segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

" A MARCHA DOS DIAS "


" Quem nos faz novos, são os velhos ... e quem nos torna velhos, são os que vão partindo"... 

Mais ou menos foi esta a frase ou pelo menos o sentido da ideia que li, algures, escrito também por alguém cuja autoria já não consigo reportar.

A correcção do pensamento exposto é duma assertividade absoluta que contudo escapa quase sempre à nossa reflexão.  Poucas vezes, ou nenhumas, pensamos que nas nossas vidas nos sentíamos jovens, novos, esperançosos e com horizonte, enquanto tínhamos uma "linha da frente" que ocupava a prioridade dos lugares de partida.
De facto, enquanto a fila à nossa frente, largamente recheada ia caminhando com a lentidão desejável, não nos sentíamos "em perigo". Afinal, porque desígnios absurdos do destino haveríamos de saltar lugares, desrespeitar a ordenação ditada, antecipar ilogicamente o expectável ??!!
Éramos então jovens, quando os pais, os tios, os avós, às vezes até os bisavós, respondiam à chamada por aqui.  Éramos novos, não cabia nas nossas conjecturas sequer, a suposição que poderia ser subvertida a chamada "ordem natural" das coisas ...

E o futuro ... porque existia muito futuro então, com mais de dois terços para andar contra apenas um terço já percorrido ... espreitava risonho, sem demais sustos, medos ou mesmo preocupações.
Era o tempo dos sonhos, dos projectos, das ideias fantásticas em apostas de caminhos bem sucedidos.  
É o tempo dos amores, das emoções avassaladoras, da entrega sem restrições, em dádiva total, acreditando, sem nuvens a escurecer o céu ...
Era o tempo do valer a pena, o tempo em que a energia e a disposição nos emolduram os dias, os tempos em que para cada preocupação ou dificuldade, parece existir ao virar da esquina uma solução satisfatória, e em que o cansaço não nos desarma ... nunca !
Somos novos, o timing é agora, a esperança ilumina-nos a alma e somos craques no salto de obstáculos ...
Acreditamos que tudo tem solução, tudo se ultrapassa ... claro que com mais ou menos trabalho e dedicação obviamente, mas em que nada nos parará ...

É a Primavera da vida.  Manhãs radiosas, promissoras, em que de tudo somos capazes, em que parece haver uma possibilidade ilimitada para as realizações que perseguimos, pessoais, familiares, profissionais e outras ... Em que acreditamos ... fácil, fácil ... claro que somos capazes ... porquê não ??

E assim, com aquele ímpeto, aquela aposta, aquela alegria com que despertamos em cada manhã, saltamos da cama com a determinação de vencer mais uma etapa, mais uma prova ... Não é hoje, é amanhã ... não é agora, será mais tarde ... mas lá chegaremos, afinal há tanto chão para andar !...

Só que os dias passam céleres, os anos correm depressa demais, a fila que era compacta começa a desfalcar-se ... para desgosto nosso.  Partem os avós, partem os tios, depois os primos mais velhos ... partem os pais ... partem os primeiros amigos, os vizinhos que nos compunham o quadro relacional diário.
Começa a haver demasiadas ausências de resposta à chamada ... demasiados lugares vazios ...
"Mau ... o que é isto "? Como não demos por isso, distraídos que estávamos ?!...
Por cada um que sai, outro dá um passo em frente ... E lá vamos nós, continuando na engrenagem ...

A casa envelhece, as pessoas que cruzamos envelheceram, os corpos, os cabelos, os olhos, os ouvidos, os dentes ... até as mãos, as benditas mãos que eram esguias, elegantes, sensuais no que faziam e no que tocavam, deram em se pintalgar sobre a flacidez que se acentua ... tudo, de um dia para o outro parece, deu em nos fazer negaças e sinais de luzes ... Atenção, confiram o lugar na fila ... analisem os espaços devolutos já, à frente dos vossos pés !!!

E deixámos de ser novos.  Os que partiram encarregaram-se de nos projectar adiante !
Se dúvidas tivéssemos, aí estão as dores, as limitações, o caminhar com esforço, o arfar se o caminho se encomprida, as insónias que se tornam companheiras inseparáveis ... 
Aí está a solidão, a mágoa pelo percebido, o cansaço, a falta de paciência para nos suportarmos e suportarmos os outros ...
E progride um recolhimento interior e uma desmotivação, mesmo pelas coisas que nos mobilizavam, com as quais vibrávamos, nos levavam a sorrir, empolgados quase sempre, não há assim tanto tempo atrás ... parece ...
E percebemos que envelhecemos definitivamente quando já não temos mais ninguém por quem chorar ...

Não será assim com todos, eu sei.  Há pessoas que, felizmente para elas, sempre vêem o "copo meio cheio", plenas de uma positividade permanente, face mesmo às contrariedades. Abençoadas maneiras de ser e sentir !
Eu sou uma pessoa extremamente negativa, dificilmente ultrapasso as barreiras sem um desânimo e um sofrimento atroz.  Reconheço que talvez exorbitando a dimensão dos obstáculos.  Antecipando-os mesmo, o que nada de saudável tem.  Fui demasiado protegida talvez. Tive os caminhos demasiado acolchoados também, o que indiciaria um golpe de sorte no destino. 
Engano.  Bem ao contrário, quem me quis ajudar, ou facilitar a marcha, acabou retirando-me as armas e os mecanismos para a luta e para a confrontação na selva diária que é a vida.  Acabo com menos capacidades a todos os níveis, do que quem aprende a esbracejar, a cair e a levantar, a não sucumbir.
Olho as minhas filhas, artilhadas até aos dentes para enfrentarem com denodo aquilo que lhes boicota os caminhos, que nem sequer têm sido de brisa e água fresca ...
E elas lá vão ... Tem dias que me pergunto como ?!

E assim vamos.  Assim vou... Penitencio-me pelo que escrevo.  Reconheço serem "uma seca" estes desabafos cansativos, enjoados e saturantes, como aquelas pessoas que encontramos na rua e sempre e só puxam do cardápio das doenças e só delas falam ... 
Eu sei que é assim, mas estou "atolada" em sentimentos negativos, colados à pele, os quais não consigo sacudir da alma e do coração, que me esgotam e exaurem inapelavelmente.
Afinal é esta a marcha dos dias ...

Anamar