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quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

" OUTRA VEZ NATAL !... "

 

Dezembro é também aquele mês que se eu pudesse, saltava no calendário.
É de  novo mais um mês que forçosamente nos atira para balanços.  Balanços de tudo, do que se fez e não fez, das expectativas e das desilusões, das esperanças e dos fracassos inerentes, dos risos e das lágrimas, do ânimo que às vezes se levanta connosco e do desânimo que progressivamente toma conta de nós ao longo do dia ...
Balanços e mais balanços, e o peso de havermos carregado mais um ano que às vezes foi excessivo face à capacidade que as nossas costas anunciavam aguentar ...

2024 havia sido um ano muito difícil em muitos aspectos, mas 2025 não aliviou muito a carga dependurada do coração.
E depois há aqueles dias a atravessar... o Natal, que para mim se tem transformado numa travessia do deserto.  Cada vez são menos os que se sentarão àquela mesa.  Já só menos de meia mesa, terá  confraternizantes, e cada vez mais aquilo que cada um exibe, se transformará numa performance mal ensaiada, menos credível, mais esvaziada de reais sentimentos.
Prevejo que seremos quatro à mesa, com a alegria que conseguirmos coleccionar, com a boa disposição afivelada nos rostos, até porque está uma criança e ela não tem idade p'ra perceber, sequer suspeitar qual a cor do coração que cada um de nós tem guardado no peito.

Ao longo da minha vida, os meus Natais poderiam ocupar prateleiras bem diversificadas umas das outras.  Parece que eles se caracterizam e definem muito bem, e cada um deles pertence claramente a um dossier que poderia facilmente ser catalogado.

Os primeiros Natais que recordo, os mais gratificantes e doces, foram, como já contei em posts lá para trás, os Natais da minha meninice, os Natais de família à séria, os Natais alentejanos, os Natais inevitavelmente inesquecíveis.
Eram os tempos de acreditar no Menino Jesus, sim porque era Ele que se aprontava a marcar presença, nas gélidas noites de Missa do Galo na Igreja da Saúde na terra que era muito mais minha que aquela onde na realidade nasci.  Noite quase sempre escura e estrelada, noite de avó a caminho da igreja, no seu xaile quentinho e lenço na cabeça, de uma igreja que nunca mais me saíu da mente, clara e iluminada, com a talha dourada ainda mais refulgente, os círios acesos e o cheiro das velas ardidas, e a fila que aguardava p'ra beijar o pezinho ao Menino no fim da cerimónia, que o padre pegava e limpava com uma toalha de linho após cada osculação ...
Em casa, enquanto os homens se aqueciam no madeiro imenso, a arder na lareira de parede a parede daquela cozinha velha, as mulheres, tias, primas, mais novas ou mais velhas, preparavam a consoada com as iguarias de sempre.  Haveríamos de as degustar para aquecermos o espírito, à chegada do frio da noite ...
É um lugar comum, creio, para a maioria de nós guardarmos carinhosamente, e por todas as razões, os nossos Natais de infância ... os mais doces deles todos !

Depois vieram os Natais da Beira.  Outra realidade, outras pessoas ... contudo sempre família.
Esses, foram os Natais da infância das minhas filhas.
Outra casa, outros amigos, outros cheiros e sabores, mas contudo ainda éramos alguns, os dedos das duas mãos chegariam para os contar, mas havia vida a pulsar também, nos adultos e na criançada.
Havia a árvore e o presépio, tudo colhido nas matas, havia risos e gargalhadas, o bacalhau e a "roupa velha" no dia seguinte ...
Depois ... bom, depois foram indo ... Uns para a terra de ninguém ( esses só nos repousam nas memórias e nas imagens dos vídeos que ainda hoje nos fazem sorrir ), outros apenas tomaram novos rumos, novos trilhos ... outros destinos !
Gostava de poder espreitar aquela mesa, na noite da consoada, e espicaçar o lume, como o fazia, para minorar o frio que sempre tenho ... Gostava, mas não posso ... a vida é assim !

Hoje, bem, hoje por enquanto talvez sejamos três, à mesa.  E de todos os Natais, estes que tenho vivido nos últimos tempos, são os mais incaracterísticos, aqueles de que menos memórias guardarei, aqueles em que os lugares vazios estão mais vazios do que nunca, aqueles em que a solidão e um silêncio interior ( que talvez só eu pressinta ), mais se fazem sentir.
É um misto confuso de sentimentos, é um ruído e uma turbulência tonitruante, é uma ausência e uma escuridão absoluta, numa sala ainda assim iluminada, numa mesa onde ainda assim haverá conversas, onde vamos todos fazer de conta que por ali passa uma qualquer felicidade e alegria que afinal não se deixam mascarar, e que lá bem no fundo, não enganam ninguém ...

Feliz Natal !...



Anamar

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

" NEM SEMPRE O AMOR CURA "

 


Vivo há mais de cinquenta anos nesta casa, neste andar desta praceta, num nascente poente que me inunda de sol de manhã à noite.

Para aqui vim em início de vida, tinha vinte e três anos de idade, ainda só uma filha, vida profissional a iniciar-se, quilos de sonhos a cumprir.  E por cá vivi, com os altos e baixos, provavelmente normais a todas as vidas.  Nasceu outra filha, escreveram-se páginas e páginas de histórias, realizações ou não, alegrias ou não, coisas boas a recordar e outras nem tanto.
Afinal as histórias do ser humano serão todas um pouco parecidas e infinitamente diferentes também !

Leccionei na escola aqui do burgo, e por mim passaram gerações e gerações cada uma com as suas idiossincrasias, das quais guardo até hoje, rostos, nomes, guardo memórias quase sempre felizes.
E constato que a reciprocidade dos afectos perdurou pelos tempos ... apesar de hoje já sermos outros !
Afinal, uma das características da memória é ir colher lá atrás, com grande grau de precisão, exactamente essas lembranças que ainda hoje aquecem o coração !

A minha casa é pertinho do céu e sobranceira a um casario descaracterizado, desordenado... eu diria, caótico.
Resta-me o céu azul ou carregado de nuvens ameaçadoras, se o tempo não está de feição, resta-me a lembrança da Pena lá longe, na linha do horizonte antes de terem construído um intrometido edifício de seis ou sete pisos que a cobriu do meu ângulo de visão, restam-me os pombos que decoram qualquer ambiente urbano neste momento, os periquitos de colar que atravessam aqui por cima, quase sempre apressados e que se anunciam pelo seu piado  característico e finalmente as gaivotas, em bandos desordenados ou espanejadas na aragem que passa, como se encetassem apenas um bailado e não tivessem rumo ou norte. 
E finalmente restam-me os pôres de sol inigualáveis e por isso mesmo, inesquecíveis, que me são presenteados a partir desta minha janela privilegiada, fechando os dias, virada que está a poente, com Sintra lá ao fundo, bem longe e bem saudosa ...

E pronto, a minha casa, que tem de tudo um pouco, já com uma vetusta idade, encerra o espólio da minha existência.
Cada peça que a compõe, é um tesouro para mim.  Cada uma tem um valor que não é material, mas incondicionalmente afectivo. Se tivesse que as escolher em função da dedicação que lhes tenho, seria uma tarefa hercúlea.
A minha vida gira dentro desta casa, como ninho de protecção e conforto.  Por maneira de ser nunca fui dada a muitos e variados convívios.  Sou uma pessoa de fácil relacionamento mas preferencialmente escolho o isolamento no meu "buraco"... Não é por mal, talvez seja assim por ter um carácter reservado, que foi sendo lapidado ao longo do meu percurso de vida, mercê do "figurino" desenhado desde a infância, numa vida vivida praticamente a sós com a minha mãe.  Mas, sendo curto o meu núcleo de relações, sinto que sou estimada pelas pessoas ... acho que posso dizer isso.
O facto de há já mais de vinte anos viver só, porque me divorciei, a Covid que também condicionou o convívio entre as pessoas e em última mas não despicienda razão do avanço da idade, vivo cada vez mais confinada a este reduto só meu.
Meu e dos meus gatos, um casal que divide as vidas dia e noite, com a minha ...

"Os anos tudo trazem e tudo levam" ... era uma velha máxima que a minha mãe usava e abusava, coisa que me irritava profundamente, quando parecia que eu afinal tinha a vida toda para viver... o mundo todo para conquistar ...
Hoje, ver a vida do patamar onde já me encontro, permite-me perceber quão verdadeira e adequada aquela era...
Hoje, a minha filha mais nova, que cuidou da avó até ela nos deixar, antecipa novamente o cenário que me espera ... 
A minha filha é doente oncológica de há um ano a esta parte. Eu digo "é", porque quem tem a desdita de contrair esta doença, por mais benigna que esta o seja, o que parece ter sido o quadro para ela diagnosticado dentro da panóplia de hipóteses com que poderia ter sido "sorteada", é-o para toda o sempre.  É um quadro clínico que não tem certezas, é traiçoeiro e surpreende.  Demasiadas vezes surpreende!
Acresce, que ela é sozinha e tem quase inteiramente a seu cargo uma criança de apenas oito anos.
Vive na margem sul, é enfermeira também num dos hospitais dessa localização, e tem toda a logística de vida dela e da filha, instalada naquelas bandas.
Como se imagina, o meu equilíbrio emocional virou da noite para o dia, complicando ainda mais o mundo caótico que sempre é o meu espírito.  
Assim, fui confrontada com talvez a necessidade ( vou chamar-lhe assim ), de nos aproximarmos em termos habitacionais, que é como quem diz, eu ir viver para mais perto delas as duas. 
Eu avanço na idade, logo nas exigências inerentes a essa situação, o futuro dela em termos sanitários sobretudo, é imprevisível, bem como o são, as capacidades que venha a ter futuramente e a impossibilidade dos nossos poderes adivinhatórios vislumbrarem o futuro que nos espera.
Sem dúvida o tempo urge e a partilha entre nós, é escassa.

E vou ter que resolver.
Nunca sequer imaginei vir a ter que passar por uma situação destas, porque vender a minha casa está longe de ser uma mera transação financeira; envolve um lado emocional profundo e uma sensação de despedida.
Fechar esta porta é um virar de página, é um encerrar de um enorme capítulo da minha vida, num período desta em que a resistência emocional e afectiva é mais vulnerável do que nunca.  É um desafio à minha capacidade de superação de sentimentos intensos de nostalgia, de apego e de incertezas.
É um desafio à capacidade de que consiga dispor, de pragmatismo, frieza, objectividade, pressão emocional ...
Ainda não parti e já tenho saudades, ainda não parti e já lido com sentimentos contraditórios do que classifico de egoísmo, desumanidade, falta de amor ... se optar por ficar ...
A minha filha pensa nela, mas também pensa em mim se quando eu precisar dela me não puder ajudar como fez com a avó...
Sem dúvida é uma duplicidade de sentimentos que me atormentam, é uma mescla de amor e de dor, como se no coração me estivessem a roubar as memórias, as histórias, a vida !...

E em contínuo, pelas madrugadas de insónias, vejo e revejo o filme dos cinquenta anos em que, bem ou mal, a rir ou a chorar por aqui estive ...

Lá fora, hoje, as gaivotas dançam na aragem fria do vento que corre, enquanto que um laranja doce escurece aos poucos na linha do horizonte, lá para os lados de Sintra ... anunciando que mais um dia chegou ao fim !

Anamar 

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

" CANSAÇO "

 


Júlio Machado Vaz no seu último livro Outonecer que entre muitos outros aspectos incide na temática do envelhecimento ( referindo o "peso" psicológico que nos toma exactamente com a entrada no Outono da vida ), descreve que como nenhuma outra idade, os três quartos de século completados no ano passado, o mexeram por dentro. 
Até então, as décadas anteriores foram vivenciadas com um olhar de normalidade, de aceitação, de pouca ou nenhuma perturbação emocional.
Mas completando setenta e cinco, percebeu objectivamente aquilo a que verdadeiramente chamamos de "o peso dos anos".
Li o seu livro há pouco tempo e é verdade que JMV me mostrou nesse seu livro uma faceta de melancolia e até talvez de um entristecimento que nunca lhe havia sentido até então, como se de repente ele se tivesse voltado mais para o seu eu interior, e desligasse do mundo fora desse casulo ...

Eu sou absolutamente contemporânea do professor.  Eu também completei ontem três quartos de século de vida.  Não três quartos da jornada que me coube ou caberá. Afinal, o caminho percorrido encurta cada vez mais o que está por percorrer ... 
Contudo, também, tal como ao professor, este outonecer, ou até mais ... este invernar da vida, me magoou, feriu, atingiu, como se tivesse sido surpreendida à má fila, pelo transcurso do tempo.  
É como se não me tivessem avisado... é como se me tivessem apanhado distraída ... sem que ninguém acendesse para mim, pelo menos, o semáforo amarelo !!!

Sou muito introspectiva.  Muito negativa, muito derrotista, pouco esperançosa ... sempre com o copo meio vazio na mão.  É característica personalística, infelizmente.  E por mais que psicologicamente eu "trabalhe" em mim esta forma errónea de encarar a vida, não consigo alterar, com argumentos nenhuns, esta malvada forma de a enfrentar e de sentir ...
Muita coisa aconteceu e acontece na minha vida, nos últimos tempos ... e não forçosamente coisas felizes.  Experimento ou uma sensação de desistência com a praia à vista, ou sinto um abandono que me faz encarar os dias como em fim de caminho.
É uma sensação de não valer a pena isto ou aquilo, não valer a pena pôr a mesa da vida, porque já não ocorrerá nenhum banquete mais, não valer a pena desarrumar nada porque seria uma perfeita inutilidade fazê-lo, parece estar tudo em fase de acabar e não de recomeçar ...
Não tenho um foco, um objectivo, uma meta, algo por que me esforçar, algo que justifique continuar a esbracejar no meio da tempestade, algo que me faça sonhar, algo que afaste de mim este mofar que parece circundar-me e apodrecer-me aos poucos ...
Detesto-me, estou exausta, sinto-me um peso morto, algo de fétido ... uma merda !
Não me reconheço ! Perdi-me totalmente nas encruzilhadas da vida ... esqueci o caminho e o nevoeiro adensa-se ao meu redor.  Pouco já se divisa, pouco se enxerga, um negrume está a descer mais e mais ...
Veremos até onde e quando suportarei a tempestade ...
Veremos até onde terei olhos para a sempre beleza do crepúsculo ...

Anamar

terça-feira, 21 de outubro de 2025

" OUTRA VEZ OUTUBRO ... "



O dia amanheceu cinzento, chuvoso, bem outonal, como aliás vinha sendo previsto pela meteorologia.
Está um dia de semblante aconchegante, sobretudo pra quem não precisa ir para a rua, que é o meu caso.
Já Pessoa dizia que "um dia de chuva é tão belo quanto um dia de sol. Ambos existem; cada um como é "
E concordo totalmente porque embora eu seja uma incondicional "prisioneira" emocional do sol, o intimismo que hoje se sente lá fora, cria aqui dentro uma sensação inegável de ninho, o que nos ampara e embala a alma.

Porque raio tendo eu a começar tudo o que escrevo, a situacionar o meu discurso, nas condições atmosférica que me cercam ?!... Isso deve significar que elas são determinantes ao meu eu interior ... e porque o serão?? Talvez um bom psicólogo o soubesse explicar.
As minhas filhas riem e dizem : "Lá estás tu... se chove, se faz sol, se se aproxima uma tempestade ... se vai estar um mar de rosas ... nunca vi ninguém assim !"
Vou até confidenciar um pormenor que não lembraria ao diabo mais velho ... algo verdadeiramente caricatural ... mas real... o que posso fazer ?! 
Tenho viajado ao longo dos tempos quando, e se posso.  Sinto-me sempre uma itinerante que leva a vida a desenhar roteiros, lugares, terras, gentes, costumes, inacabáveis... visando sempre uma próxima viagem. E claro, achando que vou morrer tendo-me sobrado o mundo inteiro por conhecer ... E como o lamento !!! 
Pois bem... a propósito do sol, que quase sempre persigo,  como referi, cheguei a marcar muitas viagens de avião, pensando nos parâmetros de geolocalização da rota, e a marcar o lugar ( que é sempre junto à janela ), por forma a sentar-me do lado em que o sol me inunde, quer na ida, quer na vinda, se o percurso for obviamente diurno ... Ah, ah, ah ... já é coisa de doidos !!! 😕😏

Bom, mas já estou a afastar-me daquilo que efectivamente era o tema deste meu escrito .

Faz amanhã exactamente um ano, que a minha vida tomou um rumo inesperado, terrível, para o qual eu não estava nem de longe nem de perto, preparada.  Um soco no estômago, um gelo que me desceu às entranhas, um terror profundo que me tolheu, no teor do telefonema que recebi pelas dez da manhã.
Do outro lado, a minha filha mais nova, com quarenta e seis anos à altura, chorava e dizia-me entrecortadamente : "Mãe, tenho um nódulo na mama e há fortes suspeitas que possa vir a ser grave"

Exames de rotina, que no caso dela haviam sido feitos há pouco mais de um ano, cuidadosa que é, até porque profissionalmente está na área da saúde, apanharam, assim, do nada, na maior imprevisibilidade possível, uma situação que paralisa, desde logo momentâneamente, a vida de qualquer um.
Eu acho que numa fracção de segundos desfilam à nossa frente, hipóteses, medos assombrosos, dúvidas, mas também sonhos que parecem desfazer-se, esperança e talvez, imagino eu, aquela pergunta que revolta, mas que inevitavelmente nos cai frente aos olhos :"Porquê eu, se nem sequer existe um historial familiar que pudesse indiciar, um dia, quem sabe, a prevalência da possibilidade do surgimento deste fantasma ?"
Parece, mais que uma partida do destino, uma facada à má fila, feita cobardemente pelas costas, silenciosa e sádica ...

O dia 22 de Outubro de 2024, num Outubro Rosa, inesquecível para mim, mudou-me definitivamente por dentro. A minha vida nunca mais foi ou poderá ser a mesma. 
"Quem é doente oncológico, sê-lo-á enquanto viver ", afirmam os especialistas, os cientistas, todos os que dedicam à exaustão, as suas vidas a tentar uma escapatória, uma saída, uma cura ...
Abordo o menos insistentemente que consigo, com a minha filha, informações, esclarecimentos, dum tema que pra mim se tornou quase tabu, pelo medo com que me assola.
Vivo pendurada de datas de exames, que peço ela me informe e bem assim os respectivos resultados, vivo de "lupa" na mão sobre qualquer sintoma que, claro, logo tomo como suspeito disto e daquilo.
"Estás cansada ? Estás demasiado magra !  Dói-te alguma coisa em especial ?"

Sei que no interior dela também existe um looping de inquietações, de medos, de ansiedades e inquietudes.  Sei que existem, mas ambas somos parcimoniosas com o tema.
Por cima da minha cabeça, existe, em equilíbrio precário, uma espada ... e que cada dia, ou cada resultado tranquilizante, é uma vitória, é uma esperança que se volta a abrir, é o ar que consigo inspirar em maior profundidade ... 
Penso que ambas sentimos uma urgência maior em valorizar os períodos de acalmia, ambas parecemos, sobretudo ela, sorver cada momento, usufruir cada situação, cada experiência, cada dia de vida, com pressa, como se fossem precários e como se de um momento para o outro, esse período de abençoada paz possa terminar ... 

Adormeço por cada dia com tudo isto ... amanheço por cada dia com tudo isto !
A angústia e a insegurança vivem comigo, habitam em mim !...

Não sou nem mais nem menos do que milhões de outras pessoas, que talvez apenas não exteriorizem aquilo que sinto.
Resolvi hoje falar disto, convosco, partilhar talvez com outros, sentires iguais ao meu ... Talvez alivie um pouco !

Que Outubro, tantas e tantas vezes tão negro, possa tornar-se na vida de cada mulher num auspicioso e verdadeiro Outubro Rosa ... Esse, é o meu mais íntimo desejo para o resto dos meus dias por aqui !...

Anamar

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

" PEDAÇOS ... "


Os dias amarelaram. No céu, de um azul pouco convincente, fraquinho, fraquinho, nuvens esparsas vão seguindo viagem. Um vento desabrido pavoneia-se por aqui e arrepia-nos o corpo.  O Outono assoma.  Hoje já cá está.
Num banco da praceta, alguém que tem como protecção apenas um cobertor, aninhou-se.  Visto cá de cima é uma espécie de embrulho que alguém ali tivesse deixado.  Talvez já se prepare para a noite que chega a passos largos apesar da temperatura o não aconselhar.

Esta época do ano, estes dias melancólicos e de silêncio que parecem esconder uma sonolência triste da natureza, não me fazem bem nenhum.  Parece que tudo deitou para dormir.  Parece que tudo fechou os estores para uma hibernação de desamparo.
Do Outono eu adoro as cores da natureza.  A "caça" aos laranjas, amarelos, castanhos e  avermelhados ou até mesmo o início da queda da folhagem das árvores e arbustos que já completaram o ciclo anual de vida, leva-me a procurar nos programas turísticos, lugares por esta Europa fora onde os encontrasse no intimismo de paisagens inesquecíveis. E sonhar ...
Recordo imagens gravadas na mente, há muitos anos, num Setembro norueguês, onde a simplicidade da vida em meio a uma natureza doce e aconchegante, chamava a passeios pelos campos em busca das flores silvestres sazonais e das bagas dos frutos vermelhos a oferecerem-se às compotas da época ...
E era muito bonito mesmo, a paz que se respirava, os cheiros que nos impregnavam a alma, aquela pacatez no meio da floresta ... os abetos e as coníferas duma forma geral, ainda verdes, erectos na espera das primeiras neves que não demora, os enfeitariam ...

Estou a atravessar uma fase da vida em que a saturação do dia a dia e a vida numa cidade horrível, totalmente descaracterizada, sem absolutamente nada de interessante e que nada tem de semelhante com tempos idos, me deprimem ainda mais.
Com uma frequência nas ruas pouco recomendável, sem um espaço verde de valer a pena, sem uma esplanada de um café para ameno cavaqueio ... nada, absolutamente nada ... cada vez mais e mais me isolo em casa, 
A solução seria sair, ir embora, procurar outros espaços, o que só por si já limita qualquer interesse ou entusiasmo de o fazer. Ter que pegar no carro, fazer-me ao trânsito, à confusão das gentes, retiram-me qualquer vontade que possa existir.
Neste momento anseio apenas por paz, silêncio, natureza ... Neste momento adoraria viver fora daqui.
Sinto-me a adoecer ... a sério, sinto-me a ficar com a saúde mental seriamente afectada.

Este post, como o nome indica, aborda apenas pedaços de mim, nada de relevante que acrescente ou retire nada a ninguém ...
Afinal não há muita escolha no registo emocional para as pessoas que, como eu,  estando já profissionalmente libertas, pertencendo a uma determinada faixa etária, e em que as opções lúdicas propostas são pouco ou nada aliciantes ... além de escrever banalidades ou registos vazios de vida, pouco ou nada interessantes !
Não sei ou me interessa tricotar, nem tenho prendas domésticas, fujo das imagens aterrorizantes das guerras que grassam e dizimam os povos, fujo das notícias catastróficas de desgraças naturais quase sempre despoletadas pelas alterações climáticas trazidas pela mão do Homem, odeio as guerras políticas que devastam os países, os continentes, a nossa sanidade mental ... vou lendo, pouco, pela dificuldade de concentração, descreio cada vez mais no ser humano e nas suas reais intenções ... sobra-me o quê?!

A mata ... o único lugar onde ainda há verde, pássaros que pipilam, gatos sem dono ou casa ... e já nem patos bravos nadam nos tanques ... porque novamente o Homem se encarregou de lhes envenenar as águas ... 😓😓

Anamar 

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

" FANTASMINHAS DOS SILÊNCIOS ..."

 



Sempre o ano começava agora.  Agora que as férias objectivamente terminavam, agora que a criançada já povoa de novo as ruas, agora que se reabriam os livros, os dossiers, até mesmo a pasta, dormida que estivera nos meses de Verão. 
Não sei bem explicar este brouhaha interior que chegava como a última onda da praia, e se instalava, feito um frisson inquieto, que ano após ano se anunciava.

Era sempre assim. Havia uma animação no ar que nos preenchia de uma espécie de expectativa inexplicada, de uma espécie de alegria e de ansiedade que não doía, nem cansava, feita de curiosidade, vontade de rever, encontrar, falar, rir, olhar rostos que deixáramos, fechar abraços que interrompêramos ... enfim, sempre havia um objectivo a atingir, um desígnio a alcançar, um foco ...
E começava mais um ano lectivo !

Hoje, olho para trás e parece que esvaziei por dentro.
O cheiro dos livros e dos cadernos já não impregna este meu espaço, sei que as salas já não me esperam, sei que é como se eu tivesse dado um salto apenas, para as prateleiras onde os livros alinhadinhos  repousam sonolentos, imprestáveis, desocupados ... piscando-me apenas os olhinhos meio cansados e inúteis. Apenas fazendo-lhes companhia ... avivando memórias ... 
Hoje, é como se nem na equipa de suplentes eu ocupe lugar ...
Os meus miúdos mais velhos, todos três universitários, alguns iniciando, outros olhando já o mercado de trabalho, pertencem a departamentos que já não domino ...
A benjamim, numa terceira classe com currícula que pouco me diz, também já nada tem que me mobilize.  Agora é a vez de ser a mãe a afobar-se, a inteirar-se, a desdobrar-se na azáfama instalada ...

E no entanto tudo parece que foi ontem, parece ter sido ontem que pela última vez cruzei aqueles portões de entrada, aqueles portões de uma vida !...

Lá, já ninguém me conhece ... "Onde é que a senhora vai ?"... E eu só quereria franquear uma última vez, à sorrelfa, a porta da sala dos professores... naquela ânsia, quase certeza que ainda haveriam de estar ali, todos, no cavaqueio à volta de camilhas que agrupavam os interesses, as áreas, os grupos disciplinares, de acordo com as especificidades individuais ...
Eram os matemáticos, os de inglês ... mais além Português, ou Física e Química ou Biologia , ou ... ou ... ou ...
E já tantos foram embora !... E já tantos deixaram de responder à chamada ... E já tantos estão tão irreconhecíveis, quando às vezes ainda nos cruzamos, em golpes acidentais, que me confrangem o coração !
O tempo , o malfadado tempo brincou com todos nós, de esconde-esconde ... Deixei uns e que é feito deles ?!  Onde raio se perdeu a gargalhada da Tininha ?  A bonomia da Emília ? Os bordados da Alcina ?  O Moisés, o Arlindo, o Sampaio, a Ana Frade, a Teresa Sobreira, a Celeste ... todos ... tantos ?!...
Não os acho além da minha memória, não os escuto a não ser no som do silêncio ...
Fantasminhas que povoam as minhas lembranças ... palavras, cheiros e cores que se vão esbatendo na espuma dos dias ...

Uma vida ! A vida ... a única que detenho.  Até um dia ... quando for ... em que as portas definitivamente se fecharão !

Anamar

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

" DESAPEGO ... "



"Quem se deserda antes que morra, devia levar com uma cachaporra !"

Julguei que isto não existia.  Só ouvia este ditado à minha mãe.  A minha mãe sempre teve expressões que eu acreditava advirem do regionalismo da linguagem.  O Alentejo usa termos e particularidades linguísticas que nunca ouvi a mais ninguém ... mas ela também era perita em neologismos que fui assimilando sem demais preocupações, e que acabei incorporando no meu expressar do dia a dia.
De quando em vez dou comigo a soletrar palavras, frases, ditados ... sei lá ... e depois pergunto-me : " mas isto existe mesmo ??  As pessoas dizem ou expressam-se assim ?"...
Alguns, pesquiso no google, lá, onde se encontra quase tudo, e acho ... às vezes até acho.  Outros, nem mesmo aí , e já não tenho hipótese de lhe "re-perguntar", porque ela já partiu há muito !...
É quando penso quanto tempo eu já perdi na minha vida !...

Pois é, mas este ditado com que iniciei o meu post, afinal existe mesmo ... e o seu sentido talvez também se entenda facilmente.  
Só que o desapego deverá ser a essência norteadora do ser humano, e ele, o ditado, recrimina esse mesmo desapego, apelando sim, à manutenção das nossas coisas, dos nossos valores, dos nossos sonhos até, para sempre, enquanto por cá andarmos ...

Afinal, em que ficamos ?? Afinal, em que fico ??

Vivo só com os meus dois gatos.  Amiúde, falo deles.  Acompanham-me dia e noite.  
Eles, o lugar onde vivo há mais de cinquenta anos, os mesmos objectos, as mesmas fotos, os mesmos livros, a mesma música ... os meus escritos, e depois uns pequenos baús guardadores de memórias.  Memórias de tempos, de momentos, de pessoas.
De uma concha, uma pedra, uma haste floral seca, um tufinho do pêlo do meu primeiro gato que já partiu há muitos e muitos anos, dois ou três miosótis que acompanharam o meu pai, sobre a lápide do cemitério, um guardanapo de uma qualquer esplanada da vida, um bilhete de cinema com uma data inscrita, uma frase largada por alguém num pedaço de papel rasgado no momento, um cheiro impregnado num farrapo qualquer, nunca entretanto lavado ... uma peça de roupa vestida ... ou despida, numa dada ocasião ... de tudo existe religiosamente guardado !

E guardei, guardei, guardei...
Às vezes ... poucas vezes, por carência, buscava-os em tardes de nostalgia, pensando que me sentiria melhor, mais confortada ao revê-los e senti-los.
Desatava-lhes as fitas de cetim que os fecham, olhava-lhes longamente os interiores e repassava cada pedaço, cada coisa, cada objecto, como se os acariciasse, os embalasse nos dedos e no coração ... 
Depois repunha-os de novo no fundo dos baús.  
E de novo os fechava, de novo lhes fazia o laço de fita e de novo os guardava exactamente nos mesmos sítios, como se ali repousasse uma espécie de sacrário inviolável ...
E ficava pior, sempre ficava mais amargurada, mais infeliz, mais triste, como se aquele património emocional e afectivo que estivera nas minhas mãos, pudesse trazer-me de novo consigo, em tempo real, tudo o que cada coisa representava, e pudesse devolver-me nem que por instantes, a ilusão de uma esperança revivida ... E afinal voltava a ir-se, deixando-me apenas um vazio atroz e doído, maior ainda.
Mais pobre, mais defraudada, mais expoliada  ... injustamente confrontada com a realidade, outra vez ...

E pensava : vou ter que dar um destino a tudo isto.  Essa tarefa só a mim respeita, e não suporto a ideia da inviolabilidade não vir a ser respeitada ... não suporto a ideia da devassa, porque todos aqueles pequenos nadas, são muito, porque foram parte integrante da história da minha vida.

Esta ideia tem-me perseguido, mais e mais à medida que os tempos vão indo.  E sempre adio, pois dói muito alienarmos o coração e a alma, é como se estivéssemos a rasgar-nos um pouco, a deitarmos fora pedaços de nós.

Ontem, num ímpeto, abri a gaveta onde guardei durante quase vinte anos o meu enxoval de lingerie. É verdade que as peças já me não servem, nem servirão nunca mais, é verdade que nele gastei rios de dinheiro, é verdade que ele era lindo, com peças de sonho, como os sonhos que vivi com elas.
E olhando a minha filha, disse-lhe : " Leva, se quiseres ... é tudo teu !"
E pra dentro de mim, eu segredei ao coração espremidinho, enquanto uma lágrima teimosa descia : "Eu fico com as memórias e com os sonhos que elas encerram !"...

Sensação estranha, muito estranha aquela que hoje me toma ao olhar a gaveta praticamente vazia.  Afinal pareço começar a desapegar-me, rumo a uma meta que nunca se sabe quando será !
Mas também não tenho, de facto, muito tempo a perder ...

Anamar

sábado, 19 de julho de 2025

" UM PEDAÇO DE TERRA ..."

 


Cheguei há dias de uma viagem que fazia parte do meu roteiro de sonhos, e que como todas as viagens, neste momento em que o fluxo de viajantes pelo mundo é inimaginável, estava marcada há bastante tempo.
Refiro isto, para que se perceba que apesar dela representar uma realização desejada há muito, não foi totalmente usufruída, por razões de ordem pessoal, relacionadas com a saúde.
Mas enfim, dentro do possível, tentei tirar o máximo partido da viagem à Islândia.

A Islândia é aquela ilha perdida no hemisfério norte, no meio do Atlântico, lá bem no "altinho" do globo terrestre, beijando a norte, o círculo polar ártico, o que significa uma latitude de sessenta e tal graus.
É um país relativamente jovem, geologicamente falando ( 20 milhões de anos ), que devido à sua intensa actividade vulcânica, continua a acrescentar "chão" ao seu território.
Por ele passa a dorsal mesoatlântica, com a proximidade das duas placas tectónicas euroasiática e norte americana, o que "conflitua" a "paz" geológica da ilha, com uma imensa e quase permanente actividade vulcânica, com a erupção de alguns vulcões, com regularidade, e bem assim, os associados sismos devidos ao "pote" de magma líquida existente por debaixo dos nossos pés.
É um país com uma população de menos de quatrocentos mil habitantes, para uma área de cerca de cento e três mil quilómetros quadrados.  Dois terços dessa população reside em Reiquiavique, a capital. 
Apresenta por isso uma paisagem inóspita, caracterizada por um relevo muito acentuado, montanhas, campos arenosos nos sopés, formados por areia negra basáltica, glaciares, lagos e lagoas, cursos de água, esmagadoras cascatas e mar, obviamente mar à sua volta, porque de uma ilha se trata.
É um país com características comuns aos outros países nórdicos que conheço, desenvolvido, calmo, organizado e sobretudo, seguro e pacífico!
A sua população é relativamente jovem, os salários são altos, os impostos baixos, mas a vida, caríssima.
A sua História começa no final de século IX, com a colonização feita pelos exploradores vikings.

Não pretendo ser exaustiva, nem que os meus escritos sejam uma página de agência de viagem, ou tragam algo de novo, ao que qualquer curioso e interessado pelo país, não colha nas páginas da internet.
Não !
O que aqui irei destacar e enfatizar, é apenas a minha visão, e a experiência sensorial sobre o que me levou à Islândia ... a sua beleza natural esmagadora, a sua natureza fascinante, as suas cores, os seus sons e até mesmo os seus silêncios ... as suas lendas, a agressividade do seu mar, a dureza das pedras negras que formam as suas areias, a rudeza do seu basalto amontoado a esmo pelas erupções vulcânicas que mal se anunciam ... os espaços amplos parecendo esquecidos, a falta de horizontes que impeçam que o nosso olhar, o nosso coração e até o nosso sonho vá sempre mais e mais além ...
Foi tudo isso que me preencheu, tudo isso que me fez respirar em pleno, a palavra com que defino a Islândia : LIBERDADE !

Já viajei sozinha durante anos.  Hoje, por razões de segurança, e porque os anos foram passando, viajo em grupo, com agência de viagens.
Esta forma actual de viajar tem obviamente vantagens, até culturalmente falando, uma vez que os guias que vou cruzando, verifico serem profissionais cada vez mais competentes, sabedores, cultos e claro ... são uma rede de suporte fundamental, sobretudo em situações imprevisíveis que possam ocorrer.
Mas para mim, as viagens de grupo têm desvantagens incontornáveis.  Não se consegue usufruir de uma comunhão plena com o que se deseja.  Ninguém respeita por exemplo, o silêncio de quem o anseia.  Quantas vezes procuro afastar-me do grupo, da turba de gente que só está feliz tirando fotografias em magotes, fazendo vídeos com comentários absurdos e apalermados que obviamente ficam gravados e que não interessam nada a muitos dos próximos.  Ou passam à frente, despudoradamente ... e pronto, lá se vai o vídeo, que dessa forma macula aquele momento mítico que se desejaria reter pra todo o sempre ... 

A Islândia propicia muitos lugares de paz e de silêncio, onde só a brisa que perpassava na folhagem se escutava.  
A Islândia é um misto de cores, dos verdes aos castanhos e ao negro da  lava solidificada, ao azul do céu que tivemos o privilégio de usufruir todo o tempo ... o som gorgolejante da água que corre por todo o lado, as espécies e cores das flores silvestres que nunca murcham, a fauna autóctone como os ostraceiros, os cisnes, as andorinhas do mar e as cores inesquecíveis dos papagaios do mar, ave marinha que nidifica nas falésias e é o icone representativo da Islândia ... às ovelhas, cabras e algumas vacas, bem como os cavalos de raça islandesa que pastoreiam em total liberdade, pontilhando as encostas e as planícies.
Não existem grandes agregados populacionais.  Não existem torres de apartamentos nas pequenas cidades.  As casas, praticamente todas, quase sempre revestidas de madeira, usufruem de logradouros à volta, sem muros ou barreiras impeditivas do convívio.
Como a população é absolutamente dispersa, as casinhas de cores vivas, espalham-se, uma cá, outra lá, pelas zonas mais planas, no fundo das montanhas, como se fossem miosótis despontados no meio da turfa que pinta a paisagem.  Parecem pecinhas de lego lá longe, onde a vista alcança ...
O ar é puro, leve, sente-se claramente despoluído !

E depois, p'ra finalizar, nesta altura do ano, em pleno solstício de Verão, o sol da meia noite foi uma fantástica imagem de marca absolutamente indelével na minha vida !...

Foi assim a Islândia !  Senti-la ... só indo conferir ... 😉







Anamar

domingo, 27 de abril de 2025

" CATARSE "



Aqui estou num domingo ensolarado, cinco horas da tarde, silêncio total dentro de casa. Da rua chegam acordes de música pimba, em algum palco improvisado desta bendita terra, que distrai as pessoas fiéis ao estilo, de acordo com as datas que transcorrem.  
Hoje certamente trata-se do rescaldo do 25 de Abril ...
Os gatos dormem, cada um para seu lado. O Jonas junto à janela, no sol que não dispensa , a Rita, certamente na penumbra das colchas da cama do outro quarto.  
Não a entendo, veio da mata, sempre viveu na mata onde as madrugadas chegam mais cedo ainda, e onde os dias são claros, luminosos, com verde e passarada até tarde da noite, e só gosta do escuro, ou talvez só nele se sinta segura.  A Rita está comigo há um ano e três meses e ainda não se desarmou por completo face a um movimento mais estranho, um barulho, a qualquer coisa que na sua cabeça de ventoinha lhe inspire cuidados ...

Para amortecer o som da rua que não me apetece ouvir, coloquei agora um CD na aparelhagem ao meu lado.
Sinto-me totalmente vazia.  Vazia e desconfortável como se tivesse perdido por aí, uma parte de mim, como se o meu eu fosse um puzzle inarticulável, um puzzle que perdeu peças pelo caminho... algo amputado e irrecuperável. 
Sinto dentro de mim a confusão de um desnorte em manhã de neblina cerrada.  Sinto-me a viver, só porque respiro, o coração bate, repito gestos, mexo-me, às vezes falo, alto ou baixo, para os gatos ou para dentro de mim ... pouco mais.
Não tenho um foco, um objectivo, uma razão por que ... Nada de importante, nada de valer a pena ponteia a minha vida.  As pessoas têm histórias, vivências, memórias, capítulos a que reconhecem interesse ao lembrar.  Eu sou tomada apenas por três sentimentos ... irresolúveis todos eles : angústia, ansiedade e saudade.

A angústia e a ansiedade apertam-me o peito e a garganta.  Pesam-me quilos sobre as costas, sufocam-me, assomam-me água aos olhos, dor ao coração.
A saudade crava-me garras na carne, quase até sangrar.  A saudade puxa-me lá atrás, exactamente aos lugares e aos momentos que já lá não estão.  A saudade agarra-me pela mão e passeia-me pelas estradas que foram, traz-me as pessoas inalcançáveis porque viraram esquinas, dobraram a folha do livro, sumiram na nuvem que se desfez ...
A saudade acicata-me a alma, porque é a inevitabilidade frente aos meus olhos, porque os caminhos sempre são apenas para a frente.  Na vida não há retrocessos. Reescritas, também não. A vida não tem rascunhos.  Sempre e só o texto definitivo.

O tempo, inexorável, segue adiante.  Há um momento em que são mais os lugares devolutos que os preenchidos e diariamente a vida se redesenha, queiramos ou não, saibamos ou não viver com ela num novo figurino.
De repente, consciencializamos que a realidade que conhecíamos, que nos dava segurança e conforto, que tinha as regras e os parâmetros no meio dos quais nos movíamos, desapareceu, sumiu sem avisar.
Não vale a pena buscar, procurar, tentar reencontrar. 
Pessoas, coisas, lugares, rotinas, as certezas e as  verdades que orientavam os nossos azimutes, os sentires e até a vibração das nossas vivências ... de repente foram, já não estão, escaparam ao nosso olhar.  E de repente também , ficamos numa terra estranha, estrangeiros no nosso lugar, sem pertença ou raiz. 
E tudo deixa de fazer sentido, tudo deixa de ter nexo ou motivo.  Resta o vazio e o silêncio.
A história encerra o capítulo, a agulha percorre a última faixa do disco ...

Anamar

sábado, 12 de abril de 2025

" A AUSÊNCIA ..."

 



Já faz hoje sete anos que a minha mãe partiu.
Foi embora de mansinho, sem estardalhaço, com aquela discrição de pessoa humilde que sempre a caracterizou.
A vida permitiu-lhe fechar o ciclo perfeito, pois noventa e sete anos antes, exactamente noutro onze de Abril, numa vilazinha do interior no Alentejo, haveria de abrir os olhos ao mundo, para o bem e para o mal...

Sete anos que me deixaram numa orfandade que não sei descrever.  A sensação de solidão, de desproteção ... a sensação de ausência de referências, de me sentir perdida, têm às vezes uma dimensão atroz e abissalmente doída.
São emoções que contrariamente ao que imaginava, têm-se instalado em grau crescente na minha vida à medida que o tempo passa.  Costuma dizer-se, sobre perdas emocionais e afectivas, que elas nunca desaparecem, mas que o tempo é um conselheiro mestre no seu esbatimento.  Tal como a terra abate, no chão que as acolhe, assim a dor vai amainando, ficando mais difusa e leve para o ser humano que as suporta.
No meu caso, isso não tem acontecido.  De dia para dia, o buraco na alma deixado pela ausência da minha mãe, bem ao contrário, parece recrudescer e é como se a ferida sangrasse tanto ou mais que nos primeiros tempos.
Comunico-me mentalmente com ela quase em permanência, como se ela por aqui ainda estivesse.  Pareço pressenti-la quando a chamo, a questiono, a suplico.  Pareço perceber-lhe respostas, pareço sentir-lhe o amparo ...

Vivo só.  Na minha casa, sou eu e dois gatos.  O silêncio "ribomba", a ausência de "vida" parece respirar-se em cada canto.  São as noites, são os dias ... são de novo as noites ...
Entrei numa escalada de desinteresse, sem rumo, sem foco ... não vivo, sobrevivo apenas.
E ninguém vive se não tiver metas, objectivos, sonhos ... ninguém vive se por cada manhã não sentir dentro de si uma razão, um valer a pena, um incentivo para reiniciar a jornada.  E esses são exactamente os meus dias.  Nada parece justificar-me o reinício.  Nada é suficientemente importante para me reerguer.
E é quando percebo claramente a falta que ela me faz.
Sempre foi uma pessoa de bem com a vida, sem exigências ou vontades elaboradas. Era feliz com pouco, nunca tinha vontades ou sonhos acima do que considerava o necessário e o suficiente.  Sempre tinha uma palavra de compreensão e conciliação.  Vivia em função da felicidade dos outros ... dos seus ... da família.  E procurava sempre aplacar os desacertos de quem a elegia para amparo e ajuda.

Tanta coisa que hoje, só com ela poderia dividir !...  Tantas angústias que hoje, só ela poderia entender !  Tanto amparo e afecto que hoje, só ela me poderia dar !... Tanto colo que já não tenho !...

As pessoas estão nas suas vidas.  Com as minhas filhas tenho uma objectiva dificuldade em comunicar.  Há uma décalage geracional perfeitamente cavada entre nós.  Hoje, eu estou sempre errada.  Hoje, sou eu a omissa por definição, e aquela que parece nunca ter capacidade ou inteligência para perceber o que acontece, que não entendo, que não sabe fazer pontes, mas sim conflituar.
As outras pessoas, têm mais o que fazer. Cada um vivendo ou apenas sobrevivendo, creio ( às vezes vindo à tona à força de esbracejar ), como pode e dá.  Vão também passando pelos intervalos da chuva,  com a resiliência e a coragem que têm ... Não adianta muito, quando nos cruzamos ...
E por tudo isso, remeto-me ao meu canto, cada vez mais.  A paciência é pouca, a motivação decrescente, o interesse não justifica. E portanto, cada vez mais desaprendo a socialização, cada vez mais emperro na linguagem escrita ou falada ... Não vale a pena !
E um cansaço atroz invade-me.  Sei que estou psicologicamente afectada, sei que nada disto me é benéfico, sei que as forças e o empenho claudicam, tropeçam nos dias enormes... que não tão grandes porque parte deles os passo a dormir ...

É então que vejo a minha mãe sentada no sofá da salinha, é então que a oiço com aquela bonomia que a caracterizava, dizer-me : " Não pode ser, filha ... tens que reagir ..."
E a sua mão encarquilhada acariciava-me o rosto, enquanto que o seu colo se agigantava e me aninhava com a doçura que apagava a dor, que injectava a força e a coragem na minha alma ...

Hoje ela já não está ... hoje, estou irremissivelmente SÓ !...

Anamar

terça-feira, 4 de março de 2025

" MAIS ÓRFÃ AINDA ... "



A minha família no Alentejo ... para mim, a única depositária das memórias do que fomos, de como era e como foi, de quem eram e que histórias foram vividas ... lá, e apenas lá, onde podiam ainda  sentir-se os pedaços e os retalhos das vivências arquivadas, dos fantasmas que por ali se passeiam, e aqueles que fugidiamente nos escapam ... essa minha família, dizia, extinguiu-se ontem, com a partida da última pessoa que me pertencia de sangue e de coração.
A partir de agora, já nada me prende ou me leva ao Redondo !

Àquele cemitério da vila recolheram as últimas lembranças, histórias, alegrias ou tristezas, anos e gerações...
Já pouco estará preservado, penso, e os que lá iam cuidar, limpar, alindar, ocupam agora as campas identificadas apenas pelos nomes e pelos retratos esmaltados incrustados na pedra.  Já não existe ninguém da família, e provavelmente a Câmara terá tomado conta das propriedades ... sim, porque se trata de campas privadas, que se compravam, estando na mesma, muitas vezes, pais e filhos que se acercaram tempos mais tarde. 

Às vezes, anos atrás, quando lá ia, gostava de me passear por aquele "jardim" de silêncios, ouvindo apenas os trinados dos pássaros nos ciprestes e o estalar da gravilha debaixo dos meus pés.
Tinha uma ideia que se foi esbatendo com os tempos, de onde e quem estava aqui ou ali, e quando encontrava, pelos nomes ou fotografia, uma súbita emoção e até mesmo um misto de alegria mergulhada em tristeza, se apossava de mim.
Era como se se operasse um regresso a casa, um retorno à origem, um reencontro, antecipando o derradeiro, que talvez um dia, quiçá, se venha a verificar noutra dimensão.

Eram avós, tios, primos ... apelidos familiares, com sorte rostos conhecidos, ainda lembrados, de quando aquela terra, foi uma espécie de chão emprestado, eu que vivi sem pertencer na verdade a nenhum ...
E depois, ainda que o não quisesse, todas as lembranças, todos os momentos, tudo o que foi experienciado, dito, vivido ... desfilava-me frente aos olhos, como se uma película de filme estivesse a passar em "reprise" ... e os mortos, todos os mortos dançavam uma dança de roda à minha volta, exibindo o sorriso fotográfico, quase sarcástico,  escolhido para a cabeceira da sepultura ... como se dissessem... "acredita, cá te esperamos ... tudo é uma questão apenas de tempo ... "
E já então eu ficava ali, embalada no silêncio, envolvida pela brisa que passava com pés de lã, sem ruído ou perturbação.
Afinal, estávamos num campo santo !...
Costumava fazer estas visitas bem cedo, quase madrugada, para evitar a canícula que o Alentejo garantidamente me proporcionaria, à medida que o sol subisse no firmamento.

E era então que me via com todas as idades possíveis, desde o jogo do pião, aos bailes na Sociedade ... desde os Natais, às Páscoas, as covinhas dos berlindes na terra do largo da minha avó, aos lanchinhos em casa da tia velha, onde eram obrigatórios os bagos da romã e os bolinhos caseiros, guardados expressamente, porque as férias escolares haviam começado e um belo dia a camioneta da carreira, haveria de "desaguar-me", ali mesmo, pertinho de casa.
Era então a vez de eu ser "disputada" pelos diferentes núcleos familiares ... aqui almoçava, ali, lanchava, além petiscava iguarias feitas de propósito, sabendo serem da minha predileção. 
Eu passava diariamente por todos eles, numa espécie de via sacra , e tinha uma tia, inclusive, que exigia que eu me pesasse à chegada, para garantir que no fim das férias eu tinha mais umas graminhas de peso !!!...
Todos me amavam, todos se orgulhavam da miúda afectiva que eu era, da estudante promissora em que acreditavam  eu viria a tornar-me ...
Todos cá, todos vivos ... todos fazendo parte da minha vida ... todos mimando-me e envolvendo-me num colo inigualável ...

Hoje, só existe o que está dentro de mim, e mesmo que quisesse seria incapaz de passar às gerações seguintes, esta história familiar, que não conheceram e nem imaginam sequer como foi. 
O tempo, sempre implacável, acabará por apagá-la, mesmo  das memórias mais velhinhas ... e uma orfandade sentida e palpável percorre-me e deixa-me mais pobre ainda ...

E aquela terra, foi o único ninho, mais ninho que eu conheci !...

Anamar

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

" MEMÓRIAS "

 


Da torre sineira da igreja soam as doze badaladas.
O dia não está famoso.  Não chove, o céu enfeita-se de nuvens errantes, que se deixam atravessar por um sol pouco fiável, mas o vento que sopra lá fora é desabrido.  É Inverno, afinal !...

Há dois dias que não desço sequer, a esta praceta desinteressante, limito-me a subir e descer as persianas a bem das plantas, como o que há no frigorífico, de preferência, se confeccionado. 
Nada justifica ter de me vestir para compras, num dos dois super-mercados que me ficam no rés-do-chão ...  
Não me apetece ! Até um simples pacote de leite e uma torrada ou duas bolachas me chegam para não enfrentar o mundo lá fora.  Não me apetece encontrar rostos familiares, perguntas repetidas, respostas feitas ... Não me apetece !
Afinal eu vivo num mundo de silêncios, em brumas nebulosas, num mundo que não interessa e daria demasiado trabalho a contar aos estranhos ...
Tocam à porta ... não me chateiem aqui na paz da minha toca !
Não estou para ninguém ...

Mas estou para elas ...
A torre sineira solta as doze badaladas, como disse, depois de uns acordes religiosos quaisquer, e eis que o bando se avista ... Todos os dias, à mesma hora não me defraudam ...
Aqui bem por cima e frente à minha janela, dezenas de gaivotas, enfrentando a aragem, exibem um bailado de liberdade ao sabor do vento.
Em tempos, "tive" uma gaivota.  Rasava-me a janela, exibia-me a plumagem e eu acreditava que ela me trazia notícias lá de longe, desde as ravinas abruptas, ao cheiro e ao sabor da babugem das ondas rendilhando os areais.  Eu acreditava que ela era a minha mensageira da paz, da saudade, da memória ...a estafeta das minhas emoções ...
Hoje, em dias e horas incertas, pousa elegante e desafiadoramente uma gaivota garbosa e altiva, na esquina do terraço ao lado.  Meneia a cabeça, alisa vaidosamente as penas, apoia-se criteriosamente ora numa pata ora noutra, bate o bico em chamamento e olha, com aqueles olhinhos espevitados, quem a observa de longe ... eu !
O meu gato, apesar de eu o incentivar a aproximar-se da vidraça ( coisa que suponho, o deixaria muito feliz ), não está para se maçar... Assim como assim, ela está demasiado longe ...

E o bando, impreterivelmente a essa hora, brilhe o sol ou caia água desbragada da abóboda cinzenta aqui por cima, chega, dança, exibe uma performance invejável, asas estendidas, pernas recolhidas como verdadeiras "prima-donas" num ballet invejável e inimitável ...

Eu fico como que hipnotizada, fascinada, solta e liberta, como se fosse eu que deambulasse à boleia de uma delas, nas ondas da correnteza, a tentar ver um mundo melhor cá por baixo ...
Não mexo, não falo ... só olho, só as acompanho com o coração e a mente ...
Até onde irão ? Porque respeitam o relógio dos Homens, se elas são bichos livres e, como eu, sem horizontes, caminhos ou metas?!
Porque não me levam, se aqui por baixo já não há nada de interessante ??!! ?

A melancolia toma-me.  A saudade também... sensação estranha !!!



Anamar

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

" TUDO E NADA ... "

 






E as águas começaram a subir ...

Vivo só, às vezes gosto, outras não gosto.  Não tenho uma forma de ser fácil, penso que ao longo dos anos e dos diversos formatos que a minha vida foi assumindo, me tornei demasiado eremita, talvez arrogante, talvez autoritária.
Em tempos idos, quando a família das quatro pessoas coabitavam, o meu ex-marido apelidava-me a brincar, de "dama de ferro", epíteto que vinha dos tempos da Margaret Thatcher, significando com isso a rigidez e talvez a intolerância perante pequenos desvios, formas de fazer as coisas, enfim ... características de quem vive em comunidade. Talvez prepotência ... seria ??!!
Hoje, e porque fisicamente já estou só há cerca de vinte anos, porque a idade avançou e porque não devo satisfações objectivas a ninguém, aprimorei as manias, as posturas, os desígnios do dia a dia, com requintes de malvadez ... 😁😁 
Dito de outra forma, cada vez me sinto menos "disponível" para muitas coisas.  Não abdico fácil, não me sujeito a decisões "extra-muros" quase nunca ... enfim, estou a tornar-me "pouco recomendável" 😀😀, um lobo demasiado solitário aqui no meu reduto, pouco maleável e disposta.
Devo dizer, que na verdade não gosto muito da "imagem" interior que o espelho me vai devolvendo, diariamente. Não é louvável e até acho que provavelmente esta auto-ostracização não me fará nenhum bem, mesmo à saúde física.
Cada vez convivo menos, cada vez me refugio mais em casa, como se ela fosse o ninho onde me sinto realmente abrigada, como se fosse um bunker de refúgio e de defesa ... da vida.  
Cada vez me escasseia mais a paciência para ouvir os outros, não atendo telefones frequentemente, adio ou recuso convites maçantes, ainda que culturalmente aplaudidos por gente normal ... sim, porque começo a duvidar da minha sanidade mental ...

Olhando atrás, as voltas e cambalhotas que pautaram a minha existência, tornaram-me, creio, execrável.  O tipo de pessoa que ninguém tem obrigação de aturar ou pelo menos de entender.
Sou feliz ?  Não. Sou profundamente infeliz, perdida e confusa num vórtice existencial que não sei onde começa nem onde termina. Vivo labirinticamente, extenuada sem sair do mesmo sítio, enferma dum cansaço interior e de um desinteresse por tudo e todos.

Vivo com dois gatos, tão silenciosos quanto eu.  Gosto de sentir pelas noites de desconforto, o contacto físico do que se aninha na minha cama, nas curvas do meu corpo.  É um calor de aconchego, uma espécie de carinho através dos cobertores.
Oiço Enya e vejo o cinzento lá fora, enquanto o vento desabrido sibila pelos interstícios mal vedados das janelas.
Enya vive, ao que parece, no país dela, a Irlanda, que não conheço, só, num castelo, acompanhada por gatos.  Imagino uma colónia de gatos, o verde contornante, o mar bravio, o vento a soprar nas ramagens... e paz, muita paz !...
Sei lá se será assim... isto sou eu a imaginar ... mas invejo-a...


Ultimamente retornei às fotos, de lugares que conheci, de viagens que fiz ... Invariavelmente a natureza está presente. Não aprecio fotos com pessoas.  Acho que "poluem" os cenários ...
Os lugares transportam-me lá, e carregam consigo as memórias, os sons, os cheiros, os silêncios, as palavras ditas ou recordadas, as cores e tudo, tudo aquilo que preencheu momentos felizes, lá longe, noutro pedacinho de mundo ...

Lembro a subida das águas em dois momentos marcantes.  A Amazónia, exactamente há dez anos, naquele nascer de sol em que os lilases foram dando lugar aos róseos como se um candeeiro fosse acendendo o céu, até que o fogaréu alaranjado irrompesse no silêncio do chocalhar das águas mansas ...
Lembro a chegada das águas, no passado ano de 2024 espraiando-se pelo deserto do Kalahari, vindas dos planaltos de Angola e transportando consigo a vida que todas as espécies aguardam, ano após ano, pululando naquele fantástico delta do Okavango ...
Visto do céu, o Okavango rendilha em braços, enche charcos, inunda a planura onde os animais retomam a felicidade da frescura, naquele tórrido inferno do calor africano ...

E é como se revivesse tudo aquilo.  E é como se lá voltasse, se lá estivesse, eu, e mais ninguém ...

Estarei doente ??
Não, não é uma interrogação ! Estou doente, sim.  Sinto-me profundamente doente, acuada no desinteresse de nada me interessar ...
Cansada, desenquadrada, como numa matemática de exercícios sem solução ...

Desculpem este "tudo ou nada", mais nada que tudo ... sobra-me o papel, e às vezes, necessidade de escrever ...

Anamar

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

" O NOSSO MANDACARU ..."



A vida é certeiramente efémera. Todos sabemos que começamos a morrer mal damos o primeiro vagido ao deixarmos o ninho que nos acolheu durante nove meses.
Também sabemos que enquanto dela desfrutamos, temos mecanismos mentais,  emocionais ou outros que têm a capacidade de fixar em nós para todo o sempre, flashes de acontecimentos, de momentos, de sentires, que não se descrevem, apenas de quando em vez nos visitam com uma definição e uma precisão impressionantes.

Assim, enquanto esquecemos facilmente por exemplo o que jantámos ontem, lembramos com doçura, a quietude mágica daquele dia, daquela luz, daquele som, daquele abraço ou do beijo trocado enquanto o vento nos desalinhava o cabelo.
Lembramos o voo rasante da gaivota pescando junto às ravinas, lembramos o calor abrasador e envolvente da savana africana, o frio entorpecente mas delicioso da neve pendurada em cachos das coníferas árticas ao romper do sol fugitivo.
Assim, eu lembrei agora, e não sei porquê, aquele nascer de sol no sertão, e a afobação com que rompemos o luar sertanejo a tempo de ainda nos maravilharmos com a beleza efémera do mandacaru que floresce durante a noite e encerra para sempre a beleza das suas pétalas aos primeiros raios de sol.
Flor de um dia ... ou melhor, flor de uma noite, de uma madrugada, irrompe do corpo esquálido da planta ( que pode atingir 6 m de altura ), como um sopro, uma gota de orvalho, um adeus ...

Embora seja uma planta que pode viver em ambientes inóspitos, climas semiáridos e caprichosos, vi pela primeira e única vez o mandacaru, aos primeiros raios da alvorada, no Pantanal de Mato Grosso, assim, de repente, como quem chegou e já tem pressa de partir, porque o sol se anuncia ainda pelos alvores da madrugada, quando a escuridão da paisagem já alaranja à chegada do "rei" ...
Quem lhe viu ontem as flores de pétalas esbranquiçadas nascidas de brotos ovalados presos aos caules, que enfrentam ano após ano, secas, chuvas e trovoadas, já as não verá hoje. 
É no escuro e no silêncio da noite que o mandacaru, planta que vive um século inteiro, em meio de sol abrasador, secas devastadoras, promessa de morte na magreza e na secura em que apenas os espinhos permanecem intocados, que o seu florescimento irrompe, no que parecia ser uma morte anunciada ...
Reza a lenda que quando uma flor de mandacaru aparece no sertão, é sinal de chuva, fartura e alegria .

Mas efemeramente... como a vida... num mistério nunca desvendado pela natureza ! 
Flores grandes, prontas, belas e majestosas, nascem já enfeitadas para morrer ... luas cheias no negrume da noite !

E perante o milagre da vida, houve assim uma espécie de encantamento, uma surpresa de gratidão, quando repentinamente os nossos olhos as surpreenderam ... Afinal, um ventre que a gestou face às adversidades, por tão poucas horas dela disporá !...

Assim também é a vida. 
A curta duração do que quereríamos perpetuar, a impermanência dos factos e das existências, o cumprimento duma sina e dum destino ... tempo pra nascer, pra viver, pra ser feliz ou entristecer ...
tempo para amar, para ter esperança e acreditar ... tempo pra morrer ... um mandacaru para cumprir no sertão dos nossos dias !...

Anamar

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

" PESADELO "



O dia faz jus à época do ano que atravessamos.  Está totalmente fechado, cinzentão, húmido, desconfortável. A chuva tem caído impiedosa e de acordo com a meteorologia mais uma depressão a atravessar o país, lembra que afinal é Inverno ... simplesmente !

Tenho estado fora de casa em apoio domiciliário à minha filha, recém operada a um carcinoma da mama.  Hoje vim a casa, onde ficaram sozinhos os meus companheiros de quatro patas, que reclamam naturalmente a minha companhia.  Não falam, mas sabem exprimir-se muito bem e o meu coração fica espremidinho por cada vez que fecho a porta da rua e parto, mas obviamente a priorização da situação assim o impõe.
Mas, como dizia alguém amigo que a conhece razoavelmente, ela é uma força da natureza e tem vivenciado todo este pesadelo com uma normalidade que me impressiona.
A Catarina é intrinsecamente uma "cuidadora" e como todos os cuidadores quase nunca se deixam cuidar.  Cuidou estoicamente da avó em sua casa onde a acolheu até à sua partida, cuida de todos quantos vê que pode ajudar, é enfermeira de profissão, óbvio, e dá-se por inteiro a quem dela precisar.
Mesmo agora, com alguma limitação, socorre vizinhos, pessoas que precisam de cuidados primários, como aquela brasileira que não conseguia quem lhe fizesse a transfusão do ferro de que necessitava ...

Operou as duas mamas embora a direita estivesse felizmente sem problemas ... ainda ... mas num acto de muita coragem e determinação, preferiu cortar o mal pela raíz e acautelar futuras surpresas.
Ainda assim, nunca parou, e apesar das limitações provocadas pela colocação dos drenos e o desconforto das próteses implantadas  ( mas ainda com muito a fazer até se poder considerar terminada essa fase ), nunca foi à cama, tenta ser ela autonomamente a realizar as tarefas possíveis, como as  caseiras, cuidados de higiene e cuidados pessoais, do vestir ao calçar, etc.  
Pergunto-lhe muitas vezes afinal qual o meu contributo, além da companhia, pelo facto de estar em sua casa ?!.... "Deixa, eu faço !  Não preciso de ajuda, se precisar, peço" ... e por aí fora.  Não pára um minuto, e tanto teimou que a fisioterapeuta autorizou-a a conduzir, uma vez que o carro é automático, e sem isso sentia-se enclausurada e dependente, coisa que não é para o feitio da Catarina !

Não somos nada parecidas na forma de encarar e enfrentar as dificuldades que a vida nos larga no caminho.
Ela encara, eu sossobro.  Eu desisto, ela esbraceja enquanto tiver um sopro de força e esperança.  Eu acobardo-me, escondo-me, fujo das pessoas, deixo-me tomar pelo negativismo, pelo maldito copo sempre meio vazio.  Isolo-me, refugio-me na cama, não tenho fibra, coragem ou determinação para lutar.. 
Acredito que nunca terei.
Ela cuida e cuida-me, mesmo no meio da intempérie... e esquece-se de ser cuidada ... Às vezes acho que não sabe mesmo como isso se processa ...

Hoje, nesta tarde escura e fria voltei a ouvir Enya.  Enya que tantas memórias me traz, que tantas vivências me desperta numa cabeça e num coração meio entorpecidos, muito doídos e cansados ...

E pasmo ... pasmo quando penso, quase não acreditando, nas voltas e reviravoltas que a minha vida sofreu em tantos planos, num curto espaço de tempo ... Nada, nunca pode ser tomado como certo, como adquirido, como imutável ...
Um dia adormecemos, para na manhã seguinte já não nos reconhecermos ao acordar ... 
Isto é a vida !!!

Anamar 

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

" ANO BISSEXTO, ANO TRAVESSO "

 


Não sei definir o meu estado de espírito no dia de hoje.  O stress, a angústia, a aflição, o medo que se têm estendido no tempo, acumulando-se e rompendo-me por dentro, hoje, perto de cortar a "primeira meta" desta louca prova de resistência, parecem ter apostado em rebentar-me ... Sinto-os no corpo, na mente, na pele, sinto-os nas veias onde o sangue lateja, nas batidas dentro do peito ... no vórtice alucinado que me desce da cabeça aos pés .

Dia 22 de Outubro uma das minhas filhas foi realizar os exames que qualquer mulher deve acautelar, de rastreio mamário. Também os faço, dantes descontraidamente, agora apreensivamente em crescendo.
Ela havia-os feito um ano e alguns meses antes e tudo foi totalmente pacífico.
Desta vez, o telefone tocou-me às dez e pouco da manhã.
"Mãe, já estás acordada?" perguntava-me sob choro convulsivo do outro lado.  "Mãe, tenho um nódulo na mama esquerda, a médica fez a mamografia, a ecografia e marcou-me de imediato uma ressonância magnética.  Não gosta do que vê nas imagens. "

Não sei bem o que pensei, o que senti, penso que fiquei tolhida, estática, encolhida apenas debaixo do édredão, com o raciocínio parado, como se tivesse levado uma bruta pancada na cabeça ...
Apenas lhe disse :" Tem calma, já vou ter aí contigo".

Não chorei, desta vez estava tão entupida que as lágrimas apertam e sufocam mas não saem, não aliviam ...
Venho a sentir isto há muito tempo. Penso que gastei as últimas lágrimas com a morte da minha mãe.  Desaprendi de chorar, e daí que o meu peito se transforme numa represa que me afoga por dentro e objectivamente magoa, que dói, como se me estivessem a retalhar a seco ... Mas não verto uma lágrima !

Quando cheguei perto dela, havia já outro exame a ser feito a seguir ... uma biópsia ao nódulo, mas já com uma espécie de pré-percepção algo segura, que estaríamos mesmo perante um tumor maligno, o que veio a confirmar-se.
Entretanto muitos e muitos exames têm sido feitos. O estudo da situação tem sido exaustivo.  Está entregue a uma equipa médica referenciada, experiente e muito conceituada.  Os exames levam tempo a produzir resultados laboratoriais.  Por vezes realizam-se em laboratórios ou instituições fora de Lisboa, e requerem o tempo devido ... não se podem acelerar, ao ritmo da nossa angústia.
Entretanto atravessámos um período de desaceleração a todos os níveis : as Festas de Natal e Ano Novo e virámos a página ... o malogrado e maldito ano de 2024 cessou e anseia-se que o novo ano seja menos carrasco e mais esperançoso.
Foi um ano bissexto ( dei por isso não há muito tempo ... já tinha esquecido ). A minha mãe dizia "Ano bissexto, ano travesso !"
A sabedoria popular transmite-se de boca em boca, e fundamenta-se nas vivências experimentadas.  O meu Alentejo é rico em transmitir, geração após geração, o saber de experiência feito, para que nada se esqueça nesta vida. Desgraças, estragos, prejuízos, devastações, doenças, guerras, prejuízos de má memória, reiteram por outro adágio, que algumas vezes já ouvi, estas verdades também : " Deus que o marcou, algum defeito lhe encontrou !
Comigo será seguramente um ano para esquecer ... ou para não esquecer nunca mais, tantas e tão variadas mágoas ele me trouxe !...

Amanhã, finalmente será a intervenção cirúrgica a ser feita.
É o fecho de uma primeira etapa, e o início do ciclo que agora começa, o pós-operatório e toda a panóplia de protocolos a cumprir, bem difíceis e penosos.... Apenas deixámos de estar parados e começaremos a dar os primeiros passos no sentido do restabelecimento possível.
Ou seja, ganhamos uma dose suplementar de esperança no sentido do sol ... 

Continuo sem chorar, continuo entupida por dentro, mas o apoio à minha volta, de todos os que me amam, não me tem deixado sossobrar ... e haverá sempre uma estrela no céu, mais brilhante que todas, que  iluminará o nosso caminho daqui para a frente ... tenho a certeza!
E há uma criança de sete anos a quem um dia, quando eu for bem velhinha, contarei que a mãe terá sido uma guerreira, porque sabia que tinha uma filha que não podia nunca desamparar ...

Anamar