sexta-feira, 24 de março de 2023

" SONHO BOM "

 


A Primavera entretanto chegou.  A Teresa já me vinha dizendo, nos seus convictos cinco anos, que ela "estava à porta".  Os dias ensolararam, sem dúvida as temperaturas subiram e já começamos a sacudir os casacos invernosos.
Ainda assim, friorenta como sou, o saco de água quente e o édredon continuam a ser meus amigos pela noite dentro.
Agora tenho quase todo o tempo também, a presença do Jonas que se aninha aos pés e até faz boa companhia, pois não é muito chato no desassossego.  Uma nova logística teve que ser criada em consequência do grave problema de saúde do Chico que, tal como eu vinha a suspeitar, está diabético.
Assim, alimentação distinta para cada um deles, a necessidade da areia estar em permanência disponível para que resolva as sucessivas urgências pela madrugada fora, implementaram um esquema algo complexo aqui em casa.
Põe comida, tira comida, acrescenta a água no bebedouro, dá insulina de doze em doze horas, a que se segue como importante que ele tenha comido quando o açúcar começa a baixar, para acautelar uma perigosa hipoglicémia ... são apenas pormenores que não podem / devem falhar na pacatez do dia a dia nesta casa.
Afastar-me daqui por excesso de horas, também não é muito possível, uma vez que só comem quando eu desenvolvo os consequentes episódios  que referi.
A ideia é controlar a doença, já que sendo uma patologia crónica, a diabetes dificilmente é passível de reversão.
Depois coloca-se outro filme de terror que é exactamente a quase impossibilidade de me afastar aqui de casa, por dias.  Desta feita, a garantia da administração da insulina tem que ser completamente assegurada, e se a D.Leonilde que é o meu "anjo da guarda" quando viajo, já que sempre assegurou a manutenção alimentar diária e bem assim a higiene dos bichos, não pode obviamente proceder à inoculação da mesma.  Não daria conta do recado, ou melhor, é o tipo de coisa que jamais eu lhe poderia solicitar.
Assim, se não quiser dar em doida e não me deprimir mais do que já estou, terei que inventar, não sei que solução para obviar ao problema.
E terei que o fazer duma forma bem resolvida, já que conviver com problemas de consciência intranquila, é uma questão fora do aceitável.  A minha cabeça tem que estar em paz e não arranjar soluções que venham a culpabilizar-me futuramente.

A Primavera chegou, como disse.  O sol, às vezes tímido, outras mais atrevido, faz sentir o seu calor e a luminosidade dos dias é um fascínio.
Na mata tudo floresce.  São as mimosas já bem engalanadas, são as azedas que alcatifam o chão, as pervincas que mesclam o seu azul com o amarelo daquelas ... são os folhados e outros delicados arbustos com pequenas florzinhas brancas como grinaldas ... são as chagas ... e é a passarada que numa fona, saltita de ramada em ramada, os melros, as rolas, os periquitos de colar, os pombos e os patos bravos que iniciam os processos de acasalamento ...  Voam, cantam, trinam e numa afobação imparável parecem ter pressa.  
O tempo climatérico, tipicamente primaveril onde nem sequer faltam os borrifos habituais de chuvinha mansa que volta e meia nos surpreende, renova, pinta, enfeita uma paisagem que aviva as cores, intensifica o brilho e renova a promessa de renascimento que assoma em qualquer canto.
A natureza sempre é um bálsamo para o coração, uma bênção para a mente e uma esperança que os dias vindouros generosamente levem para longe o cansaço, as agruras e o desalento.  Tudo volta a parecer auspicioso, possível de acontecer ... feliz !



Anamar

segunda-feira, 20 de março de 2023

" CURTAS ... "



Tanto me lembro da minha mãe ... a propósito de tudo e de nada ! Uma frase, um pensamento, um ditado, sim, porque a minha mãe era uma mulher de adágios.  Colocava-os nas ideias e nas frases, com toda a propriedade e como uma menina travessa, meio comprometida, como quem fez uma pirraça, ria e dizia a propósito :   " Vocês um dia vão lembrar-se muito de mim ! " 
E não é que me lembro mesmo ?!... Mais ... lembro o seu ar encabulado e dou por mim também a ser uma mulher de provérbios ...
Somos alentejanas, província de características muito próprias e particulares.  Com vivências únicas, acredito, com estares bem distintos, com sentires talvez diferentes ;  até na linguagem, além do sotaque e da  entoação cantada, se consegue pressentir essa singularidade.

Fisicamente reencontro no olhar que o espelho me devolve, a expressão dos olhos dela e tal como ela, nas últimas etapas da vida, as lágrimas se me soltam sem censura ou auto-controle.  Fácil, fácil, me emociono com qualquer coisa, sobretudo se forem coisas que não se explicam, só se vêem, sentem, percebem ... chegam e tomam-nos de assalto, do nada, num piscar de olhos.
É uma borboleta amarela que volteia à minha frente pela mata, como se me abrisse o caminho e me convidasse a segui-la ... é o olhar terno e desprotegido de um animal entregue ao seu destino, é o silêncio encantado duma vereda onde o sol faz negaças p'ra entrar ... é  o  chilreio, o  pipilar,  o  trinado e o  assobio  das  aves  que  demandam  poiso  nas  copas altaneiras, ou o grasnido das gaivotas que aqui  por  cima  bailam  na  aragem  que  corre ...
É o sol que se põe de novo, é o rasto do avião que risca o céu e conta histórias de lugares distantes ... é o  som  da  brisa  que  vai  e  que  vem,  ou o  som  do  ribeiro  que só vai,  já não vem ...
Enfim ... o coração parece ter-me subido aos olhos ou ao pé da boca, como soi dizer-se.  
Um inexplicável nó, pouco previsível e justificado aperta-me a garganta, a voz embarga-se e a emoção toma-me de jeito ... e pronto, lá vão as lágrimas que rolam rosto abaixo... tal como a ela ...
Estou frágil, sinto-me com as resistências tombadas, ameaço tombar junto com elas ...
E afasto-me de todos, isolo-me o quanto posso, fujo do convívio ... não tenho a mínima margem de capacidade, paciência ou sequer vontade para abrir a alma, para franquear o espírito, para escancarar o coração.  
Não vale a pena.  Cada ser humano tem só por si, cada vez mais nos tempos que correm, a difícil empreitada de gerir os seus próprios destinos, a tarefa hercúlea de desembaraçar o seu próprio novelo, tem o que chegue para se ocupar, afligir e enlouquecer com todas as pirraças e todas as jogadas do seu próprio tabuleiro de xadrês ... para que possa, nem por instantes desviar o seu próprio foco para as maleitas do vizinho.  As pessoas vivem perdidas nos seus redutos, já ninguém ouve ninguém ou é capaz de percepcionar a invernia que vai ali ao seu lado.
Não há partilha, não há entendimentos cúmplices, as linguagens são meras conversas de surdos ... E depois, não há tempo, obviamente não há tempo ... e também já nem adianta !
Fica um vazio tão doídamente grande quando a vida, o afastamento, o tempo ... as vicissitudes que nos atropelam, levam pessoas próximas a desconhecerem-se, a perderem-se pelas esquinas, a virarem páginas, a silenciarem tudo o que era, o que foi, a zerarem histórias, emoções, momentos, risos, afectos ... sentindo a total e absoluta incapacidade de reverter as vivências.
É como se, em vida, assistíssemos e vivêssemos infinitas e irreversíveis partidas.
Parece que a nossa vida é agora uma mera sobreposição de despedidas ... nada mais !  Nada já se recupera, porque nós mesmos já partimos do nosso caminho, faz tempo !

Dou por mim com uma saudade sem fim de realidades que foram.  Os tempos intermináveis da Covid foram insensíveis coveiros nas nossas existências.  Foi um pouco assim como o "day after" de
uma catástrofe acontecida, um terramoto, uma cheia, uma guerra ... em que a realidade que nos acolhia, num virar de página se descaracterizou completamente.  Os sítios já não são os mesmos, as pessoas já não estão lá, as rotinas dos momentos vividos esvaziaram de significado... Como se o mundo tivesse, num abrir e fechar de olhos, sofrido um varrimento inelutável e sem volta !
Foi como se tivéssemos desaprendido de viver, de falar, de estar.  Agora, aquilo que queremos parece ser apenas paz, silêncio, um canto para pousar a cabeça.  Tudo o mais é cansativo, não nos gratifica ou acrescenta ...

E pronto, este é o meu estado de espírito neste momento... uma espécie de marasmo, uma rotina entediante, uma coloração de cores mortas sem os tons quentes e provocadores dos momentos felizes ...
Um desinteressante e fastidioso desfolhar de horas, dias e meses ... cinzentão, chato e cansativo !...

Anamar

terça-feira, 7 de março de 2023

" NUNCA DIGA ..."




Do baú das memórias do Facebook, hoje, dia 4 de Março "saltou-me" uma dolorosa recordação de há dez anos atrás.  Nesse dia também cinzento e triste, partiu da minha vida uma amiga que partilhou comigo a sua, talvez por uns treze ou catorze anos.  Uma amiga muito especial, com quatro patas, olhar manso, doçura infinita ... companheira, mais que muitos, em momentos particularmente difíceis com que me cruzava então.
A Rita que me veio parar a casa de forma enviesada e inesperada, foi o animal que mais me marcou para todo o sempre.  Na realidade tratava-se de um gato, e chegou com a baralhação de sexo, provinda da residência universitária que a havia acolhido, onde, entregue exclusivamente a rapazes traquinas e irresponsáveis, era tida como um mero brinquedo para gáudio das suas brincadeiras e travessuras, quase sempre meio atoleimadas.  A Rita vivia apavorada, metida num roupeiro, seu reduto preferido de segurança, até que acabou vindo viver comigo.

E comigo ficou, fazendo companhia ao Óscar, outro bichano, esse mauzinho, que nunca nos poupava duma valente arranhadela ou dentada, quando muito bem lhe comprazia.  
Bem ao contrário, a Rita era o cúmulo da doçura, era a companhia sempre presente, era a partilha de amor sempre disponível.  Tinha a ternura de um bebé em forma de gato !
Contudo sempre tímida, medrosa, assustada, com as marcas deixadas de um início de vida problemático, ela que já havia sido encontrada no motor de um carro, em pleno Inverno.
Com um destino figuradamente pouco promissor, a Rita usufruiria finalmente duma existência em paz, quando veio viver em minha casa.
Talvez por tudo isso e pelas memórias pregressas, sempre foi um gato assustadiço, hesitante, inseguro. Só que também, duma humildade, duma dedicação, duma entrega sem limites a todos aqueles com quem vivia, demonstrando assim uma gratidão ainda maior, se possível, que a gratidão e o afecto incondicional e desinteressado que os bichos sempre dedicam a quem com eles convive.

Por tudo isto a Rita foi um marco afectivo e emocional indelével para todo o sempre na minha existência !
Partiu em 2013.  Acabaram de passar dez anos exactamente, quando pelas cinco da tarde desse 4 de Março ela se tornou mais uma estrelinha no meu firmamento ...

Estrelinhas que foram sírios nos nossos caminhos enquanto por aqui nos acompanharam ... estrelinhas que se tornaram memórias doces quando o destino delas se apropriou ...
Estrelinhas ... é assim que procuramos amenizar a dor da sua ausência.  É essa a imagem ternurenta com que respondemos às crianças quando interrogados sobre o significado da morte, da ausência, da partida dos seres que nos foram tão queridos e que nunca mais sairão das nossas histórias ...

Jurara não ter mais gatos.  Jurara atravessar a dor sofrida com uma incapacidade futura de voltar a ter outra Rita na minha vida.  Quase sempre juramos !  O vazio deixado mata-nos tanto por dentro, que parece secar qualquer futura possibilidade de nos darmos outra vez.  A ausência sentida no luto experimentado, remete-nos para uma negação que parece insuperável ...
"Acabando esta geração, não voltarei a ter mais gatos " - verbalizei há dias à veterinária, quando o Chico, aguardava a "sentença" que o esperava - uma diabetes crónica com valores de açúcar muitíssimo elevados, e obviamente uma previsão anunciada de um futuro ameaçadoramente precário, pela frente.
"Não diga isso !"  foi a resposta.

Neste momento, não sei.  Não sei se virei a ser capaz outra vez de reescrever uma nova história, não sei se serei capaz de iniciar mais um novo percurso ... de voltar a atravessar tudo aquilo que, nunca esquecido, já me ficou para trás, com todos os animais que me atravessaram a vida.
O Óscar, a Rita, o Gaspar, o Nico, a Dalila, a Nicas, a Concha ... por todos eles já chorei lágrimas de sangue, por todos eles o meu coração se espremeu de dor ... com todos eles, também eu morri um bocadinho por dentro ...


Anamar