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quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

" SEMPRE SEREMOS AS NOSSAS MEMÓRIAS ... "



O tempo fechou totalmente.  O meu horizonte, aqui do alto da minha janela, circunscreveu-se apenas aos prédios próximos.  São cinco horas duma tarde gélida e chuvosa.  Estamos sob a influência duma frente glacial polar que coloca Portugal sob condições adversas, com temperaturas severas bem abaixo dos valores normais para esta época, embora estejamos como se sabe, em pleno inverno.

É segunda-feira, dia de caminhada, hoje não realizada.  Havia comprado um saco de comida para os gatos da colónia da mata, só que, deixar lá o saco sob a chuva que cai poderia comprometer o seu aproveitamento.  Assim, levarei amanhã em que não se prevê mau tempo.
Aqueles mais de vinte animais que ali vivem, dão-me conta da cabeça e do coração.  
Se no Verão é aprazível a zona da mata onde estão os abrigos engendrados pelo senhor Sérgio que deles, à custa de dedicação, esforço físico e monetário, cuida diariamente, agora no Inverno, com este tempo carrasco que se faz sentir, aquilo vira um pesadelo de frio e humidade ... pobres bichos !!!
Estou aqui sentada frente ao radiador que o Jonas não permite que eu desligue, a pensar nos desgraçados que não nasceram em berço de ouro ou que o destino jogou na rua, pela maldade e insensibilidade humanas.  E dói-me a alma !

Num dia, como disse, perfeitamente insuportável, e felizmente sem nenhuma necessidade de ir à rua, fiquei por aqui a escrever, a ouvir música, a passear-me pelo computador, sem objectivo definido.
Entre fotos arquivadas de pessoas conhecidas ou amigas falecidas no período da pandemia, apareceu-me a foto do Rui Mendes, aquela figura pequenina, bastante desengonçada, mercê do problema físico que o atormentava.  Artista plástico que trabalhava aqui na Câmara da Amadora, não sei bem em que área, sempre com um aspecto negligenciado mesmo a nível de cuidados de higiene e limpeza, o Rui  frequentava o Pigalle a que eu também ia para o café da manhã.  Convivia pouco, as pessoas evitavam a sua companhia.
O Rui era portador de nascença, duma doença grave e rara, do foro hemático  que desde sempre lhe lera a sentença duma esperança de vida limitada, inclusive já atingida.  Semanalmente deslocava-se ao Hospital de S.José onde levava uma determinada injecção sem a qual a sua vida perigava.
Sempre vivera só com a mãe, a qual esteve acamada durante alguns anos, e era ele que a tratava e a rodeava do conforto possível.  O Rui, mercê daquela responsabilidade, tinha então a sua sobrevivência como o foco da sua vida. Até que ela partiu.
Após o seu falecimento o Rui ficou só e mais abandonado ainda.  
Depois veio a Covid e fomos deixando de saber uns dos outros. A tertúlia e o convívio diário que se ia mantendo com aqueles que acabavam tornando-se figuras familiares, extinguiu-se.
Os sucessivos confinamentos, encerraram-nos entre quatro paredes, quebraram-se laços, extinguiram-se pontos de encontro, fecharam até definitivamente muitos outros.  E do Rui e da sua bonomia e boa disposição, no rosto sorridente com a barba de "pai natal" bem branquinha, fui deixando de ter notícias.
Até que, quando já deitávamos um pouco a cabeça de fora, indagando junto da Cátia do Pigalle, soube acidentalmente que o Rui também partira, num qualquer dia de Novembro de 2020, mergulhados que estávamos em plena Covid ...
Entristeci.  Fiquei mais pobre e mais só. 

Não mantive com ele nenhum laço privilegiado de amizade além do que me conferia a tertúlia quase diária de alguns momentos, em conversa de circunstância ... pouco mais.
Não interessa ... o Rui atravessou num determinado período a minha vida, e é hoje mais um lugar vazio nas memórias que ao longo dos tempos me compõem a existência.
Que esteja em paz ! 
Mais de três anos volvidos, quem lembrará hoje o Rui Mendes ?!...😢😢

Anamar

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

" NOVOS TEMPOS ... NOVOS FORMATOS !..."





UM AMOR EM DUAS CASAS. QUANDO OS CASAIS DECIDEM VIVER SEPARADOS
30/07/2019


Não é um modelo de relação novo, mas parece ser cada vez mais frequente. É adotado por casais de todas as idades, pelas mais variadas razões, que vão desde a vontade de manter o espaço e a independência de cada um ao medo de envolver os filhos em novas relações. Quais as vantagens deste sistema? E as desvantagens? Dois psicólogos e terapeutas familiares explicam.
Texto de Joana Capucho

Duzentos metros. É esta a distância que separa a casa de Paulo, de 40 anos, da casa de Dina, de 41, com quem namora há 13. “Não foi uma decisão consciente, mas foi um culminar de circunstâncias. Sempre fomos os dois bastante independentes”, explica ao DN o designer.
O casal, que preferiu não ser fotografado, vive na baixa do Porto, onde conseguiram arrendar as duas casas numa altura em que os preços eram “normais”. “Neste momento, conseguir casa para os dois seria muito complicado. Como trabalhamos muito em casa, precisamos de espaço, mas nenhuma das nossas habitações tem condições para vivermos juntos”, diz. Além disso, Paulo tem gatos e Dina tem alergia a animais. Por tudo isto, não existem planos para viverem juntos – o que não quer dizer que um dia não venha a acontecer.
“Passamos mais tempo juntos do que muitos casais que vivem juntos. Quanto estamos, estamos realmente juntos”, diz Paulo.
Estão juntos quase todos os dias e falam com frequência ao telefone. “Passamos mais tempo juntos do que muitos casais que vivem juntos. Quanto estamos, estamos realmente juntos”, conta Paulo, destacando que passa várias noites e fins de semana em casa da namorada. Sem obrigatoriedade.

Este modelo de relação não é novo, mas parece estar a crescer. De acordo com a investigação científica, cerca de 10% dos adultos no Reino Unido fazem atualmente aquilo a que os sociólogos chamam living apart together (LAT). Já no Canadá, 1,5 milhões de pessoas com idades compreendidas entre os 25 e os 64 anos afirma ter uma relação, mas viver num sítio diferente do parceiro – houve um crescimento de 3% em dez anos. Um fenómeno que também é comum em países como EUA, Austrália, Bélgica e Holanda.

“Existem algumas variações, como dormir em quartos separados ou em duas camas, mas a evolução da sociedade, marcada pelo individualismo e por condições económicas mais favoráveis, promove este tipo de relações”

Paulo Vitória, terapeuta familiar, diz que “a experiência clínica e a evolução social e económica indicam que este tipo de realidade é cada vez mais comum”. Por cá, não há dados científicos que permitam comprovar esta perceção, mas, “de acordo com o PORDATA, entre 1999 e 2018, ou seja, em 20 anos, a quantidade de pessoas que declara viver sozinha (agregados domésticos unipessoais) quase duplicou” – passou de 502 mil pessoas para 938 mil.
Não se sabe, no entanto, quantos destes portugueses têm uma relação estável, mas Paulo Vitória acredita que, embora esta forma de viver as relações exista há algum tempo, “será agora mais frequente”.
“Existem algumas variações, como dormir em quartos separados ou em duas camas. Mas a evolução da sociedade em que vivemos, marcada pelo individualismo e por condições económicas mais favoráveis, promove este tipo de relações”, refere o professor da Faculdade de Medicina da Universidade da Beira Interior.
Outro motivo importante, diz o terapeuta familiar Paulo Vitória, é que, desta forma, as pessoas conseguem manter por mais tempo a relação de namoro. “O casamento é uma crise. Viver a dois nunca foi fácil.”
O individualismo é, no seu entender, uma das razões pelas quais os casais optam por este modelo de relação. “Muitas pessoas usam esta alternativa para definirem melhor as suas fronteiras individuais. Duas pessoas que têm uma relação não é a mesma coisa que um casal. As fronteiras individuais estão assim melhor definidas e as fronteiras com as famílias de origem de cada elemento do casal ficam mas fáceis de definir”, explica.
Outro motivo importante, diz o terapeuta familiar, é que, desta forma, as pessoas conseguem manter por mais tempo a relação de namoro. “O casamento é uma crise. Viver a dois nunca foi fácil e será ainda mais difícil numa sociedade cada vez mais marcada pelo individualismo. É passar de momentos em conjunto em que a disponibilidade para o outro é quase total para uma partilha do quotidiano. Algumas pessoas já têm experiência desta crise e preferem não passar por ela de novo.

Claro que as condições económicas são também um fator que pesa. Alguns casais vivem juntos para enfrentar em conjunto as despesas do dia a dia e os custos fixos da vida em comum”, afirma.

“Todos temos os nossos dias, nem sempre bem dispostos. Todos precisamos estar sozinhos, eu pelo menos preciso. E considero que vivendo sozinha consigo conciliar melhor tudo”.
Paula, 45 anos, nunca casou, mas já partilhou casa com dois namorados – uma experiência que espera não repetir. “Quando me separei pela segunda vez jurei que nunca mais iria morar com alguém, amorosamente falando. Passados muitos anos é possível que esse “nunca” possa não ser definitivo. Mas o facto é que tenho uma relação séria há alguns anos e não sinto essa necessidade”, conta.
Vê o namorado todos os dias e dormem juntos ao fim de semana. De resto, cada um fica na sua casa. “Todos temos os nossos dias, os nossos momentos, nem sempre bem dispostos. Todos precisamos estar sozinhos, eu pelo menos preciso. E considero que vivendo sozinha consigo conciliar melhor tudo. Estou nesta relação porque quero, não porque me sinta obrigada a isso”, salienta.
No tempo que está sozinha, Paula tem liberdade para fazer o que lhe apetece, “sem outras obrigações” e isso dá-lhe tempo “para sentir saudades e evitar o desgaste a que uma relação marital fica submetida na maioria dos casos”. Tem, assim, um compromisso sério e passa muito tempo com o namorado, mas “não aturam o pior um do outro, nem há a obrigação de estar na companhia um do outro só porque sim”. Quando estão é porque é isso que realmente querem.
O medo de envolver os filhos

Para Catarina Mexia, psicóloga e terapeuta familiar, os motivos para optar por este sistema variam consoante as idades. Nos casais mais jovens, prendem-se com a dificuldade de a pessoa abdicar do seu próprio espaço, mas, nas pessoas de meia-idade com filhos e histórico de relações que falharam, estão relacionados com o facto de “as pessoas não quererem submeter os filhos a uma nova relação que envolve coabitação e por vezes conviver com os filhos do outro”.

Em consultório, Catarina Mexia acompanha um casal – ela tem 62 anos e ele tem 65 – que escolheu viver desta forma. São viúvos, já não vivem com os filhos, mas não querem partilhar a mesma casa.
“Existe a noção que ambos têm a sua vida, que existe muita coisa em comum, que são um forte apoio um para o outro, mas pensam que viver juntos vai ser fonte de tensão e problemas”, explica. Procuraram a terapia para resolver questões relacionadas com a comunicação, que, sendo importante em qualquer relação, é especialmente importante nestas, em que há muito contacto que não é feito de forma presencial, o que pode gerar mais problemas.
Duas casas e contas a dobrar: pode pensar-se que este é um tipo de relação mais frequente entre a classe alta. Contudo, assegura Catarina Mexia, esta opção é “cada vez mais transversal” a todas as classes.

A forma como estes casais vivem o dia-a-dia varia, mas, de acordo com a terapeuta, “na maior parte das vezes não estão juntos todos os dias”. “É quase como um namoro, mas existe um compromisso sério. Evitam a rotina, que muitas vezes arrefece as relações”.
Quando há filhos, é comum a pessoa que passa menos tempo com as crianças ir adormecê-las, deitá-las e aparecer de manhã para tomar o pequeno-almoço. “Podem passar dois ou três dias juntos e os fins de semana, mas não há uma obrigatoriedade. Estão juntos quando se sentem bem. A relação é baseada no afeto e não na imposição das regras sociais”.
Duas casas e contas a dobrar: pode pensar-se que este é um tipo de relação mais frequente entre a classe alta.

Recorde-se, por exemplo, o caso do cineasta Tim Burton e da atriz britânica Helena Bonham Carter, que viviam em casas separadas, ligadas por um túnel. Tiveram uma relação de 13 anos e dois filhos. Antes de se separarem, Woddy Allen e Mia Farrow também viviam desta forma. Contudo, assegura Catarina Mexia, esta opção é “cada vez mais transversal” a todas as classes.
Entre as principais vantagens da separação física, Paulo Vitória destaca “viver mais tempo a leveza de uma relação tipo namoro em vez do peso de uma relação conjugal onde se partilha o quotidiano e se reduz a disponibilidade para o outro e a relação”.

Embora já exista mais abertura relativamente a este tema, a terapeuta familiar diz que “a sociedade empurra as pessoas para relações de coabitação”.
Ressalvando que os dois casais que acompanha que seguem este modelo não colocam de lado a hipótese de um dia virem a ter uma relação tradicional, Catarina Mexia diz que, regra geral, estas relações “não sofrem o desgaste da rotina e as pessoas investem mais nos momentos em que vão estar juntas”.
Por outro lado, frisa, “a intimidade e a qualidade da comunicação têm de estar muito afinadas para suportar a distância e a pressão social”. Embora já exista mais abertura relativamente a este tema, a terapeuta familiar diz que “a sociedade empurra as pessoas para relações de coabitação”.

Para Paulo, existem também vantagens no que diz respeito aos hábitos e rotinas dos elementos do casal. “Eu sou noctívago e a Dina prefere as manhãs. Quando as pessoas vivem juntas, o relógio biológico pode interferir na relação”, diz. Por outro lado, quando existem chatices, existe tempo e espaço “para espairecer”, embora isso nem sempre seja positivo, ressalva. Uma coisa é certa: “A relação tem de ser sólida para resultar assim. E a comunicação e a confiança são essenciais”.
Este modelo não funciona para todo o tipo de casais. “Precisam de ser pessoas bem estruturadas e de ter segurança financeira e psicológica.

No que diz respeito aos desafios, o psicólogo Paulo Vitória considera que a separação física pode resultar num “compromisso menos vincado que pode reduzir a duração da relação e reduzir a possibilidade de uma evolução da relação conjugal no sentido da parentalidade, ou seja, de ter filhos em comum”.
Este modelo não funciona para todo o tipo de casais. “Precisam de ser pessoas bem estruturadas e de ter segurança financeira e psicológica. As pessoas têm de estar seguras de si”, diz Catarina Mexia. Se os elementos do casal estão formatados para ter uma relação tradicional, este sistema poderia resultar em fracasso.
No entanto, diz a especialista, não existirá à partida um fator de insucesso nestas relações.

Nem se pode considerar que são melhores ou piores do que as consideradas tradicionais. “São diferentes”.


Este texto, repescado no Facebook e publicado no DN- Life,  da autoria de Joana Capucho, vem ao encontro, eu diria que integralmente, daquilo que defendo sobre a questão abordada.

Há muito que perfilho esta convicção, sendo que reconheço a sua maior vulgarização e adesão, nos tempos actuais.
Divorciei-me há largos anos, depois de um casamento longuíssimo.  Mais de trinta anos.  E recordo que a primeira coisa que me jurei, foi que, pudesse eu ter o futuro sentimental que tivesse, jamais viveria em coabitação com quem quer que fosse, por mais apaixonada que me encontrasse.
E eu era, de algum modo, ainda jovem, nessa altura.  E o meu divórcio nem sequer foi traumatizante ou desgastante, pelo menos para mim.
Não teve acontecimentos rocambolescos, não se verificaram agressões de nenhuma ordem e tudo se desenvolveu com cordialidade e civismo.

Contudo, já então, eu conhecia claramente o desgaste que a vida em comum pode causar numa relação, quiçá nos sentimentos dos envolvidos.
A saturação das rotinas é "mortal" em qualquer circunstância, e dificilmente se sobrevive a elas.
Acordar, com ou sem vontade, com o mesmo rosto ao lado, aguentar em permanência as manias, os hábitos, as boas e más disposições com que diariamente a vida nos brinda ... é dose !
Não há paixão que não estiole, não há amor que se aguente.

Tenho para mim, que uma relação com algum individualismo assumido, com a distância necessária e suficiente para cada um usufruir do seu espaço, da sua intimidade, do direito aos seus tempos ... até mesmo os de solidão ( que são absolutamente indispensáveis ao ser humano ), não significa menor afecto, ou interesse, mas sim até uma preocupação, de preservação da mesma, ao contrário do que possa parecer.
E essa questão torna-se muito mais premente, quando os anos avançam e não há mais espaço para relações hollywoodescas ou com o romantismo e a ingenuidade de tempos idos.

Por vezes as pessoas estão juntas simplesmente por um entendimento comum de interesses de ambos os lados, sejam eles financeiros, de mero companheirismo, amizade, partilha de algumas coisas, ou entreajuda...
Muitas vezes, é somente esta, a base do relacionamento e nada mais .
A ligação é portanto do interesse comum.
Ainda assim, considero que este modelo, é o mais vantajoso e respeitador das vontades individuais.

Talvez esteja a ser pragmática e fria demais.  Mas se aquilo que aproxima as pessoas tem como móbil o alcance de um certo e doseado equilíbrio, a assumpção  de uma vida mais facilitada para ambos ... tudo bem. Porquê, não ?!             
Estas pessoas têm uma ligação, não sendo contudo, um casal, no conceito tradicional e convencional do mesmo.  Não são propriamente valores sentimentais que mantêm as pessoas na vida uma da outra.  São interesses e vontades objectivas que ambos aceitam como de mais valia para cada um de per si.
Digamos que a este formato subjaz alguma "negociação" de parte a parte, duma forma pacífica.

De alguma forma, estas duas visões e abordagens diferentes das coisas, são de certo modo cabíveis no tema em análise, embora se trate, claramente, de vertentes distintas.
São contudo realidades quotidianas com que convivemos no nosso dia a dia.  Sinal dos tempos, sinal da evolução das mentalidades, sinal de inteligência do homem / mulher face à premência das vicissitudes da vida e forma de as contornar / ultrapassar !

Anamar

sexta-feira, 24 de maio de 2019

" PÁSSAROS "



Aqueles tocadores de sonhos começaram cedo pela manhã.  E não arredaram pé, por todo o dia, da calçada junto à porta do prédio, zona de passagem de quem se faz às compras diárias, aos autocarros e aos comboios.
Por certo, esperançavam-se ser ali, lugar de generosidades dos passantes.
Duas bicicletas, um  atrelado por cada uma, mais umas tralhas logísticas, mais um cão ... mais a magreza inerente à escassez adivinhada, mais a sujidade dos trajes e das "rastas" nos cabelos imundos ...
Ah ... e um pífaro.  Um deles tocava uma espécie de música, sempre a mesma, extraída daquele instrumento.
Esse, em pé, bamboleava o corpo como quem experimenta uma  dança nos acordes musicais.  O outro, sentado no chão, num pano estendido sobre as pedras, fazia uma qualquer bricolage que expunha na calçada, sonhando talvez que alguém pudesse comprar aquelas peças, cuja serventia não descortinei.

O sol esteve agressivo por todo o dia.  Forte de mais, apesar do céu se mostrar nublado a espaços.
E eles ao sol, alheados do que os rodeava.  Silenciosos.  No seu mundo, apenas.
O cão dormia, o pífaro tocava aquela lenga-lenga, o rapaz da bricolage terminava acabamentos, o rapaz do pífaro ora num pé ora noutro, parecia não estar por ali .
Não pediam esmola, não pediam comida, não falavam com ninguém.
Dois perfis esfíngicos, alheados do contexto à sua volta, numa postura total e absolutamente zen ... eu diria ...

Conhecemos gente assim. Vagueiam nas cidades, pedalam nas estradas, acampam nas falésias frente ao mar.
"Hippies", marginais, "outsiders" ... gente estranha ... vá-se lá saber ... era o que se adivinhava na postura selectiva e xenófoba de quem os olhava e rapidamente desviava os olhos.  Eram incómodos, sem o serem ...

O ser humano, sem querer obviamente generalizar, reage mal ao diferente, ao que desafia as estruturas, ao que questiona, ao que mexe com o instituído, ao que quebra regras ...
E a presença daqueles jovens, assumidos na forma comportamental escolhida, confrontava quem passava, se mais não fosse, porque acenava com a coragem de se mostrarem livres. Independentemente de serem ou não aceites numa sociedade  toda ela articulada, desenhada em figurinos musculados e "correcta", enjeitam literalmente o estabelecido, ainda que este os hostilize.

Do meu sétimo andar, onde chegavam os acordes daquela melopeia repetida, espreitei-os vezes sem conta.
Certamente serei demagógica ... mas aquelas figuras descomprometidas causavam-me alguma inveja. De certa forma, despertavam-me simpatia e admiração ... a nós, que acomodados ao conforto das seguranças na vida, nas certezas dos trilhos desejados e escolhidos, optamos pelo imobilismo de ir ficando por aqui ... ainda que os sonhos fiquem quase sempre  da  "porta" para fora !

Transportam mundo nas costas, carregam estrada nas pernas ... e asas ...
Pousam nas grades da nossa "gaiola" e sorriem.
Não sei se são tocadores de sonhos, não sei se são adoradores de sóis e de luas, amigos do vento e da chuva ... filósofos da vida ...
Não sei se serão só isto, se serão exactamente isto ... ou muito mais que isto ...
Ou apenas, pássaros !...

Anamar

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

" OLHA, SABES QUE DIA É HOJE ?... "



Este mês de Dezembro era um mês movimentadíssimo na cabeça da minha mãe.

Chegava o dia um e assim que a visitava, logo pela manhã me dizia sabes que dia é hoje ? E eu, que já sabia o que vinha lá, dizia, sei mãe, é o dia do Ti Tiago Nobre ... e ela, feliz ... Pois era, à meia noite o Ti Tiago Nobre, pela calada do frio do Alentejo, com o seu carapuço de almocreve na cabeça, pequenino que ele era, abria o postigo da porta na casinha baixa em que vivia, empoleirava-se na cadeira de buinho, e com a espingarda caçadeira, disparava as salvas da comemoração histórica a viver-se nesse dia, a Restauração da Independência de Portugal do jugo dos espanhóis, como ele dizia. Não, sem simultaneamente insultar os "nuestros hermanos" com uns quantos impropérios a propósito.
Nunca, ano após ano, o Ti Tiago Nobre, um velho sem idade ou condição, se esquecia do evento.
Quantos seriam os tiros que cortavam o silêncio da noite ?  Verifico que não sei.  Esqueci de perguntar à minha mãe.  Ou então, se mo disse, já o não lembro.
Deixei-a ir, imperdoavelmente sem esclarecer este ponto.  Já não há remédio !

No dia oito, dia de Nossa Senhora da Conceição, lá vinha outra ... sabes que dia é hoje ?  E eu, que já sabia o que vinha lá, sorria e dizia-lhe, sei mãe, hoje é o dia da Menina Custódia ... e ela, feliz ... coitadinha, tão novinha que morreu.  A pneumónica matou famílias inteiras, chegavam a estar dois e três enterros na mesma casa, ao mesmo tempo.  Pais, não sabendo de filhos e filhos não sabendo de pais ... Muito triste !  Mas o enterro da Menina Custódia ... nunca se viu nada assim.  O Redondo todo se "despovoou" e a acompanhou ao cemitério.  Era muito nova e muito boazinha. Toda a gente gostava dela, prestativa com todos, no atendimento ao balcão do montepio.

E eu a perguntar-me por que raio, ano após ano, a minha mãe, caindo de velha e esquecendo quinhentas mil coisas úteis das nossas vidas, não esquecia estas figurinhas ?!...

Igual a este enterro, só mesmo o do Padre Serrão ...
E aí, saltávamos para a semana anterior ao Natal ...
Olha, sabes que dia é hoje ?  E eu, que já sabia o que vinha lá, voltava a sorrir e confirmava, sei mãe, foi o dia em que o senhor Padre Serrão entregou o corpo ao Criador.  Ah pois, nunca houve um padre como ele, lá na nossa terra.  O Padre Serrão rezava a missa de alva todos os dias, e todos os dias, de Verão ou de Inverno, antes dela, tomava um banho de banheira com água fria.  Depois, lá ia para os seus afazeres.  Até ao dia em que, estando as beatas à missa, o senhor prior não apareceu.  Quem lhe aconchegava as coisas, procurou-o em casa e o Padre Serrão por lá ficara ... na banheira !
Era muito boa pessoa. Condoía-se de toda a gente e ajudava os desvalidos.  Casou os teus avós, quando o avô chegou da Grande Guerra, onde não morreu por uma unha negra, apesar da condição imposta pelo teu avô, Senhor Padre, eu casar ainda posso casar, mas eu não me confesso antes. Está bem meu bom amigo sr. Barrancos, era assim que ele dizia. Não faz mal, o meu bom amigo leva a minha boa amiga sra. Brites à igreja e eu caso-os e pronto.  E assim foi.
Nunca houve um funeral tão grande na vila ...

Funerais por funerais, ainda neste agitado mês de Dezembro, rés-vés ao seu fim, finou-se o dr. Tavares, o João Semana lá do sítio. Era o médico para todas as horas, todas as doenças e todas as eventualidades.  Não se cobrava, atendia ricos e pobres. Pagavam-lhe pelas Páscoas em merendeiras, bolos de folha e queijadas. Pelos Carnavais em pinhoadas, filhós e azevias ... pela feira de Outubro, em maçãs, nozes e marmelada ... e o dr. Tavares nunca recusou um atendimento, mesmo no pico das madrugadas, se preciso fosse ...
Quando morreu, baixou à terra apenas embrulhado num lençol.  Assim o deixara escrito.
E eu a relembrar uma outra vez, mais um famigerado dia de Dezembro num ano em que ainda não nascera, nem estava para nascer ...

Olha, sabes que dia é hoje ? E eu já esgotada de tantas efemérides registadas naquela cabecinha branca de alva, olhava-a com um ar aparentemente desolado e dizia-lhe, credo, mãe, hoje não estou mesmo a lembrar-me de nada.  Mas é Dezembro, certamente mais alguma coisa terá acontecido, sorria, meio envergonhada pela falta imperdoável do esquecimento.  Como se fizesse pouco caso de tão importantes acontecimentos.  Como se fosse uma aluna relapsa não dando conta da lição.  Então, faz anos que morreu o Pêdorra ... já não te lembras ?  Era ele que nas esquinas das ruas apregoava e apregoou tudo quanto todos deveriam saber, o que se passara, quem nascera, quem morrera, quem se casava, por quem eram os "sinais" que o sino da Matriz dobrava, o que se perdera e as alvíssaras que se dariam a quem achasse ... e por aí fora ...
Um dia o pregoeiro também calou os seus pregões.  Inevitavelmente, num traiçoeiro dia de Dezembro.  A minha mãe soube-o. Soube-o e não mais o esqueceu.  E desta vez ninguém lho apregoou !...

Era assim... foi assim ...

Olha, sabes que dia é hoje ?...

Memórias ... só memórias, o que resta de tanta gente.  Breve se calarão.  Breve se esfumarão na bruma dos tempos !
A minha mãe também não mais mo lembrará.  E eu ... bom, eu acho que já não o conseguirei mais, passar adiante ... VIDA !...

Anamar

quinta-feira, 16 de junho de 2016

" O PESO DA SOLIDÃO "





Passei ontem e ele estava sentado num dos bancos da praceta.  Bancos procurados pelos velhos, pelos sozinhos, pelos que sem outros horizontes, se circunscrevem aos que a praceta lhes determina.

Passei hoje e ele continuava lá. Parecia que simplesmente ali permanecia desde a véspera, desde a antevéspera e desde todos os dias que o avistei, ainda que de longe.
A sua postura era desalentada, a barba crescera, o definhamento físico progredira, o rosto encovara ... os olhos emaciaram.  Uma figura esquálida e alheada.
Uma imagem tão angustiante para mim, que me retirara a coragem da aproximação.

O Luís ( vou chamar-lhe assim ), é meu conhecido há já largos anos. Ambos picávamos o ponto em bica de pequeno almoço tardio, no extinto Escudeiro ... café de uma vida.
Também ele sorvido pela voragem do tempo e da sorte.
Aquelas conversas de tertúlia de ocasião... Nada de importante ... tudo de importante, afinal, como são os assuntos de pessoas solitárias.

O  Luís já ao tempo era viúvo. Uma história de amor comovente, no seu passado.
Uma história de entrega, de partilha, de afecto incondicional.
A mulher, ainda jovem  partira, alguns, poucos anos atrás, vítima de uma doença prolongada, numa agonia que se estendeu aos limites do suportável.  O Luís cuidou e foi guardião daquela vida, enquanto ela não se extinguiu.
Ficou então absolutamente só.
E só continuou, sempre acompanhado da recordação inesquecível da companheira.

Há oito anos, na bica do pequeno almoço tardio ... ainda no Escudeiro ... o Luís, disse, assim do nada, que estava a viver uma história que conhecia demasiado bem.
Também ele contraíra a doença sem esperança ...

Desde então, tem-se debatido tenazmente com o algoz que o enfrenta diariamente.  Com lampejos de esperança  em períodos mais benevolentes, com um desânimo impiedoso em fases de regressão.
E tem sido heróica a luta, que sem desistências trava dia após dia.
O Luís continua absolutamente só,  mais só ainda, porque a ausência de forças, de coragem e mesmo de recursos económicos, o limitam aos bancos da praceta.
Por outro lado, o único neto que tem, que o ama e que devotamente ele ama acima de tudo nesta vida, vive afastado, e o estado de saúde do Luís, impossibilita sequer uma aproximação.
Esse miúdo, hoje com quinze anos sempre foi o único esteio na vida do avô.  Seu orgulho, pelo denodo nos estudos, pela personalidade forte e sã, pelo amor que lhe dedicou, era companheiro de passeios, de aventuras, de histórias, de ensinamentos, numa felicidade de tempos idos !

Hoje, quebrei a inibição que me tem adormentado, e abeirei-me do Luís.
Partilhámos o banco por algum tempo.  O suficiente para ver o seu rosto iluminar-se, para ver um sorriso ténue transfigurá-lo ... o suficiente para ver uma tíbia alegria invadi-lo ... juraria !...

Falou-me de solidão, e falou-me de como ela lhe dói, mesmo fisicamente.  De como ela o sufoca mais do que a falta de ar que o assalta, e o deixa mais e mais prostrado ...
Contou-me que lê alto, que fala alto, para se ouvir ... ouvir alguém ...
Contou-me que dialoga com o vazio da sua casa ... quando o desespero não tem tamanho e amarinha ...
Confidenciou-me que gostaria de acabar sem dar trabalho a ninguém ...
Falou-me de coisas que conheço, e de infinitas outras, que felizmente não conheço ...

Por quanto tempo mais, o Luís descerá à praceta ?
Por quanto tempo mais, as forças lhe manterão ainda o último fogacho de esperança ?
Por quanto tempo mais, conseguirá ganhar ainda, a sua luta desigual, por cada dia que passa?

Vida !...
As suas personagens ... as suas histórias ... cenas das existências de cada um,  em que  até a cidade grande, impessoal e distante, lhes é hostil !...

Anamar

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

" PORQUE HOJE É DIA DE FESTA ... "




O Kiko comunicou-me que está num "parque temático"...  Que vai entrar agora, e depois logo me conta.

O Kiko faz hoje oito anos, e é o terceiro da "escadinha".
Talvez por ser o terceiro, é o mais descontraído, o mais desinibido, despachado e independente, dos três.
Não tem papas na língua, tem resposta para tudo e vive permanentemente "ligado à corrente" ...

Está de férias em Madrid com os pais e os irmãos, e pelos vistos, de visita a um "parque temático" ... ( rsrsrs )
Quando lhe perguntei se achava bem esta coisa de fazer anos e não estar ao pé de mim, riu-se com aquele riso complacente de quem dá o desconto a quem não sabe muito bem o que diz !...

É assim !...
Ainda nasceu "ontem", e pronto ... já está aí a fazer-se à estrada !

Tenho a sensação de que o Kiko tem uma estrelinha de " vencedor", a pairar-lhe no destino, face à postura que já lhe adivinho na vida.
É um pequeno-grande homenzinho, responsável, bem disposto, sempre em festa !
É o que se criou, sem que déssemos por isso.  É decidido e cumpridor na escola.
É adepto e aplicado nas práticas desportivas, no seu Sporting de coração, onde elegeu o judo, como modalidade no tapete, e eu acho que na vida também ...
Vai interiorizando os seus princípios subjacentes, no caminho do aperfeiçoamento pessoal, reforço do auto conhecimento e auto confiança.  Não no espírito competitivo agressivo, da sociedade actual, mas sim numa base de humildade, generosidade e acima de tudo, cooperação, tão fundamentais nestes tempos conturbados de hoje ...

Alguns destes aspectos, o Kiko já evidencia ter assimilado, felizmente !

Parabéns Kiko !
Que a vida te premeie, numa estrada que ainda só adivinhas, mas que terás que trilhar ... e que o seja, na senda da FELICIDADE !...

Anamar

domingo, 12 de abril de 2015

" A SUPER AVOZINHA "


A minha mãe fez  94 anos.

E fê-los, apesar de tudo, num pico de melhor qualidade de saúde, outra vez.   Desde Setembro que a sua vida se alterou drasticamente, com altos e baixos muito acentuados.
Os períodos negros têm sido muitos, e houve dias em que tentei mentalizar-me que seriam sem retrocesso.
É certo que perdeu muito da sua autonomia.
É certo que "perdeu" a independência da sua casa, e com isso, muita da alegria de viver.
É certo que se tornou uma pessoa mais amarga e desinteressada de tudo ...

Mas apesar dos pesares, continua a ser a "guerreira" de sempre ...  a alentejana de raça, habituada desde criança a uma vida dura, de trabalho e exigência, sem grandes ambições, e aceitação do possível, com satisfação.
Nela se forjou, e é com essas armas que vai chutando as "partidas" com que o dia a dia a presenteia.
Esta mulher, é efectivamente uma força da Natureza !

Quando vou levantá-la para a higiene pela manhã, já ela, sobre a cama, completou a " aula de ginástica" diária ... os exercícios de pernas e braços que se propõe fazer.
Quando não pode ir à rua com as canadianas e pelo braço de alguém, anda no corredor da minha casa, de cá para lá e de lá para cá .
Porque pará-la, algum dia ... só se a vida a apanhar muito distraída ! ...

Que mais poderei dizer ?
Que a invejo, sem dúvida !
E que lamento não ter tido a sorte de ser brindada com as suas qualidades de determinação, força interior, luta, resistência psicológica, garra, paciência e generosidade ...
E gosto por existir, por "caminhar", por amar ... por desafiar o destino, não soçobrar, e sempre o enfrentar e agarrar "pelos cornos" !

Enfim ... a forma deve ter-se quebrado, e ficado por lá !!! ... ( rsrsrs )

Quando um dia se for,  será sem dúvida, o melhor exemplo  deixado  aos descendentes que por cá estão, e ainda conheceram a Bi ...  Uma velhinha impertinente, "eléctrica", que lhes dava montes daqueles beijinhos capazes de sufocar qualquer um ... devota do Sporting e da sua Santa ... uma resistente e uma campeã ...

Em suma, uma "super  avozinha" !!!

Anamar

segunda-feira, 30 de março de 2015

" UMA DELÍCIA ... "





Eu tinha que escrever sobre o Arnaldinho !

O Arnaldinho é um menino "levado", de calções ao fundo do bumbum, de boné ao lado, fralda da camisa meio dentro meio fora, e algumas sardas sarapintando-lhe as bochechas sempre afogueadas.
Os olhos grandes, luminosos, mais azuis que céu de Primavera, parecem os do querubim pintado no painel, lá da igreja.
A mãe opta por prender uns suspensórios naqueles calções em queda iminente ... Coisa que enfurece o Arnaldinho.

Leva a vida no corre-corre.  A sua agenda infantil rebenta pelas costuras.
Ele é a bola, ele é o abafa, o carrinho de rolamentos, a troca de cromos, o rio que corre em desatino no limite da terra ...
Ele é ir aos ninhos ... são as laranjas e as tangerinas que o espreitam dos campos da Ti Raimunda, ou as maçarocas do milho já maduro, prontinhas para a fogueira ... Tudo tentações do capeta !...
Os matraquilhos sempre o desafiam, na tasca do Manel.  Mas para isso, é preciso moedas, e só de vez em quando o Arnaldinho encontra algumas, esquecidas no fundo do bolso já furado ...

A fisga pendurada dos calções, o ranho pendurado do nariz, e o suor pendurado do rosto, cola-lhe à testa as farripas da franja mal cortada.
No meio de tudo, arranja de quando em vez, um tempinho para as letras.  Só de quando em vez.
Deveres esquecidos, cadernos rabiscados, com dedadas e nódoas de gordura ... e eis que os castigos na escola o "encontram" vezes de mais.
Os recreios em que só tem ordem de olhar a meninada, uma ou outra reguada, a ponteirada que ferve a cada burrice, deixam o Arnaldinho injustiçado e sofrido, perguntando-se o porquê de tanta "maldade" ...
O tormento que o assola, a infelicidade que experimenta, confundem-no !
Afinal, o seu pecado é apenas sentir-se solto, livre, adorar os campos, o rio, caçar os grilos, os gafanhotos e as borboletas para espalmar no meio do livro de leitura ... O seu pecado é ouvir o tlim-tlim dos berlindes no bolso, a atazanarem-no para a brincadeira, ou o pião com a guita ao jeito da mão ... ou o gorgolejar da água bem perto, entre as pedras, correndo pressurosa e fresca, no despontar do Verão ...
O seu pecado é a malfadada traquinagem  que não lhe larga o coração !...
Resistir-lhes ... é obra, e um puto não é de ferro !...

O Arnaldinho esquece tudo.  Só tem olhos para o céu azul, para a aragem que o despenteia ainda mais, para o calor do sol que o envolve ...
Botas ao ombro, pés na terra quente, mais vermelhusco ainda, no entusiasmo da prevaricação ... ele aí vai !...

Afinal é só um menino, feliz com tanto mundo à sua volta, feliz com os horizontes sem horizonte, que a vida lhe concede !

"Naldoooo !...." grita a mãe em fúria, quando precisa de um "mandado" ...
"Esse menino vai ficar sem orelhas, quando eu o apanhar !..."

E Arnaldinho, fazendo-se de morto, escondido no fundo do galinheiro, só pede que a criação não entre em desvario, e o denuncie.
Com as batidas do coração disparadas, os olhos de menino safado esbugalham-se mais ainda, ameaçando abandonar as órbitas ...  Até as sardas parecem desenhar-se em 3D, querendo saltar das bochechas !!!...

Conheci o Arnaldinho há muitos anos.
Numa terra com rio, com sol, com campo, flores e pássaros soltos.
Numa terra em que a esperança era verde como os campos, e a liberdade voava  nas asas das toutinegras ...
Numa terra com sonhos grandes,  feitos de sonhos pequenos.
Numa terra e num  tempo em que os meninos ainda jogavam ao pião, subiam às árvores, usavam fisgas e caçavam bichinhos.
Numa terra em que a felicidade tinha o tamanho do quintal de casa, e o Mundo era limitado só pelo rio e pelas terras da Ti Raimunda !...

Anamar

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

QUICO, O MENINO "LIGHT" ...


O Quico, de seu nome Frederico, foi para mim, um menino "fora de horas".
Com isto quero dizer, que existindo já na vida da minha filha, um rapaz e uma rapariga, e tendo ela uma vida profissionalmente muito exigente, não conceptualizava eu, a vinda de um terceiro elemento, ainda por cima, face à situação sócio-económica que se atravessa.
Isto, como se os avós pudessem ter a ousadia de conjecturar o que quer que seja, sobre a vida dos filhos !

Dito e feito, faz hoje sete anos já, lá fui esperar o Quico pela hora de almoço, ao Hospital S. Francisco Xavier.
Estava um dia radioso de sol quente de Agosto.

Encerra ele, a escadinha de três putos, de que volta e meia aqui falo, o mais velho com treze anos acabados de fazer, sendo que ele é o benjamim da família.
Vindo no fim do "comboio", e como quase sempre acontece aos últimos filhos, o Frederico é o elemento mais desinibido, mais bem disposto e mais auto-suficiente dos três.
Nascido num núcleo bem assoberbado já a todos os níveis, com as responsabilidades, falta de disponibilidade, escassez de tempo e até paciência, com a correria louca e o cansaço do dia a dia, num esquema familiar com todas as exigências crescentes de uma vida difícil que os jovens pais hoje encaram,  cada criança que vem vindo, tem de arranjar armas pessoais de adaptação, de autonomia e de independência, já que a pieguice, a super-protecção, a sufocação, a ansiedade e até a inexperiência com que na generalidade os primeiros filhos são criados, deixa de fazer sentido.

E por isso, genericamente, a criança "mais sacrificada" em termos educacionais, é sempre a primeira, já que então os pais, marinheiros de primeira viagem, estão cheios de convicções pedagógicas, de cuidados e de preocupações doentias por exageradas, e com elas criam e educam o primeiro filho num espartilho convicto, projectando nele tudo o que teoricamente aprenderam e querem passar adiante, com veleidades de perfeição, de utopia, e de intransigência, exigindo dele a imagem do filho perfeito que inventaram, e revendo-se nele, como continuador dos seus próprios valores.

Eu fui assim ... acredito que muitos de nós ( não irei obviamente generalizar ), são assim ...

Depois, com a sucessiva chegada de outros elementos ao "ranchinho", abrandam-se as normas, relativizam-se as exigências, abre-se a tolerância, maleabilizam-se as relações inter-pessoais.
E essas  novas crianças são mais saudavelmente educadas, estou em crer, e serão seguramente mais felizes.
Sem sentirem sobre si, de forma tão decisiva e determinante, a responsabilidade injusta, penalizante e pesada  de terem que assumir um perfil de filho "ideal", são crianças mais soltas, mais livres, mais assertivas, menos angustiadas,  eu diria que mais personalizadas e seguras.  Enfim, mais capazes e artilhadas para a vida e para os desafios que as esperam.

Assim é o Quico, uma criança que até hoje nunca vi chorar, excepto se acidentalmente magoada numa brincadeira mais desastrada.
É um menino que acorda rindo, que é extrovertido, que cultiva e vive rodeado de amiguinhos, de fácil adaptação às diferentes situações e apostas com que a vida o desafia, um menino argumentativo, com uma linguagem clara e concisa, sem preocupações ou angústias ...
Em suma, um menino profundamente "light" !...
É o neto que primeiro acorre à porta para o abracinho, o que se pendura do pescoço, e que não tem papas na língua, a contar histórias e episódios "muito importantes" no seu quotidiano ...
Ah ... e é alegremente criativo também, com resposta e solução imediata em qualquer eventualidade.

Com pouco mais de seis anos talvez, aconteceu no colégio que, a pedido da professora,  teve que dirigir-se à sala onde leccionava um antigo professor do António.  Este, que o conhecia bem, face à sua desenvoltura, desinibição e ares despachados, disse-lhe :  "Ai Quico ... não te pareces nada com o teu irmão !..."
De imediato, e antes de sair, o Quico voltou-se para trás, e com ar sério e pragmático  respondeu escorreita e convictamente ao professor :  " É natural ... não somos filhos do mesmo pai !!!..." (rsrsrs)

Este é o Quico, o meu menino "light" que hoje completa os seus sete anos de vida !...

Que a sua feliz filosofia de vivê-la,  o acompanhe sempre, e possa tornar o seu futuro tão ensolarado e claro, como aquele 20 de Agosto que o viu chegar a este mundo !!!...

Anamar

terça-feira, 12 de agosto de 2014

FLASH DO DIA - " ESPECTÁCULO !..."



O ser humano é verdadeiramente espantoso !

Desci à hora habitual para o local habitual, meio dia, "as usual".
À minha porta também como quase sempre, um grupo de ciganas tenta vender, local que é de circulação intensa  entre autocarros, comboios, supermercados e Centro de Saúde.

As abordagens a cada mulher que passa, são padronizadas e repetidas, em esperança de venda : "venha ver, dona !..."
O cidadão, sem dinheiro e com pressa, agradece, abana a cabeça que não, e segue.  Ou nem sequer agradece.  Ou nem sequer abana a cabeça.  Ignora.

Quase ao mesmo tempo em que eu cheguei à rua, passava um casal ainda jovem.  Ela, uma mulher de vinte e poucos anos, obesa.  Exageradamente obesa.
Daqueles casos que cada vez mais  parecem ver-se em Portugal  e  talvez no mundo.  De facto, a obesidade, mesmo  entre  crianças  e  jovens, tende a  assumir  uma  incidência  tal, que  a  OMS já  refere como preocupante.
Populações economicamente carenciadas, utilizam em última análise, uma dieta desequilibrada, porém mais ao alcance do seu bolso. O "fast food" também é recurso frequente, e dietistas e artifícios estéticos obviamente não são compatíveis.
Tinha esta mulher, como companheiro, um homem africano  também jovem, como ela.

Claro que a mulher chamava a atenção dos olhares.  Também das ciganas, que a seguiram ao pormenor.

De imediato, a meia voz, escutei um comentário entre elas.  Elas que  fazem parte de uma etnia sistematicamente marginalizada ( ! ) :  "Ele já pode dizer que tem uma branca ... e ela, que tem um homem !!!..."

Espectáculo !!!...  Palavras para quê ?!...

Anamar

domingo, 13 de abril de 2014

" AQUELA DANADINHA !!!... "



A   minha mãe completou  93 anos.

Ela pede a um e um, costuma dizer.  Ultimamente, acho que já só pede sazonalmente.
Se chegar ao Natal, desejaria chegar à Páscoa.  Chegando à  Páscoa, desejaria chegar ao Verão ... e assim vai vivendo.

A sua principal limitação, prende-se com a mobilidade.  É por aqui que começamos quase sempre a claudicar.  A cabeça, tendo em conta a idade, funciona ... e funciona muito bem !
A minha mãe continua praticamente autónoma, continua na posse das suas vontades e decisões.
Aliás, continua como nos bons velhos tempos, como sempre digo, a fazer só o que  quer.

Tem contudo muitos dias tristes, em que chora.  Espantosamente chora, porque, pasme-se, não consegue fazer as coisas de casa, ao ritmo que gostaria.  Não se mexe com a destreza de outrora, não tem a força de preensão necessária, e deixa cair muitos objectos.  Vê muito mal, ouve pior.
A sua conexão com o Mundo que a rodeia, sai portanto truncada, o que a magoa mortalmente.
Esse, o preço da longevidade !!

Depois, também já viu partir quase todos da família, neste momento reduzida.
Além de nós, a família próxima  ( eu, netas e bisnetos ), só existem já, um irmão e uma sobrinha, contudo também já envelhecidos e doentes.
Falam-se telefonicamente com frequência, não mais.

Amigas, a minha mãe nunca teve.  Teve conhecidas, de circunstância.
Aquelas pessoas do dia a dia, encontros de compras, vizinhos de rua ... só !  A sua vida desenhou-se ao sabor da sua maneira de ser.  Sempre viveu para o núcleo familiar, bem reduzido aliás ( eu e o meu pai, quase sempre ausente por razões profissionais ), e para o espaço familiar ( a casa, que era imperioso sempre estar a brilhar em qualquer momento, naqueles acessos de incontrolável mania de limpeza, provindos  das suas raízes alentejanas ).
Vida própria, não me recordo de a minha mãe cultivar. A sua vida girou, em última análise, em torno do bem estar dos seus ...

Convive mal com o avanço dos anos. Aliás, esse assunto é recorrente no seu discurso.
Eu, que considero ter pouco dos seus genes, foi seguramente a ela que fui buscar também, essa insatisfação permanente, essa inevitável questão, com que brigo diariamente ... a insurreição contra o envelhecimento inevitável e progressivo.

Bom,  mas a minha mãe tem uma disciplina de vida, verdadeiramente invejável.   Uma força de vontade tenaz, e um espírito de sacrifício espantoso.  Aquilo que se propõe fazer, faz, custe o que custar !
Não há quem a faça desistir.
É uma velhota danadinha, mais difícil de controlar que o Quico, de seis anos !...

Contudo, noventa e três anos, é quase um século, e num século a Terra roda cem vezes em torno do sol ...
E na Terra, a vida roda milhares de vezes, em cambalhotas imprevisíveis ...
Particularmente, os avanços, as mudanças, as mutações dos estilos e formas de vida nestes cem anos, corresponderam a reviravoltas impensáveis, de cento e oitenta graus.
A  todos os níveis, os  desenvolvimentos havidos, foram de tal envergadura, que parece terem-se vivido cinco dias, por cada um que passou ...
Por isso, a minha mãe sente-se já com os pés numa terra que não é  bem a sua,  como se largada tivesse sido, num lugar que já não entende muito bem, e cujos valores, normas, costumes e linguagem, desconhece ... ou estranha ...
Uma espécie de extra-terrestre,  no planeta onde nasceu ...
E é penoso, cansativo, defraudante, complexo, desconfortável  e ininteligível, viver assim ...
O preço da longevidade !!...

Ainda assim, a velhinha que ela é hoje, é para mim, um enternecedor milagre de vida, um hino à capacidade de resistência ... representa  uma  heróica  sobrevivente  numa carapaça encarquilhadinha, tentando manter-se à tona, em águas excessivamente profundas ... avançando  titubeantemente, aos trancos e barrancos, numa estrada demasiado sinuosa, escura e pedregosa ... com cautelas, teimosias, e  infinitas dificuldades,  mas sem nunca pensar em desistir !!!...

Anamar

quarta-feira, 26 de março de 2014

" ELES NÃO SABEM NEM SONHAM ... "


Chego a ter pena deles !...

Nasceram com um telemóvel na mão, cresceram rodeados de toda a panóplia de jogos electrónicos, vivem com as consolas de preços proibitivos, com os Ipads, os Iphones, os tablets, os mini-computadores, depois os computadores ...
Tratam por tu, e respiram os mecanismos da informática, usam as aplicações possíveis e impossíveis, desenham e pintam no monitor, fazem vídeos e colocam-nos no ciber-espaço, arquivam e tratam   fotos pessoais, mexem-se nas redes sociais ( vou acreditar que sempre com controle superior ... ) ... nas escolas não funcionam sem calculadoras de elevada sofisticação ... Enfim ...

Os meninos de hoje, vivem na sombra, nos redutos  fechados, que são os seus quartos, onde tudo acontece.
A brincadeira nos larguinhos e nos parques, ou à beira de casa, as corridas de bicicletas, as correrias infindáveis do agarra, ou a emoção das escondidas, não povoam os seus dias !

Os meninos cansam precocemente a vista, de a aplicarem horas a fio, nos pequenos écrans, sujeitos às radiações inerentes.
Respiram pouco oxigénio, porque os tempos  para caminhadas nas matas, a ida aos ninhos, ou os passeios à beira-mar, não fazem  parte dos seus esquemas de vida ...
Vivem encaixotados nas torres das cidades, preservados dos perigos da rua ... entregues aos perigos da Net mal controlada, ao desábito da leitura, que era potenciadora do sonho e da criatividade ... e vivem mergulhados em muita solidão !

Os seus amigos, são quase só os colegas de escola, que têm os mesmos horizontes que eles próprios ...
Não conhecem outras relações, de outros meios, de outras classes sociais.
Não convivem, como na minha infância, com o menino que tinha piolhos, ou com o menino que limpava o ranho à  fralda da camisola, com os meninos descalços, com fundilhos nas calças de suspensórios, ou com os joelhos a espreitarem no buraco dos calções !...
Não convivem com os meninos do bairro dos "ciganitos", lá do fim da vila, que vinham ao largo da minha avó, em busca de brincadeira e amizades fixes ...

Não atiram pedradas uns aos outros, quando a brincadeira azeda... raramente dizem palavrões ( pelo menos, quando há adultos por perto )...
Os meninos têm uma pálida ideia, da adrenalina dos pequenos riscos corridos, em disputas acaloradas de bola, em pequenas rixas, que  ensinam os primeiros limites das hierarquias nos grupos ...
Esfolam pouco os joelhos, partem pouco os braços, e lenham pouco as cabeças ...
Dentro dos limites, sempre foi saudável !...

Os meninos experimentam desde cedo, a solidão de demasiadas horas sozinhas.
Os pais trabalham, chegam tarde, estão cansados, sem paciência ou vontade ... e os meninos, ou se entupiram, entretanto, de actividades extra-curriculares ( para lotarem horários ), ou inventaram, como souberam e puderam, como ocupar as horas, quase sempre demasiado e longamente vazias !
Aos  meninos,  não  sobraram  horas, de  serem  verdadeiramente  meninos,  de  serem  verdadeiramente crianças !...

Os meninos não jogam mais ao pião, à cabra-cega, não saltam mais à corda, não jogam à macaca, e os carrinhos de rolamentos, não sabem nem sonham, o que foram ...
Os meninos não trepam mais às árvores, não caçam borboletas, não fazem  as rodas da "linda-falua", ou o jogo do lencinho ...
Sequer têm abafadores, guardados no fundo dos bolsos rasgados das calças ... Porque já não há berlindes, e as calças de hoje, também já não se usam rasgadas nos bolsos !!!  Nas pernas, sim ... nos bolsos, seria de mau tom !
Os meninos nunca fizeram uma fisga, com um pauzinho talhado a canivete, e não apanharam grilos.
Com um bocadinho de jeito, nem lhes conhecem o canto ...
Não soltam papagaios, depois de horas a fazê-los, com canas, papel de seda, cola e cordéis. 
Por isso, não se deliciam a subir com eles, pelo firmamento, quando o vento da colina, os eleva, como sóis, e com eles transporta a sensação sem limites, da mais absoluta liberdade !!!...
Não saltam ao eixo ... aposto.  E as meninas, nunca jogaram ao ringue ...

Eles não sabem nem sonham, como foi viver então !....
Mas também não sabem nem sonham, o que estão a perder, por não viverem, como então !...

Chego a ter pena deles !!!!...



Anamar

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

" OS MUITOS ROSTOS DO AMOR "


 
Por que  é  o amor assim ?

Estou no café de sempre., para o meu pequeno almoço do meio-dia, com um tempo atmosférico indescritível,  lá fora, o que faz hoje, deste espaço, um particular abrigo, tornando quase bem agradável, estar aqui dentro, numa preguiça que é o prolongamento da que trouxe da cama, há pouco.

Quando estou em espaços públicos, a menos  que esteja a ler ou a escrever, dou por mim a fazer algo que muito me agrada : observar à minha volta, olhar os rostos, ver as posturas, analisar comportamentos, ouvir inevitavelmente conversas, ser uma espécie de espectadora única, numa plateia onde a desmistificação do ser humano se desenrola, quase sempre, sem que ele próprio, o consciencialize.
Quando nos "travestimos" desta personagem, alheamo-nos de grandes pensamentos existenciais, de dúvidas metafísicas, despimo-nos de emoções nossas, angústias nossas, ou reflexões pessoais.
Estamos eremitamente isolados de nós mesmos, estamos em silêncio, e com uma concentração inevitável, esquecemos tudo aquilo com que vivemos, e nos atropela a tempo inteiro ... a nossa própria vida !
Este exercício silencioso, chamemos-lhe assim, repousa-me, relaxa-me, desperta-me a curiosidade e ensina-me muito, sobre o Homem.
Fala-me muito sobre a atitude do ser humano em público, sem que se dê conta de que é observado, sem estar sob os "holofotes" da crítica social, sujeito portanto, ao socialmente adequado a cada situação, sem disfarces, controle ou "maquilhagens".
São portanto, seres humanos que não se  estão a "policiar" ...

Os adolescentes e mesmo os adultos jovens, mercê da geração a que pertencem, e dos tempos que atravessamos, em que a liberalização dos costumes é imperativa, não têm comedimentos ou contenções especiais, sobre quase tudo.
Permitem-se todo o tipo de atitudes mais ou menos exibicionistas, com o ar convencido, de que o mundo é realmente deles, e o resto é paisagem.
Não se coibem de exteriorizarem o que quer que seja, e como a idade ainda não lhes deu grandes ensinamentos, vivem a vida com uma confiança inconsciente.

Por isso, os casais jovens que dão os primeiros passos no amor, na aventura e na sexualidade, fazem questão de exibirem descontraidamente, toda a gama de sentimentos que experimentam, sem contenções, inibições ou timidez.
São pessoas que estão em fase de descoberta, ainda não marcados pelos "trambolhões" da vida, tendo por isso um entusiasmo sem barreiras, estejam onde estiverem, que nos "esfregam na cara", constantemente.
Não têm limites, controle social ou outros, que os detenham.
Por isso, levantam "voo" com toda a facilidade, da ambiência em que mergulham, ignoram-na, apagam-na e isolam-se do mundo que os cerca, como se nele apenas eles coubessem.
Não se importam com o adequado, e não se importam mesmo de confrontar os mais conservadores.

Depois, há os casais na faixa etária dos trinta e tal, quarenta e tais anos, a maioria com famílias já constituídas, com filhos pela mão, ou até já pré-adolescentes, que transmitem uma mornidão apática , na exteriorização do amor.
Tudo muito asséptico, tudo muito contido, rotineiro, sem encantamento visível, tudo muito cinzento ...
Uma espécie de amor já gasto ou a esgotar-se, um indiferentismo instalado.
Não há já cumplicidades visíveis entre as pessoas ... um lê o jornal, o outro, uma revista,  pouco dialogam, como se já não houvesse assunto, controlam os filhos à distância, ou largam-nos por conta própria, permitindo que frequentemente façam disparates ... desde que não os macem ...
Esses, esqueceram há muito, o que é namorar ... E pronto !
O amor é entediado e entediante, sem novidade, já a precisar de reciclagem, eu diria.
Esta faixa etária é a que mais contribui para a estatística  do número de divórcios, como sabemos, porque as pessoas parecem já terem-se dito tudo, e não terem nenhuma paciência mais, para acordarem diariamente e esbarrarem no mesmo rosto, nas mesmas manias, nos mesmos hábitos, nos mesmos cheiros que adoravam e já não suportam ...
E se não conseguem recriar outra realidade, normalmente o amor sossobra ... até porque eles acreditam piamente, que ainda têm infinitas oportunidades que a vida lhes oferecerá !
Como tal, sempre haverá mais marés, que marinheiros !...

Existem depois os casais idosos, que como rochedos, não se deixaram abater por ventos e temporais, e que se propõem dividir o crepúsculo da vida.
Vê-los, faz-nos sorrir, pela ternura, companheirismo, cumplicidade, entre-ajuda no caminhar, no atravessar da rua, no passeio higiénico diário, na colocação da canadiana no braço ...enfim ...
Falam alto, porque já não se entendem muito bem no que verbalizam. O ouvido endureceu, os olhos opacizaram.
Partilham um amor que desembocou numa profunda e indiscutível amizade, e fidelidade aos valores de bem e de mal, que tenham que enfrentar ainda.
Esses, estão "condenados" a arrastar os seus dias até ao fim, nesse registo. Esses, não desertarão jamais.
Mas esse registo, é uma forma sapiente de partilhar amor, uma maneira inteligente de partilhar companhia, uma forma feliz de acertarem o passo no caminho a percorrer, com a  linguagem comum que os une.
E isso torna-os felizes, e não desejam nada além disso !

Depois, há as pessoas que se encontram na idade madura, serôdia  diríamos, desadequada ( se isso tivesse algum figurino próprio ), que em contra-ciclo, dispõem do último terço das suas vidas, tentando reviver o romance, o amor, a redescoberta, com uma maturidade, uma sabedoria e uma disponibilidade particulares, de novo com o encantamento do marinheiro de primeira viagem, de novo com a ilusão de uma adolescência esquecida, e  que sabem que esse é o seu derradeiro "canto do cisne" ...
Vivem o amor com outra disponibilidade, outra qualidade, outra exigência, outra entrega, outro compromisso, outra paz, outra plenitude, outra verdade ...

São pessoas que ainda não desistiram, que ainda têm energia e qualidade de vida, que ainda não embotaram sentimentos e emoções, e recusam não vivê-los de novo, se puderem ...
São pessoas que não deixarão que lhes roubem o último terço dos seus anos, exactamente os que deveríamos reservar, para saborear as conquistas de uma vida !
São pessoas que recusam ficar amargas, a remoer passados, ou a fantasiar futuros, e que querem absorver o presente até às últimas consequências.
Recusam parar, isolar-se, e esperar apenas que a velhice as tolha e as apanhe na curva, encontrando-as definitivamente, de mal consigo e com o mundo, revoltadas e insuportáveis !
São pessoas que evitam a todo o custo,  morrerem lentamente !...

Mas estranhamente, esses casais, por serem de uma faixa etária já não jovem, assumem uma postura em sociedade, de  pouco à vontade, como se estivessem a invadir terrenos que já não lhes seriam devidos, sofrendo  por vezes  a crueldade, da incompreensão das outras gerações, como se usurpassem direitos de afecto, de amor, liberdade, paixão até, que já  não deveriam pertencer-lhes ...

É um amor incompreendido muitas vezes, por quem não entende que o amor virginal, possa voltar a ser reconstruído, reinventado, a ter uma feliz "reprise", muitos anos depois.
Sentem-se por isso, um pouco mal  na sua pele ...
Trocam olhares cúmplices por sobre as mesas do café, esboçam gestos de ternura em leves toques das mãos, prometem-se com o olhar, uma felicidade que se reveste de alguma clandestinidade, e que os faz corar e sorrir timidamente, denotam a "atrapalhação" de uma criança, quando fez uma tropelia ...

E é tão lindo, este amor ... eu acho !

Lindo, e digno de um imenso respeito e admiração !
O respeito e a admiração devidos aos que se recusam a desistir, aos que ainda acreditam, aos que ainda sonham, e não prescindem de o fazer, aos que enfrentam e que lutam pelo direito ao último e pleno terço das suas vidas, como disse,  que deverá beneficiar da mesma qualidade de antes, e deverá traduzir a solidificação de sentimentos, agora  mais libertos, para se exprimirem com total entrega, disponibilidade, seriedade e verdade, de alguém que já palmilhou muito, que já perdeu muito, que já prescindiu de muito, que já sofreu muito ... e continua a apostar !...

Muito digna, esta forma de assumir o amor !!!...
Ironicamente, é a que tenta passar mais despercebida, é a que tenta denunciar-se menos, é a que tenta esconder-se muitas vezes, como inapropriada, é a que receia o ridículo ...
Inclusivé, é a que colide muitas vezes com opiniões e comentários familiares, inaceitáveis.

Porquê ???...

Anamar

domingo, 29 de dezembro de 2013

" A DEPRESSÃO DAS FESTAS "



Cada vez se ouve dizer mais : "se me apanho em Janeiro, nem acredito" ! ou "estou morta que passe esta época " !... ou ainda, em jeito de alívio : "este, já passou" !...
Normalmente são mais mulheres que homens, que o dizem.
Chama-se a isto, a "Depressão das Festas", e é um fenómeno que se tem acentuado de ano para ano, particularmente nos últimos tempos.

Quando eu era criança, não lembrava "ao careca", que houvesse alguém a "rejeitar" o Natal ou a Passagem de Ano.  Ao contrário, o Natal que era sempre uma festa simples e despretensiosa, pelo menos no meu estrato social ( a dita e desaparecida "classe média" ), era uma festa de Amor.
Amor real, verdadeiro, privilegiado.  Sentia-se a alegria da reunião, sentia-se a partilha do afecto, no seio da família.
Havia poucos presentes, é verdade, havia uma roupita que se estreava, ou uns sapatos que se ganhavam, alguns chocolates para as crianças.  Os adultos não tinham presentes, tanto quanto me lembro.
Mas a noite era feliz, plena de momentos inesquecíveis ...

Era a Missa do Galo, pela mão da avó de xaile e lenço, no gelo da noite alentejana, era a lareira, acesa sempre com o maior madeiro que o meu avô reservava todo o ano, para o efeito, eram as iguarias que nos esperavam ( e que eram feitas pelos que ficavam em casa, a minha mãe e as tias, velhas ou novas ), o lombo, os enchidos e o entrecosto, fritos no lume do chão, as filhós, as fatias douradas, as azevias, os sonhos, os mexericos, a pinhoada, o arroz doce ... tudo acompanhado pelo bom tinto da região, e os cânticos ao Menino Jesus, entoados em uníssono, por todos ...

"Oh meu Menino Jesus, da lapa do coração, dai-me da Vossa merendinha, que a minha mãe não tem pão ..."
"O Menino chora chora, porque anda descalcinho, dá-lhe tu as meiazinhas, que eu Lhe dou os sapatinhos..."
"Nossa Senhora lavava, e S. José estendia, e o Menino chorava com o frio que fazia ..."

Todos, seguramente terão lembrado, e lembram, enquanto viverem, essa festa inesquecível ... e ninguém se deprimia !
As pessoas não ambicionavam mais, não sonhavam mais alto, não tinham frivolidades, não desvirtuavam o espírito de união, partilha, dádiva e amor ...
As pessoas eram felizes !

A Passagem do Ano, também não apoquentava ninguém.
Quando eu era adolescente, a passagem do ano era sinónimo de um bailarico, na Sociedade Filarmónica Harmonia, a mais bem frequentada da terra.
As raparigas da minha família, tinham por companhia e como responsável, uma das tias, que por não ter tido filhos, tinha uma pachorra incrível para nos aturar.
A minha mãe nunca ia, mas não era preciso, obviamente.  Estávamos todas bem entregues !

Era uma emoção só, aquele baile, aguardado a semana inteira.
A sala tinha um palco, onde tocava um conjunto musical ao vivo, o conjunto "Planície", lembro bem !
As cadeiras distribuiam-se em cercadura em torno do salão.  As meninas "comprometidas", ou seja, as que tinham namorado oficial, nunca se sentavam na fila da frente, já que não seria de bom tom, dançar com mais ninguém, além do namorado.
As "disponíveis", aguardavam os acordes da música, sentadas nas cadeiras da frente, com o coração aos pulinhos.

Ao fundo do salão, existia uma sala mais pequena, onde os homens se juntavam.  A chamada "sala de fumo", exactamente porque aí podiam fumar.
As mulheres e as raparigas, não !  Não se fumava na altura, ainda ...
Não esqueçamos que estávamos no Alentejo interior, conservador e castrador ...

Quando a música começava, como numa montra, as meninas eram escolhidas para dançarem, pelos rapazes, que se aprestavam a avançar pela sala, na sua direcção, "catrapiscadas" que o haviam sido já, do fundo da sala de fumo.
Proferia-se a célebre frase : " A  menina dança ??? "
E se a rapariga declinava o convite, ou seja, dava uma "tampa", o que não era de bom tom, tal, era vexatório para o "macho" interessado !

Dançava-se em pares, classicamente.  Não havia os ritmos actuais das discotecas, em que ninguém dança com ninguém ; é tudo  "à molhada" e fé em Deus !
E dançava-se com os corpos algo afastados,  e com rostos que por vezes, tentavam "colar-se", só tentavam ... porque se o "entusiasmo" os aproximava ( e acontecia muitas vezes ), lá estava o olhar fiscalizador da tia responsável, a chamar a jovem a entrar na linha ...

Eram bailes, sem dúvida, potenciadores de uma iniciação sexual.
A liberdade dos jovens então, coibia-os de experienciarem qualquer outro tipo de aproximação.
Os namoros eram controlados pela família, sair-se só com o namorado, não acontecia ...
Existia sempre alguém, que era obrigado a fazer o frete de ser o famigerado "pau de cabeleira", ou seja, uma presença incómoda, para os que ansiavam estar sozinhos.
Normalmente uma irmã mais nova, que o namorado convencia, com um qualquer regalo, a ir dar uma voltinha, regressando ao ponto de encontro, passado determinado tempo, e dando assim, alguma liberdade e privacidade ao par romântico ...
Mas nada de mais acontecia, além de um beijo mais caloroso, de um estreitar e de uma fugidia troca de calor dos corpos, ou de uma comprometedora percepção das respostas dos mesmos, à excitação do momento ...

Tempos aqueles !!!...

Não havia portanto,  também angústias, insatisfações, traumas, balanços ( os benditos balanços traumatizantes da vida, porque nos projectam sempre  a  magoadas recordações do passado, e ansiedades do futuro ) , atribulações existenciais, com dúvidas, medos, inseguranças e incertezas, que nos "matam", na actualidade !

A vida, parece-me, corria mansa.
Não se tinha muito.  Tinha-se o necessário, que era por isso, o suficiente !!!...

O ser humano era mais feliz, tenho a certeza !  Tal como em quase tudo, é o ser humano que cria as suas próprias condições adversas de vida, e a sua própria infelicidade.
É  ele  que  estraga, que  destrói, que  mata ... e  "morre"  às  suas  mãos !!!

Saudades ... saudades, tenho  sim, da simplicidade de então, do tempo em que esta quadra nos fazia rir, afastava a solidão e a tristeza, se teimassem instalar-se, e era desejada ansiosamente ao longo  de  todo  o ano !

Em suma, a doença moderna que mina mais e mais a espécie humana, a depressão, e que é consequência da vida e dos valores que o próprio Homem escolhe para si, não existia, menos ainda a aparente aberração dos tempos que correm :  a "Depressão das Festas" !!!...

Anamar

sábado, 7 de dezembro de 2013

" AQUELA HISTÓRIA "



Há mil histórias iguais, mas aquela história, era "aquela" história !...

Do outro lado da rua, sentado na calçada, com as pernas cruzadas e a cabeça entre as mãos, estava aquele jovem.
Não olhava nada, nem ninguém, não erguia sequer a cabeça à passagem dos transeuntes, que o ignoravam e seguiam apressados.
Era magro, pobremente vestido, e tinha uma mochila nas costas.
A seu lado, sobre a calçada, estavam algumas moedas, ( poucas ), a maioria, de cêntimos, e pelo menos uma tablete de chocolate ( não sei se teria mais ... ), vi depois.

Eu passava em frente, do outro lado.  Olhei, e pareceu-me alguém que estivesse a sentir-se mal, que não estivesse bem, e para não cair, talvez se tivesse sentado ali, naquele sítio.
À distância, só vi um jovem esquálido, com as mãos a cobrirem-lhe o rosto ... desalentado, talvez em todos os locais do mundo, menos naquele ... quem saberia ?...

Hesitei.  Fazer o quê ?  Continuar o meu caminho ?
Mas ... pode ser alguém a precisar de ajuda, de socorro, alguém subitamente doente ...
E resolvi atravessar a rua.

Ao chegar junto dele, percebi que afinal chorava.
E nem à minha aproximação, levantou a cabeça.
Quando lhe perguntei se estava a sentir-se bem, se não precisava de nada, ergueu os olhos para mim, e disse : " Não, minha senhora. Apenas estou humilhado, muito humilhado ...  De vez em quando, tem que se chorar para aliviar a pressão, senão, sai-se por aí a cometer uma desgraça " !...

Era brasileiro, talvez vinte e poucos anos.
Disse-me que lhe custava muito, esmolar, porque não era dinheiro que queria, mas sim um trabalho que pedia.  Ele queria um trabalho, porque o dinheiro, por muito que lhe dessem, gasta-se, e um trabalho garantir-lhe-ia a sobrevivência.
Estava há quatro meses em Portugal, onde demandara só com a mãe, em busca da "vida" que a sua terra lhes negara.
Era neto de portugueses, embora já não tivesse família por cá.
Viviam na rua, segundo ele, e era maltratado e humilhado frequentemente, por aqueles a quem pedia trabalho, ou a quem tentava vender as tabletes de chocolate.

E dizia-me : " Não é preciso isso, pois não ?...  Uma  pessoa  tem  que  chorar, para  aliviar  a  pressão interior "!...

Tentei dizer-lhe meia dúzia de "tretas" de circunstância, daquelas coisas que se dizem sem convicção, que não servem para nada, que nos constrangem, apertam o coração, e de que temos a perfeita noção da irrelevância.
De qualquer forma, o Douglas ( era o seu nome ), estava emocionado porque alguém parara perto, e se preocupara com ele.
Dizia que ninguém tinha um minuto sequer, para o ouvir ...
Olhou-me e perguntou : " Você é psicóloga "?
Sorri e retorqui-lhe : " Não ! Eu fui professora ... e sou mãe "!...
"Ah ... por isso você me "viu", e teve tempo para me escutar "!...

Era quase uma criança que eu tinha à minha frente.  Uma criança sem sonhos, sem esperança, sem fé ...
Uma criança derrotada, a quem tinham roubado, cedo demais, a inocência !...

Dei-lhe algum dinheiro.
O ser humano sempre tenta resolver tudo com dinheiro, não é ?
Dar-lhe-ia muito mais, se pudesse ... dar-lhe-ia um trabalho, dar-lhe-ia esperança, devolver-lhe-ia um sorriso ao rosto macerado pelo desespero, dar-lhe-ia colo e embalo ...

Assim, disse-lhe apenas : "Não desista, lute, não chore perto da sua mãe, mas sobretudo, NUNCA se deixe humilhar !  NUNCA aceite da parte de ninguém, um mau trato gratuito !  Nenhum ser humano merece isso !
Posso dar-lhe um beijo" ?

Ele deixou-se beijar na testa.
Perguntou o meu nome, e sorriu, por ser o mesmo de uma sua bisavó.
Esboçou uma expressão triste e magoada, e disse-me : " Posso dar-lhe também um beijo na testa ?"
"Claro Douglas, claro que sim, e sobretudo não esqueça  o que eu lhe disse hoje, aqui !  Boa sorte, e não desista nunca !
A juventude e o coração ninguém lhe pode roubar "!...

Acenei-lhe, e em jeito de agradecimento pelo que lhe dera, ainda me disse : " Fique com isto !" - e estendeu-me o chocolate, que tinha para vender...
"Não ... É seu "!...

Atravessei a rua de novo, agora em sentido contrário, sem olhar mais para trás.
Não consegui.
Fiquei esvaída de forças, senti-me a mais impotente das criaturas viventes, fiquei com o estômago embrulhado, fiquei com um aperto no peito, e uma escuridão atroz na alma ... que nem consigo descrever ...

Há  mil  histórias  iguais,  mas  aquela  história,  foi  "aquela"  história !!!...

Anamar

sábado, 9 de novembro de 2013

" A LARISSA "



Fui acordada às oito da manhã, neste sábado ensolarado, com os estendais da roupa da vizinha de baixo, emperrados a correr.
Olhei o relógio, e concluí que para sábado, isto era uma verdadeira madrugada, e constatei portanto também, que era sábado, porque me perco no tempo.
Perguntei-me que raio de felicidade terá alguém ( casal aposentado, até de filhos ), estendendo roupa às oito da manhã, num sábado ?!...

Não fui fadada p'ra prendas domésticas.  Aliás, para mim, são um verdadeiro tormento.
A minha mãe poupou-me de as fazer, porque afinal, "eu tinha que estudar" ...
Casei, e como trabalhava e economicamente era comportável, sempre tive empregada.  A chamada mulher a dias, como se lembram.
Passaram várias pela minha casa, porque também sabem por certo, que elas só são boas profissionais, nos primeiros tempos.
Depois, terreno conquistado, confiança ganha, começam a fazer-se de "mongas", a enredar para o tempo passar rápido, a passar ao lado, etc, etc ... todos esses artifícios, fingindo que limpam mas não limpam, partem coisas e não dizem, e por aí fora ...
Neste momento, porque as condições económicas não suportam mais, e porque estou só, tenho a Larissa, que já está comigo para mais de doze anos.

A Larissa é uma ucraniana, que com marido e filho se sediou em Portugal há já largos anos, onde reorganizou a sua vida de emigrante, muito sofrida, por sinal.
A Larissa é um doce de pessoa.  Licenciada em Química, o marido  Engenheiro Civil, trabalham respectiamente como empregada doméstica e na construção, em lugares  subalternos, obviamente.
O filho está a terminar uma licenciatura no Instituto Superior Técnico, e é um aluno brilhante e muito esforçado.

Humilde, dedicada, honestíssima, cumpridora, disponível, é uma pessoa de uma dedicação e de uma educação extremas.
Como foi criada sem mãe, por uma avó adoptiva, revê na minha mãe, a avó que já a deixou há muito, e que ela tratou até que partiu, e tem uma doçura particular e um desvelo enternecedores, por ela.
Neste momento, a Larissa trabalha também em casa da minha filha mais velha, e está totalmente assimilada pela nossa família.

Ela já não é a empregada doméstica, como tantas que por aqui passaram, mas é uma amiga, uma familiar minha.
Comigo conversa todos os problemas que a atormentam, no seu português atravessado, porque continua a sentir-se muito sozinha, num país estranho, longe da terra onde cresceu, e onde deixou o filho mais velho.
Comigo chora muitas vezes, comigo partilha as tradições e os costumes  do seu país, da terra onde viveu, da religião  ortodoxa em que foi criada.
A mim conta todo o seu passado difícil, na Ucrânia ... e fala do pai  muito idoso e doente, a quem não pode dar assistência ...

Claro que hoje, a Larissa, à semelhança de todas, deixou de ser a empregada de excelência que era, eu deixei de lhe chamar a atenção para omissões ou imperfeições no seu trabalho, porque a nossa relação atingiu um estatuto completamente diferente.
Hoje deixei de ter uma tão "boa" empregada, uma tão "boa" profissional, mas ganhei uma boa amiga, uma confidente muitas vezes, alguém totalmente integrado na minha família, alguém com quem posso contar em qualquer circunstância, porque sei que não me faltará ...
... e isso não se compra, não se paga, não tem preço ... isso, é um privilégio na Vida !!!

Anamar