segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

" BALANÇO "





Ontem foi o último domingo do ano.  
Esgotam-se os derradeiros dias de um ano que todos, mas todos, querem  absolutamente 
esquecer. 
Mas ironicamente, contudo, é o ano que jamais será esquecido nas nossas vidas, apesar de no seu saldo, ele não contar, ele surgir como uma entidade irreal, estranha, invisível ... não vivida !  É um ano de perda, um ano de desperdício, uma fraude injusta nas nossas existências !
Eu dificilmente consigo descrever o que sinto dentro de mim, neste deve e haver das contas que o tempo tem comigo.  Sinto-me ludibriada, enganada, espoliada ... porque se um ano na vida de qualquer mortal, é seguramente uma fatia jamais desprezável, na minha faixa etária, esse mesmo ano, tem um factor de ponderação substancialmente mais elevado ... Afinal, a estrada a percorrer, é uma gota de água do caudal que por nós já passou. 
E nestas contas, nem sequer é necessário fazer futurologia.  É assim !  Todos o sabemos !!!

Entretanto ontem começou também, a vacinação nacional contra a Covid 19 !  
É por isso, para Portugal ( porque o timing desta abordagem difere de país para país ), um dia absolutamente histórico, mais um a fazer história, em todo o calendário da pandemia !
Abrem-se as expectativas ( pesem embora todas as ressalvas a propósito ) de que estejamos a passos próximos de vencermos o flagelo que há quase um ano se abateu sobre o planeta Terra, de que possamos poupar desta forma e com esta protecção, muitas e muitas vidas ainda, de que a normalidade das nossas existências, ainda que gradualmente, possa  vir  a  retomar-se,  para  reganharmos  o  direito à  paz,  à  esperança e a um  novo  amanhã !

Tudo o que se vive é estranho, é incerto, é precário, e o sentimento que melhor está definido dentro de mim, é de insegurança.
Insegurança no dia a dia a todos os níveis, sanitário, económico, familiar ... como se um nó, dentro do meu peito, que me oprime e tira o ar, nunca mais se desatasse.  Susto, não por mim, que levo uma vida quase de eremita ... mas uma imensa preocupação em relação ás minhas filhas e netos, e uma angústia mesmo, em relação a familiares distantes que não voltei a ver, cujas visitas por razões prudenciais deixaram de ser consideradas, sequer ... 
Preocupação em relação a amigos e conhecidos que constituíam o nosso núcleo de convivência, e dos quais deixámos de ter notícias, porque vermo-nos deixou de ser questionável, já que as rotinas desapareceram e as coincidências de horários, eventualmente nas compras que fazemos, são perfeitamente aleatórias, improváveis, e mero fruto de um acaso mais feliz, simplesmente !
Assim, ilhámo-nos totalmente, e nos centros urbanos, que já em situação normal isolam e afastam as pessoas - lugar de muros e não de pontes - onde ninguém sabe de ninguém, onde os afectos ficam além das portas fechadas, onde cada um se entrincheira na tentativa de minorar os riscos pessoais de contágio ... o que cada um vive dentro de si, é dramático e angustiante.
Não há vida social, ou esta restringe-se aos contactos inevitáveis. As tecnologias "desdobram-se" para mitigar essa lacuna, como se houvesse mensagens, ainda que visuais, chamadas telefónicas, tele-chamadas ou breves "assomos" a distâncias nunca inferiores a dois metros, que conseguissem envolver-nos a alma ou embrulhar-nos o coração com a doçura, o amor e a alegria com que a ausência de um afago, de um beijo, de um toque, há meses e meses e meses ... os orfanou !...

E mais um ano chega ao fim !
A solidão pesa-me, largada numa ilha de dúvidas e incertezas, de perguntas a que ninguém responde, de sonhos liofilizados na espera de um horizonte palpável que os reabilitasse, na busca de um refúgio seguro, de uma escora sólida, de um molhe protector de tempestades de maior devastação ...
O cansaço é o sentimento mais real que me descortino.  O cansaço e a descrença nos tempos vindouros. A descrença na minha real capacidade de reunir forças para continuar a remar neste alto mar sem ventos a favor.  Dúvidas sobre a minha sanidade não só física mas sobretudo mental, que como um pano esfiapado já não costura os buracos que vai abrindo ...

Tanto se aprendeu no espaço de um ano !  E tanto se aprendeu, porque muito se viveu, muito se sofreu ... e é no sofrimento, afinal, que o ser humano sempre cresce ...
Que o calendário dobre a página com bonomia, com compaixão, com temperança ...  
Que volte a plantar p'ra florescer ... e não seque, p'ra estiolar ...
Que não nos roube o chão p'ra pousarmos os pés, e não empurre para longe os retalhos de azul que tentam espreitar no nosso céu ...
Que não nos leve as aves, e elas possam alegrar os nossos ouvidos despertos ...
Que não endureça os nossos corações e neles possamos continuar a cultivar a esperança, o carinho e o amor ...
Em suma, que o novo ano que está mesmo aí a chegar, nos traga de volta a Vida, e leve p'ra bem longe a Morte que 2020 não se cansou de semear !!!

Anamar

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

" O MELHOR PRESENTE DE NATAL "


Estamos a dois dias do Natal.

Estamos a dois dias de qualquer coisa que neste particular ano 2020, não identificamos muito bem, nos soa a falso e até a contrafacção ! 😌😌
Vivemos, nesta rectinha final, sinais de angústia, de preocupação, de apreensão, de incertezas e receios.
Desejamos e não desejamos que esta época se esfume rapidamente, neste agridoce de um desconhecido que nos assusta, nos incomoda mais do que nos alegra ou preenche.  Desejamos que chegue e passe logo ... e tememos a "factura" a ter de pagar-se em termos do descontrole, obviamente expectável, da progressão da pandemia da Covid19, numa sociedade que abriu um parêntesis, p'ra não dizer que escancarou portões, nas regras de prevenção, nas restrições existentes, nas permissividades sociais aligeiradas.
Todos demasiado cansados, todos demasiado saturados, famílias e famílias feridas de morte, em mortes inesperadas e inaceitáveis ... dores latentes e jamais arquiváveis por partidas não assimiladas, não vivenciadas na realidade, em lutos incumpridos, por despedidas nunca consumadas ... têm-nos deixado numa debilidade emocional além de física, sem tamanho.  Têm-nos reduzido à fragilidade mais incontrolável e insanável que alguma vez sequer, pudemos  equacionar  nas  nossas  vidas  ter  que  vir  a  experimentar  um  dia !

Entretanto, o Natal, um período emocionalmente propício ao exacerbar das emoções, em que valores como os afectos, as saudades, a distância, a ausência, a solidão e o abandono, abrem o sangramento de feridas  crónicas  que  temos  contido a duras penas, dia após dia, mês após mês ... há demasiado tempo já, está aí, p'ra ser vivido, atravessado, resistido !
A capacidade resiliente individual, está presa por arames.
Cada dia é um teste  dessa mesma resistência.  Cada dia é uma prova de fogo sobre a capacidade do equilíbrio mental e psicológico de cada um de nós.  Cada dia é mais um exercício de testagem sobre até onde e quando, conseguiremos chegar minimamente incólumes ...
As famílias vão fingir encontrar-se numa cumplicidade emocional e afectiva, de distanciamentos sociais necessários e impostos.  Os olhos vão sorrir, chorar ou apenas olhar-se, atrás da máscara que não poderá ser esquecida.
O abraço não se dá.  Aquela vontade imperiosa e carente por um tão grande afastamento do toque, da pele, do sangue, num processo violento e contranatura, aperta-nos o coração e dilacera-nos a alma.
Olhamo-nos, talvez ... mas acredito ser de tristeza o sorriso tímido que os olhos denunciam, e a voz embargada desvenda ...
Precisamos mais de um carinho explícito do que de um bom prato de bacalhau.  Precisamos mais de um afago real, do que de uma taça bem recheada do nosso doce predilecto.  Precisamos mais de um colo disponível do que daquela taça de bom vinho tentando aquecer-nos a alma ...
Precisamos ...

E há luzes na mesma.  E há árvores e adornos que a duras penas saíram dos armários.
Porque a vontade é pouca.
Mas temos, apesar de tudo, um compromisso com a vida : a obrigação de a homenagear, de agradecê-la e de a preservarmos.
Estamos vivos.  E tantos, sem provavelmente o terem considerado, já não estão !
Rimos, choramos, sentimo-nos perdidos, cansados mais hoje que ontem ... mas com corações que batem, em uníssono ... com braços que se estreitam sem que ninguém o saiba, com bocas que se tocam apesar da distância, com a força do sonho a levar-nos para onde quisermos ir ... ainda que sem sairmos daqui !
E isso tudo é que vale !  E será isso tudo que terá que levar-nos adiante, num rumo certo, num caminho seguro, num trilho de esperança !

Ontem, a Teresa, nos seus três anos e meio, estreitou-me com a sua força de quase bebé ainda, encostou a cabeça no meu peito, enlaçou-me nos bracitos pequenos e frágeis que ainda não me contornam, e olhando-me docemente, beijou-me muitas vezes enquanto dizia com a expressão da paz e da tranquilidade que nos garante um porto seguro : "Avó, é tão bom estar aqui !  É a melhor coisa do mundo !"

E este, foi o melhor presente, do melhor Natal que já tive !...

Cuidem-se !  Feliz Natal !

Anamar

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

"OBRIGADA ! "


 

Dispensa comentários, este post !

Digamos que ele é apenas uma efeméride minha, pessoal e particular.  Afinal, ela não retira nem acrescenta  nada  a  ninguém.  Ela  não  me  reconhece  ou  confere  especiais  pregaminhos ...

Não !  Apenas assinala que até hoje, desde que a brincar criei este espaço - espaço de alegrias, de tristezas, de vulgaridades, de comentários ... de interrogações, confrontos comigo mesma e com os que me rodeiam, e tudo o mais que por aqui passou e passa - já 90000 pessoas, de muitos lugares até impensáveis do mundo, a ele acederam, e acedendo, julgaram conhecer um pouco mais de mim e do que me vai na alma !

Por isso, também neste famigerado ano 2020, mais um acontecimento a registar !  
Este, apenas dizendo respeito a mim própria, marcando neste finalzinho de ano, um especial carinho de todos vocês para comigo.  Bem hajam por isso mesmo !

E embora seja prioritariamente para mim que escrevo, neste diálogo intimista e silencioso, cumpre-me agradecer de coração, com um imenso OBRIGADA !

Agora ... até às cem mil entradas !...


Anamar

domingo, 20 de dezembro de 2020

" DIZ-LHES QUE ESTÁ TUDO BEM ... " - NATAL 2020




Hoje a minha gaivota rasou-me a janela.  
Senti-me surpresa primeiro, privilegiada depois, acabando por sorrir logo de seguida !...
E eu sei lá que gaivota era esta ?!...  Certamente uma, mais ousada, das que planam aqui por cima, sobretudo em dias como o de hoje, em que a escuridão que pincela o céu, é garante de borrasca no litoral ... lá por onde elas fazem vida.  Assim, nada como recuar até zonas onde, à falta do peixe que lhes integra o cardápio, sempre haver lixos urbanos que lhes interessem ...

Faz tempo, muito tempo já, a "minha gaivota" era uma personagem mítica nas narrativas da minha vida.  Era uma figura onírica das histórias do meu dia a dia.  Era o meu "pombo-correio" entre a realidade desinteressante do betão desalinhado e agressivo da cidade desconjuntada onde vivo, e a doçura sonhadora das arribas, das falésias altaneiras, varandins de águas azuis, verdes ou prateadas, sonhadas e sabidas além do cocuruto daquela serra que me divide o caminho entre o cá e o lá ...
Eram as suas asas distendidas na aragem, as estafetas da minha ânsia de paz, de liberdade e de sonho.  Seguindo-a no espreguiçamento aqui nos meus céus, eu deixava que esses sentidos mais absolutos, me tomassem e me fossem levando para paragens impressas dentro de mim, cantos recônditos de memórias vividas, nichos de sonhos sonhados em vidas que foram minhas ...
Depois, os tempos foram indo, e eu penso ter perdido muito da ingenuidade que acalentava o meu ser.
Hoje sou alguém endurecido, amargo, frio demais, pragmático além da conta,  a quem a capacidade de sonhar foi amputada, deixando a minha alma com um pedaço a menos ... deixando o meu coração mais incompleto e imperfeito  ...

Hoje, os tempos que se vivem entristecem-me e desolam-me.  O coração pesa-me e as lágrimas que quase nunca escorrem, têm o caudal de uma torrente incontida que me oprime o peito e me tira o ar.
Choro pelas minhas mágoas e pelas mágoas do mundo.  
Estamos a quatro dias de mais um Natal.  Um Natal absurdo, irreconhecível, mascarado de felicidade não vivida, mascarado da normalidade possível  de um jogo de gato e rato, onde os afectos são sabidos além do monitor dos telemóveis, onde as emoções galgam as distâncias nas franjas da brisa que vai passando, e o nó na garganta se disfarça por detrás de um sorriso fingido de aceitação do inaceitável ... Afinal, chegámos a mais um Natal,  e ninguém nos avisara há apenas um ano, que muitos não iriam ter essa sorte !

Hoje, como habitualmente, neste novo caminho de Inverno, na caminhada pela manhã passei frente ao portão lateral de uma residência sénior ... um lar, como "soi dizer-se".
É um portão de grades, sempre fechado, no espaço ajardinado que rodeia os edifícios propriamente ditos, dos alojamentos dos idosos. 
Nunca ali vira ninguém, dado não se tratar da entrada principal.
Hoje, dentro do espaço institucional estava junto ao portão uma senhora, cabelo totalmente branquinho, pantufas nos pés e um xailinho pelas costas, que a protegia da aragem fresca que corria, apesar de um promissor dia solarengo. 
De fora, na rua, junto ao portão também, estava uma jovem que passeava um cão. 
Percebi serem familiares. Talvez fosse uma neta daquela senhora de rosto pregueado e olhar entristecido.  Talvez fosse um raio de sol que tivesse descido sobre o rosto da idosa, momentaneamente iluminado ... talvez fosse um pedaço de azul num céu escurecido há tempo demais ...
A "neta" - vou chamar-lhe assim - fotografava-a compulsivamente com um telemóvel, como se quisesse eternizar o momento ... como se ele se estivesse a tornar único, singular, último ... quem sabe ...
"Está tudo bem"- dizia a velhinha. E rodopiava ... uma, duas voltinhas em torno de si mesma, na preocupação de dar veracidade ao que afirmava.  "Estou bem, sim ... " repetia.  Mas só o olhar triste a traía.  Esse, continuava baço, apagado, falsamente feliz ...
"Dá beijinhos ao meu neto ... e ao meu bisneto também ... que eu agora tenho um !...  Diz-lhes que está tudo bem !"

Apenas as grades do portão as separavam ... mas era todo um mundo de solidão e dor que se interpunha, era toda uma vida a escorrer lembranças idas, era um gotejar de silêncios pingando de um coração que talvez ainda sonhasse ... seria ?!...

Segui o meu caminho, com passo estugado, e um pedregulho ainda mais pesado dentro do peito.  Olhei para trás, duas ... três vezes ...
Junto ao portão já não estava ninguém ...

"Diz-lhes ... está tudo bem !... Eu agora tenho um bisneto ... Diz-lhes !..."

E mil fotografias que terão ficado a marcar mais um Natal de desesperança, dor e solidão !...


Anamar

domingo, 13 de dezembro de 2020

" LAREIRAS ... "

 




Hoje estou de lágrima fácil.

É um daqueles dias em que elas se achegam sem pedir licença, por isto mas também por aquilo.  Por tudo mas também por nada.  Dia de nó grudado na garganta, em que o peito espremido pesa e aperta ... dia de um céu carrasco aqui mesmo por cima, sem chance de clarear.

Esta altura do ano, estes dias que se vivem perto do Natal, já por si, em situação normal sempre nos mexem.  Este ano, por todas as razões, parecem dias definitivos !
São sensações estranhas, as que vivencio.  A incerteza, a angústia e o medo, são palavras gastas a povoarem diariamente as nossas vidas.  Gastas de serem ditas ... gastas de serem pensadas ... gastas de serem sentidas ...
É como se tudo se percebesse mais precário do que nunca, como se tudo se sentisse mais debilmente seguro do que nunca, mais frágil do que nunca !
É um período inevitavelmente pressentido como de encerramentos, de revisão, de balanço.  É um fecho de ano, é um fecho de ciclo, é também um fecho de vida ... de mais uma fatia de vida vivida.

Estou junto à lareira.  Estou só, ou melhor, estou povoada apenas pelos meus, e pelos meus pensamentos.
O silêncio crepitante da lenha que arde, o bruxulear das chamas que desenham fantasminhas na escuridão da chaminé, e o vai-vem do fogo que dança como quer, é alguma coisa tão introspectiva e minha, que não permite intrusão ou devassa.
Comparo-o ao chega e parte das ondas nos areais desertos, incontidas e indómitas.
Comparo-o ao balanço ondulante das searas maduras nos campos da minha terra, quando o braseiro silencia e aquieta a vida, como berço embalado para a sesta ...
A lareira tem esta magia de me adormentar o olhar, de me acalmar o corpo e de me deixar a mente e o coração soltos e livres, pássaros vagueantes fora deste mundo ...

Tive várias lareiras na minha vida.
Umas, falam-me. Outras, não.  Umas têm histórias que me contam, outras só me aquecem e iluminam.

A lareira da minha infância, de ponta a ponta, naquela chaminé de fundo de cozinha, com as paredes de metro, com o fumeiro dependurado em estendal bem por cima das nossas cabeças, com a cadeira de buinho juntinho ao madeiro, para que o meu pai trabalhasse nos dias de férias natalícias, lá ficou naquele Alentejo de antanho ...
Será  que  ainda  existe, naquela  casa  onde  já  só  vagueiam  os  tantos  que  por  lá  passaram ?!...
Foi a lareira primordial. A lareira regaço, colo e sonho ... Guardou em si o conceito de família  mais próximo, que alguma vez tive ...
Foi a lareira que só me ficou na memória, mas que ainda não me trazia memórias, porque eu as não tinha, as não podia ter, já que elas são apenas as pegadas dos anos que vivemos.  E então, eu ainda não tinha anos suficientes vividos ...

Depois, houve a lareira mais à frente ... lareira de serões na Beira, que se estendiam pela noite dentro, quando  todos  já  dormiam,  e  apenas  eu  velava  pelas  últimas  brasas  do  luzeiro ...
Era uma lareira tão minha, aquela !...
Era um tempo de muito silêncio, de muita solidão, em que nas chamas que dançavam frente aos meus olhos, desfilava vezes sem conta todo o filme da minha vida.
Todos já dormiam, a sala semi-obscurecida, recebia  quase só a luz e o calor intimistas daquela paz que se sentia ... As horas passavam e a vida ia-se fazendo ...

Houve depois outras lareiras.  Essas, contam-me até hoje, histórias muito bonitas da minha História ...
Aplacaram o frio não sentido, das madrugadas gélidas do Gerês, de Monsanto, de Monsaraz, de Marvão ... de Évora ... Iluminaram rostos afogueados pelo calor que irradiavam, e pelo calor que os corpos e os corações irradiavam também.
Eram lareiras cúmplices, silenciosas e ouvintes.  Eram lareiras-testemunho. Narravam contos de paz e esperanças, sonhos sonhados entre as ginjas quentes de Óbidos e um bom tinto de Geia ...
Foram lareiras idas, mas lareiras omnipresentes...
Basta fechar os olhos, e elas estão lá, nos mínimos detalhes, nas palavras que se soltaram, no cutucar das brasas que não ousavam apagar-se ...
Lareiras de dias felizes, de frio transformado em ondas tórridas de calores promitentes ... Lareiras que afinal o tempo apagou e que a vida ousou levar para longe.  Lareiras extintas.  Que já não existem ... 

Nem eu  sequer tenho a certeza que algum dia elas me aqueceram a alma !!!

Anamar

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

" SINGING IN THE RAIN "




Há meio loucos e loucos por inteiro ... os "loucos de pedra", como dizem os nossos irmãos lá do outro lado do Atlântico.
Eu considero-me integrando o primeiro grupo, embora ainda assim ele tenha algumas gradações.  
Se não, vejamos ... 
Amanheceu um dia "daqueles" ... sem ponta por onde se lhe pegasse.  Céu tenebrosamente escuro sem esperança de redenção, chuva sistemática, ininterrupta, intensa.  Nada de molha-parvos. Nada que deixasse esperança de abertas ... nem mesmo ao meio dia, em que a minha afiançava que sempre, "ou carrega ou alivia" !...
Era uma chuva insuspeita, carregando consigo banho garantido.

Não era teoricamente dia de caminhada, dizia o meu agendamento que gosto de seguir sem desvios.  Assim sendo, estaria safa, e bem me agradaria olhar além da vidraça, o dilúvio impiedoso lá fora.
Mas amanhã, excepcionalmente não teria disponibilidade para a fazer ...
Vou ... não vou ... aventuro-me ... e se me constipo?... Se vou, isto vai dar bota ... se não vou, vou ficar a remoer-me por não ter mesmo força de vontade e espírito de sacrifício ...
Janelas da frente, janelas de trás ( lá, de onde as tempestades sempre chegam ), de nenhum ângulo havia um resquiciozinho de esperança de que talvez não fosse tão grave assim ...

E como nestes impasses, eu só funciono se me fizer de morta, e agir automaticamente sem pensar muito, equipei-me "enceboladamente" o melhor que pude, coloquei a mochila nas costas ... e irreconhecivelmente, garanto-vos, fiz-me à pista, que é como quem diz, desci pressurosa e denodadamente para a rua, antes que ...

"Maluca" seria o mínimo que poderiam chamar-me ...
Quem estava à chuva nas filas do Centro de Saúde lá terá pensado : " estamos aqui sem remédio ... e esta doida varrida, vai caminhar à chuva !  Há malucos pra tudo !"...

Bom, mas segui semi-clandestina, porque nos trajes em que ia, boné, panamá impermeável e carapuço do blusão que só me deixavam parte do rosto de fora, óculos escuros ( que não para o sol  😁😁 que não existia ), mas para ver o chão enlameado e escorregadio, não culminasse  tudo  com  um  espalhanço  sem  tom  nem  jeito ) ... apostaria  ninguém  me  conhecer !
É um pouco parecido com a nossa indumentária de protecção pessoal, em que é um verdadeiro desafio que nos conheçamos pelo único pedacinho que a máscara nos deixa livre ... os olhos !...
É uma sensação estranha, a que já nos habituámos e que é um exercício quase lúdico ... "olha, olha ... és tu !... " e sorrimos.  Mas o sorriso também não se vê, fica escondido na máscara ...

E lá fui.  Andei, andei, a chuva cobria-me as lentes dos óculos, que sem limpa para-brisas ficavam inoperacionais a cada dez minutos.  Sim , porque a água que caía, não se compadecia mesmo.
Não pude ir pela mata. Com desgosto meu, esta está interdita à circulação, tal a lama e as poças de água que lá se acumulam.
Assim sendo, o meu fadário no Inverno é um caminho alternativo que não aprecio grandemente, mas que apesar de tudo, apanha um pouco de verde, árvores também, relva e bancos ... já que se trata de um jardim amplo e com a vantagem de, sendo feito pelo Homem, ter caminhos asfaltados e empedrados.
Tem mesmo uma zona mais densa e fechada pela arborização, escura e cerrada hoje, com a falta de luminosidade do dia. Fresca e frondosa no Verão !
Não encontrei vivalma !  Não se via uma alma penada que fizesse exercício, que passeasse ou que tivesse levado o cachorro às suas precisões.  Ninguém !...

E aí, sim, como dizia no início deste meu texto : se eu estou no grupo dos semi-loucos, há os tais loucos de pedra que sempre animam os nossos dias ...

Então não é que nesse trecho escuro e escuso, quase mata com ramagens densas e entrelaçadas, com um lusco-fusco instalado apesar de ser meio-dia ... num dos bancos que serão uma bênção e uma maravilha em pleno Verão, uma criatura, com um chapéu de chuva vermelho aberto, auscultadores nos ouvidos, uma garrafa de água ao lado e a perna placidamente cruzada, trauteava a meio tom qualquer coisa imperdível no seu devaneio ... enquanto parecia usufruir de um descanso merecido ?!...
Não tinha pressa, não aparentava stress, não mostrava enfado ou desconforto ... dir-se-ia estar a vivenciar uma excelente e apetecível tarde primaveril !...

Digo-vos ... primeiro devo ter feito cara de parva, depois devo ter deixado fugir entre dentes o epíteto "é doida!" a meia voz ... por fim, cavei dali, porque  o  manicómio  ainda  fica  um  pouco  longe  e  os bombeiros  têm  mais  o  que  fazer  do  que  catar  doidos  com  colete  de  forças !!!... 😁😁😁

E pronto ... como respeito o livre arbítrio pensei ... afinal, "viver não é esperar a tempestade passar ... viver é aprender a dançar na chuva !..."
Sábia, aquela mulher !!!...

Anamar

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

" SÓ O TEMPO ... "




Voltou a apetecer-me ouvir Enya, imperiosamente.
Companheira foi de muitas tardes intermináveis, entre letras, telhados, céu e gaivotas dispersas na aragem ... entre paredes de um quarto deserto e silencioso, pensamentos e memórias, quando eram estas que acompanhavam os meus dias e me perseguiam dormindo comigo na mesma cama ...
Há tempos que a não escutava, que não ouvia nostalgicamente o timbre celestial da sua voz.  Há tempos que me não deixava ir indo, na aragem dos fins de dia, entre meio aos pingos de chuva tamborilando na vidraça, solta e livre como os pássaros que rasam a visão dos meus olhos, ou seguem sem rumo aos horizontes de uma serra que não diviso, mas só adivinho na linha do firmamento distante.

Mas é quase Natal, as temperaturas desceram, o céu escureceu e o desconforto envolve-nos.  O vento ruma pra longe as últimas folhas do plátano, que se despe de dia para dia.  Os tons são agora doces, intimistas, quentes ... São cores de solidão, de silêncios, de lembranças ...
São tristes estes dias. À nossa volta tudo pesa, tudo nos carrega de penumbras, cansaços e angústias.
Tempos difíceis estes que atravessamos, mais de morte que de vida.
Hoje, dia do feriado religioso da Imaculada Conceição ... o "meu" dia da Mãe de toda a vida.  Dia dos primeiros cartõezinhos, dos primeiros rabiscos em desenhos sigilosos para se tornarem surpresa no dia seguinte.  As surpresas possíveis, à medida das nossas idades e da ausência de alguns escudos que fossem, nos bolsos de cada um ... 
Mas sempre eram recebidos com a emoção de uma lagriminha que escorria no rosto da minha mãe, enquanto me sentava no colo e me beijava ...
Hoje, graças ao Estado de Emergência que se vive, continuamos confinados sem possibilidade de circulação desde as três da tarde às cinco da manhã.  Depois de novo, da uma da tarde às cinco ... e assim, dia após dia, num forcing desesperante de redução de número de infectados, de doentes em intensivos e óbitos ... para que o SNS não sucumba e para que daqui a uns dias se possa fingir que é de novo Natal !!!

Hoje, se não há neve lá fora, enganam-me. Porque sinto o frio gélido do desconforto das perdas, aqui, bem pertinho do meu coração.
Perdas de ausências ausentes, e perdas de ausências presentes.
Os dias que se vivem levam pra longe tudo e todos, como o vento que sopra além da janela.  Arrastam de nós, muitos daqueles que compunham a nossa existência ... As pessoas não se vêem, não se encontram ... não se sabem ...
Que será feito de ... ?  Morreu ?  Adoeceu ?  Foi p'ra longe, p'ra destinos mais seguros ?  Auto-exilou-se ?  Está a viver ?  Está a sobreviver ?  Pessoas idosas com quem conversávamos, com quem nos cruzávamos ... casais de que só encontramos um ... a dureza de realidades que nos desfilam à frente !...
Amputação de afectos.  Medos. Jovens engaiolados, numa idade em que as asas lhes crescem e os sonhos florescem ...
O cansaço progride, avança, penetra as paredes, adentra-nos as casas, agiganta-nos o silêncio, entrecortado às vezes pelo sinal das notificações do telemóvel que já nem vontade temos de visualizar, responder, ler ...

Temos as "pilhas" no fim.  Temos gasto o manancial de bonomia, de esperança, de paciência.  Já mal nos suportamos, temos a contemporização e a tolerância nos limites, estamos intempestivos e quase explosivos com tudo e com todos os que nos cercam ... Eu, sinto-me assim, e sinto a minha saúde mental perigando, pois o abandono, o isolamento, a indiferença e o encolher de ombros que me tomam, como se pouco já interessasse o que quer que seja, são formas de uma fragilidade emocional e de um desequilíbrio psicológico preocupantes ...
Cada vez mais, busco o isolamento, o silêncio, a introspecção, como se eles fossem uma capa de chuva que vestida, se me colou no coração e não ouso despir nunca mais !...

Lá fora chove.  O céu escureceu e fez-se noite, apesar de serem apenas pouco mais de cinco horas de uma tarde de desconforto e desalento ...
Até quando ?  Quem sabe ?  Ninguém sabe !  Só o tempo o dirá, só o tempo sempre tem respostas ...
Enya garante-o ... "Only time" ...  

... se ainda por aqui estivermos ...

Anamar

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

" PEQUENOS LAMPEJOS DE ALEGRIA "



Estes tempos deixam-nos assim ... lamechas, sensíveis, angustiados, assustados ... aterrorizados mesmo.
Percebendo mais do que nunca, a precariedade de cada dia que atravessamos, percebendo a sorte que é amanhecê-lo, percebendo a incertitude dos tempos que enfrentamos ... questionamos tantas pequenas coisas do dia a dia, que talvez não valorizássemos tão avassaladoramente noutro contexto.

Eu ando assim ... com o equilíbrio precário de quem se sente num arame sem nenhuma rede por debaixo.  Com a angústia de quem sente a vida devassada, atropelada, invadida, sem que me fosse pedida autorização para isso ...
Estava eu aqui tão calmamente a viver a minha vidinha, a fazer os meus planos com a exigência de quem os sabe inevitavelmente já só a curto prazo ... a regar os sonhos, dia após dia ( porque os sonhos nunca morrem ... ), a congeminar uma existência previsível, expectável, sem grandes dramas ou euforias ... sem inventar passos maiores que a perna ... e patati e patata ... e de repente vira-se-me o mundo de pernas para o ar, percebo que previsões só no final do jogo, e que verdades insofismáveis já não existem ... e desmonto-me toda, desarticulo as emoções, percebo-me um nadica de coisa nenhuma, neste jogo de cartas totalmente viciadas ...

E assim vão os dias ...
Todos a fazermos de conta que vivemos.  O ano a fazer de conta que existiu ... e todo o ser humano a fazer de conta que o vai riscar e esquecer na sua existência !...
E tudo isso é mentira !
Dezembro caminha a passos largos para o fechar das portas, a 17 de Novembro contabilizou um ano o primeiro caso de Covid 19 no planeta, em Wuhan, na China ... e entretanto milhares e milhares de pessoas que jamais o conjeturariam, fecharam por esse mundo fora, o livro das suas vidas !

Fui fazer a caminhada, sentindo dentro de mim uma gratidão à Vida por mais um dia ter permitido que eu pudesse contemplar o azul de um céu esplendorosamente radioso, de um Outono doce e aconchegante.
Pensei não descer à mata, porque pelas chuvas que têm caído, os caminhos enlameados ficam com um piso escorregadio e por isso menos seguro.  Mas eu adoro aquele espaço.  Ele renova-me a alma, vitamina-me, injecta-me o oxigénio de uma natureza genuína, e reencontra-me comigo mesma, nos pensamentos, nas emoções e nos monólogos que comigo estabeleço ... E fui.

Dobrei  esquinas  e  veredas, espreitei  um  sol  límpido  e  senti  uma  brisa  suave  a  envolver-me ...
Gente, pouca ... quase ninguém pelos caminhos da mata.
Um homem corria em sentido inverso ao meu, que caminhava.  Cabelo branco, despenteado, afogueado ... tudo normal p'ra quem pratica exercício físico.  Cruzou-me, e apesar de ambos nos afastarmos, pareceu-me ouvir o meu nome ... Margarida Porto ( o nome por que era conhecida no liceu ).  Estaquei, voltei-me e disse: "Desculpe, não percebi o que o senhor disse ..."  
"João .... !!!" - era  o  Narra,  meu  colega  de  Matemática,  meu  ex-aluno  há  muitos, muitos  anos !   O  João Narra, aquele puto sempre ligado à corrente, sempre afogueado, sempre com ar inocentemente maroto,  vivaço, interessado, bom aluno ...
O Narra foi dos primórdios da minha docência. Terá cinquenta e alguns anos, suponho.

"Oh João ... está tudo bem contigo ?  Não te conheci, desculpa ... "

Segundos, foi o tempo do sorriso se escancarar ... segundos, o tempo que levei a recuar lá atrás ... segundos, o tempo da emoção me tomar, e dos olhos se humedecerem ...

Não deu sequer tempo de lhe dizer : " Gostei  tanto, João !  Gostei  mesmo  muito  de  te  rever  ! "
Acho que não deu tempo !...

Estes tempos deixam-me assim ... lamechas, sensível ... agarrando com as duas mãos estes pequenos pedacinhos de felicidade, estes lampejos de alegria ... estas vivências inesperadas e quentinhas nos nossos corações tão atormentados!...

Ainda bem que desci à mata !...

Anamar

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

" ILUSÕES ... "


Não sei porquê, ou talvez o pressinta ...

Há séculos que não escrevo, como se nada em mim levedasse e produzisse alguma coisa nova e justificável, nestes dias de pouco valer a pena, em tempos que o são sem o serem ...

Sinto-me como em banho-maria naquela mornidão de fogo lento que parece esperar infinitamente que algum dia, em alguma hora se chegue a um qualquer ansiado bom termo.
Baralho-me no tempo ... Digo "este ano", e tenho que pausar p'ra perceber que ano é este que refiro ...
Dezembro assoma.  Assoma incrivelmente, anunciando-se como o último mês deste purgatório temporal que nos tem enredemoinhado, como numa avalanche de enxurrada que não conhece leito ou margens ...
Avassaladoramente arrasta-nos, de onde para onde ?  Não sei !...

E talvez por tudo isto ou não ... e talvez porque me urge encontrar outra vez referências, terra firme, troncos fortes que me suportassem, rochas que me dessem ancoradouro, luz faroleira que me mostrasse estrada de novo, caminho que me apontasse porto seguro, horizonte que se alcançasse, nesta torrente de coração que se esfacela dia após dia ... deu-me p'ra visualizar vídeos do antigamente ... Vídeos de vinte anos ou mais.  Registos de momentos, de acontecimentos, de histórias ... de vida !
Vídeos que me trazem o que foi, como foi, como éramos, como ríamos ou chorávamos ... como sonhávamos, como acreditávamos que tudo viria a ser seguramente, como o destino parecia desenhar as nossas histórias ...
Eventos familiares, festas de aniversário, datas assinaláveis, Natais, férias, viagens ... crianças que iam crescendo e que hoje são pais de outras crianças ...
Os que foram e nos deixaram por aqui, aguardando vez ... simplesmente...
A compreensão absoluta do que é a existência, do que é o fluxo imparável do tempo ... a efemeridade do sermos ...

E é uma busca estranha, aquela que me faz disparar o coração, por cada imagem que se projecta no visor.  E é um misto de alegria, ansiedade e esperança aquilo que insanamente me toma ... com aquele frisson doce, que sentimos quando caminhamos para um encontro querido e desejado ...
É como se fosse ali à esquina, ter com a minha mãe que anda por lá e me espera ...
É como se dançasse outra vez aquela música.  Como se risse de novo com aquelas palavras adivinhadas e sabidas, como se soubesse de cor tudo o que se vai passar a seguir, no próximo "take" do filme ...
como se ninguém fosse faltar ao encontro ... como se todos, todos pudessem ter respondido à chamada ... e dissessem presente, uma outra vez ...

E depois ... bom, depois é o nada.  É o frio do vazio que sobra, é a interrupção da história a contar-se, é a saída de cena de todos os figurantes que construíam o enredo, é a procura frustrada de mim por mim própria, sem as marcas dos dias e da vida entretanto escorrente ... é o acender das luzes na sala e o pano a fechar ...

Como se eu o não soubesse, como se eu não estivesse farta de saber que aquela frinchazinha da porta por onde espreitei por algum tempo, não era mais do que isso mesmo apenas ... a impossibilidade sadicamente enganadora de reencontrar o TEMPO !

Anamar

domingo, 15 de novembro de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - " never ending story ... "



Cheguei a acreditar que não escreveria mais sob este título, porque cheguei a acreditar que ao fim de nove sofridos meses talvez o pesadelo já tivesse passado... 

Erro meu, ou melhor, ingenuidade minha !
Aqui estamos nós num novo estado de emergência, aqui estamos nós confinados das 13 h de sábado às 5 de domingo e das 13 de domingo às 5 de segunda, ( vigorando particularmente neste e no próximo fim de semana ), não falando nas restrições ordinárias de limitação, impostas diariamente entre as 23 h e as 5 da manhã, em todos os dias da semana.
Trata-se duma medida em desespero de causa, imposta pelo executivo deste país, na tentativa de estancar um pouco o avanço galopante e descontrolado da pandemia.
As notícias diárias são assustadoras, com um aumento exponencial de novas infecções, de óbitos e de doentes em cuidados intensivos.
O Serviço Nacional de Saúde a rebentar pelas costuras, periga na capacidade de resposta, com hospitais de referência já totalmente lotados nas valências de que dispunham, com doentes a serem removidos no país de norte para sul, com camas dos privados a terem que ser disponibilizadas e com doentes de outras patologias a ficarem na cauda do pelotão ... 
Tudo isto dramaticamente acrescido de baixas significativas no número de profissionais de saúde, por também eles terem sido apanhados na avalanche dos contágios, e bem assim no redemoinho do stress de horas e horas, turnos e turnos mergulhados nas agruras da incerteza, do cansaço e das angústias ... num trabalho exaustivo que raia os limites da resistência humana !
As camas de intensivos estão à beira da total ocupação, e vêm-me inevitavelmente à memória, imagens do início da pandemia no Hospital de Bérgamo em Itália, imagens do desnorte e da tragédia, do drama da escolha, sobre quem tratar e quem não ...

Lá fora, por todo o mundo, o panorama é idêntico.  Uma Europa amordaçada pelo medo, pela tragédia, pela frustração da incapacidade de tantos cientistas conseguirem pôr um cobro a toda esta devastação em pleno século XXI, com a criação de uma vacina ou de fármacos eficazes, dispondo embora o Homem, em vão,  de tantos conhecimentos, tantos recursos, tantas ferramentas tecnológicas ... ingloriamente ... numa corrida contra o  tempo e contra a morte !

Por aqui o cansaço é total.  Ao esgotamento do ânimo, da esperança, da força anímica, da confiança e da coragem, totalmente exauridos, juntam-se o desespero de uma economia moribunda, os desequilíbrios sociais cada vez mais acentuados, o dramático aumento do desemprego e a inerente dificuldade para todas as famílias fazerem face à situação precária de subsistência diária ...
Os conflitos sociais estão a instalar-se, a agudizar-se, deixando os políticos que têm a difícil tarefa de gerir todo este pandemónio, "entre a cruz e a caldeirinha", num tactear experimental de medidas e legislação, inevitavelmente questionadas por todos os quadrantes ... porque sim e porque sim ... como se alguém tivesse na manga a receita milagrosa para a coisa ...
E como numa casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão ... tudo isto parece um diálogo de surdos !

Olhando ao redor só me ocorre a imagem macabra dum pântano, donde não há escapatória, e cada náufrago se agarra ao que pode para manter o queixo fora da lama sôfrega e mortal !

E cá estamos nós, vivendo pé ante-pé, tacteando devagarinho, reinventando os dias para continuarmos respirando, fingindo a estrada p'ra não cairmos no abismo, redesenhando o amanhã no vazio deste silêncio, que como neblina que sobe da serra, fecha, cerra mais e mais a nossa linha do horizonte ...
Cá estamos nós, recriando-nos no frio das ausências, no buraco dos afectos que não temos, no pavor de noites assombradas por incertezas do desconhecido ... cá estamos nós numa "never ending story" que eu cheguei a acreditar pudesse ter alcançado já o seu fim !!!

Anamar

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

"COMO PREITO DE GRATIDÃO"




" Os amigos não morrem : andam por aí, entram por nós dentro quando menos se espera e então tudo muda ; desarrumam o passado, desarrumam o presente, instalam-se com um sorriso num canto nosso e é como se nunca tivessem partido.  É  como, não ;  nunca partiram. "

                                                       António Lobo Antunes


Os anos avançam e nós começamos a perceber ter história.  
Uma história que vem lá detrás, dos anos da gaiatice, do tempo dos primeiros amores, encavalitados nos primeiros sonhos.  Tempos dos primeiros segredos, quando o cordão umbilical começa a afrouxar ... quando a casa fica acanhada e as nossas asas batem em direcção ao azul ... mais largo e distante que o horizonte onde o sol se põe ...

E começamos a escolhê-los, cuidadosamente ... a eles, aos amigos, como ramos de boninas que colocássemos numa jarra à cabeceira.  E com eles, pisando o mesmo chão pedregoso, começamos a calcorrear as veredas da vida, começamos a atravessar os primeiros desertos assustadores e a enfrentar as primeiras marés alterosas.
Com eles começamos a dividir as primeiras lágrimas, porque as primeiras valentes gargalhadas sempre se soltaram espontâneas, aconchegando-nos as almas.
Eram eles que falavam a nossa língua, eram eles que experimentavam emoções iguais às nossas, eram eles que conseguiam fazer-nos voltar a sorrir, quando o negrume parecia engolir-nos ...
Horas infinitas de cumplicidades, mais horas ainda de partilhas incondicionais, de entrega confiante dos  nossos corações, no regaço dos seus !

E crescemos, e seguimos, e fizemo-nos gente.
Às vezes, alguns saem da nossa rota.  Parecem ter-se perdido de nós, mesmo que de mãos em pala, os busquemos na linha do infinito.  E às vezes, ainda que o tempo sempre carrasco, ouse pensar que no-los leva para sempre, numa esquina inesperada e insuspeita, eles aí estão, respondendo ao nosso longínquo chamado ...

Vieram-nos dos bancos da escola, dos recreios das merendas, dos muros divididos ... vieram-nos das músicas que não se esquecem.  Vieram-nos da alegria dos sucessos ou da dor dos fracassos.
Estenderam-nos a mão e reergueram-nos outra vez, quando as provações teimavam em deixar-nos tombados. Tantas vezes quantas as necessárias ... Sempre !...
E choram connosco, afagam-nos o rosto, envolvem-nos num abraço quente, sentam-nos no cólo ... e se for o caso, silenciam connosco ... porque não são necessárias palavras, quando o código dos afectos nos redime das mágoas e das tristezas.  
Resgatam-nos da cerração, se perdidos nos sentimos ... e fazem-nos olhar o amanhã com a gratificação de uma esperança remoçada, de um sorriso claro e confiante ... de um sonho redesenhado !...

São eles, os AMIGOS !!!

Por tudo isto, este meu texto é um texto de gratidão.  Desde logo, gratidão à vida, por estar viva.  Gratidão aos meus de sangue, porque ele nos une indestrutivelmente.  
Gratidão aos amigos e aos amores, porque se fizeram presentes uma outra vez, incondicionalmente, em mais um 12 de Novembro !
Um 12 de Novembro seguramente único e inesquecível na minha vida ... o 12 de Novembro do particular e incontornável ano 2020 !  
O 12  de Novembro que, por várias razões, eu planeara festejar ... ( logo eu, sempre avessa a aniversariar !... 😕😕😕

Desta forma quero expressar a TODOS os que ontem estiveram comigo nas palavras, nos gestos, no riso, no carinho, no abraço sentido ( intentado mas apenas virtual ), no beijo solto na brisa que perpassava ( no que foi um glorioso dia solarengo, de um Outono doce ) ... ou até mesmo com uma carinhosa "cotovelada", como um amigo me enviou ... quero expressar, dizia, o meu mais sentido e afectuoso OBRIGADA !!!

Bem hajam, queridos amigos !!!  O que seria de mim sem vocês ???!!!...

Anamar

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

" DESFRALDANDO MEMÓRIAS "

 



Já não escrevo há muito tempo.  Por um lado, tenho estado dedicada a uma tarefa que aprecio particularmente - a correcção visual das fotografias tiradas na viagem aos Açores, já lá vai mais de um mês ( o tempo voa !... ), por outro porque me sinto meio seca por dentro, atrofiada mesmo, sem absolutamente nada para dizer, ainda que rumine o tempo todo, saltando de estados de alma em estados de alma, de emoção em emoção, de sentimento em sentimento ... ingloriamente !

Hoje, um assumido dia de Outono, daqueles doces, mansos, silenciosos ... em que o sol se envergonha até de brilhar, lembra que neste ano tão especial, também  nesta quadra em que tradicionalmente vivemos o "último Verão" do ano, o S.Martinho ... tudo se ficou pela metade ... nem bem carne, nem bem peixe !

"No S.Martinho vai à adega e prova o vinho" ... 
No liceu, há uma eternidade parece, num tempo sem tempo ... sempre neste dia, a Celeste que aniversariava e elencava o Conselho Directivo, levava para a sala dos professores uma cesta com castanhas acabadas de assar, e uma garrafa de água-pé.  
Quando chegava o intervalo grande  e regressávamos das salas de aula, lá nos esperava essa surpresa que passou a fazer parte de um código de afectos, ano após ano.  
A Celeste já partiu há muitos.  À escola também já não vou há demasiados.  Desses tempos ficaram as memórias, gratas, apesar de tudo.

Amanhã aniversario eu.  E se detesto ter de fazê-lo,  particularmente este ano tudo me é mais difícil de digerir ...
Há exactamente um ano, eu havia de ter uma festa surpresa em Ho Chi Minh ( antiga Saigão ), no Vietname, oferecida pela agência de viagens com a qual me deslocara em passeio nesta época, com a intenção de me afastar daqui neste dia.  
Foi emocionante e divertido, porque tive a honrar-me com a sua presença, todos os companheiros de viagem, bem como a guia que nos acompanhava. 
Ouvir cantar os parabéns lá tão longe, abrir o bolo de anos numa terra tão distante de Portugal e de todos os meus ... assim, de surpresa, sem que o suspeitasse ... receber um lindíssimo ramo de rosas antes do jantar, ocorrido num barco fantástico, fundeado na baía e totalmente iluminado, ter a festa abrilhantada com a animação local, sempre tão sensível e delicada como o são todas as manifestações artísticas orientais ... foi um gratificante e inolvidável acontecimento !

Há dez anos atrás, no difícil pra mim ano de 2010, pelos mesmos motivos, aniversariei em Bali, onde me refugiei, também lá do outro lado do mundo.  
Viajava absolutamente só, e fui também agradavelmente surpreendida, por parte do hotel onde me alojava, com uma festa  de comemoração do meu aniversário.
Aí, no meio de uma infinitude de línguas e de rostos, o transversal  Happy Birthday  tomou o lugar do nosso "Parabéns", cantado que foi, em uníssono por todos os presentes.
Foi portanto também, um carinho acrescido naquela solidão que me envolvia ...

Há vinte anos ... no carismático ano 2000, de mudança de século e de milénio, quando eu festejava igualmente o encerramento de mais uma década na minha vida ... nova festa, à minha revelia.
Desta feita, aproveitando a minha ausência em viagem pelo Brasil com a minha mãe, na realização do que era o seu grande sonho, os que cá ficaram, prepararam-me um evento absolutamente indescritível. 
Na Golegã, local escolhido, uma quinta ancestral albergou uma festa p'ra mais de cinquenta amigos que me homenagearam, vindos de lugares tão variados e distantes, como o Alto Minho ou o Alentejo.
Amigos que há muito não via, outros mais próximos e presentes ... amigos que caminharam comigo desde a escola, o liceu, a faculdade. Amigos de sempre !  Amigos de vida !
Houve fados de Coimbra, discursos, muito riso, muita festa, comida espectacular, serviço com pompa e circunstância ... tudo previsto e calculado nos mínimos detalhes, sobretudo pela minha filha mais velha que é exímia e completa nesse tipo de coisas .

Este ano, outra década que cessa.  Número redondo outra vez, nos anos que caminham comigo neste percurso destinado.
Este ano, de todos estes, seguramente o mais particular, o mais estranho, o mais inesquecível !....
Só que, desta feita pelas piores razões.
Será certamente lembrado como um penoso ano não vivido, um ano a mais no nosso cômputo existencial e um ano a menos na ampulheta real das nossas vidas !
A pandemia continua a ceifar vidas, esperanças, sonhos e projectos.  Continua a grassar a eito, indiferente a tudo e a todos, semeando dor, angústia e ansiedade.  Adoecendo as pessoas, matando aos poucos, por fora mas sobretudo no âmago dos nossos corações e da nossa alma. 
Este ano não tenho nada a festejar, num ano que é p'ra esquecer .  Não tenho presente a pedir, porque o que eu queria não me pode ser oferecido ... a dádiva de uma vida com a normalidade que precisamos !...
O reganhar da esperança e do sonho, arredados que estão destes meus dias cansados !...

Por toda a mata os cogumelos de Outono eclodiram com as primeiras chuvas mais a sério.  As pedras dos caminhos já escorregam com os musgos que despertam. 
Não há borboletas.  Cumpriram o seu ciclo de vida, e foram ...
Os pássaros silenciaram e já pouco saltitam entre os galhos despidos das últimas folhas douradas que ainda persistem ...
A mata, como a vida, parece entrar em hibernação.
O corrupio inexorável do tempo ... indiferente e impiedoso !...

Anamar

domingo, 25 de outubro de 2020

" AÇORES EM ANO DE PANDEMIA " - ILHA GRACIOSA

 




Conhecida como a Ilha Branca, esta foi a última ilha que visitei no Arquipélago dos Açores, no que foi uma viagem absolutamente fascinante.
E como já o referi, continua a ser impossível eleger uma dentre todas, como a de escolha ou eleição !
Todas diferentes, todas fantásticas nas suas diversidades e especificidades, em belezas naturais, requintes arquitectónicos e culturais, arte sacra, curiosidades das gentes e da terra, História, gastronomia e tantos outros pormenores e curiosidades que fomos escutando ao longo dos dias, tornaram essa tarefa inalcançável !

A Graciosa é a ilha mais a norte das cinco do Grupo Central.  Desde 2007  que pertence à Reserva Mundial da Biosfera, classificada pela UNESCO, à semelhança do Corvo, das Flores e das Fajãs de S.Jorge.
É uma ilha pequena, com uma dimensão de 12,5 Km por 7 Km.  É menos montanhosa que as demais, tem declives suaves e a sua maior elevação, a Caldeira, tem pouco mais de 400 m de altitude.
Em consequência desta orografia, tem um clima moderado oceânico, é menos chuvosa, tem menos nevoeiros, e por isso o seu solo é mais seco.
Possui campos férteis, onde o milho, as hortícolas e a fruta proliferam ( a meloa da Graciosa é divina ! ) Mas são a produção de gado bovino e leite, bem como a viticultura, as suas principais fontes de receita e subsistência.
As videiras crescem entre meio dos muros de lava, quadriculados nos campos verdes ... os "currais" ! 
O milho quando colhido, fica exposto à secagem nas chamadas "burras de milho", uma espécie de escaparate de madeira que se vê nos campos, um pouco por toda a ilha.

                                                                       CURRAIS
                                                              BURRA  DE  MILHO

A Graciosa é chamada de Ilha Branca ... designação esta que se inspirou nas suas características geomorfológicas e nos elementos toponímicos da ilha ... locais como Pedras Brancas ( que nomeia inclusive uma casta de vinho graciosence absolutamente famoso ), Serra Branca ou Barro Branco, são apenas alguns exemplos. 
De facto, a sua baixa pluviosidade  que confere à ilha , no fim do Verão, uma tonalidade esbranquiçada, associada à cor do casario das povoações, levou  Raul Brandão a dar-lhe o epíteto referido. 
Tem um só concelho - Sta.Cruz da Graciosa - e quatro freguesias, Vila de Sta.Cruz, Vila da Praia, Guadalupe e Luz.
Calcorrear a ilha é um desafio que se faz em menos de 1 hora.  É um passeio de constante surpresa, onde a novidade nos extasia a cada volta de estrada.  Tivemos a felicidade de ter como guia local, uma professora que, nascida no Canadá e filha de pais micaelenses, escolheu a Graciosa para aí se radicar.
A Lisete fê-lo por paixão e para toda a vida ... diz.
Profundamente conhecedora, nada deixa de referir, nada deixa passar em branco, para tudo capta a nossa atenção, cativando pela simplicidade, disponibilidade e entusiasmo.
É uma embaixadora graciosence de incomparável gabarito, e uma excelente contadora de histórias da sua ilha, onde diz " ainda se poder dormir com a porta de casa aberta " !...

Com tanto para contar, a anos-luz de vos conseguir traduzir a real beleza das coisas, o encanto dos pormenores, a aproximação sequer da realidade das cores, da luz, dos silêncios ... que sempre só ficarão nas mentes e no coração de quem os experimentou, vou tentar sintetizar o que vi e como vi ...

A capital,  Sta.Cruz,  tem como "sala de visitas" uma praça ampla, clara, extremamente limpa e agradável, contornada por edifícios típicos de traça açoriana  com janelas e portas emolduradas com o negro do basalto vulcânico.  Possui um coreto, pavimento empedrado, dois lagos  ( outrora paúis para retenção da pouca água existente na ilha ) que já serviram para dar de beber aos animais e para a rega, araucárias imponentes e altivas.  Daí, irradiam as ruelas com casas igualmente típicas e antigas.

                                                  PRAÇA  CENTRAL  DE  STA.CRUZ

                                                                      CORETO
                                                        ARAUCÁRIAS  ANCESTRAIS

Subindo ao monte que se ergue junto a Sta.Cruz, surge a ermida de Nossa Senhora da Ajuda, erigida no final do século XV, início do século XVI em pedido de protecção divina pelos terramotos que assolaram a ilha.  Tem uma aparência robusta que lhe confere um certo ar de fortaleza, e como tal é um dos exemplos importantes da arquitectura religiosa fortificada.
No seu interior, destacam-se os painéis de azulejos do século XVIII e uma imagem datada da mesma época...
Anexada à ermida fica a casa dos romeiros, que serve até hoje como local de acolhimento dos peregrinos.
Do alto do Monte da Ajuda, ( 280 m de altitude ) que alberga mais duas ermidas ( São Salvador - séc XVIII e São João - provavelmente séc XVI ), pode descansar-se o olhar sobre o mar, o campo -  particularmente todo o norte da ilha e a extensa planície de Guadalupe -  e a vila, que abrigada pelo monte, dos ventos fortes e costeiros, se desenvolveu no seu sopé.
Na cratera do vulcão extinto que originou o Monte da Ajuda, os graciosences construíram curiosamente, uma praça de touros, ainda aos dias de hoje, palco de muitas touradas, nomeadamente por altura das festas da Graciosa.

                                                             ERMIDA  DA  AJUDA
                                         CAPELA  DE NOSSA  SENHORA DA  AJUDA


                                                             PRAÇA  DE  TOUROS

Descendo e continuando para o norte, a zona balnear do Barro Vermelho desvenda-nos uma praia singular, numa pequena enseada de calhaus rolados, com  a coloração vermelha que lhe deu o nome.  
No rochedo vulcânico, formaram-se piscinas naturais de águas agitadas mas límpidas, ideais para o mergulho.
O Farol da Ponta da Barca, de cujo miradouro situado sobre um precipício se pode observar toda a orla costeira e o mar, divisa em primeiro plano o Ilhéu da Baleia ... uma imensa baleia rochosa emergida do silêncio do oceano ...
Ao fundo avista-se S.Jorge a duas horas de barco, e ao fundo do fundo ficam o Pico e o Faial !!!...

                                          ZONA  BALNEAR  DO  BARRO  VERMELHO
                                       PISCINAS  NATURAIS  DO  BARRO  VERMELHO
                                                     
                                                    FAROL  DA  PONTA  DA  BARCA
                                                                LHÉU  DA  BALEIA


Continuámos pela Serra Branca e foi a vez do ex-libris da Graciosa ... a visita à Caldeira, o ponto mais elevado da ilha, como já referi.  Trata-se de uma cratera gigantesca, com 4 Km de perímetro, resultante duma erupção vulcânica ocorrida há 12 mil anos. 
A cobertura florestal exterior, é um bosque de criptomérias, acácias e incensos que como uma floresta encantada de vegetação exuberante, contorna e acompanha a Caldeira.  No seu interior existe uma imponente cavidade vulcânica, a Furna do Enxofre, um fenómeno geológico de grande interesse e beleza, que possui um lago de água fria no fundo da gruta e uma fumarola com lama, responsável pelo cheiro intenso a enxofre que emana do interior da Terra, e que a designa.

A incursão às entranhas da Terra, 3 km abaixo, a imagem fantasmagórica, misteriosa e mítica que se desfruta na brutalidade da rocha ... a sombra e o silêncio debaixo desta abóboda basáltica, onde os morcegos e os painhos-de-monteiro ( exclusivos da Graciosa ) nidificam ... são um verdadeiro desafio à humildade humana !
A Furna do Enxofre é monumento natural e integrou em 2000, a lista candidata a Património da Humanidade.
As suas visitas são condicionadas às condições no seu interior.  De facto, no início da descida, à superfície da Caldeira, existe um Centro Interpretativo, onde são recolhidos dados científicos sobre a dosagem das emanações sulfúricas, uma vez que a gruta está em permanência, totalmente monitorizada.
Todas as informações recolhidas são estudadas e tratadas na Universidade dos Açores.

                                                 CALDEIRA  E  FURNA  DO  ENXOFRE





Abordando a freguesia da Praia, zona piscatória por excelência, com o Ilhéu da Praia, Reserva da biosfera no horizonte, pudemos admirar os moinhos de vento de cúpula vermelha, únicos e emblemáticos da ilha.
Parecem ter sido trazidos por colonos flamengos ou holandeses.  Existem cerca de duas dezenas e são testemunho vivo da produção dos cereais na ilha, nomeadamente o trigo e a cevada.  De facto não foi impunemente que a mesma foi chamada de "o celeiro dos Açores "...
Hoje, todos estão desactivados, alguns recuperados e convertidos em habitações, ou mesmo em turismo local.
Por detrás fica a fábrica das famosas "queijadas da Graciosa".  Obviamente, à semelhança da Queijaria Teimoso ´- Quitadouro, onde a prova e aquisição de todos os mais inimagináveis queijos se impôs ( queijo com maracujá é a sua mais recente aposta ... ) ... agora, a prova e de novo a compra desta iguaria da doçaria local não poderia relegar-se para segundo plano.  Havia que trazer para o Continente, um miminho para os que ficaram ...

                                                            MOINHO  DE  VENTO
                                                         QUEIJADAS  DA  GRACIOSA
                                      
Na freguesia da Luz, a sudeste da ilha, onde almoçámos, ficam as Termas de Carapacho, junto às piscinas naturais com o mesmo nome.  As águas termais, usufruindo da proximidade da Caldeira, apresentam temperaturas da ordem dos 35º / 40º C, e são benéficas no tratamento das patologias reumatismais.
Entre rochas basálticas negras, as piscinas recortadas caprichosamente, em contraste com o azul profundo do mar, albergam os graciosenses em período de lazer, quando o tempo é favorável.

                                             PISCINAS  NATURAIS  DO  CARAPACHO

Uma curiosidade que também escutámos, entre as muitas histórias com que Lisete nos brindou nesta nossa estada na Graciosa, refere-se a um cidadão romano, que procurando um lugar prazeiroso onde pudesse usufruir uma vida calma, isolado da confusão do mundo lá fora, se apaixonou pela ilha e a elegeu como sua terra de adopção, fixando-se na Aldeia Velha, freguesia de Guadalupe, onde adquiriu alguns terrenos.
Franco Ceraolo figura de referência na  indústria do cinema, onde trabalhou com Scorcese, Fellini e Bertolucci, trocou, em 2000,  a sua vida profissional pela calmaria desta aldeia açoriana, onde cria uma espécie animal autóctone reconhecida há cerca de cinco anos, no sentido de evitar a sua extinção : o burro-anão da Graciosa, que sendo originário do norte de África, supõe-se  ter ficado na ilha como moeda de troca nos assaltos dos piratas e corsários, que vindo para pilhar, deixavam para trás, algo da sua passagem.
São animais baixos, com pouco mais de 1 m de altura, apresentam uma pelagem parda e ruça, e a maioria tem uma risca crucial característica ao longo do dorso, semelhante aos burros da Toscana.
Fundou a Associação de Criadores e Amigos do Burro-Anão da Ilha Graciosa, com o apoio do Centro de Biotecnologia da Universidade da Terceira, tentando proteger a espécie.
Este animal, que neste momento contabiliza menos de uma centena na ilha, existia num número superior a mil, há cerca de um século.
Fazem parte da História da Graciosa, por integrarem a vida da população, auxiliando na agricultura e no transporte dos géneros.  Sendo mansos e caminhando vagarosamente, usavam-se em passeios pela ilha - as "burricadas".
Tentando motivar as gerações mais novas para esta causa, Franco Ceraolo espera poder recuperar todas estas tradições.  Para já, interage com os quinze exemplares que carinhosamente cria nos seus terrenos, a quem deu nomes pelos quais respondem, e a quem, segundo ele, fala em italiano !!!... 😁😁😁

                                                 FRANCO  CERAOLO -  Imagem da Net

Terminámos as nossas deambulações pela ilha, visitando a Igreja Matriz de Sta. Cruz, em estilo barroco, edificada no século XV em devoção à Santa Cruz, reconstruída no século XVI e de novo no século XVII, mercê das destruições sofridas pelos fenómenos sísmicos que assolaram a ilha.
Apresenta detalhes manuelinos e azulejos figurativos do século XVIII.  Os seus altares são ricamente revestidos a talha dourada, e no altar-mor existe um retábulo fascinante, o Políptico da Matriz de Sta. Cruz da Graciosa, constituído por um conjunto de seis pinturas a óleo sobre madeira, pintadas no séc. XVI, presumivelmente por um artista português que se designa por Mestre de Arruda dos Vinhos.
Os seus temas iconográficos pertencem ao ciclo da vida de Cristo e da Santa Cruz.
Essas pinturas apenas foram reveladas em 1941, aquando de uma intervenção de restauro da igreja.
É imponente, austera e lindíssima !


                                                               IGREJA  MATRIZ


Junto à Praça principal da vila, fica o Museu Etnográfico, muito interessante e detalhado, exibindo  peças ligadas à cultura da vinha, com tradição na ilha como referi, à actividade baleeira a que os graciosences se dedicaram até 1982, ano em que nesta ilha cessou a caça a este cetáceo ... e ainda a tudo o que diz respeito ao "modus vivendi" das populações ao longo dos tempos, numa evocação rigorosa e vívida da História das suas gentes !







E pronto, tentando sintetizar tudo o que vimos, ouvimos e aprendemos sobre a segunda menor ilha do arquipélago, termino com este post a história mágica, fabulosa e inesquecível de sete dias mergulhada na tranquilidade, na magia e na beleza ímpar dos Açores por descobrir, ainda esquecidos na imensidão azul do Atlântico ... lá, onde Portugal verdadeiramente termina !!!

Anamar