quinta-feira, 27 de julho de 2023

" UM OUTRO DIA ... A VIDA A RETOMAR O RUMO ... "


Hoje no "Dia dos Avós" ao que parece, a Teresa quis falar comigo em Face Time.
Já há algum tempo que não nos víamos, pois a mãe teve uns dias de paragem laboral, depois chegou o pai para o habitual período em Portugal, e com tudo isso, a Teresa não veio cá para casa.
Entretanto ocorreu o desenlace triste com o Chico, o gato bonacheirão que ela adorava e a quem podia fazer todo o rol de brincadeiras, festas e tudo o que lhe ocorresse, porque o Chico nunca soube o que eram garras ou dentes.
Agora, eu que sempre fui chamada de "avó dos gatos", já só coabito com o Jonas que sendo igualmente dócil e muito manso, é medroso, o que o torna arisco e distante.  A Teresa, o melhor que consegue é fazer-lhe uma festa fugidia quando ele passa por ela meio a correr, e esse facto, mesmo assim deixa-a exultante e eufórica.  "Avó, consegui dar uma festinha ao Jonas !"- diz-me feliz da vida.

Pois antes de falarmos o que quer que fosse, a Teresa tinha uma pergunta "séria" a fazer-me: queria saber se eu tinha feito o funeral ao Chico.
Não consigo descortinar qual o contexto mental em que na sua cabecinha se insere esta preocupação ...
Tentei desmistificar a questão, e garanti-lhe que tinha dado ao Chico tudo o que ele merecia, lhe tinha dado muitos beijinhos dela e lhe tinha dito que nós gostávamos muito dele.
A Teresa olhava p'ra mim com uma dificuldade imensa em conter as lágrimas que teimavam assomar-lhe aos olhos.  Estava, como costumamos dizer, "embaçada", entupida com a emoção que a tomava e quase a denunciava.
Perguntei-lhe : " Estás  triste,  meu  amor ?  " Que  sim ... ( só com a cabeça ).   "A  avó  também !"💔💔

Acho que lhe poderia ter dito muito mais, para a consolar, sei lá ... coisas do tipo "ele estava doente e agora já não sofre mais" ... ou, a imagem poética com que sempre reconfortamos uma criança na hora duma perda difícil : "foi para a estrelinha onde tu sabes que está a Bi e tu vais olhar para o céu à noite e descobrir, de certeza, a estrelinha mais brilhante que lá está.  É essa, tu já sabes ..."

A realidade e a dureza da vida, que sempre tentamos escamotear ... o sofrimento, que sempre tentamos poupar a quem amamos, também me bloqueou e emudeci.
Terão tempo por certo, para que a inocência seja perdida, e a idade adulta seguramente não os poupará dos escolhos que inevitavelmente terão que enfrentar.  E assim tentamos proteger como podemos, sobretudo as crianças.

Felizmente, facilmente o seu foco de atenção mudou.  
O  cão de que gosta muito e o gato preto também, diabético também ... o "gordo" como lhe chama ... que provavelmente será qualquer dia o novo desgosto da Teresa, pois a sua saúde é precária e a idade também já lhe pesa ... chamaram-lhe a atenção à chegada a casa.
O meu embaraço desfez-se, finalmente !

Por aqui, voltei-me de novo para Enya.  Já há tempos não escutava a sua música, ela que foi minha companheira em permanência, anos e anos.
Mas parece que Enya me está destinada quando busco conforto, interioridade, silêncio, cumplicidade.  Enya representa anos da minha vida, foi imagem de muitos momentos marcantes, e continuará por certo a sê-lo.
A sua voz liberta-me, apazigua-me, transporta-me a uma dimensão celestial, velada, ao silêncio e à penumbra dos claustros de uma catedral onde, no meio da loucura e da adversidade, nos reencontramos connosco mesmos !...

Anamar

terça-feira, 25 de julho de 2023

" O DAY AFTER ... "


O dia seguinte é o pior dia !
Acordar e perceber que nada daquilo foi um sonho mau, foi apenas um pesadelo que nos assombrou a noite, e que tudo o que julgámos ser verdade, o era de facto, e não se tratou simplesmente dum daqueles sustos que se desfaz em nada, quando finalmente abrimos os olhos e consciencializamos que um novo dia começou ... é alguma coisa duma dureza e duma crueldade sem tamanho !
Quando o torpor do sono nos abandona, e somos chamados a raciocinar, a reagir ... a voltar a viver com a realidade que nos cai em cima, aí sim, as forças objectivamente faltam e uma vontade louca de retroceder no tempo, toma conta do nosso espírito.

Depois duma noite de sono pesado induzido por uma droga qualquer tomada para que os olhos começassem a fechar, na renitência de se manterem abertos, acordei realmente vazia.  Vazia de esperança, vazia de vontade, vazia de vida. 
Fiquei quieta naquele limbo irreal duma realidade nova para lá daquela porta do quarto.  O silêncio era total, nem o Jonas nem o Chico vieram miar-me à cama, com uma precisão matemática, parecendo terem um qualquer relógio biológico, certo ao minuto.
Todos os dias eu vociferava irritada, por não haver uma margenzinha de tolerância para a dorminhoca da casa.  Mas o horário da insulina era religiosamente respeitado ...

Hoje não havia insulina a ministrar, ontem também já não, e amanhã e depois e depois e depois ... e nunca mais será necessário fazê-lo, porque, de quem a recebia, já nada resta ...

Revi tudo outra vez.  Fiz rewind das últimas horas da minha vida, das nossas vidas.  
O Chico foi internado na madrugada de domingo, em hipoglicémia declarada.  Aceitou entrar na caixa transportadora, ainda os primeiros raios de sol não haviam despertado.
O Jonas, em cima da minha cama desfeita, acompanhou com o olhar, na penumbra do quarto, as voltas anormais a essa hora do dia ... mas nem se mexeu, resolveu ficar, talvez já sem entender.
Ao transpor a porta e aceder à escada onde o Chico, sempre que podia gostava de ir, escutei os seus miados baixinhos e doloridos.
Um mau pressentimento assolou-me ... Voltaria o Chico a transpor aquele umbral, de regresso à sua casa ?
Mas segui, decidida, enfrentando o que viesse, o que estivesse pra chegar.  Afinal, sem comer há vinte e quatro horas e numa prostração total em que nem os olhos abria, não poderia continuar.  
A noite fora vencida, apesar de haver momentos em que julguei que ele ia desistir.
Eu, nauseada, com vontade de vomitar, só ansiava conseguir vencer a estrada e chegar rapidamente às urgências.  O percurso fez-se em silêncio.  O Chico não reclamava, sequer reagia .
Depois da observação prévia, foi-me comunicado ser preciso colher sangue, urina para análises, e fazer uma ecografia abdominal para observação de órgãos vitais associados obviamente à patologia diabética instalada.

Uma longa e ansiosa espera na sala onde ninguém mais estava, num hospital vazio e sonolento àquela hora, aguardando a saída dos primeiros resultados, parecia não terminar nunca.
Finalmente o Chico voltou a ser trazido para junto de mim, mas já com um colar isabelino no pescoço e as patas anteriores enfaixadas para a fixação de cateter com acesso.  
O médico anunciou que já viria falar comigo.
Sem posição e logicamente impaciente e em desconforto, o Chico procurava aninhar-se para deitar a cabeça na mantinha que cobria a transportadora.  Eu metia os dedos por entre as grades da porta e falava-lhe  baixinho ...  "É a  dona ... está  aqui  a  dona.  Não  tenhas  medo !"...
Finalmente chegou o veredito: o Chico tinha as análises totalmente alteradas. Uma glucose a menos de metade do normal, potássio mais do dobro, creatinina e toda uma série de parâmetros descontrolados.  Eu já nem ouvia as explicações do médico, só retive "tem que ficar internado, tem que ficar internado, tem que ficar internado ..."- uma espécie de ribombar de trovão nos meus ouvidos.
"Vamos tentar estabilizá-lo ; através do soro vamos fazer-lhe um choque de glucose, imediatamente. Dos resultados do estudo ecográfico ainda não há notícias.  É a médica ecografista que os fornece e provavelmente só amanhã".

Regressei a casa.  Do trajecto lembro pouco. Sentia-me um zombie. Uma sensação de frio, de solidão e de medo tolhiam-me.  Mas vim e cheguei a casa.
Comi uma torrada e um café e fui caminhar.  Precisava esvaziar a cabeça, se pudesse, deixar de pensar.
O que sentiria o Chico por lá ?
Notícias mais concretas, tê-las-ia ontem, segunda-feira, pela hora de almoço.

A noite foi de "apagão", pois a anterior tinha sido em claro, e aguardei ansiosa as informações que a médica me daria.
Por volta das duas da tarde, o telefone tocou e lembro-me de ouvir a médica dizer : "Venho dar-lhe notícias do seu príncipe.  Conseguimos estabilizá-lo e já trouxemos a glicose e o potássio a valores normais ( não sei se outros valores foram referidos ), mas não tenho boas notícias a dar-lhe.  O estudo ecográfico mostra um pâncreas alterado, o que indicia uma pancreatite e os rins, sobretudo um deles ( também já não sei qual ), mostrando sinais de falência.
Isto indica termos um animal numa situação muito grave que terá que ficar em internamento por tempo indeterminado e carecendo de vigilância permanente e sem qualquer qualidade de vida.  Não esqueçamos que tudo isto é potenciado pela diabetes de que sofre.
Portanto, de acordo com a equipa médica, deixamos e acatamos inteiramente o que venha a decidir !"

Sentia-me perdida, como se uma violenta paulada me tivesse atingido em cheio.  Uma decisão hedionda que me cabia agora tomar. 
Não podia ser egoísta e permitir que o meu companheiro de tantos anos continuasse limitado e a sofrer. Afinal eu defendo a eutanásia, e tenho esperança que também para o ser humano, lá haveremos de chegar.
Mas decidir, dizer "é agora", retirem-lhe o último sopro de vida, chegou a hora para o Chico ... é duma violência atroz, que infelizmente muitos de nós já experimentámos.  Eu própria já passei por vários destes momentos, e lembro cada um deles como a ante-câmara dos horrores ...

Mas havia que seguir adiante.  Voltei ao hospital e resolvi.  
Por ele, por mim, por todos nós que com ele privámos e que tanto o amámos, que com o maior amor e carinho possíveis, chegara mesmo a hora ...
Embrulhado numa mantinha, o Chico esteve no meu cólo, numa sala privada, alguns minutos só nossos.  Falei-lhe bem baixinho, falei-lhe do Jonas, da Teresa que o adorava, disse-lhe como a nossa casa, agora lá longe, ficaria vazia, triste e escura ... pedi-lhe que me perdoasse, disse-lhe como o amei, registei-lhe o olhar em meia dúzia de fotografias que farão parte do meu espólio enquanto viver ...
E deixei-o ir ... 
Será que me sentiu até ao fim ?  Será que confiou que eu o protegeria ... ou terá sentido que o traí ?

E hoje ... bom, hoje é o "day after", o tal dia dos horrores. O tal dia em que nem acredito ... o tal dia em que o espaço é demais, o vazio se instalou e a luz se apagou...
É tudo isto o que eu sinto, sem empolamentos, sem preocupação de medida ou proporcionalidade, sem receio que me achem exagerada, tonta ou piegas ...
Afinal, foi "alguém" muito meu que me deixou e partiu ...

Mas juro que ainda há pouco o vi passar por aqui ... 

Anamar

segunda-feira, 24 de julho de 2023

" MAIS UMA LUZ LÁ POR CIMA ... "



                                                                2012  -  24 Julho 2023


Primeiro são os olhos.  Sempre primeiro são os olhos e a ternura que passavam ao olhar-me. 
Até ao fim ...
Depois, as mãos.  As mãos são sábias.  Não precisam de voz p'ra exprimir o que sentem. As mãos ou as patas, tanto faz.  E era assim ... ele não saciava nunca a ânsia de um afago, quando nos puxava pelo braço, uma e outra vez. 
Era uma festa, e outra, e mais outra ... porque não sabia dizer "mais"... não aceitava que eu lhe dissesse "chega" ... e ronronava deliciado...
Finalmente vem o cheiro, o nosso cheiro que sempre buscam nos nossos lugares, nas nossas coisas, nos espaços que deixámos vazios ...
O cheiro que nos identifica, o cheiro que nos deixava ao roçar-se ... no cumprimento, na marca ... na saudação, e também na ternura e no reconhecimento .

Vazio está tudo agora.  Profundamente vazio ... pesado de vazio ...
Já não me vens esperar à porta, sempre com ar de aceitação e alegria, mesmo quando eu havia dito "a dona já vem ... espera só um bocadinho !"... e esse bocadinho tinha sido uma semana, dez dias ...
Não importava.  Eu já estava de novo, para passares pelas brasas chegadinho ao meu corpo, quando dividíamos o enfado da televisão.
Já não corres atrás da vassoura, ou me pedes água no poliban.  As gotinhas, uma a uma, eram um fascínio para um gato brincalhão ... 
E os teus passeios à escada, quando a porta se abria e a tua curiosidade te convidava à liberdade do lado de fora, também já não vão mais repetir-se...
Estou aqui a pensar se te despediste do Jonas, que agora anda meio perdido à tua procura, por certo sem perceber grande coisa. 
Da Teresa, que te adorava, sei que não te despediste.  Afinal, não houve tempo.  Ela passará a olhar-te, por cada noite, lá longe, na estrelinha ... a mais brilhante que o céu agora tiver !...
A Teresa, afinal, já vai coleccionando algumas "estrelinhas" lá por cima ... infelizmente ...
A esta hora, com o calor da tarde, estarias aqui no cantinho da secretária, deitado preguiçosamente, bem relaxado no sono profundo que fazias com gosto.  Eu, no computador, escrevia, ouvia música, ou simplesmente vagueava por aí ...
Percebia-se claramente que já sonhavas, e só contemporizavas em abrir um olho e arrebitares as orelhas, quando o teu nome era proferido bem mais alto ... "Chico, oh Chico" ... e era assim todos os dias ! 
Olho para lá e não te encontro. Só o tal vazio pesado e um silêncio tonitruante que me trespassa a alma ! 

Os teus ritmos, as rotinas, tudo aquilo que nos desenha a vida, todos os sinais, as memórias ... o que fizemos, dissemos, com que marcámos as nossas existências e as de todos os que se cruzaram connosco, são de facto o que fica, sempre ficará, e constroem as nossas histórias ... Até um dia ...

Partilhámos um pedaço delas, Chico.  As nossas estradas são feitas de parcelas, de pedaços indeléveis, pelo bem e pelo mal.  Acompanhámo-nos, dividimo-nos, "dialogámos" ... até chorei contigo, algumas vezes, em marés mais alterosas. 
Eras o meu gato XXL ... como eu dizia e como o eras, no princípio, antes da maldita doença te devastar.
Hoje, pelas quatro da tarde, no meu cólo adormeceste rumo a outra dimensão.  E eu fiquei mais pobre, muito mais pobre, porque um imenso pedaço de mim, do meu coração e da minha alma, também foi contigo.
Contei-te uma história. Falei-te do Jonas, da Teresa ... de mim ... e sussurrei-te que era injusto deixares-me por aqui ... tremenda deslealdade ... nem parece teu, Chico !!
  
Um dia talvez nos encontremos.  Acredito que vocês todos, os que foram adiante, hão-de esperar pelos que ficaram um pouco para trás.  Até é uma ideia esperançosa que me agrada e ajuda, nesta hora em que tudo é triste e escuro à minha volta ...
Havemos de fazer uma grande festa e eu prometo-te levar os "baguinhos" gulosos com que te aliciava quando queria que viesses atrás de mim ...  

Adeus Chico, obrigada por teres iluminado o meu caminho.  Sem ti, nunca nada mais vai ser igual !
Onde estarás agora ?  Será que nos vês daí donde estás ?  Já estou cheia de saudades ...
Descansa em paz !

Anamar

quinta-feira, 13 de julho de 2023

" AS PROFUNDEZAS DO NOSSO EU ..."

 


O ser humano é de facto uma máquina extremamente complexa.  Não me refiro, obviamente aos seus contornos físicos mas sim à impenetrabilidade da sua mente, da sua psique, daquele "mundo" hermético e inacessível que é o seu eu interior ... onde o alcance, o conhecimento e consequentemente a compreensão e descodificação, de tão impenetráveis, eu diria serem uma impossibilidade, mesmo para os especialistas entendidos na matéria, independentemente de disporem ao dia de hoje de infinitas ferramentas e metodologias desafiadoras, testadas e largamente ensaiadas.

De facto, o "eu" interior de cada um é um universo tão avassalador e escuro, que até à própria compreensão escapa.

Não sou estudada nessa área, não tenho conhecimentos seguros no domínio científico que me confiram qualquer grau de conhecimento ou autoridade que me permitam pronunciar a propósito.
Só tenho a informação do que vou lendo, associada a uma curiosidade pessoal, preocupação e interesse de pesquisa de auto-conhecimento, um interesse profundo em analisar procurando entender, em mergulhar sempre mais fundo para explicar determinados padrões comportamentais que reconheço em mim.  Um interesse genuíno e legítimo de "me" auto-conhecer, afinal ... 

Ao longo da vida, quase sempre me impressiono por exemplo, com inexplicáveis posturas de recorrência, aparentemente incoerentes e indutoras até de sofrimento repetido, mas que assumo teimosamente, como se houvesse um qualquer determinismo de vida que me comanda e contra o qual eu não tenho capacidade de enfrentamento.  
Apesar de as identificar, é como se no meu "computador" mental existisse impressa uma matriz emocional condicionante do meu comportamento ... um registo algoz que me pressiona, me empurra, dele eu fosse refém ... ele sim, com ascendente sobre a minha mente e a minha vontade, contra o qual eu perco a capacidade decisória, a força interior e o livre arbítrio ... 
Duma  forma absurda e ridícula ... como se eu fosse refém ou marioneta desse "mundo" das profundezas !...

Porque razão se repetem recorrentemente os mesmos erros, como se os perseguíssemos?
Porque razão agarramos os mesmos paradigmas posturais, fazemos as mesmas escolhas desastrosas, como se cultivássemos um masoquismo estranho e doentio do sofrimento ?!  Sabendo-os não obstante, erráticos !...

Exemplifico :  Porque razão, no meu percurso afectivo, o perfil de homem e ligação que sempre persegui e onde me refugio gratificantemente, corresponde a uma personalidade que já demonstrou não me fazer feliz?!
Contrariamente, duma forma racional, o perfil que teria toda a potencialidade para me trazer estabilidade e paz, é desprezado por mim.  Sempre !
E como tal, já se imagina o resultado prático das coisas.

O mesmo se passa com uma das minhas filhas. Parece ter uma tendência mórbida para o insucesso emocional e afectivo.  Busca, busca e não chega a lado nenhum, ou seja, privilegia escolhas que, à partida, ela já sabe só servirem para lhe encrencar a vida.
Reflecte, analisa, percebe claramente onde erra o caminho, não consegue afastar-se o suficiente para, usando de algum pragmatismo e frieza de cabeça, corrigir a mão e enveredar por outro trilho.
Desperdiça sempre, o que ( pelo menos do ponto de vista analítico de quem não está directamente envolvido ), lhe valeria a pena em detrimento de uma realidade cujo filme já conhece, que já visualizou vezes demais, que sabe sobejamente, a fará infeliz.  
Mas a atracção do abismo parece ser mais forte que tudo, e é manifestamente "suicida" ...

A mim, de certa forma isso foi explicado por uma psicóloga em consultas de psicoterapia.  Passo a expor :
Fui filha de um pai idoso.  Quando nasci o meu pai tinha 48 anos.  Viajante de profissão, foi, ao longo da vida, uma figura distante, "fugidia", alguém que eu via de quinze em quinze dias, alguém que não estava fisicamente, desde que comecei a ter consciência da vida.  
Era portanto alguém que nunca estava no imediato, cuja segurança e protecção nunca poderiam por isso, serem providenciadas em tempo real.  
Vivendo com a minha mãe exclusivamente, a qual assumia toda a responsabilidade da minha educação, foi-me incutida a incerteza do meu pai viver até à minha independência e autonomia.  Hoje, com a longevidade do ser humano, esta ideia não faz muito sentido, mas estamos nos anos cinquenta ... Sempre pairou, portanto, a ameaça do afastamento forçado da figura paterna, que consequentemente nunca foi segura e certa.  O meu pai era a figura masculina que na minha vida, entrava, saía ... digamos que perpassava por ali, como um "homem em fuga"...
Pois bem, psicologicamente o ser humano regista, fixa o paradigma de "homem" e tenta repeti-lo para si, ao longo da vida.
Pareceria que eu deveria escolher para mim, exactamente o oposto deste perfil que me fazia sofrer, ou seja, homens que me estabilizassem, com quem eu contasse, que fossem certos e seguros, homens que pela sua postura "presente" sempre me equilibrassem por me reduzirem as angústias e as incertezas ... Mas não !  
Ao que parece, eu busco nas figuras masculinas a repetição do que tive ... ou seja, as minhas grandes relações, sempre foram homens com um elevado grau de impossibilidade, alguém não certo, não disponível, alguém com quem eu nunca poderia contar até à exaustão, alguém que verdadeiramente nunca fosse "meu" e com quem eu na verdade jamais contaria a cem por cento !...
Isto, em detrimento de tudo o que afinal tornaria tão mais simples a minha existência, a tornaria teoricamente mais gratificante e preenchedora, na minha vida emocional e afectiva !

Mas eu estou numa faixa etária em que apenas reflicto, analiso, concluo ... e verdadeiramente já não me molesto com nada disto.  Foi assim, teve que ser assim ... pelos vistos há explicação científica para as coisas ...
Agora, ver alguém nosso a destruir-se com uma "maldição" titânica, em que apesar de todos os esforços, destrinças e alertas, continua a deixar-se atolar em profundezas inóspitas e escuras, como se num pântano mergulhasse, é desesperante e destruidor !!!

Anamar

terça-feira, 11 de julho de 2023

" A VERDEIRA VIAGEM ... "

 


Regresso ao tema das viagens, talvez porque esteja confinada em casa com uma inesperada visita de Covid - Parte 2 ( vou chamar-lhe assim, porque sou reincidente na matéria ), o que me deixa angustiada e saturada ao mesmo tempo.  De facto, não estava  nos  meus  planos  ser  surpreendida,  mais  de  um ano  depois,  outra  vez  com  esta  "novidade" ...

Eu adoro estar em casa, aliás privilegio o tempo que aqui passo, como se num ninho estivesse.  Não fico de neura nem me apoquento. Ainda que pouca coisa faça ou desenvolva em termos de trabalho caseiro, ainda assim, o meu refúgio é lugar bem-quisto e repousante sempre.  Mas uma coisa é estar cá por opção, outra por obrigação ... Sempre assim é o ser humano !

Por isso, pensar na próxima ou próximas viagens ( porque destinos não me faltam e a imaginação sofre de ataques comichosos ... 😁😁 ), passíveis de se tornarem realidade futura, ou não passando de sonho sonhado, é uma panaceia que sinceramente aprecio e é muito do meu agrado.  É como se desta forma, como a ave que vai saltar do ninho e avalia do balanço do impulso, eu já fosse por aí fora rumo a novas paragens sem sair ainda do lugar ...
Ele há doidos p'ra tudo neste mundo ... 😁😁

Acontece que as viagens que faço, que tenho feito, que já só posso fazer, ficam por assim dizer, a anos-luz daquelas que adoraria fazer e jamais realizarei.  
Passo a explicar :  Sempre viajei, sozinha ou acompanhada, com uma rede por detrás, ou seja, espaldada numa agência, perante um programa ou projecto previamente proposto, que escolho e aceito.  Essa é a tipologia das viagens que se encaixam no espírito de viajante da minha geração.  Viagens seguras, previsíveis, vocacionadas para os sacramentais destinos turísticos, observando os lugares mais icónicos de cada país ou região, vendo o que toda a gente escolhe ver, visitando os paradeiros mais procurados e frequentados pelos forasteiros em cada país.
São por assim dizer, viagens sem surpresas, dimensionadas, calculadas sem sobressaltos, viagens "de carneirada" se em grupo, como costumo designá-las.  Talhadas por figurino prévio, vamos onde sempre vão, duma forma idêntica por cada grupo que a realiza.
Acredito que se a repetir, irei ver as mesmas coisas, não mais, irei escutar as mesmas histórias, ver os mesmos lugares, percorrer as mesmas avenidas, calcorrear os mesmos parques ...
Chamo-lhes viagens "plásticas", de fabrico em série, direccionadas para massas, talhadas para hordas de visitantes, mais ou menos interessados e disciplinados.  Têm pouca ou nenhuma emoção para quem tem um espírito inquieto e aventureiro como eu.  Curioso, também ...
São sem dúvida, viagens excelentes para acrescentar carimbos nos passaportes, como testemunhos de que já fomos àquele país.  E há pessoas que parecem pouco mais serem que apenas fãs deste coleccionismo ...
E desde que deixei de viajar só, a fasquia ainda desceu mais, porque aquela sensação gostosa de liberdade, de adrenalina, de auto-gestão que o facto de todas as escolhas e decisões se centrarem exclusivamente em mim, desapareceu, deixou de ser vivenciada.
Tenho saudades de, por exemplo, me ver em escala no aeroporto de Singapura ou Dubai, pelas quatro da manhã, sentada no chão a queimar o tempo observando com curiosidade toda aquela "fauna" que por ali circulava igualmente em trânsito, num aeroporto que nunca dorme ...
E como era interessante observar povos diferentes, hábitos diferentes, posturas diferentes ... ainda que fosse madrugada e o sono espreitasse há muito ...
Ou quando em Heathrow, igualmente no meio de uma viagem, também pela madrugada, o cansaço me levou a deitar nos bancos do aeroporto, cabeça na mochila, a passar pelas brasas, e por pouco não fiquei lá, tão profundamente peguei no sono ...
Ou quando em Bali ou em Zanzibar escolhia as opcionais que me interessavam e lá ia eu, só com o condutor do carro contratado, em busca da aventura de lugares exóticos, parques inóspitos, mercados fascinantes ...
Enfim, eram sensações preenchedoras, gratificantes, inesquecíveis ...

Mas tudo isso não representa a "verdadeira" viagem.  Porque essa, leva-nos ao âmago das gentes, leva-nos às vivências das terras, dos lugares, dos hábitos, das histórias, dos costumes ... das realidades outras, por esse mundo fora !...
E essa, nunca fiz na verdade, e também, nesta encarnação jamais farei ...
Nasci atrasada, fora de época, sempre vivi desenquadrada do possível, da correnteza, do que era ...
O meu espírito e mente de "mochileira" do destino, não podiam caber na geração em que nasci, nas épocas que atravessei ... não se compadeciam com as responsabilidades que desde cedo nos espartilhavam, num figurino familiar que se assemelhava a um qualquer determinismo da existência ... 
Invejo ... como invejo os jovens de hoje que desde os "erasmus" da vida, aos "inter-rails", aos intercâmbios temporários de países e famílias, se aventuram e partem, e experienciam e desvendam mundo fora novas realidades, novos rostos, novos gostos, novas vivências, sem peias ou grilhões que os prendam ... E tudo é um enriquecimento que não tem preço ou valor ... tudo é VIVER!
Como invejo estes cidadãos do mundo, neste mundo global em que as fronteiras não são mais baias ou limites, e as portas estão escancaradas ao sonho !!!...

Resta-me sonhar do sofá, resta-me "voar" pelas fotos, resta-me reescrever ou redesenhar o que nunca escrevi ou desenhei verdadeiramente além da imaginação, da vontade e do sonho ... e esse, felizmente é livre, independe de todos os condicionalismos que a realidade nos impõe, com que nos verga e coarta !!!...

Anamar

" SUR LE PONT D'AVIGNON ... "

 



Fui ... e até parece que fiquei... De facto, nunca mais aqui voltei. Uma desmotivação total tem-me afastado das "lides literárias".  Nada para dizer, nada para escrever, na verdade uma dispersão de sentimentos, uma mornidão de emoções, uma amálgama de questões reais e objectivas, dessas que não dá para fazer de conta que não existem, têm-me remetido a um desinteresse insalubre, cinzento e meio mórbido, silente e extenuante.
Quando as preocupações da vida nos sufocam, quando as angústias connosco e com os nossos avassalam o nosso espírito, é natural que não sobre muito "espaço emocional" para nos debruçarmos sobre até aquilo que nos era vital à existência ... neste caso, a escrita, ar que respiro, oxigénio determinante ...
Enfim, como diz assisadamente, para me confortar, alguém que talvez saiba do que fala ... "não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe ... e que depois da tempestade, virá o bom tempo " ...
Limito-me portanto a esperar, dando-lhe o benefício da dúvida !

E fui, como havia dito que iria.  Fui até ao sul de França, espantosamente país onde nunca aportara até então, concretamente Marselha, Avinhão, Aix-en-Provence, Roussillon, Les Beaus de Provence, Arles, Cassis e tudo o que por ali fica, guardando a teórica esperança de ser presenteada com o espectáculo característico e fantástico desta zona, por esta altura do ano : a floração das lavandas e das alfazemas, que dessa forma pintam de roxo os campos a perder de vista.
Em vão.  Havia de facto zonas de maior exposição solar onde elas já haviam aberto os olhos depois do longo sono invernal, mas o que eu teria adorado admirar, precisaria de mais umas três semanas para ocorrer.
Paciência !
De qualquer forma, viajei, saí do marasmo diário que é a vida repetida todos os dias, e pude usufruir de outras valências que realidades desconhecidas sempre nos proporcionam.  
Tratou-se de uma viagem em grupo, bem extenso por sinal, em que o mix de personalidades, em convivência diária por muitas e muitas horas, propiciam um enriquecimento pessoal, uma partilha de formas de estar, de sentir, um confronto de valores que nos livram do tédio, da má disposição, da saturação e até do enjoo ... 😁
Acresce que o grupo é constituído por amigos, todos eles alentejanos, e amigos dos amigos, porque sendo-o, amigos são !
Além da variedade de experiências abrangidas pelo programa, desde as belezas naturais, ao bucolismo das aldeias inseridas na paisagem, a arquitectura das cidades, o fascínio das catedrais e outros monumentos, a abordagem Histórica dos lugares e das pessoas, seus hábitos e tradições, tudo  enriqueceu a viagem.
Tocámos a rota dos pintores impressionistas dos fins do século XIX, início do século XX, em que Cézanne, Renoir,  Monet, ou Van Gogh cuja atribulada e rocambolesca vida, para mim terá sido o expoente máximo. 
Visitámos inclusive o atelier de trabalho de Cézanne em Aix-en-Provence, o qual permanece intocado, com todos os seus objectos de trabalho deixados por ali, quase sugerindo que o pintor saíu por instantes apenas ... 
O romantismo das cores, dos cheiros, dos silêncios, respirados nos ocres, amarelos e vermelhos sanguíneos fulgentes, dos sólos que habitaram, só poderia mesmo inspirá-los para as obras imortais que por cá deixaram.
Do passeio de barco ao recorte fascinante das "calanques de Marselha", zona pertencente ao Parque Nacional protegido desde 2012, à Ilha d' If, ilha prisão de deportados e criminosos, envolta romanticamente na história do seu prisioneiro mais famoso, o Conde de Monte Cristo ( onde se pôde visitar a cela em que cumpriu pena ), passando pelo bairro típico Le Panier em Marselha, onde a multiculturalidade e o tipicismo de vida muito particular de quem lá vive nos remete a outras realidades, ao espectáculo multimédia a ocorrer numa pedreira ancestral, em Baus de Provence, com uma dimensão esmagadora e fascinante, exactamente sobre as obras dos pintores marcantes do Impressionismo, como referi, até à  própria povoação de Baus, recortada e construída com o calcário extraído dessa pedreira e com características em tudo semelhantes à nossa Vila de Óbidos de que tanto gosto ... foram apenas alguns aspectos que retenho com bastante agrado.



 E depois, claro, com Avignon e o seu imponente Palais des Papes, e sobretudo com a sua ponte semi-destruída sobre o Rio Ródano, regressei aos bancos de escola em que na disciplina de francês se aprendia a trautear e a dançar de roda, a modinha infantil "Sur le pont d'Avignon on y danse ... on y danse ... tout en rond " ... 
E assim foi !...

Anamar