sexta-feira, 29 de outubro de 2021

" ESTE MUNDO NÃO É PARA VELHOS ... " - II

 


Pareço resistente a escrever.  Pareço resistente a engrenar outra vez, na normalidade da minha vida.  Porque ela, sem palavras largadas nos papéis que me rodeiam, não é bem a minha vida !
Não sei o que se passa comigo.  Parece haver um desligamento estranho da realidade.  Parece existir um desinvestimento em quase tudo o que me fazia, me fez sentido, me alimentou emocionalmente, ao longo dos tempos.
"Não vale a pena, não tem interesse, não abre janelas, não acrescenta, não inova ... pouco é, além de nada !..." - estes, os pensamentos que me assomam, estes os sentimentos que me invadem, quando penso em escrever ...
E passa hoje, como passou ontem, como passou há uma semana, talvez um mês ... e eu, exactamente no mesmo lugar ...

Estranha, esta sensação de orfandade ! Porque é de orfandade que falo. 
Pareço ter perdido referências, pareço velejar sem vento em águas mortas, pareço ter esquecido a significância do viver. 
Deveria doer.  E não dói.  Apenas corrói, esta incapacidade, este arrastamento rio abaixo, de barco de papel a desfazer-se ... de emoções a mofarem, em sentidos requentados ...
Um imobilismo, um encolher de ombros, uma impassibilidade atroz ... um atordoamento ... uma indiferença ...
E contudo, pareço entupida. Pareço engasgada. Pareço sufocada. Pareço atolada em pântano fétido.
Não estou bem assim, mas não consigo dar um só passo em frente.

Entretanto, o tempo, que quase sempre e levianamente nos habituamos a culpabilizar de tudo, vai decorrendo, pingando a ampulheta dos dias, com uma mornidão exasperante.  Também o tempo parece tolhido, parece amodorrado e parece mesmo adormecido, como as cores mansas e doces da estação que atravessamos.
São cores pachorrentas, são cheiros sem sobressalto, são momentos sem história, como se a vida se tivesse deitado para a sesta. 

O tempo, essa entidade estranha ... culpa do Homem ! Para quê contá-lo ?  Para quê marcá-lo, fraccioná-lo, ansiá-lo, odiá-lo ... esquecê-lo ?! Por que não, vivê-lo, apenas ?!
Os animais não têm "tempo".  Não sabem o que isso é.  Não se afobam, não se apressam, não se adiantam nem atrasam.  Não se angustiam com ele ...
Os meus gatos amanhecem, repetem rituais biológicos, dormem, acordam e recolhem-se se o firmamento já só se ilumina de estrelas.  Não se perguntam por que é assim, se o caminho à frente será longo ou será curto ... se é lento ou lhes foge vertiginosamente.  Não se perguntam se dispõem de muitos ou poucos aniversários ainda ... porque já isso pertence à contabilidade dos humanos.
E vivem.  Simplesmente vivem.  Existem por aqui.
A borboleta rompe as paredes ténues da crisálida, estica as asas, espreguiça-se, e abre-se ao mundo.
Um dia ? Alguns dias ? Algumas horas ?
E isso interessa ?
Nós contamos, recontamos, fazemos previsões, estatísticas, tendências ... Nós medimos o que supostamente nos sobra ... Menos um dia, menos uma semana, menos um mês ... quase fim de ano outra vez ! 
E a angústia sobe, o peso imensurável desce nas costas, na mente, nas forças e na vontade, como uma espécie de condenação, como armadilha de que, apanhados, não mais escaparemos. 
E centramo-nos inevitavelmente nas doenças, nas queixas, nos sintomas, nos sinais aparentemente alarmantes, todos eles.  Tudo pressupõe alguma irregularidade orgânica.  Tudo é a antecâmara duma desgraça anunciada ...
Vive-se em susto.  Vive-se sem escapatória ... " A vida tudo dá e tudo leva !" - slogan realista mas desesperador, dito e repetido pela boca da minha mãe ...
Acuada... é assim que me sinto.  
Desde que este determinismo me tomou, nunca mais fui a mesma.  Emprateleirei os sonhos, engavetei os desejos, desapostei nos projectos ... como se em nada já valesse realmente a pena, apostar . O peso do tempo, esse tirano, esse ditador implacável, destrói-me, todos os dias um bocadinho mais !

Ontem desci para um café "fora de portas", supostamente para arejar ... 
Um grupo de conhecidos também em hora de lazer, ocupava mesa próxima.  Pessoas da minha geração, mais coisa menos coisa.
Médicos, consultas, análises, exames, panaceias, complementos e suplementos das unhas dos pés à cabeça ... dores, reais ou previsíveis, profilaxia de toda a tipologia para o que se tem, mas também para o que hipoteticamente se pode vir a ter ... foram exclusivamente o cardápio das conversas, enquanto engoli a bica.
Engoli, porque fugi rápido. Pus o caminho às costas e zarpei, quanto antes, porque se bem não estava, pior fiquei !!! Um cenário irritantemente dantesco !
E pronto, na generalidade as pessoas vivem nesta corda bamba. Tudo isto é realmente doentio e demolidor do equilíbrio de cada um, por mais sólido que ele seja.

À nossa volta, a realidade social, familiar, no país, no mundo ... tudo aquilo a que se vai assistindo, no nosso círculo, ou em domínios mais remotos, transporta, a todos os níveis, uma carga de insegurança, de insatisfação, de incerteza, de consequente angústia, de medo ... um medo fóbico, devastador, que adoece e destrói irreversivelmente, tanto mais acentuado quanto mais avançada for a faixa etária das pessoas. 
Parece que nada já tem solução, que tudo está desconjuntado, é absurdo, é estranho e parece não nos fazer sentido.  Consequentemente começamos a sentir o incómodo de termos que viver uma realidade que não entendemos, nos é penosa, não nos faz sentido e ameaça já não albergar espaço para nós.
Parece que o único caminho que nos sobra, portanto, será partir !

"Este país não é para velhos",  nome dum filme que vi há largos anos no cinema ( 2007 ), pode mesmo ter uma abrangência contextual mais alargada, pois afinal, este mundo é que parece não ser já para velhos !...

Anamar