sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

" BALANÇOS ... "

 

Balanços, balanços ...

Por que raio somos impelidos a fazê-los, só porque o ano termina, se afinal "ele nasce outra vez" ... como  diz aquela maravilhosa e eterna melodia natalícia que todos conhecemos ?!

O dia trinta e um de mais um Dezembro que como um sinal de trânsito determina o fim deste trajecto de trezentos e sessenta e cinco que por aqui se foram escoando, é simplesmente mais uma marca que o ser humano inventou, como se o tempo não fosse um todo contínuo que temos a mania de fatiar ... anos, meses, semanas, dias ... horas ...
E dessa forma contabilizamos a vida, dessa forma despejamos nos nossos corações baldes de angústias, de ansiedades, de dúvidas e incertezas !
Dessa forma, criamos metas nas nossas cabeças, espreitamos fins de linha, receamos a aproximação do destinado, baseados em lógicas de esperança de vida, de estatísticas, de inevitabilidades ...
Como se fosse assim tão linear, o destino de cada um !...

E chego exactamente aqui com uma sensação de novelo de lã embrulhado nas pontas que se desgrenharam, com a sensação dum coração mais esburacado que o coador do chá, e com o cansaço de quem arrasta grilhetas atrás de si, pelos caminhos da vida.  Chego com a exaustão dum vazio irremissível, com o peso irresolúvel desse mesmo vazio ... ( Quem disse que a ausência de matéria não pesa horrores ??? )...
Quando estamos na idade produtiva, quando os planos e os sonhos esbracejam para terem espaço, e falta tempo e condições sobretudo materiais para os concretizarmos, acreditamos convictamente ... e ansiamos ... que, lá mais para a frente, há-de sobrar tempo, há-de haver paz, disposição e vontade, há-de haver disponibilidade emocional para se cumprir um percurso sereno, tranquilo, despreocupado e despido de angústias, aflições e incertezas destruidoras ...
Lá mais para a frente, será o tempo de recolectar, de usufruir, de saborear sem sustos ou sobressaltos, a nova qualidade de vida que nos é devida, afinal.
O Outono, também da existência humana, deverá ser um período de acalmia, de benefício, de paz ... o período da colheita do semeado em altura própria ...
Pois bem, chego exactamente aqui, como disse, com a sensação de ter feito quase tudo errado na minha vida, com a sensação de ter sido uma péssima administradora da mesma, com a desconfortável angústia da incapacidade de conseguir passar quase sempre a minha mensagem, clarificar a minha linguagem, traduzir com transparência tudo aquilo que quis transmitir, mostrar-me na total nudez da minha essência ... Com todos ... filhos, amigos, amores ...

Enfim, chego exactamente aqui carregando uma frustração sem tamanho, um desmesurado amargor no coração, uma sensação de derrota, de erro, de perda de tempo, de ineficácia, de fracasso ...
Não fui, simplesmente, capaz, hábil, convincente ... Quase tudo terá, portanto, sido em vão !...

Balanços ...
Antes de começar a escrever, sem uma linha norteadora, sem um assunto previamente equacionado, sem um propósito perseguido  ( apenas com uma sensação de profundo desânimo, cansaço e tristeza dentro de mim ), havia-me dito que balanços, não !  Bastava a penitência que me atribuo de escalpelizar o meu caminho ... bastavam as mãos vazias em colheitas que não deram frutos ... bastava a perda da ilusão e da inocência face ao que poderia ter sido e não foi ...
E afinal ... acabei incontornavelmente presa ao emaranhado dos seus inevitáveis tentáculos, em mais um ano que se está a acabar dentro de poucas horas.
Os balanços, afinal, sempre acabam dominando a mente humana !

Anamar

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

" QUANDO AS AZEDAS VOLTAREM ... "

 


E elas já aí estão ! 
Pintalgam a mata atestando a continuidade da vida, a resiliência dos seres.  Num ano totalmente atípico como o estão a ser cada vez mais, mercê da anormalidade das condições atmosféricas, fruto claro de alterações climáticas que já não têm disfarce possível, tudo na natureza se transformou numa conversa de surdos, com árvores a darem frutos mas já a florirem de novo, com a Primavera a ocupar os espaços de um Inverno que ainda não começou sequer ... enfim, com a Natureza a baralhar-se no meio desta baralhada toda, de facto !

Deveríamos estar às lareiras, deveríamos vestir lãs quentinhas, golas altas quiçá ... e não, como continua a ver-se, gente com mangas curtas na rua, sem um resquício de sacrifício ou penitência, porque efectivamente não está frio nenhum !  

E por isso, e à conta disso, as azedas voltaram.
Os campos bem verdinhos, com todos os arbustos rebentados já, beneficiando da amenidade térmica que persiste e da quantidade incontrolável de água que tem caído, propiciaram que este Natal que se avizinha tenha mais cara de Páscoa do que de um Dezembro que o calendário exigiria ...
E é lindo verem-se cobertos dos verdes mesclados de todos os cambiantes, e salpicados do amarelo viçoso da promessa primaveril que se antecipa !
Não fora a lama, e seria absolutamente convidativo perambular pelos caminhos, agora desertos, da mata. 
Com os céus plúmbeos, ameaçando mais chuva, a penumbra descida e o silêncio que impera, são para mim preferenciais companheiros de caminhadas.  Acresce que quase ninguém se propõe ... e por isso, as veredas desertas, o silêncio levemente entrecortado por trinados meio dormentes, ainda de alguma passarada que ficou ou passa mesmo por aqui a próxima época, criam uma ambiência fantástica, de paz e recolhimento ...  não fora a lama ...

Bom, detesto esta época.  Não sou única, cada vez mais, muita gente por aqui mo transmite.  Se calhar é coisa de estados de espírito para quem nem a profusão das luzes e das cores, nem a magia que parecia envolver esta quadra, conseguem recriar ainda, o sortilégio de que estes dias se revestiam.
Se calhar é coisa de idade, de realismo, de pragmatismo ... de frieza ou mesmo de incapacidade já, de "acreditarmos no pai Natal", nestes tempos que vivemos.
Não sei !

Lembro que neste primeiro dia de férias natalícias se rumava à Beira.  De armas e bagagens, com filhas, mãe, cão e gatos aí íamos nós demandando umas férias merecidas, findo o primeiro período escolar.
A Beira oferecia-nos o friozinho esperado, os campos livres e cheirosos, a lareira acesa de manhã à noite ... e quase sempre varando a noite mesmo, as luzes que aconchegavam, com a doçura da semi-obscuridade, a sala de pedra e madeira ...  
A Beira oferecia-nos os vizinhos que o eram apenas intermitentemente quando a casa abria portas e janelas, e franqueava a entrada de quem aparecia.      
A Beira oferecia-nos o musgo na cesta da avó, o pinheiro colhido no pinhal ( "jeitozinho ... nem grande nem pequeno " ), o presépio que haveria de armar-se ... as pequeninas luzes a piscarem, e o azevinho e as pernadas da cameleira vindas do jardim ... 
Enfim, a Beira prometia e oferecia a despreocupação da garotada, o descompromisso de nada fazer, a displicência da inexistência de horários ... o gorgolejo das águas do rio quase sempre impetuosas entremeio às fragas, ao fundo das terras ...
E o cheiro, o cheirinho que persiste até hoje na minha memória, da caruma, da terra molhada, do fumo que evolando das chaminés, lembrava que os fornos já coziam ... o pão, a broa, os bolos da consoada, as iguarias que viriam para a mesa daí a poucos dias ...
E como era doce e aconchegante, quando à saída da porta, com os cachecóis e os casacos de golas levantadas e bolsos em prontidão, o bafo da respiração se transformava  num "fuminho" simpático à nossa frente ...
"Mãe, acenda o lume ! "
E o fogo subia, e o calor entranhava-se ... as luzes da Árvore de Natal cantavam ... as crianças gargalhavam só porque sim ... e todos, ainda todos então, comungavam da partilha de ser outra vez Natal !!!





Anamar 

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

" TINHA QUE SER "


Parei de escrever no início do mês.  Assim o atesta a data do meu último post. 

Verdade seja que estive fora duas semanas, o que a juntar a preparativos de ida e depois da reinstalação na chegada, faz p'ra lá de um tempão.  Por isso, a juntar à já de si escassa inspiração e ausência de factos que pudessem agitar as águas por aqui, não tenho tido aquele "assento" como costumo dizer, para escrever fosse o que fosse.

Mas chegou o dia no formato e com o "desenho" desejável para a reassunção daquela paz, daquela introspeção, daquela interioridade que convidam ao silêncio dum quarto na semi-obscuridade de um único candeeiro aceso, onde apenas tamborila a chuva miúda na janela frente a mim, e onde a música relaxante de um CD de clássica, me confortam e aninham.
Beethoven, Schubert, Schumann, Mozart ... desfilam doce e lentamente, enquanto as palavras descem ao teclado e a tela do monitor se compõe.
Uma verdadeira tarde sonolenta, com o horizonte fechado além dos prédios mais próximos, um cinzento cerrado e um silêncio que eu diria absoluto, parecem dizer que tudo dorme lá fora ...

Estamos numa época do ano em que a "hibernação", a ausência aparente de vida, o intimismo que se respira dentro e fora de nós, nos remete para um aquietar das emoções, dos impulsos, dos sentimentos.  É mais um período de passividade do que de actividade.  É mais um período de reflexão, de análise, em que somos mais espectadores de nós mesmos do que actores e construtores de novos caminhos.
O Natal espreita já, melancólico, tristonho como eu sinto todos os Natais, silencioso e despojado como cada vez mais os vivencio.  A turbulência, a agitação, o brouhaha das festas cada vez menos me motiva.  Apetecia-me afastar-me dos lugares, das pessoas que me são indiferentes, de quem faz apenas número e cumpre calendário, apetecia-me ficar apenas com os que me aquecem a alma, com o silêncio das memórias, com o calor com que elas preenchem o gélido dos vazios deixados nos dias e nos tempos ...

Por estes dias tomei uma decisão há muito adiada e que se arrastava ano após ano, por tibieza de vontade, por saudosismo e por falta de coragem mesmo.  
Custo muito a desligar-me das coisas, não pelo seu valor material ( a esse não dou qualquer importância ), mas porque cada coisa é uma história, cada coisa é uma pessoa, uma palavra, um momento ...
Cada coisa tem o cheiro próprio do instante, tem a luz do que foi vivido, tem o som do que foi dito ... tem a gargalhada, o suspiro ... a lágrima que escorreu ...

Escancarados os roupeiros, despendurado o recheio de cada cabide, olhada com a indiferença e o distanciamento possíveis cada peça, procurando despi-la da emoção que lhe estava agarrada, da representação que configurava, foi a vez de dizer um basta e de separar definitivamente o que ficou no coração e na alma e o que cada trapo representou.
Isto estava comigo há catorze, há 15 anos ... isto foi usado nesta e naquela circunstância ... isto está associado a ... e por aí fora ...
Chega !  Não vale a pena esta espécie de flagelo à memória, este mau-trato a mim própria !  Definitivamente, o tempo foi, passou, foi o que foi e não é mais.  E este "grude" fétido, empesteado e doentio, tem que ser banido, raspado da minha pele e da minha memória.  Chegou a hora de exorcizar os meus "fantasmas", de acabar com esta intocabilidade, este "respeito" absurdo, como se estivesse a cometer o crime de violar uma espécie do santuário que todo aquele guarda-roupa religiosamente conservado, representou ... Tudo isto é louco demais, anormal demais ... doente demais !...
Mas acabou !
A página virou, a esquina dobrou, o livro fechou-se ... para sempre !!!  

Às vezes é preciso tomar decisões radicais nas nossas vidas e expurgar de nós mesmos muita coisa que nos dói  mas de que, pela significância assumida, não nos foi fácil, atempadamente, fazer o corte.  
Felizmente um dia a razão fala mais alto e a lucidez acaba por imperar. Afinal nada é eterno ... nada persiste para sempre !!!

Anamar

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

" O VERÃO DOS MARMELOS "


Novembro chegou.  O característico tempo cinzento instalou-se, como seria de esperar.  Ainda não está frio, mas também já não temos o aconchego das temperaturas da estação anterior.  
O S.Martinho parece fazer cara feia contra aquilo a que sempre nos habituou, e o "Verão dos marmelos" que coincide segundo a minha mãe dizia, com o S.Mateus cuja comemoração em Viseu implica a realização da grande feira anual, já terá terminado.  

Quando o tempo azulava de novo e o sol persistia em brilhar brincando connosco de um Verão de fazer de conta, numa aparição fora de época, todos nos preparávamos para o S.Martinho que ainda haveria de nos ensolarar a vida, antes do escuro e do desconforto que aí vinha.  
Tempo de magustos, castanhas e água-pé, pretexto enviesado para algumas paródias, sobretudo se estivéssemos na aldeia, eram momentos sempre inesquecíveis ...
Afinal é uma época de doçura nas despensas e no tempo.  Àquelas, descem as compotas, os doces, as marmeladas ... a este, descem as tardes alaranjadas de sol manso, descem as cores duma natureza que se embrulha  num manto com restos de folhagem nas árvores e nos arbustos, e tapetes fofos a restolhar pelo chão à frente da aragem quando sopra ...

Mas antes, como disse, a minha mãe afirmava . "Ainda aí vem o Verão dos marmelos" !   
Comprados na Feira de Outubro no Redondo, os marmelos, amarelos, cheiinhos, com ar promissor, eram comprados aos quilos ... muitos ... para a desejada marmelada, feita em casa dos meus avós e que tinha à sua espera, as prateleiras da despensa, na nossa casa de Évora.
Colocada em travessas fundas adquiridas para o efeito na Feira do S.João, e cobertas com papel vegetal, iria durar o ano inteiro até que nova "safra" se anunciasse.
"Bem docinha", exigia o meu pai, sempre guloso além da conta ... 😆😆
E assim era !...

Hoje, resta-me a memória desses dias idos.  
Os marmelos continuam nos mercadinhos, ou nas grandes superfícies, amarelos e cheiinhos. As travessas fundas ainda existem na minha casa ... o doce que barrava o pão está-me ainda na boca ... Tudo o mais se esfumou no tempo ...
O cheiro das castanhas assadas sobe da rua, se a vendedeira escolher o recanto do meu largo pra fazer negócio ... Marmelada, às vezes oferecem-me uma ou outra tacinha, p'ra matar saudades ...
O meu pai não poderá já opinar sobre a medida do açúcar a usar, a minha mãe também já não anuncia mais o "Verão dos marmelos", e as prateleiras daquela despensa permanecem vazias da remessa que todos os anos as haveria de adoçar !...

Anamar

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

" REFLECTINDO ..."



 

A hora mudou e com ela mudou definitivamente o rosto da estação que vivemos.  O sol põe-se às cinco e meia, o céu está feio, cinzento, ameaçador de chuva, que aliás tem caído com intensidade e alguma frequência.
Verdade que precisávamos dela como garante de sobrevivência, digamos, porque a seca longa e severa fazia perigar o futuro de plantas, animais e do próprio ser humano, alterando o nosso quotidiano com restrições sérias na utilização da água mesmo para as necessidades básicas, sobretudo no interior do país.

Assim, anoitece mais cedo e o nosso fototropismo vira-nos consequentemente mais e mais para dentro de nós mesmos, impulsiona-nos mais e mais para um natural intimismo, uma sonolência parda e mansa, como se a Natureza e tudo à nossa volta fechasse para hibernação ... para paragem, em que tudo parece desacelerar ...
Há um silêncio que impera, uma cumplicidade connosco mesmos que nos conduz a uma introspeção ainda mais profunda, num convite à análise e à reflexão.
Estou mais ou menos nesse registo.  Revisito tempos, pessoas, momentos ... passeio-me pelos pensamentos e pelas memórias, interrogo as dúvidas, procuro respostas ... frustro-me com a ausência das mesmas ...
Há alturas na vida em que o ser humano parece desconhecer razões óbvias, sentimentos inquestionáveis, palavras insofismáveis ... em que o avesso de cada um emerge, submergindo até o que nunca seria submergível ...
E há alturas na vida em que consequentemente interrogamos o que pareceria  desnecessário  ser interrogado,  porque  era  assumido,  certo,  verdadeiro,  seguro ... intocável !  Não era matéria passível de ser duvidosa ...
Tal como há valores nas nossas existências que não nos faz sentido questionar, porque são valores assumidos integrantes da nossa essência, "ad eternum" norteadores dos nossos caminhos, algo que contra chuvas e tempestades temos como inabalável. Algo que á a nossa verdade, escrita, assimilada, entranhada debaixo da pele.
Não nos interrogamos por exemplo sobre o amor filial, sobre o amor paternal ... não nos passa pela cabeça pôr em dúvida os laços afectivos no seio duma família estruturada, ainda que nem tudo sejam águas mansas ou os ventos soprem de feição, sempre ...
É que são sentimentos tão testados já ao longo das nossas existências, valores tão postos à prova já tantas vezes ... barreiras vencidas a duras penas ... mas ainda assim ultrapassadas ... que, pelo menos a mim repugna sequer colocar como frágeis, quanto mais duvidosos ...
Os escolhos podem ferir os pés ... às vezes ... mas não há lugar para sequer o questionarmos ...
Como "soi dizer-se" ... estamos lá e não "abrimos" !...

Mas o ser humano é distinto dos seus pares, cada um tem a personalidade, o estar, o sentir e consequentemente o pensar e o agir diferente do outro.  E por tudo isso eu convivo muito mal com posicionamentos que não entendo, com posturas que me violentam, me desgastam e me esgotam.  Com posturas que me confrontam em julgamentos descabidos, avaliações sumárias que injustiçam aquilo que eu sou, que sempre fui e serei ... como se devesse ocupar um qualquer banco dos réus, como se o que defendo, digo e reafirmo, não valesse nada, como se eu fosse uma qualquer "contadora de histórias"...

E devendo já ser imune a tudo isto, ao contrário magoo-me profundamente, sinto-me defraudada, afasto-me e desaposto. 
E o cansaço é o meu sinal exterior de abandono !... 

Anamar

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

" ANTES QUE ME ESQUEÇA ... OU, ENQUANTO ME LEMBRAR ..." ( 6º EPISÓDIO )

 


O meu caminho para o liceu era fácil.  Embora morasse um pouco longe, com aquela idade tudo era uma festa !
Assim, subia a avenida, passava pelo pátio do Agnelo de que já falei, "apanhava" a Teresinha que morava algumas casas adiante, seguia frente à mercearia e drogaria do sr. Acácio, do outro lado da rua, continuava junto às Escolas Primárias em pleno Rossio de S.Brás, mais adiante o Regimento de Infantaria 16 e por aí fora, voltava à direita, atravessava frente ao Chafariz das Portas de Moura e derivava para a rua que me levava então, lá ao fundo, ao largo de acesso ao liceu, numa rua a descer ...
Os nomes das ruas já não consigo dizer.
Havia um autocarro que circulava ao cimo da minha avenida, que em dias de muita chuva os meus pais faziam questão que eu apanhasse.  Mas eu gostava bem mais de ir a pé.  Assim, às vezes chegava ao liceu molhada que nem "um pinto" ...😂
Nesses dias de Inverno a sério, a minha mãe pegava então num par de meias minhas e lá ia a caminho do liceu entregar a uma contínua para que eu pudesse trocar as meias encharcadas, por um par sequinho.  Entretanto, ela própria apanhava uma molha e tanto, nesta operação !...  Mas mãe é mãe , claro !!!...

Os meus pais eram oriundos de famílias muito humildes. O meu pai nascido numa aldeiazinha na raia de Espanha, no Baixo Alentejo, provinha duma família de cinco irmãos dos quais ele era o mais velho.  Não conheci os meus avós.  Ele era sapateiro, pouco amigo de trabalhar, tanto quanto sei, a minha avó tinha a seu cargo a penosa tarefa de criar os filhos em dificuldades extremas.  Assim, com sete anos já o meu pai era moço de recados, para ajudar como podia, ao sustento da casa.  Mais tarde, marçano de armazém.  Creio que terá feito (ou não ) a quarta classe.  Pelo menos não era analfabeto.
A minha mãe, igualmente alentejana, desta feita duma vila do distrito de Évora, era a terceira duma família também de cinco.  Os meus avós maternos tinham um pequeno negócio de restauração, com que faziam face ao sustento da família. 
Em casa, de muita labuta, as filhas ( duas para três rapazes ), tinham que trabalhar tanto ou mais que as criadas.  A minha tia casou muito nova e saíu portanto muito cedo, da casa dos pais.  Ficou a minha mãe que era uma escrava de trabalho, sem descanso ou regalias.
Foi para a primária, era excelente aluna, mas ao fim da segunda classe teve que abandonar a escola, para ajudar em casa, no tratamento dos dois irmãos que entretanto nasceram.
De nada serviram os pedidos da Sra. D.Ressurreição ( a professora ), para que o meu avô a deixasse continuar os estudos.  Tudo em vão e portanto, pela vida fora a escolaridade da minha mãe, para grande mágoa sua, ficou por ali ...
Anos mais tarde, casada e já mãe, quis tirar a carta de condução.  O meu pai entendeu que lhe seria útil, uma vez que ele próprio a não queria tirar.  Só que, necessitava para o efeito de possuir como habilitação, o exame da quarta classe. 
Para a minha mãe, não havia obstáculos.  Sempre enfrentou tudo na vida com denodo, esforço e muita aplicação.  Assim, deitou mão aos livros e preparou-se para as provas, como adulta, claro.
Eu já frequentava o segundo ano do liceu e também fui protagonista na coisa.
Conforme ela dizia, enquanto cozinhava e fazia os trabalhos caseiros, tinha ao lado os livros e os cadernos e repassava vezes sem conta as matérias.  Eram as dinastias na História, eram os rios, as serras, as linhas férreas na Geografia e por aí adiante ... os exercícios da aritmética, os problemas mais elaborados ... etc.
O meu papel era então, quando regressava a casa, conferir o sucesso ou não, do estudo desse dia ...
E dessa forma, a minha mãe alcançou o desiderato perseguido ... fazer com aproveitamento o seu exame e com ele, inscrever-se na escola de condução para aprender a conduzir na complicadíssima geometria da cidade de Évora.  As suas ruas estreitas, becos e outras dificuldades no Centro Histórico, tornam a obtenção da habilitação à condução, como das mais difíceis de alcançar.  Era pelo menos assim !
A minha mãe não era, contudo, muito expedita nessa área ...😁😁 Extremamente nervosa, descontrolava-se  sem nenhuma calma e só à terceira tentativa alcançou a aprovação !... 😁😁😁 
A carta foi passada, existe até hoje, neste momento nas mãos da neta mais velha que a quis guardar como memória da avó.
Esteve toda a vida arquivada numa gaveta, pois carro nunca houve, e assim sendo, nunca a minha mãe se sujeitou à aventura de dirigir por conta e risco, o seu próprio carro !...😓😓
Coitada !...

Anamar

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

" ANTES QUE ME ESQUEÇA ... OU, ENQUANTO ME LEMBRAR ..." ( 5º EPISÓDIO )

 


Quando a escola primária terminou, completados os quatro anos normais de escolaridade, fiz o exame de Admissão ao Liceu Nacional de Évora, hoje a sua Universidade, instituição absolutamente icónica na cidade e no país.  

A universidade de Évora foi fundada a 1 de Novembro em 1559 pelo Cardeal D.Henrique  ( Arcebispo de Évora, mais tarde rei de Portugal ), a partir do Colégio do Espírito Santo, como a Universidade do Espírito Santo e entregue à Companhia de Jesus, que a dirigiu por dois séculos. 
Por isso, esse dia, é considerado até hoje, o Dia da Universidade.
No século XVIII foi a mesma encerrada por ordem do Marquês de Pombal, aquando da expulsão dos Jesuítas.
Voltou então a ser reaberta em 1973 como o Instituto Universitário de Évora, e só em 1979 este Instituto deu lugar à nova Universidade de Évora.
Foi a segunda universidade a ser fundada em Portugal, depois da de Coimbra, a mais antiga do país.

Assim, quando nela entrei a mesma detinha o pelouro do Ensino Secundário, desde o primeiro ao sétimo ano, com que este grau académico encerrava.  Paralelamente, na cidade existia também em opção, a Escola Comercial e Industrial, vocacionada p'ra saídas profissionais e não para o  prosseguimento de estudos.
Logo aí estava criada uma clivagem social entre quem frequentava o Liceu, a classe economicamente mais favorecida, e quem frequentava a Escola Comercial e Industrial.

Bom, mas lá fui fazer o exame de admissão ao Liceu, com a prestação de algumas provas de que me saí muito bem.  Lembro que numa das provas orais me foi feita uma pergunta na área do português, creio, à qual, precipitadamente respondi errado.
A professora olhou p'ra mim e do alto da sua cátedra disse : " Pensa ! A cabeça não é só feita para usar caracóis !"...
Não me atrapalhei e retorqui : " Eu sei, e daqui a pouco já respondo !" E assim foi.  Passados minutos dei a resposta correcta, o que fez rir o júri.  Bem pequenita que era,  tive o rápido discernimento de contornar a situação de forma airosa ...😁😁

O Liceu era misto, embora houvesse separação de géneros no espaço físico que o constitui.  As raparigas podiam ocupar determinadas zonas e os rapazes outras, embora na saída todos convivessem sem problemas.
Quem já visitou a actual Universidade sabe que ela é um monumento com uma arquitectura fantástica.   É composta por um conjunto arquitectónico austero, dos finais de século XVI, englobando vários edifícios - igreja e colégios - de construção maneirista de Estilo Chão, empregando o granito regional. A entrada desenrola-se a partir de um pátio interior totalmente contornado por claustros, quer no rés-do-chão quer no primeiro andar, o Pátio dos Gerais, exibindo rica azulejaria de época, e o interior das salas de aula dispostas ao longo desses claustros, possui púlpitos decorados com madeiras exóticas, bem como azulejos quinhentistas e seiscentistas.
No centro desse espaço existe um chafariz.  A fachada da antiga capela do Colégio do Espírito Santo é marcada por um enorme pórtico de mármore do séc. XVIII, encimado por uma pomba, símbolo do Espírito Santo e também da Universidade.
A Sala dos Actos do Colégio ( estilo barroco setecentista ) é um dos espaços mais imponentes de todo o edifício.  Tem azulejos e estuques do séc. XVII em tons verdes, azuis e rosa, alusivos às matérias leccionadas ( Matemática, Astronomia, Física e Belas Artes ).  No topo da sala podem ver-se os retratos a óleo de D.Sebastião e do Cardeal-Rei D.Henrique.
A Sala dos Actos era o lugar mais nobre do liceu, onde se realizavam os eventos mais importantes, como as sessões solenes de abertura de cada ano lectivo.
Os alunos merecedores de alguma distinção em cada ano, eram premiados no início do ano que se iniciava.  Por isso lá, recebi, das mãos do Reitor, um prémio, como contarei posteriormente, e bem assim menções honrosas por não ter dado faltas nos anos escolares cessantes.

O liceu cultivava certas tradições semelhantes às existentes na Academia coimbrã.  A entrada para as aulas anunciava-se pelo badalar do sino que existia nos claustros.  Penso que era o Sr. Almas, o contínuo a quem estava atribuída essa tarefa. O chefe dos contínuos era o inesquecível sr. Francisco,  uma figura ímpar ... Com alguma idade, mínimo de estatura, tinha o cargo máximo de responsabilidade na hierarquia do pessoal auxiliar.  Era muito querido e respeitado, e em cada ano, era figura presente e "obrigatória", na fotografia solene tirada nas escadas do pátio, por cada turma com a presença de todos os alunos e dos respectivos professores, bem como do Reitor, como figura máxima de prestígio.
Usava-se o traje académico no liceu, se e quando o desejássemos. Também o tive.  Saia-casaco preto, camisa branca, gravata e sapatos igualmente pretos, e claro, a capa de estudante. 
Dava ela um jeitão, nos frios invernos de Évora !

Iniciei o meu percurso escolar no Secundário com alguma atribulação.  
Na madrugada de 1 de Outubro  ( dia oficial do início de cada ano escolar ), exactamente no meu primeiro ano do liceu, a "bendita" serração de madeiras, sita paredes meias com a minha residência, que havia ardido alguns anos atrás, como relatei, voltou a sofrer outro incêndio. Um novo curto-circuito criou o pânico em minha casa, onde só eu e a minha mãe dormíamos.  Nunca podendo esquecer tudo o que havíamos sofrido anteriormente, a minha mãe entrou em choque, sem conseguir agir com a rapidez exigível a chamar o socorro.  Tentou telefonar para os bombeiros, mas chorava tanto num descontrole total, que fui eu, que deitando as mãos ao telefone pedi a ajuda necessária.
Lembro-me claramente que saltando da cama, ao fugirmos para a rua, agarrei num pequeno guarda-jóias que existia no toucador, em metal, vazio de jóias ou do que quer que fosse e o transportei comigo como se ali transportasse o tesouro mais valioso da casa ... nunca mais o largando !...😆😆
O mesmo faz parte do acervo da casa dos meus pais, que ainda hoje está comigo ...

Coisas de criança ... 


Anamar

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

" NESTE CINZENTO DA TARDE ..."

 


O tempo empalideceu.  A Natureza perdeu as cores vibrantes dos dias estivais.  O céu uniformizou em cinzento, sem definição de nuvens, sol ou sequer rasto de aviões que procurassem destinos, nem caminhos de passarada em demandas desconhecidas.  Nada !  Uma monotonia paisagística, numa chuva anunciada que teima em não cair...
Está um tempo de silêncio e aconchego, de intimismo e interioridade.  Um tempo que nos deixa de melancolia atrás dos olhos, um tempo que convida a balanços pelo percurso da vida, num recuo nostálgico, doído às vezes, pela sucessão dos dias que já foram.

Brevemente aniversario e o desconforto que sinto com isso, perturba-me mesmo.  Parece um "nonsense", uma infantilidade, uma "não questão", em última análise, qualquer coisa absurda e sem explicação lógica, até pela incapacidade que temos de fazer parar ou regredir o tempo.
Portanto trata-se de uma pura perda de energia considerar ou valorizar essa questão, até pela sua inevitabilidade.
As pessoas ditas "normais" contestam esta reacção, sorriem com olhar complacente como quem diz :"Coitada ..." ou então insurgem-se e veementemente acreditam que me podem mudar de lado, quando, elevando a voz, dizem superiormente :" Disparate ! Anos de vida são bênçãos, poder contá-los, um privilégio !..."
São as mesmas que vêm com aquelas doutas teorias que as rugas são aprendizagem, que cabelos brancos, peles a cair, dentes a faltarem, ouvidos a endurecerem ... histórias inalienáveis de vida ... Quanto orgulho por poder exibi-las !...

E se calhar, têm razão, mas em mim baixa uma tristeza de caixão à cova que acaba levando sempre a melhor, ainda que tente racionalizar, ser objectiva e realista.  Acho que é uma "marca" de fabrico deficiente, que nasceu comigo e comigo há-de partir ...😀😀
Mas tenho um truque que utilizo quando dá, não para apagar o dia no meu calendário, mas para o distrair e me distrair com ele : viajo, fujo para longe, de preferência, onde inviabilize o quanto possível a profusão de simpatias de que normalmente sou alvo ... os telefonemas, sobretudo !
Assim, são já alguns os anos em que essa data ocorre, duma forma mais ou menos feliz, em alguns cantos longínquos do mundo, porque dessa forma tudo se torna mais impessoal, frio e distante emocionalmente ...
Este ano também irei ... fazendo ficticiamente regredir o calendário, do Outono para o pino do Verão, outra vez ...

Entretanto, nesta modorra sonolenta, neste silêncio e nesta paz lá fora, aqui dentro os meus gatos dormem, a música doce toca a meu lado ... nem um pássaro se atreve no firmamento, e eu reflicto sobre o texto de António Lobo Antunes, lido há pouco  ...

Acho que hoje ele é que teve a culpa ... 
Afinal também a mim começou a apetecer-me voltar mais cedo para casa ... 😌😌

"A VELHICE
(Por António Lobo Antunes)
Devo estar a ficar velho: as Paulas Cristinas têm mais de 20 anos, os Brunos Miguéis já vão nos 15, as Kátias e as Sónias deram lugar a Martas, Catarinas, Marianas. A maior parte dos polícias são mais velhos do que eu. Comecei a gostar de sopa de Nabiças. A apetecer-me voltar mais cedo para casa. A observar, no espelho matinal, desabamentos, rugas imprevistas, a boca entre parêntesis cada vez mais fundos. A ver os meus retratos de criança como se fosse um estranho. A deixar de me preocupar com o futebol, eu que sabia de cor os nomes de todos os jogadores do Benfica (…). A desinteressar-me dos gelados do Santini que o Dinis Machado, de cigarrilha nas gengivas achava peitorais.
Se calhar, daqui a pouco, uso um sapato num pé e uma pantufa de xadrez no outro e vou, de bengala, contar os pombos do Príncipe Real que circulam, de mãos atrás das costas como os chefes de repartição, em torno do cedro. Ou jogar sueca, com colegas de boina, na Alameda Afonso Henriques de manilha suspensa no ar, numa atitude de Estátua de Liberdade. Quando der por mim, encontro o meu sorriso na mesinha de cabeceira, a troçar-me, num copo de água, com 32 dentes de plástico. Reconhecerei o meu lugar à mesa pelos frasquinhos dos medicamentos sobre a toalha, que me farão lembrar as bandeiras que os exploradores antigos, vestidos de urso como os automobilistas dos tempos heróicos, cravavam nos gelos polares.
Devo estar a ficar velho. E no entanto, sem que me dê conta, ainda me acontece apalpar a algibeira à procura da fisga. Ainda gostava de ter um canivete de madrepérola com sete lâminas, saca-rolhas, tesoura, abre-latas e chave de parafusos. Ainda queria que o meu pai me comprasse na feira de Nelas, um espelhinho com a fotografia da Yvonne de Carlo, em fato de banho, do outro lado. Ainda tenho vontade de escrever o meu nome depois de embaciar o vidro com o hálito.
Pensando bem (e digo isto ao espelho), não sou um senhor de idade que conservou o coração de menino. Sou um menino cujo envelope se gastou."


Anamar

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

" ANTES QUE ME ESQUEÇA ... OU, ENQUANTO ME LEMBRAR ..." ( 4º EPISÓDIO )

 


Até ir para a escola, sem horários a cumprir, ia muitas vezes com a minha mãe à praça, o mercado municipal, para nos abastecermos dos géneros alimentares.
Fica o mercado no Largo de S.Francisco, pertinho da igreja com o mesmo nome.
Ano após ano fomos sendo conhecidas pelas vendedeiras, algumas das quais nos tratavam mesmo, familiarmente.  A minha mãe, uma boa conversadora era uma pessoa bastante empática e depois, comigo pela mão sempre bem vestidinha, cheia daquelas mariquices que só as mães sabem fazer às filhas ... trancinhas, rabos de cavalo, laçarotes na cabeça, etc, parecendo uma bonequinha, era um motivo acrescido de muito apreço e brincadeira. 
A Sra. Mariana que vendia os produtos da sua própria quinta, situada perto do Degebe ( onde viríamos a passar uma bela tarde de Verão, a convite ), era particularmente, um doce de pessoa.
Deliciava-se com a minha performance, de cesta na mão como gente grande, e todas as vezes me punha lá dentro uma cenoura pequenina, uma ou duas batatinhas miniatura, um feijão verde e duas ou três ameixas amarelas ou roxas que nunca mais encontrei  iguais.  Eram umas ameixas fantásticas, com um sabor muito peculiar, absolutamente único ...
Como sabem, estávamos no tempo em que a fruta era a da época, nascida e criada de acordo com as condições generosas da Natureza, em que sempre sabíamos em que altura vinham as cerejas, as favas, o melão, a melancia ... e por aí fora.  Estávamos no tempo em que os produtos eram "nossos", portugueses, cultivados com o desvelo dos agricultores que os semeavam e os colhiam ... e isso era a sua vida !  Tudo tinha sabor, nada era "plástico", congelado, artificial ... Os produtos vinham do campo para a mesa, podíamos dizer !
A minha cesta das compras é mais uma das peças que existe na minha casa, até hoje ...

O tempo passou e era a hora de iniciar a vida escolar.  
Tinha ainda 6 anos quando ingressei na primária, sendo que a vida escolar começava então aos 7.
Existia na cidade, ao tempo, um colégio feminino particular, muito afamado em termos de resultados alcançados pelas alunas que o frequentavam.  Se houvesse à altura os benditos "rankings" de qualificação escolar, o Externato Conde de Monsaraz estaria seguramente em lugar de destaque.
Não era fácil ingressar no mesmo, porque a procura era grande.  Acresce que era frequentado pela classe média-alta da cidade.  A Elisinha, filha do Presidente da Câmara à altura, era, a título de exemplo, uma das alunas, de quem me tornei amiga. 
A minha madrinha de batismo era ainda familiar da dona e professora, a Sra. D.Maria Ramalho Prego, e foi por esta via que consegui entrar.
A professora era uma senhora esguia, seca de carnes, alta, creio ( embora em crianças tenhamos uma proporção diferente das coisas ), com o cabelo apanhado na nuca em banana ou coque.  Vestida de escuro e com saias até meio da perna, era uma figura austera, com um rosto fechado e respeitoso, encarnando na perfeição a figura das perceptoras dos filmes ingleses.
Leccionava as quatro classes ao mesmo tempo, sendo que na totalidade os alunos não iam além de vinte ... por aí.  O colégio situava-se no rés-do-chão do prédio de que ela e o irmão eram proprietários, e onde residiam, no Largo de S.Francisco, frente ao mercado.
A sala de aula tinha uma única janela, com uma rede fina para evitar a entrada de insectos.  Aproximavam-se dela, as mães na hora da saída.
As carteiras eram de dois lugares, frente à secretária e ao quadro negro.  Por cima, ficavam as fotografias de Salazar e Craveiro Lopes, o Presidente da República em funções, e um crucifixo.
Penso que algures ( já não tenho a certeza desta questão ), ainda existiam um mapa de Portugal e um Globo Terrestre, num lugar que já não identifico.
A sala tinha ao fundo um pequeno acesso ao vão da escada da casa principal, e esse esconso funcionava como casa de banho totalmente rudimentar.  Lembro que lá dentro havia uns quantos bacios altos, com tampa de madeira, e lembro também da lógica relutância que eu tinha em utilizá-los ...
Penso como os tempos tiveram mudanças inimagináveis ... Hoje em dia, que encarregado de educação aceitaria uma situação como esta ?  E como seguramente as entidades fiscalizadoras de saúde jamais concederiam um alvará de exploração dentro destes contornos ...
Recreio, também não havia.  Íamos almoçar a casa e retomávamos as aulas no período da tarde.
Muito de vez em quando, quando a Sra. D.Maria Prego estava muito bem disposta e o nosso merecimento era considerado, tínhamos por algum tempo, ordem para usufruir de um quintal da zona familiar da casa, para então brincarmos ao ar livre.
Mas isso era muito de vez em quando ... 😀😀

Mas aprendia-se, e muito !
Não havia historial de insucessos na admissão ao liceu e as alunas quase sempre eram aplicadas, já que o ensino era bem exigente.
A disciplina era total.  Bagunça, barulho, confusão dentro da sala de aula, eram inadmissíveis.  
Havia ainda a régua para as "palmatoadas", se fosse o caso, o ponteiro e ainda as "orelhas de burro", inevitavelmente estigmatizantes pra quem fosse "premiado" ...  Mas também havia medalhas de mérito penduradas ao pescoço, que nos enfeitavam o peito ufano ao regressarmos a casa, se as merecêramos por qualquer prestação digna de reconhecimento...

As orelhas de burro, p'ra mim, foram particularmente "devastadoras" 😔😔 como método pedagógico pouco aceitável, creio.  Passo a contar ...
Entrei para a primeira classe, como disse, com seis anos, e porque já ia adiantada e aprendi rápido, facilmente acompanhei as outras meninas de forma normal.  Assim, chegado o mês de Dezembro, findo o primeiro período escolar, transitei para a segunda classe e passei obviamente a ter as responsabilidades das meninas mais crescidas.
Lembro-me que nos ditados, a falta de pontuação ou a pontuação errada, eram consideradas um quarto de erro.  Excedendo os três erros, éramos passíveis de penalização, com as orelhas de burro...
Assim, num belo dia, num belo ditado 😏eu dei três erros e um quarto.  Reinou o silêncio na sala  na altura da entrega dos ditados corrigidos, até que uma das meninas, minha colega, disse : "Senhora Professora, a Guida deu três erros e um quarto ..."
Suspense total, com o meu coração disparado ... Acho mesmo que só as suas batidas se ouviriam ... 
De imediato a professora lavrou a sentença ... "Leva orelhas de burro !"
Bem dito, melhor feito e lá dei eu a cabeça ao cepo ... Ahahah 😭😭
Aquilo, pra mim era uma dor sem tamanho, eram os meus brios de aluna excelente, caídos em desgraça ... 
Sei que fui para o canto da sala, chorando todas as lágrimas do mundo, numa dor sem tamanho ...
A Sra. D.Maria Prego viria a manter o castigo por pouquíssimos minutos, pois teria caído em si e percebido ser de alguma injustiça a penalização que me havia atribuído.  Eu era a mais novinha, colocada indevidamente  numa classe que não seria legitimamente a minha, com responsabilidades que talvez exageradamente me não fossem exigíveis ... e retirou-me de imediato, as benditas orelhas ...

Mas o "estrago" estava feito, e confesso que, apesar da amizade que já existia até em relação à minha família, apesar de ter transitado de classe todos os anos conforme atestam os meus boletins de aproveitamento, com vinte valores ... apesar da Sra. Professora vir a ser posteriormente minha madrinha de Crisma, na Igreja do Carmo ... nunca mais esqueci este episódio, por toda a minha vida, por ter sentido seguramente no meu coração, uma injustiça imerecida.
Engraçado como há coisas que por vezes não valorizamos e que podem marcar indelevelmente uma criança, como sendo coisas inapagáveis nas suas memórias.  
Essa mágoa, em relação à minha professora, a bem dizer, nunca foi digerida, e ainda hoje sempre que olho uma pequenina chávena de café, Limoges, no escaparate da minha sala ( que me foi por ela oferecida exactamente como lembrança aquando da cerimónia do Crisma ), além de lembrar com clareza a sua imagem, logo me assoma ao espírito o famigerado e infeliz episódio das orelhas de burro !,,, 😁😁

Fico por aqui, neste já bem longa narração...
Tentarei continuar, antes que me esqueça ... ou, enquanto me lembrar ...



Anamar

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

" ANTES QUE ME ESQUEÇA ... OU, ENQUANTO ME LEMBRAR ..." ( 3º EPISÓDIO )


Cheguei àquela casa apenas com dois anos.  E digo "cheguei" porque não foi ali que vi pela primeira vez a luz deste mundo que me acolhia... 
Não, eu nasci numa pequena aldeia alentejana, na raia de Espanha, terra de origem do meu pai e família paterna, Aldeia Nova de S.Bento, onde nunca mais voltei e donde, obviamente pouco sei e de que não guardo nenhuma memória. 
Os meus pais rumaram então a Évora, talvez por ser um destino central para as viagens do meu pai, que como "caixeiro viajante" ( chamava-se assim ), percorria os Alentejos em trabalho.

Sou filha única, de pais "velhos".  Sou fruto de um segundo casamento tardio do meu pai, que sendo viúvo e já com 48 anos, casou em segundas núpcias, com a minha mãe, de 29 anos.
Talvez por isso, a relação dos meus pais comigo tenha sido sempre demasiado focada.  O meu pai, com um desvelo, uma preocupação e um amor quase mais de avô do que pai, era assim que me tratava.  O proteccionismo era total, nunca me ralhava ou sequer castigava ...
Acrescia o facto de ter um filho do primeiro casamento que aos catorze anos adoeceu irreversivelmente, com uma doença do foro psiquiátrico, vindo a ser internado numa instituição onde passou toda a sua vida, o que assustava brutalmente o meu pai, que assumia uma vigilância permanente e extrema com a minha saúde.
Pelo facto também de, por razões profissionais não poder ser uma figura muito presente na família, tentava compensar-me, tratando-me como prioritária, sempre.
Consequentemente,  a minha educação recaíu fundamentalmente sobre a minha mãe, que tinha por isso, o ónus da mesma.
Com responsabilidade máxima, apesar de me adorar e de sempre eu estar primeiro que tudo na sua vida, tinha uma presença permanente, excessivamente exigente e vigilante, pouco dada a cedências.
Escudada no facto de, estando o marido fora grande parte do tempo, chamou a si a intransigência de quem não pode vacilar nas directrizes pedagógicas.  Lembro que muitas vezes me dizia : " não podes dar desgostos ao teu pai.  Ele não pode arreliar-se, não venha a ter algum problema de saúde.  Eu sozinha, não teria condições de te criar !"
E pronto ... com esse "peso" sobre os ombros, essa chantagem emocional iria funcionar pela vida fora !...  
O meu pai viria a falecer com 90 anos ...😔😔

Fui portanto uma criança muito só, isolada e ensimesmada.  Convivia pouco, pois não me era permitido ir para casa de ninguém, e a minha mãe, ciosa com a limpeza e organização da casa, também não era muito aberta a "bagunças" infantis no nosso espaço, ela própria com uma personalidade muito individualista.
Tive alguns brinquedos ... duas ou três bonecas, não mais, e umas tralhas variadas, quase todas miniaturas de utensílios culinários, em barro ou em madeira. Em barro, provindos do Redondo onde se vendiam frente à casa dos meus avós, e em madeira comprados no Minho, em Caldelas, onde no mês de Setembro os meus pais iam a termas. 
"Residiam" dentro de um caixote de madeira, arrumado no rés-do-chão, no vão da escada, e nem sempre a minha mãe estava de "catadura" para mos ir buscar ( eu brincava na cozinha, atrás da porta ou às vezes, na varanda ).  Nos dias em que o caixote subia ao primeiro andar, passado algum /pouco tempo, a ordem era de arrumação de novo.  Afinal, não se queria desalinho pela casa ...
Certa vez, uma vez, a minha mãe cheia de bonomia convidou-me p'ra brincarmos ao "Dia das Comadres".
Nas quintas-feiras que antecedem o Carnaval, no Alentejo era tradição muito antiga festejarem-se os "Dias de compadres e de comadres".  Eram lanches ou outras refeições em que os amigos ( só masculinos e só femininos, respectivamente ) se juntavam a pretexto de celebrarem a amizade.
Desta feita, "ressuscitaram", vindos do andar de baixo, as panelinhas, frigideiras, pratos e talheres.  Na varanda acendeu-se o fogareiro que também era de barro e ali inventámos um lanche de Comadres ... neste caso, eu e a minha mãe éramos as únicas protagonistas !... 😂😂
Dizia-se  então : " O que  come  a  comadre ??  O que  a  comadre  comer ... Seremos comadres até morrer !"...  😁😁😁😁
Tempos esquecidos ...

Guardo até hoje a memória da chegada da Lolinha à minha vida, a boneca de porcelana com cachinhos loiros e olhos azuis que o meu pai me comprou, numa das suas vindas a Lisboa.
A Lolinha tinha uma mola na barriga e "chorava" quando se abanava para a frente e para trás.
Foi uma felicidade e tanto esse dia em que, regressado de viagem, o meu pai entrou pela cozinha adentro com uma caixa grande, embrulhada num papel branco com florzinhas azuis.
Sem nada dizer balançou o embrulho e frente aos meus olhos estupefactos, a Lolinha chorou ...
Essa imagem não desgrudou nunca mais da minha vida, e a alegria que senti também foi única e eterna, dentro de mim !
Hoje, a Lolinha que já baixou uma vez ao Hospital das Bonecas para reabilitação ( não porque eu a tivesse estragado ... aliás, quase não brincava com ela porque sendo de loiça, podia partir-se ... ), ocupa na minha casa um lugar de honra dentro de uma vitrina ... como uma das memórias mais gratas que tive na vida !

Já vos dei uma panorâmica de como eram os meus anos despreocupados, em que as responsabilidades escolares ainda não existiam.
De qualquer forma, forjei a minha personalidade dentro dessa realidade.
Quando comecei a ler e a escrever, canalizei-me muito para os livros de histórias e aventuras, com os quais passava longas horas dos meus dias.  A televisão haveria de chegar quando eu já completara 7  anos e ainda assim, na minha casa não existia.  Na avenida, conhecíamos duas famílias que as tinham, e sendo pessoas amigas, sempre nos convidavam para irmos assistir um pouco.  Mas a minha mãe entendia que isso era uma intromissão na intimidade de cada um ... e muito poucas vezes aceitámos o convite.
Eu gostava de desenhar e pintar.  Mais tarde fui ocupando os meus momentos de lazer, desenhando, alindando os cadernos da escola com apontamentos que fazia com esmero e perfeição e ... foi então que comecei a escrever ... Rabiscos, pequenas frases, textos insignificantes, declarações de amor à minha mãe ... papeizinhos que por ali ficavam ...
Na pré-adolescência, fase de normal desajuste em qualquer jovem, em que o intimismo, o sonho, a ansiedade ... todas as dúvidas e medos, todas as insatisfações e incertezas nos povoam ...  quase sempre os mesmos falando de sentimentos, de tristeza, de solidão ...

Retomarei ...  antes que me esqueça ... ou, enquanto me lembrar ...

Anamar

terça-feira, 11 de outubro de 2022

" ANTES QUE ME ESQUEÇA ... OU, ENQUANTO ME LEMBRAR ..." ( 2º EPISÓDIO )

 

                                                                 Tó Quim Barreto

Bom, eu fui para aquela casa com dois anos apenas.  E sendo assim, nem por obra e graça do Espírito Santo me lembraria do que quer que fosse, obviamente.

Dizem que as nossas primeiras memórias remontam aos três anos de idade, não sei.  Mas talvez não tivesse muito mais, quando um acontecimento me ficou gravado para todo o sempre. 
Não sei exactamente que "maldade" teria eu feito, que deixou a minha mãe furiosa.  
P'ra grandes males, grandes remédios ... "Não me queria mais pra filha, "sua má" ( dessa expressão, eu lembro )... 😁😁E se bem o disse, melhor o fez.  A Margarida, tesa que só ela, a vida toda, pegou num pano, fez uma trouxinha, supostamente com os meus pertences, pôs-ma na mão e encaminhou-me para a porta da rua, assegurando-me não me querer mais p'ra filha .  
Já eu me lavava em lágrimas e soluços, escada abaixo, vendo a minha vida a andar p'ra trás.  Abriu a porta e pôs-me na rua, fechando a porta em seguida.
Lembro-me  que  me  sentei  no poial, de trouxa  ao lado, num  profundo  desgosto incontrolável ...
Passaram minutos, não terá sido mais.  A minha mãe, do lado de dentro sofria tanto ou mais que eu.  Carregou esse arrependimento pelos anos fora, contava então.  Não teve mais coragem de alongar o castigo e num gesto magnânimo, abriu a porta e "re-assumiu-me" como filha ... 😆😆😆
Nem ela nem eu esquecemos nunca mais este episódio !
Hoje, estes métodos "pedagógicos" seriam altamente censurados... e conotados por certo, com maus -tratos.  Nunca o entendi desse modo.  A minha mãe adorava-me, e essa foi a forma que entendeu como eficaz, na correcção da dita "maldade" ... 
Eram outros tempos !!!

Lembrei aqui ontem onde era a localização da minha casa, e bem assim a sua descrição por dentro.
No rés-do-chão, e situada por debaixo da casa, ficava, como referi, uma garagem, simultaneamente estação de serviço, incluindo posto abastecedor de combustível, tanto quanto lembro.
Por interessante coincidência, e porque dizem elas não existirem de facto, achei curioso retomar essa referência exactamente hoje, porque se prende a essa garagem a memória duma figura pública eborense, nacional e também internacional que hoje, 11 de Outubro faria 91 anos.
António Joaquim Barreto, conhecido por Tó Quim Barreto, nascido em Évora em 1931, foi o primeiro piloto português a integrar os quadros da Ferrari, competindo em Fórmula 1.
Morreu num acidente brutal em 30 de Maio de 1957 com 26 anos apenas.  Era um desportista promissor, dedicado e premiado em várias competições.
Nesse malogrado dia, corria o Grande Prémio Automóvel de França em Saint Etienne. Tó Quim, como carinhosamente era conhecido em Évora, ia em 3º lugar quando o colega de equipa Piero Carini se despistou embatendo violentamente no Ferrari do português, tendo os dois sofrido morte imediata.
Ao seu funeral, relatam as notícias da época, compareceram milhares de pessoas demonstrando admiração, carinho e gratidão por este eborense que levaria também ao mundo, o nome de Portugal .
No Livro de Pilotos da Ferrari está registada a seguinte Homenagem :
"Aveva coraggio e passione : e morto a soli 26 anni ..."

Mas tudo isto também, e particularmente porquê ?
Não só porque, inesperadamente esta minha narração coincidiu com o aniversário de nascimento do Tó Quim, mas porque também eu, bem menina, sem que o soubesse, viria a conhecer "o alentejano que a Ferrari idolatra".  E como ?
Lembro com total clareza que o Tó Quim acedia à garagem com frequência, ao volante do seu carro.  Descia a avenida a altíssima velocidade e entrava com o carro, portão adentro, com a mesma performance.  O barulho era inequívoco ... lá vinha o carro de corridas ... o Tó Quim estava a chegar ...

Um dia, deixou de vir e a cidade chorou este seu filho querido ... o Tó Quim partiu !

Na mescla das histórias que lembro, há outro acontecimento que também fez notícia na cidade, sendo que muitas das pessoas que viviam então, o não esquecerão. Tudo se deve ter passado talvez num qualquer Setembro, não tendo eu sequer ainda dez anos.
Setembro era um mês bem quente, propício para férias de praia. Assim, eu e a minha mãe usufruíamos de uns dias na praia de Sines, antes que o ano lectivo começasse. 
Ao lado da minha casa ficava uma serração de madeiras já antiga e conhecida na cidade.  Nessa famigerada noite, devido a um curto-circuito, pela madrugada deflagrou-se um incêndio brutal.  Chamados os bombeiros, cujo quartel até nem ficava muito longe, logo o primeiro tanque de ataque se fez ao caminho, o mais célere possível.  Não estando completamente cheio, ao fazer uma curva a grande velocidade, o auto-tanque, capotou tendo morrido de imediato, um bombeiro.
O atraso da chegada de mais socorros permitiu que o fogo tomasse proporções alarmantes.  Quem assistiu, dizia que o fogo se via de qualquer ponto da cidade, lembrando fogo de artifício. 
Foi então accionado o pedido de intervenção da tropa.  A manutenção militar ficava também nas traseiras da minha casa e os soldados foram prestes a chegar.  Não havendo ninguém em casa e receando que a mesma fosse atingida pelas chamas, arrombaram a porta e iniciaram o esvaziamento indiscriminado e totalmente anárquico, da habitação.  Até as loiças da casa de banho foram arrancadas e retiradas, os móveis danificados, muitas peças partidas ... o pote do azeite, comprado para todo o ano e guardado na despensa, foi deixado aberto tendo-se perdido todo o seu conteúdo.
O recheio da casa foi sendo colocado em frente, na avenida, e muitas coisas desapareceram.
Enfim, muita confusão, muito atabalhoamento, muita precipitação.
Quando, contactadas em Sines, eu e a minha mãe regressámos ... o nosso pequeno mundo parecia ter ruído !...

Alguns anos depois, na madrugada do dia 1 de Outubro, meu primeiro dia de aulas no primeiro ano do liceu, a serração viria de novo a arder.

Mas isso e mais algumas outras coisinhas, recordarei ... e contarei ... antes que me esqueça ... ou, enquanto ainda me lembrar !...

Anamar

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

" ANTES QUE ME ESQUEÇA ... OU, ENQUANTO ME LEMBRAR ..." ( 1º EPISÓDIO )

 



Eu vivia numa avenida, no número quarenta.

A bem dizer isto não interessa a ninguém, mas sinto que devo escrevê-lo, porque qualquer dia posso já ter esquecido tudo, não é verdade ? 
E a minha mãe também já cá não está para me refrescar a memória .

Era uma avenida com árvores a ladeá-la.  Bem direitinha no traçado, ligava o Rossio de S.Brás à estação dos caminhos de ferro, lá ao fundo.  Quando as cancelas estavam abertas, podia atravessar-se a linha e seguir-se, estrada fora, em direcção ao Bairro de Almeirim, pelo meio dos campos, das oliveiras e sobreiros, das searas ...
Era caminho de passeios pela fresca da tarde, nos dias sufocantes de quarenta graus à sombra, era pretexto para a apanha das giestas com que os Maios nos brindavam ano após ano ... era destino da apanha da espiga, no adequado dia ...
Esqueci de dizer que era Évora, que eu era criança ainda, que o tempo corria manso e ronceiro e a vida fazia-se pacata.
Vivíamos, quase só eu e a minha mãe, já que o meu pai, que era viajante de profissão de um armazém de ferragens, pouco estava, perambulando pelos Alentejos, a negócio.
A casa, que ainda lá está, com rés-do-chão e primeiro andar, era demasiado grande apenas para nós as  duas.  Tão grande, que eu me assustava com o escuro dos espaços à noite. 
Da "casa de entrada" a que se seguia o vão da escada e mais duas divisões interiores  contíguas, uma delas funcionando como a "despensa", saía uma escada que perto do cimo virava à esquerda e seguia com mais alguns, poucos degraus.  No patamar havia um bengaleiro para os casacos, chapéus de  chuva e o chapéu da cabeça do meu pai que nunca o dispensou, mas quase sempre estava vazio, com uma jarrinha com flores de plástico frente ao espelho, já que a minha mãe achava inestética a roupa "ali pendurada" ...
A escada tinha uma passadeira vermelha escura dum material de cordoaria chamado"cairo" e que continuava por aí fora, pelo corredor onde no cimo a escada desembocava.
 Este era ladeado pelas portas das outras divisões : à direita a cozinha ( frente à sala de estar que tinha um fogão de sala que nunca funcionou na vida ), o escritório do meu pai de novo á direita, com a mobília de torcidos e tremidos ( que ainda hoje tem lugar de honra na minha casa ), frente à "casa de jantar".   Seguiam-se depois os quartos de cama, o dos meus pais à esquerda, o meu à direita, sendo que o corredor se encerrava com mais uma volta à direita, terminando na casa de banho.
As três divisões do lado esquerdo da casa tinham janelas viradas para a avenida, duas eram "sacadas", como se dizia, e a do meio era "de peito" como também se dizia.
Às sacadas chegavam as ramadas, às vezes floridas, das árvores da avenida, e como as flores eram adocicadas, os mosquitos, em descuido, também não me poupavam ...
As dependências da direita confinavam com um terraço, a que chamávamos varanda, onde existiam as cordas da roupa, o tanque de lavar, e muitos vasos de flores com privilégio para as sardinheiras, pelas quais a minha mãe sempre nutriu um desvelo especial.  A cozinha, em vez de janela, tinha uma portada de vidros para o exterior, forma utilitária de acesso à varanda.
A vista que se desfrutava dessa varanda, que como talvez tenham percebido virava para as traseiras da casa, era apenas de telhados intermináveis parecia-me na altura, que cobriam, lateralmente uma serração de madeiras e que encimavam, também a perder de vista, uma garagem de manutenção e guarda de veículos automóveis, com uma pequena bomba gasolineira acoplada.  O acesso a esta garagem fazia-se pela avenida, por um portão largo, situado por debaixo da casa.

Lembro-me que adorava ir para a janela da sala de jantar com a minha mãe, ver o pouco movimento da avenida.  Em frente ficava o Fomento, empresa que eu sabia confeccionar pelo menos rebuçados, e em dias de vento a favor, o cheirinho dos mesmos impregnava gulosamente o ar.  Tinha uma chaminé de tijolo, cilíndrica, muito alta, na qual residia uma família de cegonhas, que findo o Inverno, de regresso do exílio africano, num belo dia amanhecia no ninho vitalício, até aí desabitado.
Quase sempre eu acordava de surpresa, com o característico bater dos bicos, iniciando a tarefa de reabilitação da "casa" que ficara do ano anterior, porque a época da nidificação chegara.
Eu ficava literalmente siderada, fascinada com o seu regresso, sabendo que a partir daí tinha bem frente à minha janela, o recomeço de mais uma "história de amor", em sucessivos e fantásticos episódios.

A avenida era cruzada, já perto do Rossio, por uma transversal ... a Rua Diana de Liz, onde se situa a Igreja de S.Brás, lugar das minhas missas dominicais quando me portava bem, porque às vezes, à sorrelfa, "driblava" o controle da minha mãe e ia namorar para a "Fonte Nova", mais à frente ... um inofensivo fontanário com uma espécie de jardinzinho a contorná-lo ... nada de mais ... 
Com os meus treze anos e hormonas aos pulos, eu e o João, já com dezasseis, filho de um revisor dos caminhos de ferro a viver também na minha avenida mais perto da Estação, aproveitávamos os encontros enquanto podíamos.  O resto eram olhares trocados do alto do meu primeiro andar para a rua, quando ele regressava das aulas ( eu estudava no Liceu e ele na Escola Comercial e Industrial ).
O João Augusto Alegrias Almeida, deu comigo os primeiros passos no amor.  Tudo muito naïf, muito ingénuo, muito doce ... muito romântico !...
A minha mãe lá estava de atalaia, e quando me via na sacada logo desconfiava, e a ordem de "recolha" era imediata !... 😁😁

Na Rua Diana de Liz ficava um pátio, aquela tipologia antiga meio estranha, de habitação precária em que as famílias com dificuldades económicas viviam em comunidade, em casas baixinhas em torno dum espaço comum, como uma praça de terra batida, que comunicava com a rua através dum portão.  Eu gostava de ir até lá, até porque ali vivia a Micaela, uma das miúdas com quem eu convivia.  Na minha avenida, um outro pátio, um pouco acima da minha casa abrigava mais uma dezena de famílias no limiar da pobreza.  Também lá eu tinha amigos.  Nas noites de Verão brincávamos na rua, às escondidas até que a mãe chamasse p'ra dormir ... 
Invejava-lhes a liberdade e a ausência de controle tão apertado que eu tinha.  Eram miúdos que brincavam descalços se calhasse, quase sempre sem brinquedos e em que a rua e a ausência de horários os tornavam pássaros livres e soltos ...
Às vezes calhava  estar na casa da Teresinha Alves Martins à hora da refeição.  Batatas cozidas regadas com um fio de azeite e azeitonas ... E como eu gostava que me oferecessem do repasto !  Nada de peixe, nada de bacalhau ... nada dessas coisas chatas que eu era obrigada a comer na minha casa !...

Memórias inesquecíveis ... histórias avulsas que só quem as viveu as sabe contar ...

Amanhã continuarei ... enquanto me lembrar ...

Anamar

sábado, 8 de outubro de 2022

" A VISITA "


As gaivotas recuam ... 
Andam por aqui soltando aqueles gritos estridentes, voando ou pousando nos candeeiros ou mesmo sobre os carros.
Eu vivo no interior, ou seja, longe do seu habitat natural e espectável ... a orla marítima, onde são senhoras e donas das falésias, seja Verão ou as tempestades já açoitem os rochedos.
Há muito tempo atrás, aqui nas imediações e penso que não só aqui, existia uma lixeira municipal, espaço de vazamento dos lixos, a céu aberto.  Era a lixeira de Boba que de quando em vez empesteava a cidade com um cheiro fétido insuportável.  Bastava o vento soprar de feição para que lhe sentíssemos a presença.
Nessa altura, quando os bandos de gaivotas cortavam o firmamento, desalinhadas ao sabor da aragem, já sabíamos que procuravam comida porque seguramente haveria tempestade no mar.  
Recuavam portanto, buscando-a na cidade.  E Boba funcionava então, como a despensa que tinham à mão...

Felizmente que os tempos evoluíram, as regras de higiene e protecção dos espaços urbanos e da comunidade em geral beneficiaram de outras formas de abordagem e reconversão dos lixos, com a instalação dos aterros sanitários e estações de tratamento no âmbito da preocupação com a protecção ambiental, dos sólos e das águas subterrâneas.  
A reciclagem dos materiais, beneficiando da separação dos lixos urbanos, é uma das prioridades ecológicas dos diferentes governos, e um dos ensinamentos implementados em termos educacionais desde cedo, nas nossas escolas, como se sabe.  O sentido de responsabilidade, de cidadania, e consciencialização das populações, é vector determinante nos tempos actuais.

Contudo as gaivotas continuam a recuar.  Pergunto-me o porquê disso acontecer...
Às vezes, ainda estou recolhida e no silêncio do dealbar do dia, já as oiço e já as imagino cortando o céu aqui por cima ...
Os pombos, aves do betão, e agora também bandos de periquitos de colar que parecem começar a procurar espaços verdes próximos, povoam sem surpresa o nosso firmamento.  
Os pombos são obviamente residentes e estão totalmente aculturados, enquanto que os periquitos estão, ao que parece, em processo de instalação e integração nos nossos hábitos.  Passam normalmente em grupos familiares, acelerados, parecendo ter um objectivo determinado a atingir, quase sempre ao fim do dia.  Identifico-os pela forma característica da silhueta, mas sobretudo pelo som que emitem e que lembra um gralhar atabalhoado ...
Quase sempre os persigo com os olhos e sigo com eles de rota batida, lá para onde quer que eles vão ...
As andorinhas também já partiram.  Afinal o Outono instalou-se, no calendário apenas, é bem verdade, e vai estando manso até que qualquer dia fique de candeias às avessas e dê uma reviravolta neste calor que ainda nos atormenta.

Porque recuam então as gaivotas ?
Entediaram-se lá pelas escarpas marinhas, onde os areais finalmente em paz da balbúrdia estival, estão agora serenos e silenciosos ?  Cansaram-se da toada das ondas açoitando os rochedos, quando as noites  dão lugar aos dias e os dias dão lugar às noites ?  Vêm dar uma espiadinha bisbilhoteira à urbe, para fazerem história junto daquelas que já não se atrevem ?

Em tempos eu tive uma gaivota ...
Já falei muito dela por aqui.  Era outra época !
Ela vinha, voava rasante à minha janela, empoleirava-se no topo dum edifício próximo e olhava-me com aquele olhar miudinho, perspicaz e desafiador que parecia provocar o ar desalentado de quem só a olhava de baixo e a não podia seguir pelos céus fora, rumo ao almejado horizonte, lá longe ...
Sempre achei que entre mim e ela se gerou uma conivência secreta e uma cumplicidade de mulher.
Ela contava-me do mar que eu sabia nos areais distantes, falava-me das suas zangas que entreteciam rendilhados nas areias, dizia-me das algas e dos búzios, das conchas, das marés e dos segredos que ele sussurrava em cada rebentação ...
Eu contava-lhe das correntes que nos pés me pesavam, feito grilhões de prisioneira, falava-lhe do sol que tombava na linha desenhada no céu em cada fim de dia, das luas que me desafiavam nas noites escuras, dos meus sonhos que nunca voavam porque não tinham asas, como ela ... e das estrelas, punhados de estrelas que ainda assim povoavam as minhas noites ... 
E ela levava-me os recados ... era estafeta dos meus silêncios, partilhava-me as angústias, as nostalgias e as solidões ... 
E partia ... voltava para as praias desertas, onde era dona e senhora !...

Em tempos tive uma gaivota ...
Vinha visitar-me ... agora eu sei ... tenho a certeza ...
Era outra época !...

Anamar

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

" OS MEUS SILÊNCIOS ..."



Quase sempre ao longo da vida guardei momentos, coisas, pessoas, sonhos e memórias que nunca pus em causa.
Não me lembro de verdadeiramente os enjeitar por nenhuma razão.  Tenho muita dificuldade em cortar todo o tipo de laços, mesmo quando parece que os mesmos esfiaparam e se desagregam.
Ao contrário, uma vez incorporados em mim, não despegam, como não despega um braço, um ombro, os olhos ... o coração !  
Não alienamos pedaços nossos, não prescindimos do que é extensão nossa, não descartamos o que nos passou para debaixo da pele ao longo da existência.  Aliás, se o conseguíssemos fazer, tal corresponderia a uma amputação da nossa própria história com toda a dor que isso acarretaria ... e eu, pelo menos, furto-me desesperadamente a isso.  Seria como se em vida eu me desapropriasse de parte da minha essência.
E isso bem basta que a morte se encarregue de o fazer, inevitavelmente ...

Por isso, ainda que faça um esforço de memória, não consigo lembrar nenhuma situação em que deliberadamente tenha colocado no "arquivo morto" nada que vivi, me pertenceu ou representou com protagonismo, pedaços de mim mesma.
Mesmo quando dolorosamente parece ter-se criado um fosso estranho sem ligação entre mim e isto ou aquilo, entre mim e este ou aquele ... ou quando parece que onde havia pontes francas e inquestionáveis se levantaram muros, ou se fecharam caminhos de comunicação ... tenho uma infinita dificuldade em aceitar o que na verdade preside a essa inesperada e ininteligível situação... 
Porque os momentos, as coisas, as pessoas, os sonhos e as memórias que me configuraram, foram tatuagens, foram registos indeléveis e intrínsecos no meu ser enquanto gente, foram marcas para todo o sempre que cresceram comigo e em mim ganharam raízes, não conseguindo percebê-lo de outra forma.
Seria quase monstruoso se o conseguisse.  Seria talvez negar-me a mim própria e a tudo o que fui sendo ao longo da vida !

O nosso trilho nunca é simples.  Viver não é tarefa fácil.  São muitos os vectores condicionantes, são muitas as marés adversas ... e o Homem é complicado por natureza.
Que  bom  seria  se tivéssemos a simplicidade  dos  animais  e  aligeirássemos  o "complicador" ...
Que bom seria se nos desarmássemos e usufruíssemos, simplesmente ... 
Que bom seria se não desvalorizássemos o essencial em função do que tomamos como certo e seguro, tantas vezes sem que o seja ...
Que bom seria se não nos tornássemos surdos e cegos com as inseguranças que tantas vezes  carregamos e nos dominam ...

Aprendamos a escutar os nossos silêncios ... lá onde a verdade emerge, o lugar onde despidos nos confrontamos, sem lugar a mentira, simulação ou disfarce.  Nós perante nós mesmos, sem camuflagens ou máscaras ... porque aí a verdade e a autenticidade desvendam-nos quase sempre a clareza da realidade que de facto não enxergamos ...

... porque, sempre, em qualquer circunstância, a palavra é de prata, mas "o silêncio é de ouro" !!!

Anamar