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domingo, 15 de novembro de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - " never ending story ... "



Cheguei a acreditar que não escreveria mais sob este título, porque cheguei a acreditar que ao fim de nove sofridos meses talvez o pesadelo já tivesse passado... 

Erro meu, ou melhor, ingenuidade minha !
Aqui estamos nós num novo estado de emergência, aqui estamos nós confinados das 13 h de sábado às 5 de domingo e das 13 de domingo às 5 de segunda, ( vigorando particularmente neste e no próximo fim de semana ), não falando nas restrições ordinárias de limitação, impostas diariamente entre as 23 h e as 5 da manhã, em todos os dias da semana.
Trata-se duma medida em desespero de causa, imposta pelo executivo deste país, na tentativa de estancar um pouco o avanço galopante e descontrolado da pandemia.
As notícias diárias são assustadoras, com um aumento exponencial de novas infecções, de óbitos e de doentes em cuidados intensivos.
O Serviço Nacional de Saúde a rebentar pelas costuras, periga na capacidade de resposta, com hospitais de referência já totalmente lotados nas valências de que dispunham, com doentes a serem removidos no país de norte para sul, com camas dos privados a terem que ser disponibilizadas e com doentes de outras patologias a ficarem na cauda do pelotão ... 
Tudo isto dramaticamente acrescido de baixas significativas no número de profissionais de saúde, por também eles terem sido apanhados na avalanche dos contágios, e bem assim no redemoinho do stress de horas e horas, turnos e turnos mergulhados nas agruras da incerteza, do cansaço e das angústias ... num trabalho exaustivo que raia os limites da resistência humana !
As camas de intensivos estão à beira da total ocupação, e vêm-me inevitavelmente à memória, imagens do início da pandemia no Hospital de Bérgamo em Itália, imagens do desnorte e da tragédia, do drama da escolha, sobre quem tratar e quem não ...

Lá fora, por todo o mundo, o panorama é idêntico.  Uma Europa amordaçada pelo medo, pela tragédia, pela frustração da incapacidade de tantos cientistas conseguirem pôr um cobro a toda esta devastação em pleno século XXI, com a criação de uma vacina ou de fármacos eficazes, dispondo embora o Homem, em vão,  de tantos conhecimentos, tantos recursos, tantas ferramentas tecnológicas ... ingloriamente ... numa corrida contra o  tempo e contra a morte !

Por aqui o cansaço é total.  Ao esgotamento do ânimo, da esperança, da força anímica, da confiança e da coragem, totalmente exauridos, juntam-se o desespero de uma economia moribunda, os desequilíbrios sociais cada vez mais acentuados, o dramático aumento do desemprego e a inerente dificuldade para todas as famílias fazerem face à situação precária de subsistência diária ...
Os conflitos sociais estão a instalar-se, a agudizar-se, deixando os políticos que têm a difícil tarefa de gerir todo este pandemónio, "entre a cruz e a caldeirinha", num tactear experimental de medidas e legislação, inevitavelmente questionadas por todos os quadrantes ... porque sim e porque sim ... como se alguém tivesse na manga a receita milagrosa para a coisa ...
E como numa casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão ... tudo isto parece um diálogo de surdos !

Olhando ao redor só me ocorre a imagem macabra dum pântano, donde não há escapatória, e cada náufrago se agarra ao que pode para manter o queixo fora da lama sôfrega e mortal !

E cá estamos nós, vivendo pé ante-pé, tacteando devagarinho, reinventando os dias para continuarmos respirando, fingindo a estrada p'ra não cairmos no abismo, redesenhando o amanhã no vazio deste silêncio, que como neblina que sobe da serra, fecha, cerra mais e mais a nossa linha do horizonte ...
Cá estamos nós, recriando-nos no frio das ausências, no buraco dos afectos que não temos, no pavor de noites assombradas por incertezas do desconhecido ... cá estamos nós numa "never ending story" que eu cheguei a acreditar pudesse ter alcançado já o seu fim !!!

Anamar

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - não faço ideia ...

 


Subi agora da rua.
Levei tempo a decidir se sim se não, num dia que, mesmo que quisesse, não o conseguiria já contabilizar neste labirinto interminável de horas, de caminhos, de sensações, de emoções, de indecisões, pensamentos positivos e outros atrozmente destruidores, num faz de conta de vida real que o não é ...

Amanheci com uma angústia mais cerrada e pesada que o nevoeiro com que o dia de ontem nos brindou.  Uma angústia sem brecha ou horizonte, de que não se entende, se justifica ou descortina o porquê de vir, hoje mais que ontem, talvez menos que amanhã, atazanar-me a alma ...
Não a compreendo, ou se calhar compreendo bem de mais ...  
Sei apenas da sua esfinge tão assustadora, sei apenas do seu peso tão avassalador, sei apenas da dor corrosiva com que me ataca o coração, a mente e as forças e de como avança desrespeitosa, feito um tractor atropelando, trucidando, destruindo ...

Aliviei um pouco quando as lágrimas descomandadas desceram.
Aliviei como uma panela de pressão em fervura-limite alivia, se a válvula lhe dá fuga ao vapor acumulado internamente.
E comecei a fazer coisas por aqui.  A  justificar talvez o facto de estar viva, simplesmente.  Intentando inventar, neste cansaço sem tamanho, neste desinteresse sem mitigação, nesta apatia doentia e cansada.
O ar parecia ser pouco para respirar, aqui em casa.  
As janelas apenas me mostram casas empoleiradas e constrangidas, umas sobre as outras.  Nas ruas, o movimento é o de sempre, nem menos nem mais ... as compras, as filas para os locais habituais, a corrida para os comboios aqui por trás, o despejo de autocarros onde gente e gente se apinha e acotovela, com máscaras que rapidamente retiram, ainda nas plataformas ... o deambular de grupos de jovens em desocupação escolar, a esplanada no meio de uma praceta incaracterística e desconvidativa ...

E a inércia, a indiferença e uma incapacidade reactiva sem tamanho, conferiam-me uma ausência de força anímica, paralisante.  "Vou à rua, não vou à rua ?  Vou à rua onde ?  Fazer o quê ?  Sentar-me  numa esplanada sozinha frente a um café ... e cumprido o ritual voltar para casa ?  Fazer de conta que me sinto bem e que era isso que eu buscava ?...  Mas continuar neste "gheto" não é suportável ... "

E desci. Vesti a primeira roupa que vai jazendo sobre a cama dia após dia, deitei mão a qualquer coisa para calçar, colocar adereços não vale a pena ... retocar o rosto ainda menos, pois afinal, metade dele se esconde atrás da máscara ... e inventei de ir fazer uma compra ... para nada ... só porque sim ...
E regressei.  
Não é a Covid que me adoece.  Não é o medo que me paralisa.  Não é o risco que me desmobiliza.
É o sentir-me perdida no encontro de um mundo que não é mais o meu.  É o perceber que, como numa hecatombe, as referências que tínhamos, não existem mais, os lugares como eram também não ... as pessoas deixaram de os frequentar ... as nossas rotinas foram totalmente descontinuadas,  o desábito tomou totalmente conta das nossas vidas !  
Cada um está nas suas casas, vendo o mundo desde as janelas, com vidas totalmente individualizadas, em que ninguém sabe de ninguém, em que apenas a comunicação virtual finge aproximar e unir as pessoas ... em que o silêncio impera e a solidão dita as regras !
Um mundo triste, cinzento, apático e total e indiferentemente absurdo !!!

O tempo passa.  Dentro de um mês é Outono outra vez.  As notícias que trago não melhoram, a realidade não se altera favoravelmente ... continuamos suspensos de uma esperança a consumir-se, de uma força a delapidar-se e de um ânimo em regressão !!!
Até quando ???!!!

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - e hoje foi assim ...






Setenta e cinco anos se cumprem hoje sobre o pesadelo de Hiroshima !  Setenta e cinco anos sobre uma das maiores máculas e das maiores vergonhas com que se escreve a História da humanidade !

O amanhecer  daquele dia mostrou do pior que o ser humano é capaz.  O vivido naquele e em todos os outros dias com que o Homem teve de confrontar-se daí para a frente, retratou também, a sua capacidade resiliente, a sua capacidade regenerativa, de coragem, sobrevivência, superação e solidariedade ... face à estupefacção, à revolta e ao ódio perante a ignomínia ali acontecida ...

Porque, espantosamente, a raça humana tem uma capacidade de se reerguer,  de se amparar e de se reinventar, absolutamente incomparáveis !
Depois do choque, do abalo, da dor e da angústia pela incompreensão, pelo absurdo das coisas ... quando pode pensar-se que o estado cataléptico subsequente, inviabiliza a capacidade de raciocínio, de resposta, de coragem e abnegação ... quando pode pensar-se que o golpe sofrido tem uma dimensão inenarrável e sem tamanho, que sucumbe e narcotiza mortalmente todos, pelo facto de serem gente ... o Homem pára por instantes, chora os mortos, trata os feridos, coloca pedra sobre pedra outra vez, apaga as marcas e encara, de peito feito, um futuro que lhe fora interrompido, arbitrária e brutalmente, pelo destino !
E cambaleante primeiro, reforçado depois ... titubeantemente repega a estrada e recomeça a caminhar !

É sempre assim !
Nos piores momentos, nas piores catástrofes, nas maiores desgraças, venham elas de onde vierem, o Homem agarra de novo o amanhã !!!...

Neste momento, como sabemos, atravessamos mais uma catástrofe mundial.  A pandemia devastadora varre o planeta sem dó nem piedade, zurzindo, destruindo, aniquilando vidas aos montes, rápida ou paulatinamente, de uma forma avassaladora e sem tréguas.
Amputam-se vidas, mas também se amputam sonhos, projectos, famílias, afectos ... como um vendaval que sopra sem rumo ou direcção, sadicamente, enrolando-nos em redemoinhos vorazes, em espirais mortíferas ... num atentado à resistência e ao equilíbrio dos que por aqui vamos estando a enfrentar a borrasca.
Ora num pé, ora noutro ... porque já não dá muito bem para ter os dois no chão ... vamos lutando por um equilíbrio precário, esgaravatando no fundo do nosso reservatório emocional, um resquiciozinho sobrante, de esperança, de confiança e de coragem ...  Até que der ... enquanto der !...

Beirute sangra mortalmente a céu aberto, sem contenção, estancamento, ou garrote que lhe valha.
Um tsunami de pedras, de vidros, de fogo, de dor, de carne dilacerada, de sangue bordejando as ruas ... uma onda nascida sem quê nem para quê, fez sucumbir no estrépito de duas explosões incompreensíveis e injustas, o que antes já fora uma cidade e um país flagelado pela guerra e pela incompreensão do Homem.
Uma devastação e uma razia que nos trazem de novo à mente as imagens de Hiroshima e Nagasáqui, chegaram-nos pelas câmaras dos foto-jornalistas, pelas descrições dilaceradas e realistas dos repórteres, pelo cansaço e desmantelo dos corações de quem, coberto de sangue, aguarda socorro ou vagueia apático pelas ruas, buscando qualquer coisa, ou alguém ... Talvez simplesmente uma explicação para o que a não tem !...
Valha-nos uma outra vez a resposta humana solidária, do ser que tantas vezes parece não sê-lo.  A mobilização pronta e rápida em meios, em recursos materiais e humanitários, com amparo imediato vindo mesmo de povos cuja ajuda política seria menos provável ... mostra que afinal, talvez nem tudo esteja perdido nesta raça a que pertencemos !...

Entretanto, por aqui, nestes dias de temperaturas passando em muito os trinta graus, as notícias remetem-nos uma outra vez para as brutais, visíveis e sentidas alterações climáticas a nível planetário, para nos dizerem que os pólos estão a sucumbir ... também eles.
Os termómetros sobem a valores nunca antes registados, a fauna e a flora, sofrem impiedosamente.
Os ursos brancos, perdidos do seu habitat natural, vagueiam em busca de alimentos.  
Os gelos e as neves que eram perpétuos, fundindo, descobrem vestígios geológicos de eras insuspeitas.  Cadáveres de espécies não decompostas que haviam ficado soterrados sob o manto branco teoricamente eterno, contêm em si micro-organismos, vírus e bactérias, constituindo-se potenciadores de novas transmissões epidemiológicas futuras ...

E por cá, ainda, a crise sanitária abrandou.  Ou dormiu p'ra sesta ... pelo menos por ora.
A crise económica recrudesce, contudo.  As notícias do desemprego, as notícias calamitosas que nos deixam destruídos e impotentes, veiculadas pelas vozes de desânimo e cansaço, pelo olhar meio perdido dos que lutam para se manterem à tona, contudo com a onda  a  galgar-lhes  a  garganta ... são devastadoras,  aflitivas  e  profundamente  angustiantes !!!
A subsistência é cada vez mais uma luta sem tréguas.  Apenas, milagres não existem !...

Bom ... e este é o balanço do dia de hoje.  O que me ocorreu sobre o tanto que nos atormenta ...

Até amanhã !  Fiquem bem por favor !

Anamar

sexta-feira, 31 de julho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Um dia mais ...






Ando estilo "barata tonta", arrastando as horas nos dias e os dias no calendário.
Pareço ter a sensação que vencidas as etapas, abrir-se-ia uma qualquer luz ao fim não sei bem de que túnel.  Só que o raio do túnel é de uma negritude sem tamanho. Não se lhe vê nem a embocadura nem a porta de saída.
Só ar irrespirável, mofado, só passos mais adivinhados do que seguros, num tactear entremeio às teias de aranha, que já houve tempo suficiente para serem tricotadas ...

A vida segue mais ou menos igual todos os dias.  As pessoas mexem-se em torno da posição de equilíbrio, sem grandes voos, sem grandes aventuras.
Caminhamos um pouco como o trapezista sem rede.  Sem nos atrevermos.  Sem ousarmos ... e a ousadia é sinónimo de vida ... que parece não termos.

O ano já dobrou a metade.  O Verão já leva um mês às costas.  Quando dermos por nós, o pincel ocre e dourado da Natureza, aponta-nos a breve chegada outonal.
E o que foi feito desta escorrência fétida de tempo ?
Vivemos ?  Hibernámos ?  Criogenámos ?  Marinámos apenas ?  Ou adormecemos sem sequer sabermos se viremos a acordar ???
Desperdício puro da nossa existência !!!  Disso, eu tenho a certeza !
Quanto à contabilidade da mesma ... ao nosso deve e haver escrito no livro do destino ... não sei fazer o acerto !  Quem nos poderá ressarcir destas contas viciadas ?!...
Sufocação ... é o sentimento dominante !

Os estados sociais do ponto de vista político-sanitário, vão mudando de nome ... emergência, calamidade, contingência, alerta ... sei lá !  Por esta ou outra ordem...isso agora não me interessa nada !  Mas as pessoas continuam a evitar-se.  As reticências espetam-se em todas as conversas.  A suspeição chega a ser ridícula.  Cada "outro", é um potencial "inimigo sanitário".  Tentamos disfarçar a hesitação, o "susto", a apreensão ... porque nos cruzámos no dobrar de uma insuspeita esquina !
"Suba , suba... eu ainda vou ver o correio ... "  o que se inventa p'ra não partilhar o elevador com o nosso inofensivo vizinho do lado !..
Visitas, não se fazem.  "Podes vir de máscara ... por mim não tem problema !"...  "Melhor não.  Acho não ser oportuno !  Deixamos o café p'ra outra vez!"....

Deixamos.  Deixamos o café, deixamos os silêncios, deixamos as partilhas ... deixamos o amparo do ombro, do cólo e do coração !... Esquecemos o abraço ... Deixamos o tempo ... e a vida, acoplada !
Qualquer dia !...
Sim .... pode mesmo vir a ser na próxima encarnação ... vá-se lá saber !
O virtual está esgotado.  O virtual já não responde, não supre, não satisfaz ... não mata a nossa carência afectiva e emocional, essa sim, que é mesmo mortal !
As panaceias dos meses primeiros do nosso flagelo, estão totalmente cansadas.  O entusiasmo dos vídeos, das fotos, dos bons dias, das boas noites ... o carinho plástico que nos trazia a força do bem querer, perdeu o fôlego, perdeu a capacidade de quase nos fazer sorrir ...
Cansaço ... um cansaço que derruba, que incapacita, que anestesia ... Estamos todos assim, neste torpor sem fôlego, sem ventilação ... sem  "pique"...

Nada se projecta.  Nada se planeia.  Nada se decide.
Ir ali agora ?  Talvez !... Mas, não sendo agora ... daqui a dois meses ?  Poderá ser ???  Vá-se lá saber !  E a segunda "onda" ?  E o Inverno que já espreita lá ao fundo ?  E os casos na China a aumentarem !...  E países que já retrocederam ... já reconfinaram ... aqui bem pertinho ...
Inferno !!!  Tudo adiado, uma neblina que não abre.  Um céu cinzento e pesado, numa manhã invernosa em pleno Julho, quente e azul !!!
Ausência de vida !!!...

Anamar

sexta-feira, 24 de julho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Um outro dia





Hoje chegou até mim este vídeo enviado por uma amiga, que não sendo alentejana, sabe que eu o sou.  Sabe do amor que nutro pelo meu chão, da nostalgia com que as suas memórias me atravancam o coração ... e de como qualquer pequeno sinal se transforma numa ponte de acesso em pretexto de mitigar saudades.

Atravessamos tempos difíceis.  Tempos de angústias e solidão.  Tempos de incertezas e de horizontes nublados.
Atravessamos tempos de cansaços e de exaustão.  Tempos de parecer não valer a pena, em que as forças faltam, e a fé em futuros menos nublados parece estar a anos-luz do nosso dia a dia ...
A resistência física está a ir-se.  Sente-se claramente, ou um desinvestimento em sonhos, projectos, envolvimentos futuros que quase já não subscrevemos ... ou simplesmente tanto  faz que corra para baixo ou para cima, numa inércia e num desinteresse notórios.
Eu já não acompanho notícias, números, discussões, opiniões, questiúnculas, trocas de galhardetes em praça pública entre esferas e estruturas com responsabilidades ... nem nacionais nem internacionais, todos tentando contabilizar dividendos da coisa ... pela simples razão de ter atingido um grau de saturação que me opaciza a realidade que me envolve.
Se fosse brasileira, diria que "não tenho mais saco" pra nada !

Entretanto o tempo atmosférico carregou sem piedade.  Sei que o mês é Julho.  Sei que estamos no pino do Verão, mas as temperaturas que se fazem sentir, para quem passa a maior parte do dia e dos dias entre quatro paredes, são penosas e destruidoras.
Trinta e cinco graus na cozinha, ambiente de sauna dia após dia após noite, em que se reduz a indumentária ao mínimo dos mínimos, em que não se dorme ... vai-se ali à cama estender o esqueleto e tentar que o sono nos abrigue em braços de esquecimento ... em que a almofada se encharca, em que a luz se coa e fica quase noite o dia inteiro, para vedar com os estores a intromissão dos raios solares pela casa adentro ... reduzem até os mais resilientes e optimistas a uns vermes sonolentos ... 😄😄😄 
Pelo menos é assim que me sinto !!!

Um destes dias resolvi ir espreitar Lisboa "amordaçada" ... Queria ver como é o rosto da cidade agonizante, amputada do brouhaha que a mantém viva e a torna uma das metrópoles mais belas do mundo !
Queria testemunhar esta Lisboa Covid 19 ...
Era um domingo ensolarado e quente, de um Verão que não deixa os pregaminhos por mãos alheias.  Os jacarandás, já adormecidos numa modorrência de fim de floração, pareciam deprimidos,  com as últimas lágrimas lilases pingando das ramagens.
Sentiam-se decepcionados ... Afinal, engalanaram os céus da cidade para tão poucos olhos os admirarem ...
Lisboa mascarava-se de máscara e viseira na pressa corrida dos veraneantes que se atreviam.
Lisboa que sempre se travestiu de uma multitude de rostos, linguagens, cores, numa promiscuidade de dialectos, raças e géneros ... num universalismo de capital desta Europa de sul, em liberdade assumida, silenciou e ensombrou do Rossio ao Chiado, da Avenida aos Restauradores, numa Baixa mais sozinha e entristecida do que algum dia a vimos.
Lisboa está triste.  Perdeu a alegria da sua gaiatice de menina-mulher !...
É afinal uma cidade fantasmagórica, solitária ... descaracterizada, que aprisiona consigo as suas gentes que a não percebem, reconhecem, ou identificam ...

E assim a vida segue.  Uma vida com toda a estranheza do mundo, em que todos nos sentimos mal na pele que vestimos, em que lá fora se perdeu na curva do tempo, tudo o que deixámos há escassos meses apenas.  Tudo o que eram as referências norteadoras do nosso existir !  Tudo o que redigiu palavra por palavra, frase por frase, a história de cada um de nós !...
Saudades do meu Alentejo !  Saudades de uma boa açorda de coentros e alhos, degustada na sombra generosa da parreira que ensombrava o quintal da nossa infância ...
Saudades , saudades ... saudades !...
























LISBOA  DESAPARECIDA  -  JULHO  DE  2020

Anamar

quinta-feira, 9 de julho de 2020

"AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - em dia de esperança





TEMPOS  DIFÍCEIS


Nunca a espera foi tão longa
Nunca o caminho tão escuro
Nunca a esperança tão tamanha
Nunca o cansaço tão duro !
Nunca a prova tão travessa
Nunca o medo tão real ...
E ainda que não pareça
e que o sonho desvaneça
e o mundo não seja igual ...
sempre o sol nascerá,
sempre a lua descerá
e as aves irão cantar ...
Depois da noite, outro dia
abrirá com alegria
na madrugada a chegar !

Aqui estamos a pé firme
Nosso esteio, o horizonte,
Nosso caminho a seguir
ruma à luz que está defronte !
Não podemos soçobrar
e no cansaço mortal
teremos que buscar forças ...
E não sendo o mundo igual,
mesmo que o sonho adormeça,
cumpriremos a promessa ...
vamos cantar a canção
que acalenta um mundo-irmão ...
ainda que não pareça !...

Das Américas até África,
Do levante ao ocidente
vamos estender nossa mão,
escancarar o coração,
gritando alto "Presente" !...
E a Terra renascerá
à luz de um outro amanhã ...
Um hino se irá escutar
no cansaço do esperar,
porque a espera não foi vã !
E o pesadelo sofrido
já não mais fará sentido ...
A nossa esperança venceu !...
Depois da noite, outro dia
esperará  com alegria
o Homem novo que nasceu !!!

Anamar

quarta-feira, 8 de julho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - mais um dia !





Continuamos indefinidamente no mesmo lugar, na mesma rota ...ou seja, sem rota e sem rumo ! Num sentido proibido de vida e de esperança !...
Não tenho sobre o que escrever.  Os meus estados de espírito são recorrentes, os sentimentos de angústia e de cansaço repetem-se em círculo ... a chamada "síndrome pescadinha de rabo na boca" ...
Excepto uma assustadora e progressiva degradação psicológica que me noto ... tudo o mais é cinzento, é anódino ... é turvamente indiferente, quase ...

Continuamos no estado de calamidade.  Pertenço à mancha das dezanove freguesias da área metropolitana de Lisboa, abrangidas superiormente por esta medida, dadas as estatísticas penalizadoras ditadas pelas contagens e mais contagens da DGS.
Apesar do verdadeiro "molho de brócolos" em que se tem tornado a divulgação oficial diária dos casos respeitantes à pandemia, e dos desacertos dos mesmos na busca do acerto das contagens ( o que não beneficia uma certa urgente e necessária paz de espírito da população ), os números não são de facto, tranquilizantes ...
Assim, tudo igual !

Estou-me nas tintas já p'ra tudo isto !  O que é verdade é que estou saturada de análises, gráficos, interpretações, teorias, opiniões ... verdadeiras teses contraditórias quase sempre, de especialistas ou não, de jornalistas ou não ....
Toda a gente opina, e o cidadão comum balança, balança nesta corda bamba da multi-informação aspergida sobre as nossas cabeças, como os aerossóis do corona ... que a OMS veio agora considerar serem forma possível de transmissão via aérea, até distância razoável ...
E é uma "poluição" de dados e pareceres  nacionais e internacionais, em tratados, artigos de opinião, fóruns, debates ... de quem terá legitimidade para os proferir e de quem talvez não a tenha ...
É uma toxicidade nociva, a adoecer-nos o corpo e a alma !...

As nossas cabeças em "fritura" permanente, dois passos adiante, três para trás, são um nó cego de neurónios a estoirar pelas costuras !...
Na  verdade,  a  nossa  capacidade  de  resistência,  está  como  os  hospitais ... à  beira  da  ruptura ...
Não dá para muito mais !  A minha, não dá ... garantidamente !

Entretanto, os países europeus que abrem agora fronteiras e corredores aéreos à circulação de cidadãos em turismo, "brindam-nos" com notícias "fantásticas" :  Inglaterra primeiro, agora Escócia, Bélgica e acabei de ler ... Finlândia ... consideram inseguro permitir a circulação de portugueses, sem o devido rastreio e quarentena à chegada ao seu território.
Dessa forma, uma machadada brutal é desferida sem apelo nem agravo na recuperação da nossa economia, que deitava agora a cabeça de fora e tenteava os primeiros passos da recuperação imprescindível à nossa sobrevivência ...

Por cá, ontem mais uma vez a Teresa me acalentou com a sua doce presença das sete da manhã à meia-noite.  A mãe, na frente "de fogo" de um hospital central de Lisboa, faz-se presente onde inevitavelmente faz falta.
E é aquela angústia, aquela incerteza, aquela ansiedade ... aquele MEDO ...
As notícias são as conhecidas, num local onde a saúde e a doença, a vida e a morte, são as peças de um jogo de xadrês que se joga ao limite, e onde, uma escolha mal feita, um lance mal jogado, um descuido na avaliação, pode conduzir a um inglório e irreversível xeque-mate !

Escolho não pensar muito.
Escolho brincar com a Teresa, conversar com ela, cuidá-la, escutá-la ( nos seus três anos ) falar dos "bichinhos" !... Lava bem as mãos, avó ... por causa dos bichinhos !...
Teresa, não mexas, não toques, não te encostes ... Uma realidade de filme de ficção !!!
Cada dia destes que vivo agora, transmite-me uma sensação estranhíssima.  Analiso-me à exaustão ... dói-me a cabeça, tenho calor... terei febre? Estou cansada, exausta ... o que será ?
E pergunto : Catarina, está tudo completamente normal contigo ?  Ocorreu alguma situação mais preocupante por lá?...

E é como se fosse ali comprar uma raspadinha e viesse verificar com o "suspense" inerente, se o "prémio" estava lá, nas figurinhas raspadas lentamente ...
Ainda não foi desta !!!...
E o espírito pendurado na corda da roupa, a baloiçar ao vento !  E a sanidade mental, sujeita a uma pressão excessiva e prolongada por demais, a escoar-se pelo ralo !...

Bom ... esta a realidade que vou vivendo em mais um dia, de um Verão a ir-se também, num ano que desliza à velocidade da luz, umas vezes ... na lentidão do caracol, outras ...
Um ano que não conta, não pode fazer número nas nossas vidas, porque na verdade, será sempre um ano não vivido ...
Paradoxalmente, ou não ... talvez o que virá a ser o mais marcante "ad eternum", nas nossas existências !...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

sábado, 4 de julho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - continuamos por aqui ...





Hoje ... foi só mais um dia ! Daqueles ... sem horizonte ou sonho !
Estou melancólica, triste, nem sei mesmo se angustiada. Fisicamente não estou bem, dentes a atormentarem-me e noites muito mal dormidas há tempo de mais.

O Facebook trouxe até mim uma memória de há dois anos, uma vivência inesquecível num lugar de privilégio, quando os tempos eram leves e luminosos. Quando seria impensável, sequer conjecturável nos nossos espíritos, o que viria a invadir e a detonar a paz das nossas vidas, dois anos depois ...
Até por isso mesmo, cada vez mais se deverá valorizar cada momento, cada instante ... o hoje ... porque o ontem já vivemos e do amanhã nada sabemos. E a vida, matreira e madrasta, não se coíbe de nos dar um nó nos planos, nos projectos e nos sonhos que mais abraçamos !
Nunca nada está garantido, nunca nada é certo ... Até o alvorecer de cada dia sempre nos pode surpreender com uma borrasca insensível, em vez da manhã rósea e clareada, a anunciar um puro céu azul !...

Decidi partilhar convosco o texto que escrevi então ... porque enquanto o leio ( e voltei a lê-lo incontáveis vezes ), transporto-me para além das nuvens, para além do sonho ... para além do tempo ... duma forma tão vívida e presente, penetrando de novo a antecâmara do paraíso, com que a Ilha do Príncipe recebe quem a visita ...
E que infinitas saudades desse Verão de 2018 !!!



PORQUE  TUDO  TERMINA ...

"CRÓNICAS  DE  VIAGEM -  FIM  DE  FESTA ... "

Detesto despedidas, partidas, portas fechadas, janelas cerradas ...

E hoje é véspera de partida.

O Príncipe ficará exactamente como é e será, ao longo das eras : selvagem, doce, estonteante na beleza com que se veste, emocionante na simplicidade com que acolhe.
Os rochedos de basalto duro, apenas se irão desgastar mais e mais, e novos retoques na orografia surgirão, no preenchimento das faltas.
As areias continuarão dançando, vergadas ao sabor das marés ... para cá e para lá, incessantes ...
A floresta morre e renasce.  Por cada dia, novas flores, novos frutos, novas árvores nascerão e morrerão sob um sol de equador que mais acarinha, que castiga.
Os coqueiros da beira da praia, como anciãos cansados, dobram-se lentamente  até beijarem as águas.  E um dia, desistentes, irão com elas mundo fora, contar histórias para o outro lado da Terra !
Os pássaros também cumprirão os seus desígnios.  Sem dúvidas ou perguntas.  Apenas, cumprindo-os.  Ano após ano, enquanto for ...
O mar será manso ou encrespado.  Continuará azul, verde ou prateado, consoante o céu se adorne e as nuvens viajantes ou adormecidas, o determinem ...
O sol fará as negaças de um amante que ora se dá, ora se ausenta, sempre embevecido ... e a chuva tropical, quente e forte, abençoará a terra úbere e parideira ... E sempre será certa, quando a gravana passar ...
As luas que se sucedem, tornarão em dia as noites silenciosas e escuras, onde o ponteado estelar é um bordado de pé de flor, a desenhar os céus ...
As crianças crescerão, mas continuarão a sorrir.  E novos meninos encherão os terreiros, sob o coqueiral e no chapinhar dos charcos. ... 
E estarão descalços, rotos, sujos e ranhosos ... mas continuarão com alma de meninos ...

Vou partir.

Amanhã, o Príncipe ficará para trás na cauda do avião de hélice que me vai levar, na esteira do barco da saudade já, que deixarei no mar ...

Detesto despedidas, partidas, portas fechadas, janelas cerradas ...
Não sei se algum dia volto.  A vida, crepuscular, poderá ou não permiti-lo.
Mas os pores de sol que bebi por cada dia que o vi deitar lá longe na linha do horizonte, rendida à magia e ao fascínio de uma África genuína, pura e autêntica ...
As carícias a que rendi o meu corpo nu, nas águas quentes, doces e mansas, como nos braços do homem que é só nosso e a quem nos entregamos na volúpia do abandono ...
Os cheiros fortes, penetrantes e únicos que devassam e grudam na pele, no corpo inteiro e na alma ...

... todos esses ficarão para sempre na caixinha das emoções, no recôndito de mim mesma, em mim tactuados com as cores e o sal desta terra única !
Ficarão afinal, na eternidade da curta e precária temporalidade humana !!!

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !





Anamar

sexta-feira, 3 de julho de 2020

"AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - um outro dia





De Isabel Allende


Encerrada en su casa junto a su marido y dos perros, la escritora chilena vive en Estados Unidos desde hace 30 años.
Consultada por el principal miedo que conlleva el virus, *que es la muerte*, la escritora contó que desde que murió su hija Paula, hace 27 años, le perdió el miedo para siempre: "Primero, porque la ví morir en mis brazos, y me dí cuenta de que la muerte es como el nacimiento, es una transición, un umbral, y le perdí el miedo en lo personal. Ahora, si me agarra el virus, pertenezco a la población más vulnerable, la gente mayor, tengo 77 años y sé que si me contagio voy a morir. Entonces la posibilidad de la muerte se presenta muy clara para mí en este momento, la veo con curiosidad y sin ningún temor.
Lo que la pandemia me ha enseñado es a soltar cosas, a darme cuenta de lo poco que necesito. No necesito comprar, no necesito más ropa, no necesito ir a ninguna parte, ni viajar. Me parece que tengo demasiado. Veo a mi alrededor y me digo para qué todo esto. Para qué necesito más de dos platos.
Después, darme cuenta de quiénes son los verdaderos amigos y la gente con la que quiero estar.
¿Qué crees que la pandemia nos enseña a todos? Nos está enseñando prioridades y nos está mostrando una realidad. La realidad de la desigualdad. De cómo unas personas pasan la pandemia en un yate en el Caribe, y otra gente está pasando hambre.
También nos ha enseñado que somos una sola familia. Lo que le pasa a un ser humano en Wuhan, le pasa al planeta, nos pasa a todos. No hay esta idea tribal de que estamos separados del grupo y que podemos defender al grupo mientras el resto de la gente se friega. No hay murallas, no hay paredes que puedan separar a la gente.
Los creadores, los artistas, los científicos, todos los jóvenes, muchísimas mujeres, se están planteando una nueva normalidad. No quieren volver a lo que era normal. Se están planteando qué mundo queremos . Esa es la pregunta más importante de este momento. Ese sueño de un mundo diferente: para allá tenemos que ir.
Y reflexiono: Me di cuenta en algún momento de que uno viene al mundo a perderlo todo. Mientras más uno vive, más pierde. Vas perdiendo primero a tus padres, a gente a veces muy querida a tu alrededor, tus mascotas, los lugares y tus propias facultades también. No se puede vivir con temor, porque te hace imaginar lo que todavía no ha pasado y sufres el doble. Hay que relajarse un poco, tratar de gozar lo que tenemos y vivir en el presente".

Isabel Allende



Começo os meus dias invariavelmente, ainda na cama a passar os olhos pelo telemóvel, adormecido na cabeceira. Ligo o wifi que ficara desligado durante a noite, e caio inevitavelmente na realidade que me cerca.
Ainda no torpor de um sono meio interrompido, as notícias mais recentes, as comunicações de amigos, os artigos que circulam profusamente nesta época de comunicação à distância, começam "a bombar" ... como é moda agora dizer-se ...
Os acontecimentos de última hora, os números divulgados e actualizados, mesmo não sendo pedidos, oferecem-se de bandeja. E é dessa forma que começo a situar-me em mais vinte e quatro horas que me aguardam ...
Hoje, recebi através de uma amiga este artigo com que encabeço o meu post, um texto de Isabel Allende, a escritora que para mim é uma das referências na arte das letras, e que li muito já lá vão largos anos. Os seus icónicos livros, "A casa dos espíritos", "Retrato a sépia", "O plano infinito" ou "Paula", são títulos inolvidáveis ... O seu perfil social e político é igualmente para mim, motivo de admiração e respeito, ela que, tal como o tio, o Presidente Salvador Allende, foram, como se sabe, figuras incontornáveis da resistência chilena, que a História não esquecerá.
Isabel faz neste texto uma reflexão e uma análise muito objectiva, serena e lúcida, da experiência sofrida que o mundo atravessa, devido à pandemia da Covid 19.
Estando a vivê-la da sua residência na América ( onde vive há trinta anos ), em confinamento familiar restrito, tece alguns considerandos que me tocaram particularmente.
Em primeiro lugar, é a imagem ( eu diria quase tranquila ), de uma mulher em aceitação, equilibrada, o que ressalta das suas palavras.
É o despojamento, a capacidade de distanciamento de tudo o que se nos afigurou sempre como imprescindível, numa vida de abundância e de excessos ... o aprender a "soltar coisas", o saber relativizar a importância que lhes damos, o ser capaz de priorizar o verdadeiro, o genuíno e o essencial em detrimento do supérfluo, do falso e do vazio que tantas vezes preenche os nossos dias, na futilidade com que socialmente com frequência mergulhamos ... a mensagem maior que nos deixa.
Visiona-se claramente uma mulher "preparada" para o que vier, se e quando vier ... uma mulher que maturou profundamente o valor da vida e o significado da morte, e que a entende simplesmente como uma experiência de passagem, um novo nascimento ou uma transição ... que a olha de frente, sem medos e até com curiosidade.
A grave crise sanitária, com todo o seu envolvimento emocional, social e afectivo, tem modelado irremediavelmente o Homem, como sabemos. Tem-no levado a reflectir sobre valores primordiais como a amizade, a solidariedade e a fraternidade entre os povos e as nações.
As desigualdades sociais, a acentuarem-se exponencialmente em consequência da crise económica instalada, a semear pobreza e fome extremas, revelam-nos passageiros de uma mesma embarcação, num mar encapelado e tormentoso, onde só a força da união poderá conduzir-nos a um qualquer porto seguro.
Por tudo isso, urge repensar as escolhas conscientes a serem feitas, do que queremos ou não, para a nova realidade que emergirá ... para o que poderá ser o futuro num provável e desejável maravilhoso "mundo novo" !
Gostaria que, nesta fase da minha vida, pudesse encarar com esta bonomia e tranquilidade, o futuro que ainda terei. Gostaria de poder desenhá-lo sem me perturbar excessivamente com o amanhã, com a antecipação de angústias e receios pelo que virá, como virá ... quando virá.
Mas não me reconheço uma mulher "conformada", uma mulher tranquila ... uma mulher pacificada ...
Sou sim, uma mulher inquieta, a destempo com a realidade que sou obrigada a viver ...
Não ! Tenho muita coisa ainda para fazer ! Tenho muito caminho a calcorrear, muito recanto a descobrir, muito céu e muito mar a desvendar ! E vou lutar por eles !
Não preciso de mais bens materiais ... de todo ! Já tudo me sobra !
Mas falta-me tempo para o mundo todo que me espera lá fora ... enquanto estou aqui, prisioneira do destino, a perder cada segundo precioso da minha existência ... Tenho pressa !
Sinto-me numa bolha a olhar o filme que se desenrola, e que me é estranho ... tudo me é irreconhecível. Parece que o tempo parou, ou abrandou a marcha alucinante ... parece que estou criogenada, à espera não sei do que esperar ... parece que pairo numa irrealidade que me tolhe, me aprisiona e me exaspera ...
Estou cansada ... muito cansada mesmo !...
Até amanhã ! Fiquem bem, por favor !

Anamar

terça-feira, 30 de junho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia sem número



Mais um dia igual a todos os outros !
Rotinas instaladas numa realidade entediante.  Pairo por aqui.  Não vou dizer que vivo por aqui, porque este torpor cinzento que se abate sem novidade ou notícia, é fastidioso e cansativo.

Hoje não era dia de caminhada.  Nem sequer já a descida à mata, o encontro com o verde, o ar puro, a passarada e os raios de sol intrusivos pelo meio da ramagem, me animam.
Ando por aqui na mesmice de sempre.  Gastou-se  há muito, o "combustível" anímico dos primeiros tempos deste filme a preto e branco.  Hoje, cirando neste périplo demasiado gasto ... apática, distante e desinteressada.
Vou às compras porque devo ir às compras ... Automatizo os gestos, os rituais e os cuidados. De resto, arrasto-me, simplesmente ...
Oiço algumas notícias ... poucas.  Procuro os números, como quem confere a chave do euromilhões ou os bonecos da raspadinha.  Os mortos e os infectados, os que desesperam nos cuidados intensivos, em hospitais que já sabemos super-lotados.
Mas procuro os números sem emoção.  Sem emoção e quase já sem angústia.  Sem angústia e quase já sem medo !...
Indiferença !  Tudo isto se tornou indiferente de mais, para o potencial de coragem, de ânimo e de esperança que parecia termos ...

Oiço falar da América ( a antecâmara do horror ) ... oiço falar do Brasil ( a hecatombe que não gostaríamos de assistir ... ) ... e penso : como estará África ?  Continente de quem ninguém fala ... Países que parecem não interessar nada ... e se calhar não interessam mesmo, nesta distante realidade  de abundância e prosperidade, dos ditos pertencentes ao primeiro mundo !...
O silêncio que se "escuta" deve ser revelador de qualquer coisa ... qualquer coisa muito má, como uma maré negra que avança indomada, pelas praias da vida ...
Mas tudo é muito esquisito !  Eu sinto-me profundamente esquisita !
Tenho a postura do espectador que assiste comodamente da frisa, ao desenrolar de uma película,  que  por  pior  que  seja,  ele  sabe  que  é  só  uma  película  e  ele, um  actor  fora  da  trama !...
Apatia ...  O coração já nem acelera !
Quando as luzes acenderem e a sala se iluminar, tudo não passou de um filme ... e cá fora, espera-nos a normalidade da nossa vida "normal" ...

Sonhar ... talvez ainda nos reste.  Será ?
De preferência, que não seja um pesadelo que nos assombre as madrugadas ... e que a alvorada possa erguer-se límpida e luminosa ... como os dias de um Verão que nos assoma pelas varandas, pelas vidraças, nos céus claros e promissores ...

Tudo é efémero.  Tudo, menos o peso desta devastação mortal !
Tudo, menos a certeza do dia que amanhã vai nascer ... Tudo, menos a luz que se apaga logo ali, no fim desta linha indivisa, e que não nos deixa nem suspeitar o que está para além, no horizonte escuro de um túnel demasiado longo, misterioso e terrífico !...

O Outono não demora.  Como nada demora ... a não ser a espera ...
Notícias novas já vêm outra vez de lá, do oriente, onde tudo começa ... Novas infecções, ameaças de novas, ou outras ... ou a mesma pandemia, mascarada ...
Lá, de onde o sol nasce, onde tudo é delicado, é doce, é sensível ... lá, onde a sabedoria milenar inunda as almas e mostra ao Homem o valor e o poder regenerador da espiritualidade ... lá, onde os silêncios são recolhimento e purificação nos corações desapegados, humildes e em paz ... chega-nos a escuridão, chega-nos o ocaso profundo e a desesperança no renascer ...

Porquê ?!...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

sexta-feira, 26 de junho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - outro dia mais





Bom, não sei qual será o degrau desta escada até ao infinito, em que o dia de hoje se encaixa.
E nem esperava sequer, estar novamente a escrever mais uma página desta história de um pesadelo ... "olhada" aqui da minha janela ...
Esta "never ending story" que se arrasta, e que perpetua a desestabilização, a angústia ... o medo e a morte ... objectivamente a "não vida" nas nossas vidas, voltou a pincelar-se de nuvens negras no nosso firmamento que se mantivera azul e estoicamente ensolarado, nos primeiros meses da pandemia.
Aliás foi este "status quo" que nos cotou como um dos países que mais assertivamente abordara e tratara a tragédia que se abate sobre o Mundo.

Contivemos e estabilizámos de certa forma, o avanço dos casos de infecção, por forma a que paulatinamente a curva exponencial que o representa, se achatasse em planalto, evitando que uma hecatombe numérica fizesse sucumbir o SNS.
Estendemos portanto no tempo, o aumento brusco  do número de infecções, o que provocaria a ruptura dos meios técnicos e humanos desse serviço.
Víramos o que fora o descalabro, sobretudo em Itália e Espanha, e fomos eficientes, prudentes e eficazes nos resultados.
O confinamento rigoroso do país, resultado dos sucessivos estados excepcionais decretados pelo Governo e instituições de saúde responsáveis pela gestão da crise, contiveram efectivamente o que poderia ter sido um desastre com custos demasiado elevados.

As pessoas ficaram em casa, o país mobilizou-se em torno duma causa que reconheceu, a protecção pessoal a vários níveis, o distanciamento social de segurança e o respeito pelas regras superiormente emanadas, deram resultados.
No cômputo global, mesmo a nível europeu e por comparação com países similares em área e população ao nosso, as coisas correram favoravelmente, e parecia estarem a criar-se condições para fases mais leves de confinamento.
É que, a realidade social na sua vertente económica e política, pressionava drasticamente, a impossibilidade da manutenção de um país totalmente fechado, por muito mais tempo.  A crise económica que se abatera por todo o mundo, obrigava à retoma do trabalho, da actividade laboral no seu conjunto, sob pena dos danos sociais serem absolutamente destrutivos e irreversíveis.
Assim, estados de emergência, estados de calamidade, estado de alerta, e de contingência ... foram os passos sucessivamente percorridos pelo território nacional, ao longo dos tempos.
Foi aberto o desconfinamento, ainda que faseado e sob medidas rigorosas de contenção.
E estragou-se tudo !!!

Neste momento temos o país a caminhar sorrateiramente e em bicos de pés, no avanço para a normalidade, mas em três fases distintas em simultaneidade :  zonas que estão regidas simplesmente por um estado de alerta ( as mais bafejadas por alguma bonança da doença, com a existência de uma acalmia na prevalência de casos ), zonas abrangidas ainda por um estado de contingência, e zonas, como aquela onde resido, em que dezanove freguesias estão abrangidas, de novo, por um estado de calamidade, o que lhes configura um quadro de confinamento novamente bem mais apertado, e um recuo nas posições profilácticas, assumidas até agora.
Restrições mais severas nas liberdades sociais, encerramento da maioria dos espaços comerciais às 20 h, permissão de circulação para o estritamente necessário apenas, e recolhimento a casa.

Era previsível.  Sempre me foi previsível, que em consequência do desconfinamento decretado, iríamos ter uma inversão da tendência que vinha a manifestar-se até então.
Somos um povo de brandos costumes, somos permissivos em excesso, pouco disciplinados e pouco responsáveis.
Depois de demasiado tempo sob medidas rigorosas de confinamento, de uma reclusão pesada e doída com inibição das mais elementares e simples necessidades, contenção de vontades e desejos ( em que cada um nas suas casas convivia com o mundo exterior exclusivamente com o auxílio das novas tecnologias, e em que os afectos ansiosamente necessários e equilibrantes à vida, eram expressados e transmitidos à distância de andares, de patamares, de ruas ... de vídeo-chamadas e vídeo-conferências, e em que tudo tão completamente distante e impessoal, nos deixava quantas vezes, com o coração ainda mais espremido e as lágrimas mais incontidas ... ), o desconfinamento decretado, ainda que com apelos de prudência, responsabilidade e equilíbrio, revelou-se demasiado gorado ...
De repente, e numa espécie de emaravilhamento, descompressão urgente e loucura colectiva, parece termos esquecido que o vírus não partiu, que circula entre nós, se transmite vertiginosamente e sem regras, está e continuará a estar nas nossas vidas, sem clemência ... e que passos em falso, podem ter preços excessivamente elevados !

Inicialmente verificava-se serem os menos jovens a assumirem algumas atitudes permissíveis e de irresponsabilidade.  Havia alguma renitência a cuidados de protecção achados excessivos, porque afinal, já havíamos passado tantas coisas nas nossas vidas, que quase parecíamos invencíveis !...
Não seria este vírus a vir derrubar-nos !

Agora, mercê da "liberdade" a viver-se, novamente com as portas abertas, a alegria a empolgar-nos, a criatividade e a juventude amputadas, de novo a saírem pelos poros, são os mais jovens que parecem ter assumido o tal grau de invencibilidade.
E com os poucos anos que detêm, a insuficiente experiência de vida, e uma convicção de que ela está toda aí à sua frente para ser vivida em pleno, rápida e urgentemente ... facilmente são impulsionados para atitudes inconsequentes, imprudentes, com desrespeito pelas regras determinadas superiormente para a situação sanitária que se vive.
Desta forma, têm propiciado um recrudescimento de contágios, mercê do pouco cuidado dos convívios e da proximidade entre si, comprometendo toda a estabilidade e melhoria possível já  alcançada no país.

Por outro lado, não podemos ignorar que estas dezanove freguesias problemáticas têm de facto um perfil muito particular.
Pertencem a zonas limítrofes da cidade de Lisboa, da sua cintura industrial, zonas de habitação precária onde residem pessoas de parcas condições económicas, na generalidade emigrantes, alguns já de segunda e terceira gerações.
Vivem em condições difíceis, em que fisicamente é praticamente impossível a observância das regras de privacidade e distanciamento social.
São bairros e freguesias de gente que diariamente sai de suas casas, em transportes públicos com um excesso de frequência, com ocupações que exigem presença local  nunca substituível por tele-trabalho.
Havendo um foco de infecção num destes espaços, o mesmo alastra como um rastilho, em cadeias de transmissão familiar e social, duma forma vertiginosa e incontrolável.

Esta é, em síntese, a realidade que volto a viver no presente momento, em que aguardava já, com alguma serenidade, uma evolução mais positiva e optimista do panorama sanitário da Covid 19 em Portugal !

Até amanhã !  Espero que tenham, neste entretanto, continuado a ficar bem !

Anamar

sábado, 13 de junho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO





Faz hoje três anos, a esta hora passeava-me eu por Alfama, numa tarde solarenga de calor, céu azul e turistas nas ruas e pracinhas, em busca da tradicional animação em honra de Sto.António, padroeiro de Lisboa.
Lembro uma cidade cheia, não só nos bairros populares, mas mesmo no coração da capital.  Lembro o Rossio, o Terreiro do Paço, a Avenida, a zona ribeirinha, por todo o lado deitando pelas costuras a alegria, a animação, a música a rodos, as gargalhadas, os grupos em animado cavaqueio ...
Lembro as tasquinhas, os fogareiros nas ruas, as esplanadas improvisadas em cada canto, o cheiro das sardinhas a assar, as grelhadas, o tinto a correr ... a cerveja, a jinginha ... as farturas ...
Lembro os balões de papel dependurados das grinaldas e festões, num dossel perfeito nos céus das vielas e dos becos ... nas escadinhas e mansardas ...
Lembro as sacadas com as sardinheiras em flor, os vasos de manjericos com o cravo e a quadra alegórica ...
E de repente, num qualquer nicho, num qualquer recanto, numa qualquer esquina espreitava um trono de Sto. António e os restos do que fora uma fogueira saltada ... uma alcachofra florida ...
A procissão desceu às ruas, num percurso que terminou na capela do Santo, junto à Sé.
Pelo meio das varandas engalanadas com as melhores colchas, o povo em recolhimento religioso, os foguetes pelo ar e a banda a fechar o cortejo, a procissão foi pelo caminho, integrando as imagens dos diferentes outros santos, venerados em todas as igrejas por onde foi passando e parando, e que completaram o cortejo.
Os andores de S. João Baptista, S. Miguel Arcanjo, Sto. Estêvão, S.Vicente de Fora e Santiago Maior, todos eles com ligação e significado na vida de Sto. António, são sempre transportados por mulheres.
No largo da Sé, os noivos de Sto.António casados nesse mesmo dia pela manhã, numa cerimónia que faz parte da tradição da cidade, esperavam a chegada do Santo e depositaram os seus ramos nupciais nas grades da capelinha, aos pés da imagem, como homenagem, gratidão e busca de protecção e sorte, para os laços então juramentados ...

Eu perambulei por ali.
Lembro que estava aflita, preocupada com o nascimento da Teresa que viria a acontecer dois dias depois.  Existindo problemas com a colocação da criança, o atraso que já se verificava, não seria de bom augúrio.
Nesse dia, a minha filha, no seu estilo habitual, ainda não decidira onde a criança iria nascer, sendo que a situação era delicada e enfermava de algumas preocupações.
Lembro, que embora sendo agnóstica, e vá-se lá saber porquê ... à passagem da imagem de Sto.António, emocionada e frágil, elevei-Lhe  por isso  um estranho pedido de protecção, num gesto incoerente, utópico e de alguma forma, despropositado.
Comportamentos  humanos  que  não  se  entendem,  não  se  explicam ... e  custam  a  aceitar-se ...
Mas foi exactamente assim ... confesso !!!

Este ano, "Alfama está morta" ... desabafo de uma moradora, que li há pouco.
Com a pandemia que vivemos e muito embora estejamos num período de desconfinamento, todos os arraiais, todos os eventos que implicassem aglomeração de pessoas e consequente desrespeito do distanciamento social exigido, foram cancelados.  Não se realizaram as marchas populares na Avenida, não houve casamentos, nem arraiais, nem tasquinhas nas ruas, nem fogueiras, nem tronos, nem música ou sardinhas ...
E a procissão, que desde o século XVIII sempre fez parte da História de Lisboa, também não saíu à rua !

Os manjericos, este ano quase todos virtuais, chegam às nossas casas, através dos amigos que connosco têm dividido este inferno ! Como um miminho, no apoio de todos para todos !
Até o Santo, tenho a certeza, estará mais triste e descoroçoado, a achar que os lisboetas o esqueceram na capelinha onde reside por todo o ano !!!

Também por tudo isto, 2020 ficará lamentavelmente para todo o sempre, nas histórias inolvidáveis da História que vivemos !!!



Anamar

quinta-feira, 11 de junho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO




ENÉSIMO  DIA  DO  QUE  FOI ...

Já não conto os dias.  E também já não sei contá-los, nesta confusão de tempo sem ter fim.

Sei que continuamos mergulhados num futuro incerto, sei que os números crescem numa média de trezentos por cada vinte e quatro horas, sendo a maioria exactamente na zona geográfica em que me inscrevo ( Lisboa e Vale do Tejo ), apesar de considerarem  controlado o surto, de acordo com as autoridades de saúde.
Sei que as pessoas já não estão confinadas de todo, apesar de ainda haver restrições severas, e de haver exigência na observação rigorosa das medidas de distanciamento social e cuidados complementares.
Sei que já podemos comer fora de casa ( carregando luvas e desinfectante de preferência, como prevenção, apesar do mesmo se encontrar à discrição em todos os locais ) ... Que já podemos estar com amigos, mais proximamente ... que já podemos visitar os filhos ... olhando-nos à distância, falando-nos à distância ... não nos tocando ...
Sei que as nossas empregadas domésticas, na generalidade já regressaram, com máscaras e desinfectantes à entrada, sobretudo se utilizam os transportes públicos na deslocação até nossas casas.
E também sei, que pelo menos isso me aliviou das prestações domésticas que, odiando, tive que executar durante os tempos tenebrosos do confinamento.
Sei que já fomos ao cabeleireiro, ás unhas, aquelas minudências que nos levantam um pouco a alma ... 😃😃 ...
Mas ainda não há compras para ninguém.  Os centros comerciais, encerrados aqui na zona de Lisboa, travam o acesso consumista, que até parece termos esquecido.  Afinal, passando a maior parte do tempo enfiados entre as nossas conhecidas e seguras quatro paredes, os modelitos continuam repousando nos roupeiros e no fundo das gavetas ... Precisamos de mais, para quê ?!
Sei que já poderemos ir ao cinema, embora ache que não terá a mínima graça estar amordaçada, numa sala às escuras, cadeira sim, cadeira não ...
Sei que se poderá  ir às praias, por trilhos demarcados na areia, trilhos de ida e trilhos de volta, com áreas de ocupação por chapéu, bem demarcadas, por forma que as pessoas não se esbarrem ... e com uma lotação limitada que nos remete para uma espécie de plateia com bilhetes marcados ... Um horror !!!... 😃😃
Sei que apesar de ser Junho e os Santos terem descido às ruas, não haverá sardinhas, arraiais, bailaricos e marchas ... não haverá martelinhos, alho porro e foguetório pelos céus de Lisboa e do Porto ... Nem casamentos de Sto. António ... é verdade !... 😢😢
Sei que as esplanadas já são francas e que o pessoal poderá retomar as tertúlias ... Poderá ... mas ...
E até sei que se pode viajar por aí, pelo país ... com cautelas e medidas ... mas ...
E sei de mais algumas outras coisas ...

Bom, sei de tudo isto, mas também sei da modelação que toda esta anómala forma de vida provocou dentro de cada um de nós ... E talvez não erre muito se disser que o reinício e a retoma da normalidade tão ansiada das nossas rotinas, são bem mais complicados e penosos  do que foi o seu fim.
Talvez não erre muito se falar do medo que ainda sentimos todos, quando nos cruzamos nas ruas, nas compras, nos lugares mais frequentados, com os outros, que certamente também estarão a experimentar o mesmo medo de nós próprios ...
Talvez não erre muito se falar do desconforto sentido, quando pontualmente ficamos mais perto de alguém, porque dificilmente conseguimos escamotear pelo menos, a apreensão sentida ...
E não erro de certeza, quando percebo que o vazio e a mágoa daquele beijo adiado, vão continuar  a apertar-me  o  peito,  porque  o  beijo  vai  continuar  adiado,  sabe-se  lá  até  quando !...
E também talvez não erre muito, se falar do desencanto e de uma espécie de tristeza interior instalados, que nos conseguiram  roubar a alegria e a capacidade de fruição, de gosto e de vontade em relação até às pequenas coisas, que direi em relação às mais ambiciosas que poderíamos fazer ... e que não conseguimos fazer ... simplesmente !
E do cansaço interior, desmotivante e anestesiante já, frente às forças e determinação reunidas no início deste filme de terror ... e que se nos esvaíram aos poucos, enfraquecendo a esperança e a capacidade de luta !
E também não erro quando percebo e falo da estranha que há em mim, que veio, tomou conta e se abancou, sem hora de ir embora ... e de como isso me perturba, me angustia e desanima ...

E ainda que eu continue de olho no "pote de ouro" que me espera no fim de um qualquer prometido arco-íris que há-de subir no céu, numa aurora que virá ... e ainda que eu saiba que o arco-íris foi exactamente escolhido como símbolo da esperança, da confiança e da fé de que "tudo vai ficar bem", no flagelo que nos atormenta ... ainda assim, frente à minha janela, não parecem perfilar-se as condições para que as sete cores, disciplinadamente se arrumem, para o desenharem neste meu céu escuro !!!



Anamar

sexta-feira, 5 de junho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 85





O ser humano tem uma capacidade resiliente espantosa, e uma rápida adaptabilidade a tudo, neste mundo !
As piores coisas, as experiências mais difíceis e dolorosas de ultrapassar, acabam por ser assimiladas e incorporadas mesmo, nas nossas vidas, em tempos por vezes espantosamente record.
Por esse motivo, a capacidade regenerativa, a capacidade de superação e a capacidade de encaixe de novas realidades, permitem ao Homem continuar a viver e a reinventar-se perante situações limite, eu diria quase com alguma normalidade.

O cataclismo que tem varrido o planeta, é de alguma forma, um exemplo disso mesmo.
No início da catástrofe, quando de epidemia passámos a pandemia devastadora, percorrendo o globo de oriente para ocidente, de sul para norte, semeando o terror, a dor e a morte em todos os humanos, as pessoas, num registo catatónico provocado pelo pavor bloqueante que as dominava, eram animais encurralados, acossados numa luta contra um inimigo desproporcional, desconhecido, invisível e cobarde.
Vivíamos em permanência "pendurados" das notícias, sofríamos com elas, aterrorizávamo-nos perante a imagem apocalíptica do que parecia aguardar-nos sem escapatória ( sendo apenas uma questão inevitável de mais ou menos tempo ), solidarizávamo-nos no sofrimento e sofríamos  brutalmente com todos os povos de todos os continentes, raças e línguas ... não dormíamos com tranquilidade, condicionámos as nossas vidas em figurinos que nos amputaram a paz, a alegria e a saúde ... o sobressalto era permanente, vinte e quatro sobre vinte e quatro horas ... e tínhamos p'ra nós, grosso modo, numa visão determinista arrasadora, que mais cedo ou mais tarde, chegariam estes, aqueles e aqueloutros sintomas de que o maldito nos apanhara de jeito ... e aí ... engrossaríamos as estatísticas, simplesmente ... sem remédio que nos valesse !

Este pesadelo  couraçado, musculado, paralisante, enfraqueceu-nos, destruíu-nos, adoeceu-nos.
Pôs à prova, em permanência, do que éramos e do que não éramos capazes, experimentou-nos a capacidade reactiva, o nosso instinto de defesa e mesmo de sobrevivência, colocou-nos frente a nós mesmos  num desafio de forças ... ou reagimos, ou estaremos definitivamente perdidos ... ou paramos e reflectimos, ou morreremos na praia ...
E aí, havia seriamente que escolher qual o trilho que avisadamente deveríamos percorrer.

E chegámos ao hoje.
Volvidos quase quatro meses desde as primeiras "chuvas", e tendo passado por todos estes estádios ( eu e certamente os outros também ), percebo que me fortifiquei interiormente. Percebo que ganhei um distanciamento emocional, uma racionalidade construtiva ... que cresci, ou que pelo menos amadureci psicologicamente ... que me fui despindo aos poucos do fantasma do medo que tanto me martirizou quando a perplexidade face às realidades, era uma constante ... quando a confusão no coração e no espírito me tolheu os passos p'ra caminhar.

Ou seja, arranjámos todos, creio, mecanismos de defesa para podermos prosseguir  no que vier a ser o nosso destino, ganhámos arcaboiço para enfrentarmos as dificuldades que ainda virão, e formas de encararmos mais positivamente e relativizarmos, o desenrolar das situações.
Hoje dizemos ... de ontem p'ra hoje "só" houve dez óbitos... "só" há sessenta e quatro internados em cuidados intensivos ... "só" surgiram  trezentos e setenta e sete novos casos...
E ao fazê-lo, temos sempre presentes comparativamente, outros números, outras estatísticas, a expressão dramática e assustadora de outros países ... e por isso, pouco mexem connosco já, os números chegados das actualizações diárias ...
Começámos a banalizar as estatísticas, começámos a habituar-nos a viver com elas, começámos a insensibilizar-nos com a nova realidade, com a nova tipologia existencial de que agora fazemos e faremos parte  por um futuro muito longínquo, certamente .... por resiliência, adaptabilidade ... ou talvez simplesmente por cansaço !...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

quinta-feira, 4 de junho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 84



Hoje, matematicamente dia 84 !

84 no cômputo total, embora nos últimos dias eu não esteja a escrever com nenhuma regularidade as minhas crónicas que presumiam ser diárias.
Quebrou-se esta cadeia continuada de elos presos uns aos outros, quantos os dias que em procissão nos foram preenchendo a vida, nesta aventura em que fomos compulsivamente lançados.
Estamos a vivenciar já, o período do desconfinamento decretado pelas autoridades políticas e da esfera da saúde.
Um desconfinamento totalmente monitorizado, observado à lupa e analisado com todo o rigor que a gravidade da situação, nos impõe.  Um rigor acautelado, sob suspeição constante e permanentemente policiado, por forma a obstar que uma qualquer desbunda - de alguma forma compreensível, em pessoas sujeitas há excessivo tempo a vidas totalmente espartilhadas, desconformes e consequentemente alteradas - ponha tudo a perder, na situação pandémica no nosso país, até agora controladamente contida nos números do flagelo.

Desde a primeira hora ... eu diria antes da primeira hora, já eu, incluída numa considerada faixa etária de risco, me auto-confinara a uma reclusão praticamente total, visando o distanciamento voluntário de segurança, a nível da comunidade.
Restringi os meus movimentos ao indispensável e inalienável, por forma a manter-me razoavelmente sã, dentro do figurino possível.
Deixei de sair de casa, de fazer a vida social que sem ser excessiva sempre mantive, concentrei toda a aquisição dos bens essenciais num único dia, a fim de evitar um risco de contágio acrescido nos locais de compras ... e apenas mantive a caminhada três vezes por semana, por razões de salubridade, repito, física e mental.
E ainda assim, porque a mesma é feita na mata de que já vos falei vezes sem conta, onde, sendo um bosque totalmente natural, não existe nenhum risco de me cruzar com demasiadas pessoas.
E só !

A minha filha mais velha ( excessivamente cautelosa e hipocondríaca ) e família, apenas tive o grato prazer de ver à distância de um patamar de escada, ou da altura dos sete andares onde habito.  E, se me não falha a memória, por duas ou talvez três vezes apenas ...
E era aquela coisa, doída e triste, eram os sorrisos amarelos encobridores da vontade louca do abraço, ou mesmo do beijo que se fizesse à distância ... Não mais !
Tirando isso, a chamada vídeo, as tecnologias de recurso, tentavam trazer o longe p'ra perto.  Mas nem como panaceia serviam !...
A minha filha mais nova, mais descontraída talvez até por deformação profissional na forma da abordagem das coisas, não restringiu totalmente a nossa aproximação.  Ao contrário, e obviamente com os devidos cuidados, apareceu uma vez ou outra, trouxe a Teresa, e permitiu um contacto mais próximo.  Até porque, em última análise, a criança ficará em breve comigo, em períodos de trabalho da mãe que já reiniciou a actividade hospitalar.

E assim se desfiaram os quase três meses desta vida anormal, castradora, injusta e insensível às emoções, aos sentimentos, às dores e a toda a panóplia mortal de devastação psicológica em cada um de nós.
Como me tenho aguentado, nem eu mesma sei.  Como tenho suportado esta existência presa por arames ... também não.  Tenho-a vivido como uma prova de resistência, como uma situação limite requerendo "endurance",  como uma espécie de desafio à minha capacidade de superação, equilíbrio, disciplina interior, como teste de aferição à minha coragem e manutenção da esperança e alguma fé em melhores dias vindouros.
Hoje, digo um basta neste rigor excessivo e desproporcionado.
Tenho para mim, que o êxito da contenção desta tragédia, passa apenas pela assumpção de responsabilidades individuais e não mais.
Se todos fizermos a nossa parte ... dos "maiores" aos mais jovens ... posicionando-nos sempre com seriedade, precaução, rigor e sem cedências ou facilitismos no enfrentar do risco que se mantém permanente, como sabemos ... teremos certamente sucesso nos resultados.
Afinal, o vírus será um passageiro permanente desta nossa viagem ainda por muito e muito tempo seguramente, com o qual teremos de aprender a conviver ...
O medo apenas nos tolhe, destrói e incapacita.  E não poderemos / deveremos ficar confinados a vida toda, sob pena de morrermos da cura e não da doença !...
Então, vamos encará-lo de frente, com determinação e a convicção de que iremos ser seguramente  mais fortes do que ele !

Anexo aqui um texto um pouco a propósito do que aqui escrevi, da autoria do Dr. Eduardo Sá, eminente psicólogo, psicanalista, professor e autor, que merecerá certamente a vossa atenção, e fará eco provavelmente, das convicções de muitos de vós :


Daqueles de quem se fala como se fossem "criancinhas"

Chega de "velhinhos". Daqueles de quem se fala como se fossem "criancinhas". E em relação aos quais, de repente, no lugar da admiração e do respeito, ficasse a condescendência e o paternalismo.
Chega de "velhinhos". Daqueles que, no início da quarentena, eram descritos como se parecessem estar todos tolos e não medissem as consequências do confinamento. E que, agora, devessem estar todos confinados, por tempo indeterminado, por serem uma "população de risco". Em relação aos quais parece que nem sempre se pergunta que custos pode ter, para o seu equilíbrio, essa ideia que faz com que, para muitos de nós, velhice e confinamento perecessem casar tão bem.
Chega de "velhinhos". Daqueles que são "arrancados" do seu mundo, da sua casa e das suas relações e são colocados em casas comunitárias a que se chama "lar" ou "casa de repouso". E que, como se não bastasse o esdrúxulo dessa designação para esses lugares, nalguns casos, têm no seu nome "eterno descanso", "paraíso” ou "céu", por exemplo. Como se as pessoas não tivessem a noção que, de lá, nunca regressam a casa. E como se estivessem todas tão entretidas que nunca se deprimissem ao ter consciência daquilo que se passa com elas, das raras visitas que têm numa semana ou da forma como, em função daquilo que esperariam da família, se sentem na mais corrosiva solidão.
Chega de "velhinhos". Daqueles de quem se fala como se estivessem, agora, a suicidar-se mais, nos lares. Como se, não sendo isso, quase mais nada acerca deles parecesse merecer a nossa preocupação. Como se isso, sim, fosse um alarme (e é!). Mas a depressão em que muitos vivem, todos os dias, nem por isso é o que os faz morrer, para a vida, quase em silêncio. Nem o modo como adequam o discurso a um certo tom de subserviência não fosse importante. Ou a sobremedicação pela qual muitos passam. Ou a forma como nem sempre são tratados como pessoas (mas como "velhinhos").
Não, o mais importante dos nossos actos para com os "velhinhos" não passa por não conseguirmos imaginar que, mais tarde ou mais cedo, seremos como eles. O que, sendo ainda muito centrado no nosso umbigo, já não seria mau. Mas pela dificuldade de nos colocarmos no lugar deles. De sentir com eles. E de (ao menos) imaginarmos o seu sofrimento. Eu acho que, em relação às pessoas mais velhas fazemos de conta que "está tudo bem" porque evitamos pensar nelas, nas omissões da nossa relação com elas e em nós no lugar delas. Às vezes, protege-nos imaginar que eles sejam “velhinhos”. Que pensam de forma entaramelada. Que eles e o Alzheimer têm uma relação de privilégio. E não pararmos para perguntar como se sentem confinados num corpo que manda neles. Confinados a uma esperança de vida sem direito a índices de felicidade. Confinados a espaços de onde não têm liberdade para sair. Sem direito ao seu dinheiro e (muitas vezes) ao seu património. Confinados. Confinados. E confinados!
Não; o mais importante dos nossos actos para com os "velhinhos" passa por não os considerarmos "velhinhos". Passa por reconhecer que têm direito à sua vida, à sua autonomia e aos nossos cuidados. Passa por reconhecermos que, num mundo ocidental mais envelhecido, as pessoas mais velhas não são, sobretudo, um custo acrescido. Mas um adicional de sabedoria que quase todos desprezamos.

Por tudo isto, chega de falarmos das pessoas mais velhas com se fossem "velhinhos"! Respeito! Sim?

                                        Eduardo Sá - psicólogo, psicanalista, professor e autor


Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar