segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

" BALANÇO "





Ontem foi o último domingo do ano.  
Esgotam-se os derradeiros dias de um ano que todos, mas todos, querem  absolutamente 
esquecer. 
Mas ironicamente, contudo, é o ano que jamais será esquecido nas nossas vidas, apesar de no seu saldo, ele não contar, ele surgir como uma entidade irreal, estranha, invisível ... não vivida !  É um ano de perda, um ano de desperdício, uma fraude injusta nas nossas existências !
Eu dificilmente consigo descrever o que sinto dentro de mim, neste deve e haver das contas que o tempo tem comigo.  Sinto-me ludibriada, enganada, espoliada ... porque se um ano na vida de qualquer mortal, é seguramente uma fatia jamais desprezável, na minha faixa etária, esse mesmo ano, tem um factor de ponderação substancialmente mais elevado ... Afinal, a estrada a percorrer, é uma gota de água do caudal que por nós já passou. 
E nestas contas, nem sequer é necessário fazer futurologia.  É assim !  Todos o sabemos !!!

Entretanto ontem começou também, a vacinação nacional contra a Covid 19 !  
É por isso, para Portugal ( porque o timing desta abordagem difere de país para país ), um dia absolutamente histórico, mais um a fazer história, em todo o calendário da pandemia !
Abrem-se as expectativas ( pesem embora todas as ressalvas a propósito ) de que estejamos a passos próximos de vencermos o flagelo que há quase um ano se abateu sobre o planeta Terra, de que possamos poupar desta forma e com esta protecção, muitas e muitas vidas ainda, de que a normalidade das nossas existências, ainda que gradualmente, possa  vir  a  retomar-se,  para  reganharmos  o  direito à  paz,  à  esperança e a um  novo  amanhã !

Tudo o que se vive é estranho, é incerto, é precário, e o sentimento que melhor está definido dentro de mim, é de insegurança.
Insegurança no dia a dia a todos os níveis, sanitário, económico, familiar ... como se um nó, dentro do meu peito, que me oprime e tira o ar, nunca mais se desatasse.  Susto, não por mim, que levo uma vida quase de eremita ... mas uma imensa preocupação em relação ás minhas filhas e netos, e uma angústia mesmo, em relação a familiares distantes que não voltei a ver, cujas visitas por razões prudenciais deixaram de ser consideradas, sequer ... 
Preocupação em relação a amigos e conhecidos que constituíam o nosso núcleo de convivência, e dos quais deixámos de ter notícias, porque vermo-nos deixou de ser questionável, já que as rotinas desapareceram e as coincidências de horários, eventualmente nas compras que fazemos, são perfeitamente aleatórias, improváveis, e mero fruto de um acaso mais feliz, simplesmente !
Assim, ilhámo-nos totalmente, e nos centros urbanos, que já em situação normal isolam e afastam as pessoas - lugar de muros e não de pontes - onde ninguém sabe de ninguém, onde os afectos ficam além das portas fechadas, onde cada um se entrincheira na tentativa de minorar os riscos pessoais de contágio ... o que cada um vive dentro de si, é dramático e angustiante.
Não há vida social, ou esta restringe-se aos contactos inevitáveis. As tecnologias "desdobram-se" para mitigar essa lacuna, como se houvesse mensagens, ainda que visuais, chamadas telefónicas, tele-chamadas ou breves "assomos" a distâncias nunca inferiores a dois metros, que conseguissem envolver-nos a alma ou embrulhar-nos o coração com a doçura, o amor e a alegria com que a ausência de um afago, de um beijo, de um toque, há meses e meses e meses ... os orfanou !...

E mais um ano chega ao fim !
A solidão pesa-me, largada numa ilha de dúvidas e incertezas, de perguntas a que ninguém responde, de sonhos liofilizados na espera de um horizonte palpável que os reabilitasse, na busca de um refúgio seguro, de uma escora sólida, de um molhe protector de tempestades de maior devastação ...
O cansaço é o sentimento mais real que me descortino.  O cansaço e a descrença nos tempos vindouros. A descrença na minha real capacidade de reunir forças para continuar a remar neste alto mar sem ventos a favor.  Dúvidas sobre a minha sanidade não só física mas sobretudo mental, que como um pano esfiapado já não costura os buracos que vai abrindo ...

Tanto se aprendeu no espaço de um ano !  E tanto se aprendeu, porque muito se viveu, muito se sofreu ... e é no sofrimento, afinal, que o ser humano sempre cresce ...
Que o calendário dobre a página com bonomia, com compaixão, com temperança ...  
Que volte a plantar p'ra florescer ... e não seque, p'ra estiolar ...
Que não nos roube o chão p'ra pousarmos os pés, e não empurre para longe os retalhos de azul que tentam espreitar no nosso céu ...
Que não nos leve as aves, e elas possam alegrar os nossos ouvidos despertos ...
Que não endureça os nossos corações e neles possamos continuar a cultivar a esperança, o carinho e o amor ...
Em suma, que o novo ano que está mesmo aí a chegar, nos traga de volta a Vida, e leve p'ra bem longe a Morte que 2020 não se cansou de semear !!!

Anamar

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

" O MELHOR PRESENTE DE NATAL "


Estamos a dois dias do Natal.

Estamos a dois dias de qualquer coisa que neste particular ano 2020, não identificamos muito bem, nos soa a falso e até a contrafacção ! 😌😌
Vivemos, nesta rectinha final, sinais de angústia, de preocupação, de apreensão, de incertezas e receios.
Desejamos e não desejamos que esta época se esfume rapidamente, neste agridoce de um desconhecido que nos assusta, nos incomoda mais do que nos alegra ou preenche.  Desejamos que chegue e passe logo ... e tememos a "factura" a ter de pagar-se em termos do descontrole, obviamente expectável, da progressão da pandemia da Covid19, numa sociedade que abriu um parêntesis, p'ra não dizer que escancarou portões, nas regras de prevenção, nas restrições existentes, nas permissividades sociais aligeiradas.
Todos demasiado cansados, todos demasiado saturados, famílias e famílias feridas de morte, em mortes inesperadas e inaceitáveis ... dores latentes e jamais arquiváveis por partidas não assimiladas, não vivenciadas na realidade, em lutos incumpridos, por despedidas nunca consumadas ... têm-nos deixado numa debilidade emocional além de física, sem tamanho.  Têm-nos reduzido à fragilidade mais incontrolável e insanável que alguma vez sequer, pudemos  equacionar  nas  nossas  vidas  ter  que  vir  a  experimentar  um  dia !

Entretanto, o Natal, um período emocionalmente propício ao exacerbar das emoções, em que valores como os afectos, as saudades, a distância, a ausência, a solidão e o abandono, abrem o sangramento de feridas  crónicas  que  temos  contido a duras penas, dia após dia, mês após mês ... há demasiado tempo já, está aí, p'ra ser vivido, atravessado, resistido !
A capacidade resiliente individual, está presa por arames.
Cada dia é um teste  dessa mesma resistência.  Cada dia é uma prova de fogo sobre a capacidade do equilíbrio mental e psicológico de cada um de nós.  Cada dia é mais um exercício de testagem sobre até onde e quando, conseguiremos chegar minimamente incólumes ...
As famílias vão fingir encontrar-se numa cumplicidade emocional e afectiva, de distanciamentos sociais necessários e impostos.  Os olhos vão sorrir, chorar ou apenas olhar-se, atrás da máscara que não poderá ser esquecida.
O abraço não se dá.  Aquela vontade imperiosa e carente por um tão grande afastamento do toque, da pele, do sangue, num processo violento e contranatura, aperta-nos o coração e dilacera-nos a alma.
Olhamo-nos, talvez ... mas acredito ser de tristeza o sorriso tímido que os olhos denunciam, e a voz embargada desvenda ...
Precisamos mais de um carinho explícito do que de um bom prato de bacalhau.  Precisamos mais de um afago real, do que de uma taça bem recheada do nosso doce predilecto.  Precisamos mais de um colo disponível do que daquela taça de bom vinho tentando aquecer-nos a alma ...
Precisamos ...

E há luzes na mesma.  E há árvores e adornos que a duras penas saíram dos armários.
Porque a vontade é pouca.
Mas temos, apesar de tudo, um compromisso com a vida : a obrigação de a homenagear, de agradecê-la e de a preservarmos.
Estamos vivos.  E tantos, sem provavelmente o terem considerado, já não estão !
Rimos, choramos, sentimo-nos perdidos, cansados mais hoje que ontem ... mas com corações que batem, em uníssono ... com braços que se estreitam sem que ninguém o saiba, com bocas que se tocam apesar da distância, com a força do sonho a levar-nos para onde quisermos ir ... ainda que sem sairmos daqui !
E isso tudo é que vale !  E será isso tudo que terá que levar-nos adiante, num rumo certo, num caminho seguro, num trilho de esperança !

Ontem, a Teresa, nos seus três anos e meio, estreitou-me com a sua força de quase bebé ainda, encostou a cabeça no meu peito, enlaçou-me nos bracitos pequenos e frágeis que ainda não me contornam, e olhando-me docemente, beijou-me muitas vezes enquanto dizia com a expressão da paz e da tranquilidade que nos garante um porto seguro : "Avó, é tão bom estar aqui !  É a melhor coisa do mundo !"

E este, foi o melhor presente, do melhor Natal que já tive !...

Cuidem-se !  Feliz Natal !

Anamar

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

"OBRIGADA ! "


 

Dispensa comentários, este post !

Digamos que ele é apenas uma efeméride minha, pessoal e particular.  Afinal, ela não retira nem acrescenta  nada  a  ninguém.  Ela  não  me  reconhece  ou  confere  especiais  pregaminhos ...

Não !  Apenas assinala que até hoje, desde que a brincar criei este espaço - espaço de alegrias, de tristezas, de vulgaridades, de comentários ... de interrogações, confrontos comigo mesma e com os que me rodeiam, e tudo o mais que por aqui passou e passa - já 90000 pessoas, de muitos lugares até impensáveis do mundo, a ele acederam, e acedendo, julgaram conhecer um pouco mais de mim e do que me vai na alma !

Por isso, também neste famigerado ano 2020, mais um acontecimento a registar !  
Este, apenas dizendo respeito a mim própria, marcando neste finalzinho de ano, um especial carinho de todos vocês para comigo.  Bem hajam por isso mesmo !

E embora seja prioritariamente para mim que escrevo, neste diálogo intimista e silencioso, cumpre-me agradecer de coração, com um imenso OBRIGADA !

Agora ... até às cem mil entradas !...


Anamar

domingo, 20 de dezembro de 2020

" DIZ-LHES QUE ESTÁ TUDO BEM ... " - NATAL 2020




Hoje a minha gaivota rasou-me a janela.  
Senti-me surpresa primeiro, privilegiada depois, acabando por sorrir logo de seguida !...
E eu sei lá que gaivota era esta ?!...  Certamente uma, mais ousada, das que planam aqui por cima, sobretudo em dias como o de hoje, em que a escuridão que pincela o céu, é garante de borrasca no litoral ... lá por onde elas fazem vida.  Assim, nada como recuar até zonas onde, à falta do peixe que lhes integra o cardápio, sempre haver lixos urbanos que lhes interessem ...

Faz tempo, muito tempo já, a "minha gaivota" era uma personagem mítica nas narrativas da minha vida.  Era uma figura onírica das histórias do meu dia a dia.  Era o meu "pombo-correio" entre a realidade desinteressante do betão desalinhado e agressivo da cidade desconjuntada onde vivo, e a doçura sonhadora das arribas, das falésias altaneiras, varandins de águas azuis, verdes ou prateadas, sonhadas e sabidas além do cocuruto daquela serra que me divide o caminho entre o cá e o lá ...
Eram as suas asas distendidas na aragem, as estafetas da minha ânsia de paz, de liberdade e de sonho.  Seguindo-a no espreguiçamento aqui nos meus céus, eu deixava que esses sentidos mais absolutos, me tomassem e me fossem levando para paragens impressas dentro de mim, cantos recônditos de memórias vividas, nichos de sonhos sonhados em vidas que foram minhas ...
Depois, os tempos foram indo, e eu penso ter perdido muito da ingenuidade que acalentava o meu ser.
Hoje sou alguém endurecido, amargo, frio demais, pragmático além da conta,  a quem a capacidade de sonhar foi amputada, deixando a minha alma com um pedaço a menos ... deixando o meu coração mais incompleto e imperfeito  ...

Hoje, os tempos que se vivem entristecem-me e desolam-me.  O coração pesa-me e as lágrimas que quase nunca escorrem, têm o caudal de uma torrente incontida que me oprime o peito e me tira o ar.
Choro pelas minhas mágoas e pelas mágoas do mundo.  
Estamos a quatro dias de mais um Natal.  Um Natal absurdo, irreconhecível, mascarado de felicidade não vivida, mascarado da normalidade possível  de um jogo de gato e rato, onde os afectos são sabidos além do monitor dos telemóveis, onde as emoções galgam as distâncias nas franjas da brisa que vai passando, e o nó na garganta se disfarça por detrás de um sorriso fingido de aceitação do inaceitável ... Afinal, chegámos a mais um Natal,  e ninguém nos avisara há apenas um ano, que muitos não iriam ter essa sorte !

Hoje, como habitualmente, neste novo caminho de Inverno, na caminhada pela manhã passei frente ao portão lateral de uma residência sénior ... um lar, como "soi dizer-se".
É um portão de grades, sempre fechado, no espaço ajardinado que rodeia os edifícios propriamente ditos, dos alojamentos dos idosos. 
Nunca ali vira ninguém, dado não se tratar da entrada principal.
Hoje, dentro do espaço institucional estava junto ao portão uma senhora, cabelo totalmente branquinho, pantufas nos pés e um xailinho pelas costas, que a protegia da aragem fresca que corria, apesar de um promissor dia solarengo. 
De fora, na rua, junto ao portão também, estava uma jovem que passeava um cão. 
Percebi serem familiares. Talvez fosse uma neta daquela senhora de rosto pregueado e olhar entristecido.  Talvez fosse um raio de sol que tivesse descido sobre o rosto da idosa, momentaneamente iluminado ... talvez fosse um pedaço de azul num céu escurecido há tempo demais ...
A "neta" - vou chamar-lhe assim - fotografava-a compulsivamente com um telemóvel, como se quisesse eternizar o momento ... como se ele se estivesse a tornar único, singular, último ... quem sabe ...
"Está tudo bem"- dizia a velhinha. E rodopiava ... uma, duas voltinhas em torno de si mesma, na preocupação de dar veracidade ao que afirmava.  "Estou bem, sim ... " repetia.  Mas só o olhar triste a traía.  Esse, continuava baço, apagado, falsamente feliz ...
"Dá beijinhos ao meu neto ... e ao meu bisneto também ... que eu agora tenho um !...  Diz-lhes que está tudo bem !"

Apenas as grades do portão as separavam ... mas era todo um mundo de solidão e dor que se interpunha, era toda uma vida a escorrer lembranças idas, era um gotejar de silêncios pingando de um coração que talvez ainda sonhasse ... seria ?!...

Segui o meu caminho, com passo estugado, e um pedregulho ainda mais pesado dentro do peito.  Olhei para trás, duas ... três vezes ...
Junto ao portão já não estava ninguém ...

"Diz-lhes ... está tudo bem !... Eu agora tenho um bisneto ... Diz-lhes !..."

E mil fotografias que terão ficado a marcar mais um Natal de desesperança, dor e solidão !...


Anamar

domingo, 13 de dezembro de 2020

" LAREIRAS ... "

 




Hoje estou de lágrima fácil.

É um daqueles dias em que elas se achegam sem pedir licença, por isto mas também por aquilo.  Por tudo mas também por nada.  Dia de nó grudado na garganta, em que o peito espremido pesa e aperta ... dia de um céu carrasco aqui mesmo por cima, sem chance de clarear.

Esta altura do ano, estes dias que se vivem perto do Natal, já por si, em situação normal sempre nos mexem.  Este ano, por todas as razões, parecem dias definitivos !
São sensações estranhas, as que vivencio.  A incerteza, a angústia e o medo, são palavras gastas a povoarem diariamente as nossas vidas.  Gastas de serem ditas ... gastas de serem pensadas ... gastas de serem sentidas ...
É como se tudo se percebesse mais precário do que nunca, como se tudo se sentisse mais debilmente seguro do que nunca, mais frágil do que nunca !
É um período inevitavelmente pressentido como de encerramentos, de revisão, de balanço.  É um fecho de ano, é um fecho de ciclo, é também um fecho de vida ... de mais uma fatia de vida vivida.

Estou junto à lareira.  Estou só, ou melhor, estou povoada apenas pelos meus, e pelos meus pensamentos.
O silêncio crepitante da lenha que arde, o bruxulear das chamas que desenham fantasminhas na escuridão da chaminé, e o vai-vem do fogo que dança como quer, é alguma coisa tão introspectiva e minha, que não permite intrusão ou devassa.
Comparo-o ao chega e parte das ondas nos areais desertos, incontidas e indómitas.
Comparo-o ao balanço ondulante das searas maduras nos campos da minha terra, quando o braseiro silencia e aquieta a vida, como berço embalado para a sesta ...
A lareira tem esta magia de me adormentar o olhar, de me acalmar o corpo e de me deixar a mente e o coração soltos e livres, pássaros vagueantes fora deste mundo ...

Tive várias lareiras na minha vida.
Umas, falam-me. Outras, não.  Umas têm histórias que me contam, outras só me aquecem e iluminam.

A lareira da minha infância, de ponta a ponta, naquela chaminé de fundo de cozinha, com as paredes de metro, com o fumeiro dependurado em estendal bem por cima das nossas cabeças, com a cadeira de buinho juntinho ao madeiro, para que o meu pai trabalhasse nos dias de férias natalícias, lá ficou naquele Alentejo de antanho ...
Será  que  ainda  existe, naquela  casa  onde  já  só  vagueiam  os  tantos  que  por  lá  passaram ?!...
Foi a lareira primordial. A lareira regaço, colo e sonho ... Guardou em si o conceito de família  mais próximo, que alguma vez tive ...
Foi a lareira que só me ficou na memória, mas que ainda não me trazia memórias, porque eu as não tinha, as não podia ter, já que elas são apenas as pegadas dos anos que vivemos.  E então, eu ainda não tinha anos suficientes vividos ...

Depois, houve a lareira mais à frente ... lareira de serões na Beira, que se estendiam pela noite dentro, quando  todos  já  dormiam,  e  apenas  eu  velava  pelas  últimas  brasas  do  luzeiro ...
Era uma lareira tão minha, aquela !...
Era um tempo de muito silêncio, de muita solidão, em que nas chamas que dançavam frente aos meus olhos, desfilava vezes sem conta todo o filme da minha vida.
Todos já dormiam, a sala semi-obscurecida, recebia  quase só a luz e o calor intimistas daquela paz que se sentia ... As horas passavam e a vida ia-se fazendo ...

Houve depois outras lareiras.  Essas, contam-me até hoje, histórias muito bonitas da minha História ...
Aplacaram o frio não sentido, das madrugadas gélidas do Gerês, de Monsanto, de Monsaraz, de Marvão ... de Évora ... Iluminaram rostos afogueados pelo calor que irradiavam, e pelo calor que os corpos e os corações irradiavam também.
Eram lareiras cúmplices, silenciosas e ouvintes.  Eram lareiras-testemunho. Narravam contos de paz e esperanças, sonhos sonhados entre as ginjas quentes de Óbidos e um bom tinto de Geia ...
Foram lareiras idas, mas lareiras omnipresentes...
Basta fechar os olhos, e elas estão lá, nos mínimos detalhes, nas palavras que se soltaram, no cutucar das brasas que não ousavam apagar-se ...
Lareiras de dias felizes, de frio transformado em ondas tórridas de calores promitentes ... Lareiras que afinal o tempo apagou e que a vida ousou levar para longe.  Lareiras extintas.  Que já não existem ... 

Nem eu  sequer tenho a certeza que algum dia elas me aqueceram a alma !!!

Anamar

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

" SINGING IN THE RAIN "




Há meio loucos e loucos por inteiro ... os "loucos de pedra", como dizem os nossos irmãos lá do outro lado do Atlântico.
Eu considero-me integrando o primeiro grupo, embora ainda assim ele tenha algumas gradações.  
Se não, vejamos ... 
Amanheceu um dia "daqueles" ... sem ponta por onde se lhe pegasse.  Céu tenebrosamente escuro sem esperança de redenção, chuva sistemática, ininterrupta, intensa.  Nada de molha-parvos. Nada que deixasse esperança de abertas ... nem mesmo ao meio dia, em que a minha afiançava que sempre, "ou carrega ou alivia" !...
Era uma chuva insuspeita, carregando consigo banho garantido.

Não era teoricamente dia de caminhada, dizia o meu agendamento que gosto de seguir sem desvios.  Assim sendo, estaria safa, e bem me agradaria olhar além da vidraça, o dilúvio impiedoso lá fora.
Mas amanhã, excepcionalmente não teria disponibilidade para a fazer ...
Vou ... não vou ... aventuro-me ... e se me constipo?... Se vou, isto vai dar bota ... se não vou, vou ficar a remoer-me por não ter mesmo força de vontade e espírito de sacrifício ...
Janelas da frente, janelas de trás ( lá, de onde as tempestades sempre chegam ), de nenhum ângulo havia um resquiciozinho de esperança de que talvez não fosse tão grave assim ...

E como nestes impasses, eu só funciono se me fizer de morta, e agir automaticamente sem pensar muito, equipei-me "enceboladamente" o melhor que pude, coloquei a mochila nas costas ... e irreconhecivelmente, garanto-vos, fiz-me à pista, que é como quem diz, desci pressurosa e denodadamente para a rua, antes que ...

"Maluca" seria o mínimo que poderiam chamar-me ...
Quem estava à chuva nas filas do Centro de Saúde lá terá pensado : " estamos aqui sem remédio ... e esta doida varrida, vai caminhar à chuva !  Há malucos pra tudo !"...

Bom, mas segui semi-clandestina, porque nos trajes em que ia, boné, panamá impermeável e carapuço do blusão que só me deixavam parte do rosto de fora, óculos escuros ( que não para o sol  😁😁 que não existia ), mas para ver o chão enlameado e escorregadio, não culminasse  tudo  com  um  espalhanço  sem  tom  nem  jeito ) ... apostaria  ninguém  me  conhecer !
É um pouco parecido com a nossa indumentária de protecção pessoal, em que é um verdadeiro desafio que nos conheçamos pelo único pedacinho que a máscara nos deixa livre ... os olhos !...
É uma sensação estranha, a que já nos habituámos e que é um exercício quase lúdico ... "olha, olha ... és tu !... " e sorrimos.  Mas o sorriso também não se vê, fica escondido na máscara ...

E lá fui.  Andei, andei, a chuva cobria-me as lentes dos óculos, que sem limpa para-brisas ficavam inoperacionais a cada dez minutos.  Sim , porque a água que caía, não se compadecia mesmo.
Não pude ir pela mata. Com desgosto meu, esta está interdita à circulação, tal a lama e as poças de água que lá se acumulam.
Assim sendo, o meu fadário no Inverno é um caminho alternativo que não aprecio grandemente, mas que apesar de tudo, apanha um pouco de verde, árvores também, relva e bancos ... já que se trata de um jardim amplo e com a vantagem de, sendo feito pelo Homem, ter caminhos asfaltados e empedrados.
Tem mesmo uma zona mais densa e fechada pela arborização, escura e cerrada hoje, com a falta de luminosidade do dia. Fresca e frondosa no Verão !
Não encontrei vivalma !  Não se via uma alma penada que fizesse exercício, que passeasse ou que tivesse levado o cachorro às suas precisões.  Ninguém !...

E aí, sim, como dizia no início deste meu texto : se eu estou no grupo dos semi-loucos, há os tais loucos de pedra que sempre animam os nossos dias ...

Então não é que nesse trecho escuro e escuso, quase mata com ramagens densas e entrelaçadas, com um lusco-fusco instalado apesar de ser meio-dia ... num dos bancos que serão uma bênção e uma maravilha em pleno Verão, uma criatura, com um chapéu de chuva vermelho aberto, auscultadores nos ouvidos, uma garrafa de água ao lado e a perna placidamente cruzada, trauteava a meio tom qualquer coisa imperdível no seu devaneio ... enquanto parecia usufruir de um descanso merecido ?!...
Não tinha pressa, não aparentava stress, não mostrava enfado ou desconforto ... dir-se-ia estar a vivenciar uma excelente e apetecível tarde primaveril !...

Digo-vos ... primeiro devo ter feito cara de parva, depois devo ter deixado fugir entre dentes o epíteto "é doida!" a meia voz ... por fim, cavei dali, porque  o  manicómio  ainda  fica  um  pouco  longe  e  os bombeiros  têm  mais  o  que  fazer  do  que  catar  doidos  com  colete  de  forças !!!... 😁😁😁

E pronto ... como respeito o livre arbítrio pensei ... afinal, "viver não é esperar a tempestade passar ... viver é aprender a dançar na chuva !..."
Sábia, aquela mulher !!!...

Anamar

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

" SÓ O TEMPO ... "




Voltou a apetecer-me ouvir Enya, imperiosamente.
Companheira foi de muitas tardes intermináveis, entre letras, telhados, céu e gaivotas dispersas na aragem ... entre paredes de um quarto deserto e silencioso, pensamentos e memórias, quando eram estas que acompanhavam os meus dias e me perseguiam dormindo comigo na mesma cama ...
Há tempos que a não escutava, que não ouvia nostalgicamente o timbre celestial da sua voz.  Há tempos que me não deixava ir indo, na aragem dos fins de dia, entre meio aos pingos de chuva tamborilando na vidraça, solta e livre como os pássaros que rasam a visão dos meus olhos, ou seguem sem rumo aos horizontes de uma serra que não diviso, mas só adivinho na linha do firmamento distante.

Mas é quase Natal, as temperaturas desceram, o céu escureceu e o desconforto envolve-nos.  O vento ruma pra longe as últimas folhas do plátano, que se despe de dia para dia.  Os tons são agora doces, intimistas, quentes ... São cores de solidão, de silêncios, de lembranças ...
São tristes estes dias. À nossa volta tudo pesa, tudo nos carrega de penumbras, cansaços e angústias.
Tempos difíceis estes que atravessamos, mais de morte que de vida.
Hoje, dia do feriado religioso da Imaculada Conceição ... o "meu" dia da Mãe de toda a vida.  Dia dos primeiros cartõezinhos, dos primeiros rabiscos em desenhos sigilosos para se tornarem surpresa no dia seguinte.  As surpresas possíveis, à medida das nossas idades e da ausência de alguns escudos que fossem, nos bolsos de cada um ... 
Mas sempre eram recebidos com a emoção de uma lagriminha que escorria no rosto da minha mãe, enquanto me sentava no colo e me beijava ...
Hoje, graças ao Estado de Emergência que se vive, continuamos confinados sem possibilidade de circulação desde as três da tarde às cinco da manhã.  Depois de novo, da uma da tarde às cinco ... e assim, dia após dia, num forcing desesperante de redução de número de infectados, de doentes em intensivos e óbitos ... para que o SNS não sucumba e para que daqui a uns dias se possa fingir que é de novo Natal !!!

Hoje, se não há neve lá fora, enganam-me. Porque sinto o frio gélido do desconforto das perdas, aqui, bem pertinho do meu coração.
Perdas de ausências ausentes, e perdas de ausências presentes.
Os dias que se vivem levam pra longe tudo e todos, como o vento que sopra além da janela.  Arrastam de nós, muitos daqueles que compunham a nossa existência ... As pessoas não se vêem, não se encontram ... não se sabem ...
Que será feito de ... ?  Morreu ?  Adoeceu ?  Foi p'ra longe, p'ra destinos mais seguros ?  Auto-exilou-se ?  Está a viver ?  Está a sobreviver ?  Pessoas idosas com quem conversávamos, com quem nos cruzávamos ... casais de que só encontramos um ... a dureza de realidades que nos desfilam à frente !...
Amputação de afectos.  Medos. Jovens engaiolados, numa idade em que as asas lhes crescem e os sonhos florescem ...
O cansaço progride, avança, penetra as paredes, adentra-nos as casas, agiganta-nos o silêncio, entrecortado às vezes pelo sinal das notificações do telemóvel que já nem vontade temos de visualizar, responder, ler ...

Temos as "pilhas" no fim.  Temos gasto o manancial de bonomia, de esperança, de paciência.  Já mal nos suportamos, temos a contemporização e a tolerância nos limites, estamos intempestivos e quase explosivos com tudo e com todos os que nos cercam ... Eu, sinto-me assim, e sinto a minha saúde mental perigando, pois o abandono, o isolamento, a indiferença e o encolher de ombros que me tomam, como se pouco já interessasse o que quer que seja, são formas de uma fragilidade emocional e de um desequilíbrio psicológico preocupantes ...
Cada vez mais, busco o isolamento, o silêncio, a introspecção, como se eles fossem uma capa de chuva que vestida, se me colou no coração e não ouso despir nunca mais !...

Lá fora chove.  O céu escureceu e fez-se noite, apesar de serem apenas pouco mais de cinco horas de uma tarde de desconforto e desalento ...
Até quando ?  Quem sabe ?  Ninguém sabe !  Só o tempo o dirá, só o tempo sempre tem respostas ...
Enya garante-o ... "Only time" ...  

... se ainda por aqui estivermos ...

Anamar

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

" PEQUENOS LAMPEJOS DE ALEGRIA "



Estes tempos deixam-nos assim ... lamechas, sensíveis, angustiados, assustados ... aterrorizados mesmo.
Percebendo mais do que nunca, a precariedade de cada dia que atravessamos, percebendo a sorte que é amanhecê-lo, percebendo a incertitude dos tempos que enfrentamos ... questionamos tantas pequenas coisas do dia a dia, que talvez não valorizássemos tão avassaladoramente noutro contexto.

Eu ando assim ... com o equilíbrio precário de quem se sente num arame sem nenhuma rede por debaixo.  Com a angústia de quem sente a vida devassada, atropelada, invadida, sem que me fosse pedida autorização para isso ...
Estava eu aqui tão calmamente a viver a minha vidinha, a fazer os meus planos com a exigência de quem os sabe inevitavelmente já só a curto prazo ... a regar os sonhos, dia após dia ( porque os sonhos nunca morrem ... ), a congeminar uma existência previsível, expectável, sem grandes dramas ou euforias ... sem inventar passos maiores que a perna ... e patati e patata ... e de repente vira-se-me o mundo de pernas para o ar, percebo que previsões só no final do jogo, e que verdades insofismáveis já não existem ... e desmonto-me toda, desarticulo as emoções, percebo-me um nadica de coisa nenhuma, neste jogo de cartas totalmente viciadas ...

E assim vão os dias ...
Todos a fazermos de conta que vivemos.  O ano a fazer de conta que existiu ... e todo o ser humano a fazer de conta que o vai riscar e esquecer na sua existência !...
E tudo isso é mentira !
Dezembro caminha a passos largos para o fechar das portas, a 17 de Novembro contabilizou um ano o primeiro caso de Covid 19 no planeta, em Wuhan, na China ... e entretanto milhares e milhares de pessoas que jamais o conjeturariam, fecharam por esse mundo fora, o livro das suas vidas !

Fui fazer a caminhada, sentindo dentro de mim uma gratidão à Vida por mais um dia ter permitido que eu pudesse contemplar o azul de um céu esplendorosamente radioso, de um Outono doce e aconchegante.
Pensei não descer à mata, porque pelas chuvas que têm caído, os caminhos enlameados ficam com um piso escorregadio e por isso menos seguro.  Mas eu adoro aquele espaço.  Ele renova-me a alma, vitamina-me, injecta-me o oxigénio de uma natureza genuína, e reencontra-me comigo mesma, nos pensamentos, nas emoções e nos monólogos que comigo estabeleço ... E fui.

Dobrei  esquinas  e  veredas, espreitei  um  sol  límpido  e  senti  uma  brisa  suave  a  envolver-me ...
Gente, pouca ... quase ninguém pelos caminhos da mata.
Um homem corria em sentido inverso ao meu, que caminhava.  Cabelo branco, despenteado, afogueado ... tudo normal p'ra quem pratica exercício físico.  Cruzou-me, e apesar de ambos nos afastarmos, pareceu-me ouvir o meu nome ... Margarida Porto ( o nome por que era conhecida no liceu ).  Estaquei, voltei-me e disse: "Desculpe, não percebi o que o senhor disse ..."  
"João .... !!!" - era  o  Narra,  meu  colega  de  Matemática,  meu  ex-aluno  há  muitos, muitos  anos !   O  João Narra, aquele puto sempre ligado à corrente, sempre afogueado, sempre com ar inocentemente maroto,  vivaço, interessado, bom aluno ...
O Narra foi dos primórdios da minha docência. Terá cinquenta e alguns anos, suponho.

"Oh João ... está tudo bem contigo ?  Não te conheci, desculpa ... "

Segundos, foi o tempo do sorriso se escancarar ... segundos, o tempo que levei a recuar lá atrás ... segundos, o tempo da emoção me tomar, e dos olhos se humedecerem ...

Não deu sequer tempo de lhe dizer : " Gostei  tanto, João !  Gostei  mesmo  muito  de  te  rever  ! "
Acho que não deu tempo !...

Estes tempos deixam-me assim ... lamechas, sensível ... agarrando com as duas mãos estes pequenos pedacinhos de felicidade, estes lampejos de alegria ... estas vivências inesperadas e quentinhas nos nossos corações tão atormentados!...

Ainda bem que desci à mata !...

Anamar