domingo, 11 de julho de 2021

" UM INSUSTENTÁVEL JOGO DE XADRÊS "


O xadrês das variantes vai-se fazendo... a Alpha ( inglesa ), a Delta ( indiana ), mas também a Beta e a Gama sem que suspeitássemos que o fossem da África do Sul e de Manaus respectivamente, no que julgo ser uma preocupação de branqueamento da conotação da estirpe com nenhum país em especial.  
Agora irrompe a Lambda que, oriunda do Perú, afinal já grassa desde 2020 na América do Sul.

Estirpes agressivas, com resistências significativas às vacinas, ao que parece, assustam pela alta capacidade de transmissibilidade e por isso rapidez na disseminação, no que já é um alastrar objectivo em todo o país.
Apesar do recuo a confinamentos mais severos, à manutenção exigente das medidas profilácticas de protecção individual com a exigência da continuação do uso das máscaras e do respeito pelo distanciamento social, é aterrador perceber-se quanto de lotaria também tem tudo isto, quanto de moeda ao ar existe também em cada dia da nossa realidade, a aleatoriedade que persiste, quando ainda que julgando cumprir escrupulosamente todas as regras, e desconhecendo como e onde, as pessoas aparecem infectadas.
O única e relevante factor positivo, é o facto da vacinação ter sido implementada a todo o vapor, o que se reflecte efectivamente, no número baixo de óbitos, que apesar do número explosivo das infecções diárias, tal facto não se traduz depois, no número de mortos, felizmente.

Entretanto quase não vejo notícias.  Estou total e absolutamente saturada, indiferente mesmo à repetição dos assuntos, às opiniões contraditórias, ás "novidades" que a comunicação social fareja sem critério, para vender.
Tenho andado particularmente cansada, exausta mesmo, sem que aperceba um nexo de causalidade objectivo entre causas e consequências.  A vida ultimamente tem-me presenteado com alguns desagradáveis acontecimentos, mormente no domínio familiar, com preocupações acrescidas que o são mais ainda, por insanáveis ou irresolúveis dentro da minha esfera possível de actuação ou intervenção.
E quando percebemos que temos gente nossa a sofrer por incapacidade decisora perante situações que se  arrastam  e  deterioram,  e  que  nada  podemos  fazer ... é  um  desespero  total !
E quando percebemos que pomos filhos no mundo que ganharam asas, mas cujos voos escolhidos não são assertivos ou felizes, sem que lhes possamos atapetar o caminho ou adoçar o amargo da alma, é como se nos rasgássemos por dentro !

Retomei a caminhada pela mata na tentativa de normalizar, de alguma forma, as minhas rotinas diárias.  mas faço-o com dificuldade e penosamente.
Depois, tudo emperra neste país.  Nada se alcança duma forma simples e sem demais e desnecessários  desgastes.  A função pública é um entrave permanente à simplificação das questões, mesmo as mais óbvias e as mais simples de resolver, mesmo as que se prendem nem sequer à interpretação, mas à leitura directa da lei e sua consequente aplicabilidade.  Não, tudo é tirado a ferros, tudo implica gastos desnecessários e prejuízo ao erário público, por teimosia, burrice ou inépcia de um atávico manga de alpaca que tivemos o azar de nos aparecer pela frente e que teima em "mostrar serviço" ao superior hierárquico, sem perceber que o seu pequeno poder ( que julga conferir-lhe uma digna e legítima supremacia ), não passa afinal, de uma "sabujice" triste e lamentável, bem patenteadora duma ignorância e ineficácia, sem perceber que ela desnuda sim, uma incompetência sem tamanho e uma puxa-saquice lamentável e nada mais. 
E consequentemente, além de termos de dispender dinheiro para recorrer a estruturas capazes de nos ajudarem a desbloquear as situações, enervamo-nos, desgastamo-nos, perdemos infinito tempo, horas de tranquilidade e mesmo de sono !
Exaurimo-nos sem proveito ou necessidade !

E pronto, assim vai a nossa vida.  

Hoje, este meu escrito foi mais um desabafo, um lavar de alma que outra coisa.  Um alívio de coração, nada mais.
O xadrês dos dias continua a jogar-se, numa balança desequilibrada de poder, nunca se sabendo afinal em cada momento, quem é o vencedor e quem é o perdedor ...

Anamar

terça-feira, 6 de julho de 2021

" VIDAS ..."



Escrevo ao som de Fausto Papetti.  Temas imortais, relaxantes, com a fantástica capacidade de me  apaziguarem a alma e o coração.
"Herdei" este CD, muitos outros, livros, roupas.  Herdei de alguém que conheci pouco, com quem privei um número de vezes que seguramente se contariam pelos dedos das duas mãos.  Herdei, duma casa a desfazer-se, quando talvez não fosse ainda previsível vir a sê-lo.
É uma sensação doída, a que experimento.  A sensação estranha de estar a usufruir indevidamente de algo que me não era legítimo usufruir, como se estivesse a invadir a privacidade de outrém, as sensações de outrém, as suas emoções e os seus sonhos ... a sua história, enfim ...  
Afinal, tenho para mim que cada pertence nosso, com ou nenhum valor material, sempre é uma parcela do nosso eu, nele depositado.  Sempre é um pedaço de história, um pedaço de vida ... um momento, um instante, um sonho concretizado, um gosto realizado.
Ali estará sempre um pouco de nós próprios.

O desfazer duma casa é um processo contra-natura, como o desfazer dum ninho é um adeus àqueles que nele habitaram depois do construírem.  É um bater de porta, um fechar de janelas, um apagar de luzes.
É uma agressão sem tamanho, sobretudo se quem tem que a desfazer, está emocional e afectivamente ligada a ela, se de alguma forma a ela pertence ou pertenceu, se teve também a sua existência com ela interligada.
É doloroso, é destruidor, é mortal !

Lembro vagamente o desfazer da casa dos meus avós, após a partida da minha avó, seis anos depois do meu avô. Já lá vão mais de cinquenta anos.
Eu era então uma adolescente ainda, e naturalmente, não estava directamente envolvida nessa tarefa. Ela cabia aos filhos, a minha mãe e os meus tios.  Mas até hoje, quando regresso àquele Alentejo que já é já só de silêncios e solidão, aquele nó que me estrangula a garganta, e aquele aperto no peito que me atormenta a respiração, sobem e fazem-se presentes e sentidos.  Fico estática, perscruto as janelas já não minhas, deixo o olhar perambular lentamente, descendo da chaminé ao portão, por cada divisão do que era, por cada memória do que foi ... 
E volto a rever o poço de água fresca no quintal, com as rochas ornadas de avencas, volto a rever as galinhas e os pintos ciscando no terreiro e até as andorinhas nos voos rasantes nos beirais.  Até me volto a ver, a mim, menina de bibes e bonecas, mais tarde jovem de corpo fresco apetecendo os primeiros amores ...

Depois foi o desfazer da casa de Évora, onde vivi mais de dez anos.  Casa que se manteve estranhamente fechada e desabitada após a nossa saída rumo à capital.  
E de novo, as sensações e as emoções de desconforto e tristeza me invadem, quando a olho, como em romagem obrigatória, sempre que volto à cidade.
Também aí "repasso" a mente e o olhar perdido, por cada divisão, por cada objecto, por cada móvel.  E com eles, vêm o meu pai e a minha mãe, vêm as vivências recuadas dos anos escolares ainda despreocupados e leves ...
E uma vontade imensa de bater naquele número quarenta, naquela porta fechada esperando que ma abram, uma vontade imensa de subir a escada, desvendar o corredor, percorrer as divisões, olhar a chaminé de tijolo, em frente, onde a esta hora as cegonhas já haviam nidificado, ano após ano, todos os anos para alegria da menina que eu era ... me empurra em vão, sem que contudo eu saia do outro lado da rua ... porque tudo aquilo afinal ficou lá e não é mais meu, nunca mais será meu.  Porque o tempo já passou, porque os dias se fizeram e porque o destino se escreve, irreversivelmente, dia após dia.

A casa da Beira Alta foi "encerrada" na minha vida, anos mais tarde.  Por razões pessoais e familiares, foi chão que deixou de me pertencer.
Essa foi a casa dos verdes anos das minhas filhas, a casa dos dias ociosos das férias, o campo em volta, o rio ao fundo, a figueira de "pingo mel" guloso e irresistível ... a casa dos jogos de cartas em horas intermináveis, na mesa de pedra sob a tileira de copa farta. Casa de jogos, de correrias, de bicicletas, de gargalhadas, de espigas de milho roubadas nos milheirais vizinhos e assadas na fogueira ...

A casa da Verdizela, comparativamente mais recente e estreada em 93, também deixou de estar nas minhas mãos, embora permaneça na família em boas mãos também.  Hoje, a minha neta de quatro anos que não conheceu mais nenhuma, chama-lhe por direito "a sua casa" ...
Nunca lhe contaram ainda, que por ali paira o dedo da avó, o desenho da avó, muitos dos sonhos da avó.
Uma casa estudada ao pormenor, do interior ao jardim, foi decorada canto a canto e cresceu com a ternura e o desvelo com que se cria um filho.
Nela e no seu conforto, a minha mãe deu o último suspiro ... ela que lá vivera os últimos anos da vida, com uma ligação profunda de coração a todo aquele espaço, na preocupação de perpetuar a minha pegada por ali.
Mas a "casa", aquela que foi a minha, também já não existe, obviamente ...

Finalmente, a casa que mais me doeu a desfazer, a casa cuja porta mais me doeu a encerrar, aquela a que não gosto de passar ou mesmo de olhar, foi a casa dos meus pais, de quase toda a vida, por mais de cinquenta anos.
A ela cheguei ainda não tinha treze anos, e dela me desliguei com bem mais de sessenta.
Filha única que fui, coube-me exclusivamente a dor do desmanchar desse ninho, com o destino do recheio material, o alienar dos pertences, o violar dos recantos ... a disseminação das coisas impossíveis já de guardar ... 
Porque as memórias, essas vieram comigo, imortais que são, não ocupam espaço.  Guardá-las-ei nos arquivos do coração e da alma para todo o sempre !

Hoje, olhando para trás, vejo que a minha vida foi atravessada por dobrar de esquinas, viragens de ruas, desfolhar de páginas, encerrar de portas ... se calhar, como a vida de toda a gente, afinal.  
Mas, porque dolorosos normalmente são esses acontecimentos, pelo que eles representam no desencavar das memórias, no rewind dos percursos, no devassar das existências, eles representam um fim inglório e injusto para qualquer ser humano.  
Olho sem querer olhar, vejo sem querer ver, a minha casa de hoje, as minhas coisas cujo valor, para mim, é cada vez mais religiosamente considerado como uma extensão da pessoa que eu sou, da história que eu vou vivendo, dos sonhos que eu vou arquitectando, das flores e das pedras que me atravessaram o caminho e que guardei, todas elas sem enjeitar nenhuma.
Sei que o sol continuará a inundá-la sempre que na torre da igreja derem as quatro badaladas, sei que a luz da lua a incendiará, quando cheia, a devassar sem pudor ou contenção ... como agora, como sempre ... Sei que as divisões continuarão habitadas por mim, que por ali andarei a olhar os livros, os móveis, as molduras pejadas de rostos, que por ali andarei escutando os sons do silêncio, sorrindo ao Jonas, ao Chico, ao Óscar e à Rita que hão-de passear-se comigo do quarto à sala, do hoje ao ontem, numa história de eternidade resgatada.

E a porta também se cerrará.  Dessa feita, não serei eu a fazê-lo ...😢😢😢

Anamar