios de personalidade, quiçá instalados pelos traumatismos psicológicos a que a Vida os submeteu.
Penso que essas pessoas têm necessidade de se auto-convencer que são insubstitíveis, convencer-se o quão imprescindíveis são, enquanto apoios e pilares, na família, na sociedade, no Mundo, e de que este talvez "parasse", se elas desaparecessem ...

São pessoas de uma generosidade extrema.
São pessoas que colocam sempre os outros, e os problemas reais ou imaginários, à frente de si mesmos.
São pessoas que para aliviarem a carga dos demais, têm um espírito de entrega, esforço, dedicação, missão e dever, absolutamente exacerbados.
São pessoas que se anulam, são de uma abnegação incomensurável em prol de causas, de valores, de princípios, que convictamente defendem e por que pugnam

Para mim, tudo isto seria louvável, não o considerasse já patológico, perturbador, destruidor mesmo do próprio indivíduo, sendo que cada vez mais, o aliena em relação à realidade.

Conheço  de muito perto, casos que encaixam na perfeição neste "boneco" que aqui desenho.
Dividi a minha vida, de certo modo, exactamente com uma pessoa, cujo perfil se insere em parte neste modelo.
São indivíduos que sem dar conta, repito, sem  nenhuma  intencionalidade ou  má fé, subalternizam as capacidades dos que lhes estão perto ;  infantilizam mesmo os seus dependentes.
Por vezes cerceiam-lhes asas, porque afinal, na Vida, a necessidade impulsiona as pessoas, obriga-as a reagir, responsabiliza-as, valoriza-lhes capacidades.

Mas insisto, não presumo estar certa nesta minha forma de observação e análise ; não tenho a veleidade sequer, que corresponda a uma análise com grande correcção.
Não tenho formação científica neste âmbito.
Admito por isso, que estas conclusões talvez sejam atrevidas, possam mesmo constituir erros grosseiros ... espero que ofensivas ... não !!!
Elas resultam simplesmente, da sensibilidade que tenho das situações e do conhecimento das pessoas.

Para mim, trata-se dos tais seres, que existem na Vida, como costumo dizer, apenas para levarem a "Carta a Garcia" !!!...

Anamar

terça-feira, 24 de julho de 2012

PARA REFLECTIR ...

Mais uma vez este espaço se abre a um artigo digno de divulgação, tão lata quanto possível, e despoletador de profunda reflexão, penso.

Analisar, repensar, interpretar a "saúde mental dos portugueses" nos tempos que correm, com todos os considerandos que lhe são inerentes, e particularmente feita por um profissional de gabarito na área em causa ... urge !

Assim sendo, limito-me a colocar à vossa disposição este texto, que por certo alguns conhecerão, mas cujo conteúdo nunca será demais considerar..



Artigo de Pedro Afonso - Médico psiquiatra no Hospital Júlio de Matos


Transcrição do artigo do médico psiquiatra Pedro Afonso, publicado no
Público
.

"Alguns dedicam-se obsessivamente aos números e às estatísticas
esquecendo que a sociedade é feita de pessoas.

Recentemente, ficámos a saber, através do primeiro estudo
epidemiológico nacional de Saúde Mental, que Portugal é o país da
Europa com a maior prevalência de doenças mentais na população. No
último ano, um em cada cinco portugueses sofreu de uma doença
psiquiátrica (23%) e quase metade (43%) já teve uma destas
perturbações durante a vida.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque assisto com
impotência a uma sociedade perturbada e doente em que violência,
urdida nos jogos e na televisão, faz parte da ração diária das
crianças e adolescentes. Neste redil de insanidade, vejo jovens
infantilizados incapazes de construírem um projecto de vida, escravos
dos seus insaciáveis desejos e adulados por pais que satisfazem todos
os seus caprichos, expiando uma culpa muitas vezes imaginária. Na
escola, estes jovens adquiriram um estatuto de semideus, pois todos
terão de fazer um esforço sobrenatural para lhes imprimirem a vontade
de adquirir conhecimentos, ainda que estes não o desejem. É natural
que assim seja, dado que a actual sociedade os inebria de direitos,
criando-lhes a ilusão absurda de que podem ser mestres de si próprios.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque, nos últimos quinze
anos, o divórcio quintuplicou, alcançando 60 divórcios por cada 100
casamentos (dados de 2008). As crises conjugais são também um reflexo
das crises sociais. Se não houver vínculos estáveis entre seres
humanos não existe uma sociedade forte, capaz de criar empresas
sólidas e fomentar a prosperidade. Enquanto o legislador se entretém
maquinalmente a produzir leis que entronizam o divórcio sem culpa,
deparo-me com mulheres compungidas, reféns do estado de alma dos
ex-cônjuges para lhes garantirem o pagamento da miserável pensão de
alimentos.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque se torna cada vez
mais difícil, para quem tem filhos, conciliar o trabalho e a família.
Nas empresas, os directores insanos consideram que a presença
prolongada no trabalho é sinónimo de maior compromisso e
produtividade. Portanto é fácil perceber que, para quem perde cerca de
três horas nas deslocações diárias entre o trabalho, a escola e a
casa, seja difícil ter tempo para os filhos. Recordo o rosto de uma
mãe marejado de lágrimas e com o coração dilacerado por andar tão
cansada que quase se tornou impossível brincar com o seu filho de três
anos.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque a taxa de
desemprego em Portugal afecta mais de meio milhão de cidadãos. Tenho
presenciado muitos casos de homens e mulheres que, humilhados pela
falta de trabalho, se sentem rendidos e impotentes perante a maldição
da pobreza. Observo as suas mãos, calejadas pelo trabalho manual,
tornadas inúteis, segurando um papel encardido da Segurança Social.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque é difícil aceitar
que alguém sobreviva dignamente com pouco mais de 600 euros por mês,
enquanto outros, sem mérito e trabalho, se dedicam impunemente à
actividade da pilhagem do erário público. Fito com assombro e
complacência os olhos de revolta daqueles que estão cansados de
escutar repetidamente que é necessário fazer mais sacrifícios quando
já há muito foram dizimados pela praga da miséria.

Finalmente, interessa-me a saúde mental de alguns portugueses com
responsabilidades governativas porque se dedicam obsessivamente aos
números e às estatísticas esquecendo que a sociedade é feita de
pessoas. Entretanto, com a sua displicência e inépcia, construíram um
mecanismo oleado que vai inexoravelmente triturando as mentes sãs de
um povo, criando condições sociais que favorecem uma decadência
neuronal colectiva, multiplicando, deste modo, as doenças mentais.

E hesito em prescrever antidepressivos e ansiolíticos a quem tem o
estômago vazio e a cabeça cheia de promessas de uma justiça que se
há-de concretizar; e luto contra o demónio do desespero, mas sinto uma
inquietação culposa diante destes rostos que me visitam diariamente."

Pedro Afonso
Médico psiquiatra

Anamar

segunda-feira, 23 de julho de 2012

" COISAS QUE NÃO SE EXPLICAM "

"Afasta-te, para que sintam a tua falta ... Não tanto, que esqueçam que tu existes..."

"Só faz falta, quem está ..."

ou ... "Quem desaparece, esquece" ... diria a minha mãe !

Frases que significam a mesma coisa, ideias que estão imbuídas do mesmo espírito.
Baseiam-se na velha máxima que só sentimos falta do que não temos, que só valorizamos o que, e quando alguma coisa nos falta ...

O ser humano é um "bicho" absolutamente estranho, utópico e muitas vezes ininteligível nas suas posturas, incoerente nos seus sentimentos.
Por que temos tanta dificuldade, parece, em aferir o nosso coração, em auscultar o nosso próprio interior ?!

Por que precisamos que se distancie de nós o objecto desejado, para percebermos como é desejado mesmo, para avaliarmos como não podemos prescindir dele, para entendermos a sua real importância nas nossas vidas?!

Parece um contra-senso ...

Ou fará parte da eterna insatisfação ou dúvida metódica do Homem?!

Ou será que a sua insegurança é de tal ordem, que precise sistematicamente pôr à prova os afectos, a capacidade de resistência à sua ausência, como se quisesse testar o seu lado asceta, e dessa forma recusasse para si próprio, o lado humano ?!

Ou será como se quisesse provar a si mesmo, ser um ser "superior", e não vulnerável ou manipulável pelos sentimentos, achando que estes o enfraquecem e lhe tiram defesas ?!

Tudo isto é estranho.  Tudo isto faz parte de um hermetismo do domínio do psicológico, dos diferentes níveis do consciente, ou tão só de um conhecimento da sua própria entidade, e portanto do que na realidade sente e experimenta ...
Parece um masoquismo esquisito, uma auto-punição procurada, um desequilíbrio inexplicável, uma aferição dispensável, e do meu ponto de vista, suicida !...

Os brasileiros, que utilizam um português "ajeitado", às vezes bem mais expressivo, têm uma frase que traduz isto mesmo : "Vamos dar um tempo !..."

Só que tempo é tempo, e o transcurso do mesmo, não só altera as pessoas, como os sentimentos, como as vivências ... porque afinal, ninguém se consegue pôr entre parêntesis, enquanto esse mesmo tempo vai seguindo o seu caminho.
Ninguém se fossiliza ou se coloca em "banho-maria" ... e o que somos hoje, não é mais o que fomos ontem, e também não o que seremos amanhã.
E esse interregno forjado, acarreta o sério risco de que, quando as pessoas se reencontrarem, nenhuma delas esteja mais lá, porque não sendo mais as mesmas, serão dois desconhecidos cara a cara, com todas as  consequências inerentes.

Um distanciamento físico acarreta forçosamente um distanciamento psicológico, afectivo e emocional, e instala maus estares, mágoas, dúvidas, dores, ressentimentos, inseguranças, que muitas vezes nunca mais são passíveis de serem ultrapassados ...

Do meu ponto de vista, é como brincar com o fogo !...

Tenho para mim, que "dar o tal tempo", é um risco extremamento sério, que pode redundar em "desgraça" irreversível ...
Deveríamos estar bem conscientes disso, creio, assumindo obviamente, se o defendermos e praticarmos, o ónus total da opção tomada !...

Anamar

domingo, 22 de julho de 2012

O MUNDO DOS " MORTOS-VIVOS "


 Julho outra vez !...

Já aqui referi ser um mês muito marcante para mim.
Dentro de uma semana fará vinte anos que o meu pai partiu, fará três que o Óscar também me deixou.
Não estou a por em paralelo obviamente as duas perdas ; mas pelo facto do Óscar ter sido meu companheiro de cerca de quinze anos, e por me ter sido oferecido para colmatar a primeira grande perda da minha vida ( tão mal fiquei ), o Óscar, como seguramente qualquer animal que eu tenha ou tenha tido, transformou-se em mais um membro familiar.
Por isso, a sua ausência é sentida por mim, profundamente, até hoje.
O mês de Julho, no meu espírito, está associado a um mês de perdas, a um mês em que a Vida já me defraudou de muitas maneiras.

A nossa existência sempre está irremediavelmente ligada a perdas.
Não há como não !...
Os caminhos que percorremos, foram desenhados para que na viagem fossem sendo deixados em desvios, em sombras de árvores, ou mesmo em esquinas, os nossos pertences, os nossos anigos, os nossos amores.
É inevitável que assim seja, e consequentemente nos nossos percursos, sem apelo nem agravo, coleccionamos "mortos-mortos", mas também coleccionamos "mortos-vivos" ...
Estes, são aqueles que "contra natura", por desígnio de destinos, vamos abandonando ou nos vão abandonando, pela estrada.

Ambos são processos muito destrutivos, muito dolorosos, muito traumatizantes.
São processos que sempre nos amputam, que sempre carregam consigo pedaços de nós, que sempre nos empobrecem, que sempre nos deixam órfãos ...
Depois de uma perda ou de um abandono, nunca mais ficamos os mesmos, nunca mais seremos a pessoa inteira que éramos ;  isto, porque quem passa por nós, deixa, mas também leva boa parte de nós mesmos.

Os "mortos-mortos", como lhes chamei, são aqueles que por razões da inevitabilidade da vida, se vão, nos deixam, contra vontade, seguramente contra vontade, mercê da impotência que nos transmite o que não pode ser nunca,  mutável ou irreversível.
Tudo se soluciona, excepto a morte ... diz-se.
E este abandono, aquele desespero, aquela solidão, aquele sofrimento, aquela incapacidade mortificante, que sentimos quando acompanhamos alguém na sua última viagem, mata-nos ...

Mas percebemos que o inimigo que tivémos à frente, era o único contra o qual não podemos, não pudémos lutar.
Não existem armas para ele ...
Nem a súplica, nem a esperança, nem a fé, nem sequer a revolta, a raiva, o senso de injustiça  às vezes ... nem sequer o AMOR ...
Esse, que move montanhas, também dizem, é inútil perante o determinado.
E por isso, resta-nos o quê ? Abrir os braços, que entretanto já perderam as forças, e deixar ir em paz, aquele ser, como que arrastado numa corrente em que o segurámos enquanto deu, enquanto pudémos ... e esperar que o tempo, o tal milagreiro das causas impossíveis, aplaque, colmate, abata a dor, à medida que a terra também abate, lá no campo santo, ou à medida que o vento leve à terra de novo, o pó que afinal sempre fomos ...

Depois, nas nossas vidas existem os "mortos-vivos", como dizia.
Esses são perdas absolutamente desesperantes de gerir, mais ainda de aceitar.
Eu diria que esses abandonos são de uma agressividade incomparavelmente maior, que a causada pelos acontecimentos inevitáveis dos destinos.
Esses são "mortos" que morrem a conta-gotas, nunca morrem de uma só vez, às vezes simplesmente NUNCA morrem mesmo ...
Para esses, o luto é eterno ;  não há terra, não há vento, não há argumentação que nos ampare a alma, nos acaricie o coração ... porque afinal esses "mortos" estão mortos, estando vivos, bem vivos ...  mais perto, mais longe, mas vivos!

Essas partidas, esses abandonos que provocamos ou nos provocam, matam ...  esses matam mesmo, porque nos sangram até nos exaurirmos, e são uma chaga que NUNCA sara, uma ferida que nunca cicatriza.
E são-no, porque invariavelmente são provocados unilateralmente, por razões por vezes incompreensíveis, para as quais sempre achamos que haveria solução, que não precisariam ( feito "almas penadas" ), passarem a assombrar-nos a existência.
Esses são os amigos, os amores, as paixões, os afectos todos, que nos foram ficando pelos caminhos, e de que tivémos que nos distanciar, olhando sempre para trás, até dobrar a última volta de estrada ...
Esses são os desencontros, as incompreensões, as razões às vezes inexplicáveis ...
Mas sempre "abandonos" que consideramos injustos, doídos, devastadores, que nos maltratam, que nos secam, que nos destroem, que nos aniquilam ...
E para esses pareceria haver outra solução ou saída ... sempre nos parece poder haver ...

Mas não !
São "mortos" que se "recusam" a ir, cujo luto, por isso mesmo, é interminável ;  e mesmo quando pensamos que já estamos a "aliviá-lo", como se diz no Alentejo ... é mentira !
Se olharmos a preceito e com honestidade para dentro de nós próprios, lá estão os seus "fantasminhas" a povoarem-nos dias e noites, a "atazanarem-nos" a propósito de tudo e de nada ... de uma música, de uma palavra, de um momento, de uma flor, de uma pedra ... sei lá !...
Continuam grudados em nós ... e doem, doem horrores, e não há analgésico que lhes valha ...
Fazer o quê ?
Como lutar contra o que parece uma ironia de mau gosto do destino, se nem sequer "livro de reclamações" existe ??!!...

Esses só somem, se os fizermos passar de "mortos-vivos" a "mortos-mortos", nos nossos corações, no nosso ser ... no nosso espírito.
Mas esse é um processo tão difícil, tão complicado, tão independente do racional e da vontade, do lógico e do objectivo, que penamos, penamos, enquanto que a nossa alma entra em escuridão adensante, que parece não ter fim ou solução, e que tirando-nos a vontade de lhes sobreviver, nos inculca uma vontade de desistência ( tal o cansaço e exaustão ), que somos mesmo nós próprios, que queremos tornar-nos "mortos-mortos" !!!...

Anamar

" POR PATAMARES "


"Nada acontece por acaso"... diz-se ...
Outras vezes, ao contrário, tudo parece aleatório, fruto de circunstância, ocasional, acidental ... lotaria de Vida ... com probabilidades iguais de êxitos e insucessos.
Outras ainda, acreditamos "ler" sinais aqui e ali, formas de comunicação para quem as saiba interpretar.

Achamo-nos tão importantes que damos por nós a perguntar-nos : "porquê eu?"... "porquê a mim?"...

Hoje estou mais e mais convicta que a aprendizagem é ao momento, que erramos para percebermos que a seguir não devemos ir por ali ... daquela forma ...
Acredito que tropeçamos e caímos, para percebermos que ainda temos forças para nos levantar ...
Que choramos e nos desesperamos, para valorizarmos o sorriso que esboçamos, ou o riso que soltamos a seguir ...
Que achamos que morremos, para vermos que sempre continuaremos  bem vivos, nem que seja em corações e em espíritos que nos cruzaram ...
Estou convicta que semeamos, e se o fizermos bem, somos capazes de colher em abundância ...
Estou convicta ( e essa sensação vem a reforçar-se em mim, de dia para dia ), que somos "sobreviventes", todos o somos.
E essa sobrevivência depende da  nossa sabedoria de gestão das  dificuldades, da consciencialização das capacidades  que possuímos, da  força  que temos ( muitas vezes que nem sabíamos que a tínhamos ), da assumpção clara e absoluta de que cada ser humano só pode, à partida, contar consigo mesmo, só deve, à partida, contar consigo mesmo ...

Já passei muita coisa na minha vida.
Coisas emocionalmente muito difíceis e dolorosas ...
Nunca foram as materiais que verdadeiramente me molestaram ou molestam, mas sim as do coração ...
Quem me lê, já me conhece, e sabe que é exactamente assim ...

Mas juro-vos que quando sobre isto reflicto, quando olho o meu percurso para trás, o considero tão abençoadamente rico de experiência, aprendizagem, derrotas e vitórias, alegrias e dores, amores e ódios, medos e coragem, enriquecimento pessoal ... mas sobretudo com uma riqueza pictórica, tão, mas tão incomensurável ... que foi tudo isso que me conferiu a estatura da "gigante" que hoje sou.

Não me interpretem mal.
"Gigante", não porque seja "maior" que ninguém, em nada ... simplesmente bem "maior" do que aquela que eu já fui.

E constato com tristeza ... mas se calhar tinha que ter sido assim, porque "nada acontece por acaso" ... que o meu "crescimento" apenas pecou pela forma serôdia com que se desenvolveu, que a minha maturidade apenas brotou quando o trilho já vai bem para lá de metade, que a consciencialização da "força" que possuo, me faça sentido só agora ...

Mas como acredito piamente em reincarnações, em vidas em continuação de vidas, em patamares que, como numa montanha, o alpinista vai alcançando a pulso, parando de quando em vez  para respirar com mais profundidade e menos dificuldade, ver o Mundo a seus pés, partilhar com a águia altaneira, os céus lá no topo ... acredito piamente, dizia, que neste momento estou  a  trepar mais um degrau que me leve a  uma plataforma  de repouso,  cada vez mais perto do pico, de um pedestal qualquer donde divisarei,  cada vez com  maior lucidez, com um horizonte  mais abrangente e definido, o Mundo e a Eternidade aos meus pés ... como um presente supremo !!!...

Anamar

sábado, 21 de julho de 2012

" HOUVE TEMPO "

Este texto não é meu.
Achei-o contudo digno de divulgação, reflexão, muita, muita análise séria.
Ele constata infeliz e objectivamente, a realidade que vivemos nos tempos que correm ... Mas ele também, e sobretudo, obriga-nos a colocar a mão na consciência, obriga-nos a olharmo-nos de frente e sopesarmos séria e honestamente as nossas responsabilidades, omissões, irresponsabilidades tantas vezes, como pais, filhos, professores ... concidadãos, deste espaço que dividimos e se chama sociedade colectiva, num espaço ainda maior que se chama Terra !


Agradeço a quem me fez chegar este artigo ao conhecimento.
Bem-haja!

 
A trapeira do Job
José António Barreiros, advogado
"Isto que eu vou dizer vai parecer ridículo a muita gente.
 
Mas houve um tempo em que as pessoas se lembravam, ainda, da época da infância, da primeira caneta de tinta-permanente, da primeira bicicleta, da idade adulta, das vezes em que se comia fora, do primeiro frigorífico e do primeiro televisor, do primeiro rádio, de quando tinham ido ao estrangeiro.
 
Houve um tempo em que, nos lares, se aproveitava para a refeição seguinte o sobejante da refeição anterior, em que, com ovos mexidos e a carne ou peixe restante, se fazia "roupa velha". Tempos em que as camisas iam a mudar o colarinho e os punhos do avesso, assim como os casacos, e se tingia a roupa usada, tempos em que se punham meias-solas com protectores. Tempos em que ao mudar-se de sala se apagava a luz, tempos em que se guardava o "fatinho de ver a Deus e à sua Joana".
 
E não era só no Portugal da mesquinhez salazarista. Na Inglaterra dos Lordes, na França dos Luíses, a regra era esta. Em 1945 passava-se fome na Europa, a guerra matara milhões e arrasara tudo quanto a selvajaria humana pode arrasar.
 
Houve tempos em que se produzia o que se comia e se exportava. Em que o País tinha uma frota de marinha mercante, fábricas, vinhas, searas.
Veio depois o admirável mundo novo do crédito. Os novos pais tinham como filhos uns pivetes tiranos, exigindo malcriadamente o último modelo de mil e um gadgets e seus consumíveis, porque os filhos dos outros também tinham. Pais que se enforcavam por carrões de brutal cilindrada para os encravarem no lodo do trânsito e mostrarem que tinham aquela extensão motorizada da sua potência genital. Passou a ser tempo de gente em que era questão de pedigree viver no condomínio fechado, e sobretudo dizê-lo, em que luxuosas revistas instigavam em couché os feios a serem bonitos, à conta de spas e de marcas, assim se visse a etiqueta, em que a beautiful people era o símbolo de status, como a língua nos cães para a sua raça.
 
Foram anos em que o Campo se tornou num imenso ressort de Turismo de Habitação, as cidades uma festa permanente, entre o coktail party e a rave. Houve quem pensasse até que um dia os Serviços seriam o único emprego futuro ou com futuro.
 
O país que produzia o que comíamos ficou para os labregos dos pais e primos parolos, de quem os citadinos se envergonhavam, salvo quando regressavam à cidade dos fins de semana com a mala do carro atulhada do que não lhes custara a cavar e às vezes nem obrigado.
 
O país que produzia o que se podia transaccionar, esse, ficou com o operariado da ferrugem, empacotados como gado em dormitórios, e que os víamos chegar mortos de sono logo à hora de acordarem, as casas verdadeiras bombas-relógio de raiva contida, descarregada nos cônjuges, nos filhos, na idiotização que a TV tornou negócio.
 
Sob o oásis dos edifícios em vidro, miragem de cristal, vivia o mundo subterrâneo de quantos aguentaram isto enquanto puderam, a sub-gente. Os intelectuais burgueses teorizavam, ganzados de alucinação, que o conceito de classes sociais tinha desaparecido. A teoria geral dos sistemas supunha que o real era apenas uma noção, a teoria da informação substituía os cavalos-força da maquinaria pelos megabytes de RAM da computação universal. Um dia os computadores tudo fariam, o Ser-Humano tornava-se um acidente no barro de um oleiro velho e tresloucado que, caído do Céu, morrera pregado a dois paus, e que julgava chamar-se Deus, confundindo-se com o seu filho e mais uma trinitária pomba.
 
Às tantas, os da cidade começaram a notar que não havia portugueses a servir à mesa, porque estávamos a importar brasileiros, que não havia portugueses nas obras, porque estávamos a importar negros e eslavos.
 
A chegada das lojas-dos-trezentos já era alarme de que se estava a viver de pexisbeque, mas a folia continuava. A essas sucedeu a vaga das lojas chinesas, porque já só havia para comprar «balato». Mas o festim prosseguia e à sexta-feira as filas de trânsito em Lisboa eram o caos e até ao dia quinze os táxis não tinham mãos a medir.
 
Fora disto, os ricos, os muito ricos, viram chegar os novos ricos. O ganhão alentejano viu sumir o velho latifundário absentista pelo novo turista absentista com o mesmo monte mais a piscina e seus amigos, intelectuais, claro, e sempre pela reforma agrária, e vai um uísque de malte, sempre ao lado do povo, e já leu o New Yorker?
 
A agiotagem financeira, essa, ululava. Viviam do tempo, exploravam o tempo, do tempo que só ao tal Deus pertencia, mas, esse, Nietzsche encontrara-o morto em Auschwitz. Veio o crédito ao consumo, a Conta-Ordenado, veio tudo quanto pudesse ser o ter sem pagar. Porque nenhum Banco quer que lhe devolvam o capital mutuado, quer é esticar ao máximo o lucro que esse capital rende.
 
Aguilhoando pela publicidade enganosa os bois que somos nós todos, os Bancos instigavam à compra, ao leasing, ao renting, ao seja como for desde que tenha e já, ao cartão, ao descoberto-autorizado.
 
Tudo quanto era vedeta deu a cara, sendo actor, as pernas, sendo futebolista, ou o que vocês sabem, sendo o que vocês adivinham, para aconselhar-nos a ir àquele Balcão bancário buscar dinheiro, vendermo-nos ao dinheiro, enforcarmo-nos na figueira infernal do dinheiro. Satanás ria. O Inferno começava na terra.
 
Claro que os da política do poder, que vivem no pau de sebo perpétuo do fazer arrear, puxando-os pelos fundilhos, quantos treparam para o poder, querem a canalha contente. E o circo do consumo, a palhaçada do crédito servia-os. Com isso comprávamos os plasmas mamutes onde eles vendiam à noite propaganda governamental e, nos intervalos, imbelicidades e telefofocadas, que entre a oligofrenia e a debilidade mental a diferença é nula. E, contentes, cretinamente contentinhos, os portugueses tinham como tema de conversa a telenovela da noite, o jogo de futebol do dia e da noite e os comentários políticos dos "analistas" que poupavam os nossos miolos de pensarem, pensando por nós.
 
Estamos nisto.
 
Este fim-de-semana a Grécia pode cair. Com ela a Europa.
 
Que interessa? O Império Romano já caiu também e o mundo não acabou. Nessa altura, em Bizâncio, discutia-se o sexo dos anjos. Talvez porque Deus se tivesse distraído com a questão teológica, talvez porque o Diabo tenha ganho aos dados a alma do pobre Job na sua trapeira. O Job que somos grande parte de nós."

Anamar

" LOS NIÑOS "


"Los niños" são crianças iguais em qualquer lugar do Mundo.

Os putos, dum extremo ao outro da Terra, são feitos da mesma massa, têm o mesmo sorriso rasgado, humilde e doce, como que agradecendo que tenhamos reparado neles.
Os meninos de Bali são exactamente iguais aos meninos de Samaná.

São traquinas, são tímidos alguns, atrevidotes outros.
Adoram ser fotografados e adoram ver o trabalho pronto, sempre rindo por se verem assim, exactamente daquele jeito, no quadradinho daquela caixa mágica ...

Andam nus ou semi-nus, andrajosos, inventam brincadeiras do nada, criam brinquedos do nada também.
A areia das praias intermináveis, é o seu "país das maravilhas"...
A sua criatividade não tem limites ; imaginam histórias, amigos inexistentes, constroem bolas de jogar com trapos, ou mesmo com bagas que a maré arrasta ao areal.
Vendem cocos que apanham no chão, espalhados a esmo e graciosamente pela natureza, que os dá.
E quando não vendem ... quase nunca vendem ... balbuciam : "Um dólar ...", pedindo com aquele ar inocente, que a boa vontade do turista lhes permita levarem para casa algumas migalhas que ajudem, ou possam presentear-se com um agradinho a que não estão habituados.

Deambulam pelas praias, brincam nos charcos ou nas piscinas naturais, mergulham desde os ramos das árvores, como pranchas, directos à água fresca ... e gargalham, gargalham, gritam, correm, saltam e são felizes !

Os meninos quase sempre são felizes !

Não têm nada, ou muito pouco, mas nada querem para lá do que o seu mundo comporta.
É aquele que conhecem ...

Mas sonham, também sonham.
Um deles dizia-me que sonhava um dia ir viver num país com neve e frio, e não percebeu a minha cara de espanto, como que a dizer-lhe que só podia estar louco ... ele que nascera, vivia e crescia naquela água acariciantemente morna, embaladora de banhos intermináveis, na sombra dos coqueirais, naquela liberdade oferecida, naquilo que para mim, era um paraíso !

Eu sei que todos reservamos mais ou menos dentro de nós, esta criança que um dia fomos ...
É uma frase feita, mas real.

Essa criança solta-se quando menos nos policiamos, quando fechamos os olhos e deixa de nos importar o que nos rodeia.
Quando, como num exercício de meditação absoluta, conseguimos alienar-nos destes dias por vezes demasiado descoloridos, que são quase sempre os nossos.
É então que atingimos um vazio mental, de regras, convenções, conveniências, apreensões, infelicidades, sonhos desfeitos que povoam as nossas vidas ...
E libertos, como aquela garça que plana lá bem alto na aragem, dominamos outra vez o Mundo, achando que podemos ...
Jogamos à bola na praia, esquecendo que a agilidade e a leveza já foram ...
Apanhamos do chão aquela florzinha tão singela, tão simples, tão pequena, quase invisível que desponta no meio dos rochedos, crendo ser um tesouro ...
Extasiamo-nos com a beleza de uma concha que nos veio beijar os pés, do búzio que nos deixa "ouvir" o mar ... extasiamo-nos com a simetria perfeitamente geométrica e equilibrada, de uma casca de ouriço pousada adormecida no meio dos corais, nos recifes ... ou com a cor indescritível dos peixes, inventados pelo criador de tudo isto ...
Deixamos que o cabelo se desalinhe com a aragem que nos afaga ...
Deixamos que a água morna nos aninhe, nos embale e acaricie o corpo semi-nu, e achamos que nada existe além de nós, daquele céu azul bem por cima, e do silêncio que tem o condão de apagar tudo quanto é ruído, e só deixa chegar-nos três sons que nos aquecem a alma : o trinado dos pássaros que não se vêem mas nos falam, o sussurrar da brisa passante, sabe-se lá para onde, e o marulhar do que nunca foi onda ...

E esses sons misturam-nos, miscigenam-nos, mimetizam-nos com a Natureza, dão-nos paz, plenitude, um preenchimento no coração e uma emoção, que não se descrevem mas nos fazem feliz, e nos tornam crianças outra vez !

Que pena não podermos ficar assim, como se a "engrenagem" tivesse parado, a imagem do "filme" se tivesse fixado ... como se tivéssemos feito "pausa" para sempre, e nunca pudéssemos esquecer como "foi" !!!...




Anamar

sábado, 14 de julho de 2012

" A CAIXA DE PANDORA "



Longe, já estou longe, mas subi ao paraíso ... sem dúvida.

Se há lugar na Terra que seja um paraíso, esse será com certeza, Samaná !

Não vou repetir o que sempre experimento no privilégio de dias "fora do Mundo", nos destinos que habitualmente escolho.
As cores, os cheiros doces, os sons, sejam do mar que "brinca" de bater na areia, sejam dos pássaros que noite e dia se fazem ouvir, sejam dos ritmos envolventes e bamboleantes do Caribe ...
Tomar o pequeno almoço ao ar livre, "embrulhada" em verdes ( que nunca pensei houvesse tantos ! ), com o gorgolejar de água a escorregar entre pedras, com o calor ainda ameno das sete da manhã, com Enya ( imagine-se ) a presentear o meu dia ... bom, se isto não é o paraíso, o que o será então ???

E para merecer isto, apenas existo !!!

Ao contrário das outras noites em que tenho dormido placidamente, como recompensa das seis horas que sempre já me encontram na praia, para caminhar sem tempo, algumas horas em silêncio, do que pode ainda chamar-se madrugada ( apesar de a luminosidade ser tanta que dificilmente o acreditamos ), e pela tarde até o sol dormir no mar lá ao fundo ... nesta, tive um sono persistentemente agitado, que me perturbou com um pesadelo absolutamente vívido.
Tão vívido, que lhe lembro ainda todos os pormenores, o que não é vulgar, como se sabe.
Sei que acordei e o retomei em insistência assustadora.

Sempre sou premonitória nos sinais da Vida, sempre os entendo exactamente como isso ... sinais !...

A seguir àquele sonho, continuar a ser surpreendida por Enya, a mulher cuja voz mais me repousa o coração, acredito ser isso mesmo, um sinal destinatório !

Lembro que se tratava de um desmoronar.
Não o desmoronar de um edifício, o desmoronar de terras ou de qualquer outra avalanche.
Era o desmoronar da minha vida, mesmo ...
Vida material, é verdade, coisas, objectos de que vivi rodeada, e a que me ligava um laço afectivo ;  e era feita por pessoas que a atravessaram, embora não lhe pertencessem directamente, perfeitamente identificadas, que como que ensandecidas, numa demência que se denunciava como vingança, raiva, quase ódio, o faziam.
E degustavam o que provocavam !  Saboreavam como uma espécie de ajuste de contas, isso mesmo, o sofrimento que me infligiam, maquiavelicamente.
Lembro que não era a perda dos bens materiais, físicos, objectivos em si,  que me molestava, mas o que alguns deles me representavam, afectiva e emocionalmente.
Era como se fosse a minha vida do coração, que se derramava como uma enxurrada que se ia, se perdia num vórtice destruidor.

Sonho estranho, num local improvável de o ter ... se os sonhos obedecessem a alguma probabilidade.

Que para eles arrastamos as nossas realidades, é óbvio, faz sentido.
Normalmente são preocupações, ansiedades, sofrimentos, ou mesmo alegria, felicidade que experimentamos nos nossos dias, que continuam a povoar-nos, agora já no domínio do sub-consciente, ao longo das noites.
E aí, os fantasminhas brincam à solta e mesclam-se como querem, constroem e desconstroem coisas, mais ou menos lógicas umas, aberrantes, outras.
Algumas que parecem deixar-se "ler", outras que são absolutamente surrealistas e inexplicáveis.

A interpretação dos sonhos é mesmo uma questão do domínio da psicologia, das ciências da mente, do hermetismo de todos os "conscientes" que possuímos.  E querer fazê-la, leigos que somos na maioria, um atrevimento e uma presunção sem tamanho.
Até porque temos tendência a "lê-los", de acordo com o que nos sugestiona, de acordo e como consequência de vivências que nos perturbam, pela positiva ou pela negativa, como se se tratasse de exercícios de senso e linearidade espantosos.

O que é facto, é que psicanalistas,  parapsicólogos,  psicoterapeutas, em suma, os especialistas em nos "escarafunchar" por dentro, recorrem a eles como ferramenta de diagnose e terapia, o que nos leva a concluir que o "saco dos sonhos" é uma "caixa de Pandora", de onde pode sair o " X " de muitas questões !...



Anamar

domingo, 1 de julho de 2012

" A PROSÁPIA DE SE SER HUMANO ... "


Este será o meu último post antes de me afastar alguns dias, como o referi em post anterior.
Os últimos posts têm sido posts reflexivos, sobre aspectos de fundo do ser humano, e da Vida.
Encerro este ciclo, abordando o aspecto mais definitivo, objectivo e frio ... a  MORTE !
Faço-o pela voz do "Mestre",  Pessoa, no heterónimo Álvaro de Campos.
Quem melhor que ele nos pode falar desassombradamente desta prosápia, desta ilusão, desta importância incomensurável e insubstituível, que o ser humano se dá, enquanto ser humano ??!!...
O total desassombro, a verdade nua e crua, a insignificância ... a pequenez que deveria reduzir-nos à nossa real dimensão, neste extraordinário poema, magistralmente dito pelo "diseur" que não carece apresentações : Paulo Autran !


   " SE  TE  QUERES  MATAR "

Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! Que eu, que tanto amo a morte e a vida, se ousasse matar-me, também me mataria ...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez  matando-te, o conheças finalmente...
Talvez acabando, comeces...
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu, a morte em literatura!
Fazes falta? Ó sombra fútil, chamada gente!
Ninguém faz falta ; não fazes falta a ninguém ...
Sem ti, correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros, existires, que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...
A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado de que te chorem?
Descansa ... pouco te chorarão !...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco, quando não são de coisas nossas, quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte, porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros...
Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda do mistério, e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar,  inconsolável e contando anedotas, lamentando a pena de teres morrido.
E tu, mera causa ocasional daquela carpidação!
Tu, verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
muito mais morto aqui, que calculas,
mesmo que estejas muito mais vivo além...
Depois, a trágica retirada para o jazigo ou a cova ...
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos, um alívio da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...
Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente :
quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti  os que te amaram,
e uma ou outra vez suspiram, se por acaso se fala em ti.
Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera as seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada Homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes ... 
És tudo para ti, porque para ti, és o universo,
e o próprio universo e os outros, satélites da tua subjetividade objetiva.
És importante para ti, porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?
Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces, para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?
Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente ... Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico de cédulas nocturnamente conscientes, pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos, pelo grande cobertor não cobrindo nada das aparências, pela relva e a erva da proliferação dos seres, pela névoa atómica das coisas, pelas paredes turbilhonantes do vácuo dinâmico do mundo...

                                                Álvaro de Campos

Anamar