quinta-feira, 21 de maio de 2009

"AS VERDADEIRAS CAIXINHAS DE SURPRESAS"



Um dos maiores quebra-cabeças na minha vida é a arrumação, ou o simples "passeio" por uma gaveta.

Quer vá no intuito de procurar algo que o tempo já só me aponta como lógico estar naquela gaveta, quer deambule em "romagem" de alma e coração por aquele interior, onde sempre coube mais alguma coisa para mais tarde recordar, é sempre uma real odisseia!

Sim, porque acredito que cada pequena coisa que um dia ali foi parar, não é mais do que um pedaço de mim mesma, um pedaço da minha estória, bem ou mal contada, arquivada ou pendurada por resolver, com cheiro a alfazema dos campos ou cheiro fétido à podridão do não enterrado...

Aconteceu isso hoje, e de entre tudo o que de lá "saltou", ainda que sem pedir licença, feita uma "caixinha de surpresas", houve uma pequena tira com não mais de doze por dois centímetros, recortada de um jornal, revista, sei lá...amarelecida do tempo, onde cabiam apenas cinco linhas escritas, quando, como e por quem, não sei...que transcrevo aqui, e me pararam longamente uma outra vez, me puseram a pensar e a achar que o que naquele papel tinha sido colocado, o tinha sido por alguém, com uma forma de sentir e se exprimir, coladinha à minha...

"Nada sei sobre os mecanismos da memória. Não sei onde se registam os acontecimentos que nos impressionaram. Acho que o coração determina os arquivos onde se guardam as vivências. Algures, numa vasta zona nebulosa da galáxia dos afectos. Eventualmente para os trazer de volta vivos e obrigatórios ou os desfocar suavemente até se perderem em remotas imagens no correr do tempo. Uma questão de defesa e sobrevivência da alma afectiva ou um imperativo de consciência."

Por isso é que, cheias as arcas e baús, cheias as gavetas e as malas, eu tenho que possuir de facto, um coração e uma memória, onde as "galáxias dos afectos", onde os ficheiros e os arquivos da vida, ganhem ninho de eternidade.

Porque dia após dia, o tempo implacável e insensível, leva-nos por pirraça, a deixá-los entreabertos, para que tudo se esfume, e um dia, quando a nossa "caixinha de surpresas" for aberta, sentimos aquele soco no estômago, como quando constatamos que um ficheiro que amávamos e guardávamos religiosamente como um tesouro, está afinal vazio no nosso computador...

Anamar

sábado, 16 de maio de 2009

"O RAMALHETE RUBRO DAS PAPOILAS"




"Eu canto o mês de Maio , ó meu amigo..." - assim dizia Adriano.

Raiava o sol e a minha avó irrompia pelo quarto dentro. No bolso do avental, tantas amêndoas da Páscoa recente, quantos os netos que nessa madrugada do romper de Maio haviam dormido naquela casa-mãe.

Gente gaiata, de brincadeiras tardias, sono a carregar sobre a madrugada, dormia a sono solto.
"Que mania aquela!" - pensava eu. "Por mais que viva não vou entender nunca!"

E a sua voz, de quem já tem à vontade meio dia de trabalho em cima do pêlo, não dava chances, por mais súplicas ou pedidos de apelo que houvesse.
"Vá meninos...vamos lá comer a amêndoa, senão ficam com o Maio o ano inteiro. Não se pode deixar entrar o Maio!!"

Entrar o Maio, era sinal de preguiça. Quem o deixasse entrar, seria tomado de uma preguiça incontrolável por todo o ano, e por isso havia que "rolhar" as "entradas" ou "saídas" (como queiram), do corpo, para que tal "maldição" não se apossasse da gente nova, já de si tão dada a preguiças naturais...
Esse era o papel da amêndoa...
Ainda hoje, morta a minha avó há quarenta anos, a minha mãe não deixa passar um só primeiro de Maio que não me pergunte, no primeiro telefonema da manhã: "Então, deixaste entrar o Maio?"...
Oh mulherzinha aquela! Vá lá ter uma memória destas aos oitenta e oito anos!!!
E sempre lhe cheira a heresia, se por acaso, pressente que aí p'las onze ainda estou em vale de lençóis!...

Os meus avós já foram há muito, a casa-mãe daquele Alentejo que albergava os muitos que então éramos, também já não é nossa...mas o Maio sempre se me associa a memórias doces.

Na próxima quinta-feira, 21 este ano, Dia da Ascenção no calendário litúrgico, é um desses dias em que recupero um pouco a minha infância.
"Quinta-feira da Espiga"...e logo me revejo a sépia descolorida, de tranças, soquetes, vestidinho de roda e toda a charneca florida à minha frente...

Maio, tradicionalmente, e para mais no sul, significava já, temperaturas veranis, cheiros adocicados nos campos, vestidos de branco, amarelo, roxos e vermelhos.
Maio, era o mês, em que, junto com a espiga, se traziam para enfeitar as casas, braçadas de giestas, douradas e cheirosas, despretensiosas e singelas, mas rainhas num aroma intenso - as maias.
Quinta feira da espiga era dia de agitação entre a criançada, que só visto! Era dia de pic-nic nos campos, debaixo das oliveiras ou sobreiros, com todo aquele "jardim" em que se torna a charneca em flor do meu Alentejo.

E lá íamos, apetrechados de coisas para brincar, a corda para saltar, o arco do hula-hoop, com os avós, os pais, os tios, mas sobretudo a "canalha" que éramos nós, primos de idades próximas, danados p'ra brincadeira e para nos deliciarmos com o farnel meticulosamente carregado de mimos, que os adultos transportavam.
E lá íamos apanhar a "espiga", que duraria na cozinha ou na dispensa de um ano a outro, como bom presságio de abundância, felicidade e alegria.



E era ver quem fazia o ramalhete mais bonito e criativo.
Tinha ele três espigas de trigo, tiradas da seara ali aos nossos pés, sinal de que não faltaria o pão na mesa, um ramo de oliveira que simbolizava o azeite, três malmequeres amarelos (ouro), três malmequeres brancos (prata), e para lá de todas as florzinhas singelas que encontrássemos pelos campos, que levariam a alegria que iria abençoar aquela casa, como o alecrim que transporta em si saúde e força...um ramalhete rubro de papoilas, que são o amor e a vida...

E sempre foi assim, enquanto o Maio foi Maio, enquanto eu fui criança, quando havia ainda a preocupação de fazer passar adiante as pequenas coisas que faziam a vida simples das pessoas...

Anamar

sexta-feira, 15 de maio de 2009

"A QUEDA DE UM ANJO"



E dizia-me ela de soslaio, entre dois tragos de café, na remota esperança que o sol desse as caras:
"Há fases na vida em que não bastando tudo aquilo a que temos "direito", ainda mais uns acrescimozitos nos povoam as mentes.
E mesmo lutando por vezes contra a indisponibilidade temporal, lutando contra a correria ou a má distribuição dos "que fazeres", chegam, instalam-se e não desgrudam"...

Levantei os olhos de uns pardais desafiadores que "penicavam" migalhas, cada vez mais perto, e olhei-a...curiosa já.

"Eu nisso, sou perita. Acho mesmo, que especialista!
Seja Inverno, porque chove e está carregado, seja Outono porque os dias são introspectivos e pesados, seja Verão...já não sei bem porquê...não consigo achar a mínima piada a "isto", e como tal, alegria, satisfação, plenitude, não são o meu "bilhete premiado!!!
Devo ser um espécime insuportável, intragável, "indigerível", sem solução à vista, sem terapia previsível, sem cura provável...uma "chata de galochas"...isso sim, como dizem os brazucas"!

Não entendia ainda aquele discurso de rajada, mas pressentia que vinha lá "chumbo grosso", pois os olhos dela vidravam de lágrimas próximas.

"Desta vez, trata-se da queda de um anjo...estás a ver??"

Embora cada vez visse menos, dei-me um ar sério e disse:"hum hum...claro" - e esperei.

"Um anjo, como o nome indica, é algo etéreo, algo perfeito, algo sem mácula, algo acima, muito acima de tudo o que esperaríamos, desejaríamos, sonharíamos...
Um anjo, como o nome indica, é uma figura irreal, conceptualizada normalmente por alguém sofredor, uma mente carente, por um ser que está na vida..."de menos"...entendes?
Um anjo realmente não passará de um sonho, quantas vezes criado, alimentado, inventado por quem o criou...
Assim uma espécie de um Pinóquio criado por um Gepeto crédulo, que o tornou gente e o amou, sabes?"...

Apurei os instintos, esqueci os pardais, esfriei o café e prendi-me àquela "torrente" que não parecia poder parar.

"Todos mais ou menos, por necessidade, dependência, afecto, desejo, paixão, razão de vida...sobrevivência, criamos os nossos próprios "anjos", que descem de um qualquer paraíso, e se tornam gente no meio em que vivemos (ainda por cima, querendo fazê-lo de uma forma normal e lógica), a quem passamos a amar, e pior, a quem passamos a imputar uma responsabilidade que não têm, nem podem ter...que é, serem efectivamente "anjos" perfeitos, completos, tal como os concebemos, os acreditámos, tal como a "obra" é olhada desveladamente pelo criador...

Aqui, já se descortinava na totalidade, o nó que lhe sufocava a garganta e as lágrimas também desciam sem nenhuma contenção por aquele rosto misto amargura, raiva, cansaço, desânimo...sendo ao mesmo tempo um rosto infantil de criança, surpresa por algo que não entendia...
Aqui, já eu tinha a cabeça em rodopio, já me "embrulhava" toda, em busca do que dissesse, do que pudesse dizer e a não saber dizer nada...
Nos meus ouvidos ecoavam - "entendes?" "percebes?" "sabes como é?"...
Fungando, soluçando, esquecida de tudo o que girava em torno de nós, esquecida da rua, das gentes, dos carros, da cidade...terminou:

"E quando constatamos a utopia que foi, ver a ficção que criámos, quando apercebemos a revolta que sentimos (sem razão), quando sentimos a fraude que experimentámos (que o não foi, mas acabou connosco), quando sentimos uma injustiça atroz, até por injustiçar quem não nos pediu para ser anjo nas nossas vidas, quando sentimos a agonia que é acordar finalmente, e perceber que o sonho não era sonho, mas se aproximou mais de um pesadelo...e que daquele "anjo", nem as "asas" sobraram...aí sim, é que percebemos que só podemos estar profundamente doentes"!!!...

O meu silêncio era sepulcral...
Como eu entendia!! Como eu percebia!! Como eu sabia como era, essa coisa de quedas de anjos!!...

Anamar

sexta-feira, 8 de maio de 2009

"...para uma emergência tua!..."

O meu afastamento definitivo, profissionalmente falando (reparem que não pronuncio "aposentação"), continua a mexer-me, a desestabilizar-me, a entristecer-me, a deixar-me doente, sobretudo mas não só, na alma.

Sim, porque eu acredito que os males da alma induzem males do corpo...

Por isso hoje rumei uma vez mais à CGA, a fim de esclarecer o inesclarecível, ou me certificar afinal de nada de novo, a não ser, confirmar quão parcos são os proventos com que terei de viver no resto dos dias que me forem concedidos (isto, se atentarmos ao que se lê nos jornais todos os dias, que tão escandalosamente nos deixam boquiabertos com o chorudo e a multiplicidade de pensões atribuídas, só porque...sim....)

Tirei senha, sentei-me, olhei à volta em pormenor, as pessoas, os seus semblantes, os seus ares desanimados na grande generalidade...
Sim, porque poderiam ser ares esperançosos, ares de alívio, ares auspiciosos, como quem afinal irá encetar uma nova vida que não terá/deverá ser menos meritória, menos válida, menos feliz, menos gratificante.
Ao contrário, em condições normais, este "abrir de porta" deveria conduzir o ser humano a merecidas e desejadas vivências, nunca consumadas por falta de tempo, a experiências até então apenas sonhadas, a um tempo de liberdade acrescida, que propicia criatividade, possibilidade de fruição de alguma "desresponsabilização" de tarefas que o ocuparam grande parte da vida...criados que estão os filhos, e netos com quem cuide deles preferencialmente.

Mas não...aqueles rostos, incluindo o meu, certamente (não me via ao espelho mas sabia-me tensa), eram efectivamente de cansaço e desânimo.
Havia ali tristeza naquela sala enorme, como se fosse uma antecâmara de algo muito desagradável e incerto...
E não me digam (porque não acredito), que era mágoa pela profissão a deixar, apreensão pelo que se estava largando para trás, já saudade de tudo de que se prescindira em função "daquele" sacerdócio...saudade da alegria partilhada, da esperança acompanhada, da felicidade pelos êxitos e tristeza pelos inêxitos das gerações e gerações a quem fomos dando ao longo dos tempos, uma "mãozinha" na busca do caminho que procuravam...

Esqueci de dizer que a "população" daquela sala, era, senão total, maioritariamente de docentes...percebia-se, via-se, ouvia-se...

Na fila por detrás de mim, estavam duas senhoras, colegas de profissão.
Não as olhei porque não fui capaz.
Conversavam baixinho, aguardando que o número do visor as chamasse a um dos atendimentos.
Vou tentar repetir o mais fielmente possível, o teor do diálogo, pois apesar de ser em surdina, era audível aos meus ouvidos e era devastador no eco que me foi fazendo no coração.

Dizia uma: "Ora bem, tanto para a luz, tanto para a água e gás... NET, tu não tens, portanto não tens isso para pagar (e iam aparentemente somando parcelas num qualquer papel). Mais ou menos, quanto gastas por dia em alimentação?..."Sim, mas junta aí...tanto para a empregada..." "Este aqui, fica assim para uma emergência tua, estás a ver?"...

Fui salva pelo "gongo" que é como quem diz, pelo "pi" que anunciava o meu número 181, e pulei dali para fora, sentindo ter levado uma marretada na cabeça, num misto de alívio súbito, com um confusionismo mental que advém sempre de qualquer estado de choque, e penso que caminhei tipo "autómato" até ao guichet 10, onde, eu acho, quase já não saber o que ia perguntar, tal era a "branca" que se me estava a instalar...

Estou incomodada até agora, estou triste até agora, tenho vontade de chorar, estou amarfanhada, estou defraudada, um pouco morta por dentro.

E pergunto-me: "É isto que merece alguém, qualquer um afinal, ao fim de uma vida, ao fim de uma entrega (em detrimento, quantas vezes, da sua vida pessoal e familiar), ao fim de tanta aposta, tanto esforço, tanto sonho (sim, porque um professor sonhou e muito, enquanto o foi)...é isto??!!...
Ter de contar os parcos tostões, assim, a este nível, da conta da luz à do gás, passando pelo hipotético sobrante para "uma emergência"??!!...


Eu falei em "afastamento definitivo da minha vida profissional" e não em aposentação, como dizia no início...
É que, "aposentação" parece encerrar de facto, em si, por todas as razões, uma carga tão negativa, tão aviltante, tão humilhante, decepcionante, indigna e triste...que até parece uma aposentação, não de uma profissão...mas sim, uma aposentação da própria VIDA!!!...

Anamar

sexta-feira, 1 de maio de 2009

A "CHATICE" QUE É ATURAR-ME...ou a história do copo meio-cheio ou meio-vazio



Hoje, um radioso dia com que Maio nos presenteou, um sol luminoso, um céu de um azul espectacular, meio dia...e eu na cama a aninhar-me e a pensar (sim...porque o sono já não era logicamente muito...): "Quem dera estivesse a chover. Apetecia-me tanto que o dia lá fora estivesse cinza plúmbeo, chovesse e só nos apetecesse ficar por aqui mesmo!!!!..."

Logo eu, que vivo do sol e que me "digo" girassol e não margarida, porque o persigo até que ele durma!...

Bom, aí ocorreu-me uma amiga muito engraçada que eu tenho, e me costuma dizer: "Eu farto-me de mim....e hiberno. Mas aí, há um dia em que eu digo: chega! Já não me aguento!!...e pronto, desse dia em frente, o "astral" vira"!!!...

Lembrei depois um outro amigo que me diz: "Quem tem vagar...faz colheres! Tens demasiado tempo para "criares", "inventares", fazeres os filmes e sofreres com eles!!"

A seguir, lembrei alguém, que muitos anos ao longo da vida me "buzinou" aos ouvidos: "Tu estás é mal habituada...mimam-te, resolvem-te as dificuldades, atapetam-te a vida!!"

Mais à frente pensei na minha filha mais velha que me diz: " Quais são os teus reais problemas? Deverias experimentar era ter isto...e mais aquilo...a passar por aqui, e por ali....bla-bla-bla...para saberes como é!!"

A seguir, "desfilou" o meu colega Orlando, que me dizia num destes dias (enquanto aguardávamos entediosamente que preceitos do meu computador se cumprissem), verificar que os jovens de hoje não lutam, não se esforçam, não valorizam...(nada que eu não saiba, não veja todos os dias, não critique..."Bem prega Frei Tomás....")

Que por isso mesmo a crise instalada, é muito mais de rumos, de nortes, de vidas, de metas a atingir... criada por uma sociedade cujos valores estão muito acima do razoável, do lógico, do admissível...o que lhes torna tudo excessivamente enjoativo...
Uma crise, de que os próprios pais parecem não se dar conta, gigantescamente maior que a outra, que nos assombra...

Obviamente, "vieram" também os meus pais, que, de acordo com os seus horizontes, limitados a todos os níveis infelizmente, de acordo com as suas melhores convicções, de acordo com a época, a cultura, até a idade de que dispunham, aquilo de que foram capazes, sempre acreditaram estar a fazer o seu melhor, no sacerdócio que é a educação e a orientação de um filho para a vida, quando de facto, me rodearam de tudo e de muito mais do que eu precisava para vivê-la...
E por isso desaprendi, ou nem sequer aprendi, como fazê-lo!

Por fim, veio-me aquela máxima, que nos diz que sempre se pode ver tudo por dois lados: "um copo pode estar sempre meio cheio, ou meio vazio", depende de como o vejamos, depende da "garra" com que o agarramos, depende da nossa força interior, do nosso crer, da nossa auto-estima, até...da nossa necessidade!

E foi aí que saltei da cama (não direi eufórica...nem lá perto...),abri a janela de par em par, encarei o sol e achei que afinal era bom ele estar lá e não haver nuvens no céu, resolvi ir ao cabeleireiro, e comecei a treinar a tolerância comigo mesma, e apesar dos pesares, a não me achar uma "bosta" tão grande, quanto nos piores dias me acho!...

Anamar