segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

" ESTA, SOU EU !... "






A tarde fechou cor de fogo, iluminando, como se de luz acesa se tratasse, todo o firmamento. Promete-se  continuação deste tempo bem favorável, depois de dias fortemente gravosos para muita gente, com inundações e cheias desgovernadas e ventos ciclónicos destruidores.

Mas hoje, a amenidade do dia e a doçura da claridade envolvente, tornou-o absolutamente fantástico ! Um dia "brutalmente" belo, vocábulo indistintamente aplicado, nos modismos da linguagem actual ...
Invenções que as pessoas usam ... expressões sobre cuja acuidade nos interrogamos ...
Mas nada disto é importante.  O que verdadeiramente me importou, foi poder saborear da minha caminhada em paz, num deleite absoluto, usufruindo-me no silêncio da mata.
É espantoso como lá, tanta coisa eu me falo, eu me interrogo, eu analiso, eu esclareço ... eu decido.  Isto, no silêncio total, apenas bordejado pelo trinado dos pássaros, que de galho em galho se mostram felizes e quase primaveris.
É de facto um tempo e um espaço de privilégio, indevassável  por gente, por ruídos, pelas coisas maçantes do dia a dia, que sempre ficam portões afora, da Quinta Nova de Queluz ...
As ideias aclaram-se-me, as dúvidas parecem dissipar-se, as soluções surgem-me com a logicidade de questões desembrulhadas subitamente de véus, que pareciam demasiado espessos ...
E eu por ali vou, conversando a meia voz e aconchegando-me com toda a maravilha que a Natureza nos disponibiliza.
As azedas atapetam e florescem tão cerradamente as encostas ao sol, que parecem musgos fofos no presépio do Natal.  As árvores de folha caduca, espreguiçam os ramos despidos em direcção ao céu, e têm uma beleza esfíngica sonolenta e mágica ...

Tenho um amigo, com quem aliás farei a passagem de 19 para 20, cuja vida está presa por fios ténues e quase invisíveis.  Padece há alguns anos de uma doença terminal muitíssimo grave.
Alentejano que é, com a força, a tenacidade e o querer que quase sempre nos povoa a alma e o corpo, nunca se entregou à sentença que lhe foi lida, rejubilando, quando a brincar dizia já ter ultrapassado há muito, o "prazo de validade" ...
Nos últimos tempos, a sua já muito acentuada debilidade agravou-se muito significativamente, e hoje, há poucos dias, foi totalmente desenganado, clinicamente falando, sendo que se mantém, apenas à custa de transfusões de sangue, face à comprovada ineficácia de toda a terapêutica desesperadamente tentada.
Dessa forma, procuram garantir-lhe paliativamente  ainda, o mínimo de resistência e sobrevivência.

Pelas veredas da mata, no meio de toda a exuberância de uma Natureza generosa e em visível renovação, não consegui alhear-me da situação do Vicente.
Químico como eu, um pouco mais velho, colega da velhinha Faculdade de Ciências da Politécnica, é uma pessoa pragmática, positiva, lutadora, bem disposta apesar de a vida não lhe ter sido muito favorável ...
Parece aceitar com alguma paz e conciliação, o que o futuro curto ou longo, lhe poderá oferecer ...
Pediu que a passagem do ano fosse em sua casa, rodeando-se de alguns, poucos amigos ... os amigos de toda a vida ... os amigos certos ...
Desconheço se o entende como uma espécie de despedida ...

Não sei o que vai dentro da sua cabeça e do seu coração.  O Vicente chegou à minha vida há muito pouco tempo, não mais que três anos ... através de outros companheiros comuns.
Não o conheço, portanto, em profundidade.  Tento apenas meter-me na sua pele.  E pergunto-me :  se fosse comigo, será que eu aceitaria com a bonomia que ele exibe, tudo aquilo que se perspectiva para o resto dos dias que lhe forem concedidos ?
Será que eu ia ter a placidez da aceitação e do desapego, com a paz e a tranquilidade possíveis ?
Será que eu não sucumbiria ao desespero, à raiva, à injustiça, à dor e à mágoa, por  me tirarem daqui à força, com a insensibilidade imposta da partida, com a indiferença de coisa decidida, sem que eu pudesse opinar nada em meu benefício, face à prepotência da morte ?
Será que eu aceitaria que a Natureza esmagadoramente bela, continuasse  igualmente  pujante e generosa, a enfeitar-se, a sorrir, a acender dias luminosos e doces , convidativos ao sonho, à esperança, à VIDA ... indiferente ao grão de poeira que de facto somos ?
É um acinte, um descaso, uma provocação, um absurdo ... termos que partir com tanto sol, tanto verde, tanta perfeição lá fora, à nossa volta !...

Entretanto as últimas horas de 2019 estão a esgotar-se.  E essa ampulheta que esvazia, angustia-me, ainda que eu queira  fazer de conta que tudo não passa de um ardil criado pelos humanos para balizar, fatiar, segmentar esse monstro a que chamamos tempo ...
Como se não fosse tudo infinitamente mais simples se desconhecêssemos essa  famigerada contagem !...
Não nos preocuparíamos se passou mais uma semana, um mês ... um ano ...  Se estamos nesta ou naquela idade ... se se aproxima expectavelmente o fim da linha ou não ... se teremos ou não, teoricamente, ainda muita estrada por andar ...
Seríamos como os animais, como as plantas, que apenas aceitam e vivem ...
Recebem cada dia que desponta, percebem os Verões, os Invernos, os ciclos biológicos ... o desenrolar puro e simples dos destinos ... assim, simplesmente ...
Sobrevivem apenas, com a felicidade de existirem e de se continuarem ... não mais !...

Estou atontada, como percebem.  Rir-se-ão por certo, de tanta inconsequência e patetice.  Nos últimos tempos, desatei a ver a vida com uma carga que considero mais realista, contudo mais negativa, que me torna ansiosa, que me faz pensar, que me tirou a despreocupação defendida, do "carpe diem", correcto e assertivo, que as pessoas perseguem.
Devem estar certas, seguramente.  Eu percebo claramente que estão certas, e que é estupidamente martirizante, ver as coisas de outra forma ... Para quê ?...  Mas ...

FELIZ 2020  para os meus leitores, com ou sem rosto !
Sempre grata, prometo ir continuando por aqui, com todas as minhas inquietações, dúvidas, realizações, alegrias e tristezas !!!  Afinal, ESTA sou eu !




Anamar

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

" DESABAFOS / INTERROGAÇÕES INCONFESSÁVEIS ... "




Eu sabia que seria exactamente assim.  Sempre o soube.

É o segundo Natal em que a ausência da minha mãe deixou vazio um lugar naquela sala.
Verdade seja que nos últimos anos ela já não queria estar.  Era-lhe penoso ser subtraída ao aconchego da sua cama àquelas horas.  Mas nós sabíamos que ela estava lá.  E o beijinho de noite tranquila, dado antes da Consoada, aquecia-lhe ... aquecia-nos o coração !
Agora tudo é diferente.  Ela paira por ali, quase sempre ela paira por aqui, na presença que eu sinto, nos sinais que me vai deixando, nas conversas em surdina que mantemos ... Mas só ...
Trocar ideias com ela, como eu preciso ... nada !
Acho que nunca pensamos à séria que a nossa mãe nos fará tanta falta.
Enquanto é real nas nossas vidas, nem percebemos como aquela figura discreta, às vezes exigente, às vezes controladora, às vezes chata ... é de facto, determinante.  Não realizamos da importância dos conselhos, dos palpites, das sugestões ... às vezes dos reparos, dos remoques, das "abelhudices" contra as quais nos insurgimos com tanta frequência ...
"Mas que coisa ... a minha mãe acha que o tempo não passou e que a minha vida é a sua ... os meus interesses também !" - tantas vezes o pensei ... tantas vezes o disse ...

Hoje, estou mais "perto" dela, do que das gerações descendentes.

Na forma de pensarem e de se posicionarem na vida, as minhas filhas começam a ficar a anos-luz das minhas convicções, da minha forma de vida, dos meus padrões, daquilo que defendo, que valorizo e aprecio ...
Começo a perceber que as suas "unidades de medida" do tempo e do espaço, são outra onda.
Começo claramente a perceber que os seus ritmos, as suas referências, os seus valores e interesses, as suas capacidades face à vida, são outro departamento.
E sei exactamente que não entendem e não aceitam, a falta de "desembaraço", a lentidão às vezes, o "emperramento" mental, que pensam que nós, os pais, nunca deveríamos ter.
Sei exactamente da sua impaciência e falta de disponibilidade, para ouvir e " dar tempo a quem precisa ".
Começo a perceber a discrepância das nossas linguagens, a ininteligibilidade dos seus mundos, o meu afastamento ao seu universo.

Que dizer então dos que ocupam um degrau adiante ??

Em relação a esses, começo a virar um " ET".  Qualquer dia ( se não já, começam a olhar-me como uma figura meio dinossáurica e fóssil ... ).
Não entendo, e custo muito, mesmo muito a aceitar a tolerância e a permissividade dos pais de hoje, em relação a muitas formas de ser e estar, dos filhos.
Não entendo os modismos aos quais se adere, porque são isso mesmo ... modismos.
Não entendo que haja quatro pessoas numa sala, onde teoricamente se deveria vivenciar o convívio da Consoada, aproveitando os raros momentos em que a vida permite a partilha entre as diversas gerações, e estas estejam fixadas nos monitores dos telemóveis ...
Não entendo que os amigos dos pais sejam tratados por "tios" e "tias" ... Irrita-me solenemente esse tão generalizado preceito ...
Não encaixo ter uma neta, na idade tonta dos quinze anos, que tenha feito um "alisamento" do cabelo ... só porque não apreciava a escassa ondulação do mesmo ...
E do meu ponto de vista, sem que sequer tenha merecido alcançar esse desiderato, uma vez que o seu rendimento escolar deixou muito a desejar neste primeiro período lectivo.
No meu tempo, este tipo de compensações e "miminhos" ( por serem supérfluos e dispensáveis ), tinham-se ou não, como prémios de merecimento ou estímulo ...
Custo a engolir linhas estapafúrdias "vanguarda" ou "alternativas" no vestuário, com a cor preta a dominar as roupas jovens e as botas de tropa, inestéticas, pesadonas e pouco femininas, a completar o "boneco" ... Isto, revendo os conceitos de vestuário que, ao longo dos tempos, desde sempre foram mais ou menos clássicos, nas respectivas educações ...

Não ignoro  que o vestuário que exibimos é uma questão cultural e social, uma forma de integração ou de rejeição dos arquétipos que a sociedade impõe.
Nomeadamente os jovens, particularmente os adolescentes numa fase da vida de contestação e desafio, em que buscam uma qualquer identificação e um lugar no mundo que habitam, procuram afirmar-se com códigos de vestuário que os assimilem e integrem no grupo de referência.
Daí as correntes diversas que se caracterizam e pautam pelos diferentes padrões ideológicos seguidos.
Apenas acho que maioritariamente, se estabelecem posturas de "carneirada", aleatórias e despersonalizadas, sem nenhuma consciencialização da escolha ou opção assumidas, reféns das tendências e das modas, simplesmente.

Enfim ... dou  por  mim,  e  odeio  fazê-lo,  a  proferir  uma  frase  que  me  arrepia : " no  meu  tempo ... "
Oh Deus ... será que estou mesmo com a intolerância, a rabugice, a mumificação das "relíquias" museológicas ???!!!
Será que estou a ficar estratificada nos tempos em que vivo, empedernida, sem adaptabilidade e sem abertura ?!
Será que estou a auto-marginalizar-me das vivências do hoje, porque me sinto distante, incómoda, dispensável, estranha ao que me rodeia ... sem "espaço" ou lugar ??

Preocupante, sem dúvida !

De tudo isto eu falaria com a minha mãe.  Todas estas minhas inquietações ela entenderia ...

Acho que nunca pensamos à séria que a nossa mãe, um dia, nos faria tanta falta !...

Anamar

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

" QUANDO NÃO TEM MAIS JEITO ... "



Ontem, aquela noite determinada.  Aquele 24 de Dezembro de que não dá para fugir.
A tradição, o hábito, o institucionalizado, mas sobretudo o convencionado, ditam que as famílias se sentem em torno de uma mesa entupida de vitualhas, entre os doces e os salgados, e tentem estar unidas e de bem, pelo menos uma vez no ano ...
Umas vezes dá, outras, nem por isso !

A "família", essa instituição algo abstracta, definida como as pessoas do nosso sangue a que se juntam "artificialmente" extensões, fruto da vida e dos destinos, é cada vez mais, de facto, nos dias de hoje, uma entidade abstracta, distante, impessoal e frequentemente, penalizante.
Está "escrito" que valores como o amor, a cumplicidade, a aceitação, a tolerância, a compreensão, a união, o bem querer, entre outros, sejam, ao longo dos trezentos e sessenta e cinco dias do ano, pedras basilares estruturantes, verdadeiros pilares e alicerces duma família, laços que deveriam ser inexpugnáveis.

Como em tudo na vida, a teoria livresca, normalmente desmorona face à prática no terreno.
E se, de alguma forma  norteámos as nossas realidades familiares nestes arquétipos, e conseguimos com razoável sucesso monitorizar o andamento do nosso "barco" durante determinadas fases da vida, com o avanço dos anos, com as vicissitudes atravessadas ( excepto em honrosas excepções que admito ), normalmente esses "projectos" familiares mais sonhados do que realizáveis, tornam-se verdadeiros e dolorosos falhanços.
Famílias que se desmantelam pelas mais variadas razões, opções de vida novas e diferentes, face às células inicialmente estabelecidas, afastamento físico dos seus elementos, motivado pelos diversos  percursos individuais escolhidos, incompreensões e intolerâncias que não conseguem deixar-se sobrepor pelos valores que na realidade deveriam imperar entre pessoas do mesmo sangue, como o afecto e o amor ... conduzem as realidades familiares a disfuncionalidades  frustrantes e dolorosas.

As pessoas desconhecem-se.  A sua forma de ver a vida, os reais interesses e valores que têm significância para cada um, os seus posicionamentos na sociedade, e mesmo nas respectivas e posteriores realidades familiares constituídas,  são tão díspares, tão abissalmente distintos, tão estranhamente distantes e indiferentes, que não conseguimos descortinar onde é que por ali existiu alguma vez um tronco comum.
As pessoas estão de costas viradas, têm linguagens desconhecidas, comunicações colapsadas, silêncios inultrapassáveis entre si, verdades absolutas e inflexibilidades inaceitáveis.  Há mágoas, ofensas, animosidades, desunião ... indiferenças atrozes e implacáveis ... diferenças ...
Não há relativização de nada, cerrando-se cada um na sua verdade e intolerância, como mulas empacadas, incapazes de um gesto de cordialidade ou aproximação.   E muitas vezes sem que se perceba sequer o porquê !...

E aqueles que são pais e mães, irmãos e irmãs, avós e netos, ficam tão distantes física e emocionalmente, tão "transparentes" e descartáveis ... tão dispensáveis uns para os outros, acredito ... que o sangue ... o tal sangue que corre no tronco comum, queira-se ou não, já não opera milagres !
A desvalorização e deterioração dos laços é notória e total.
E à semelhança do mundo, é  cada um em si e de "per si" ... ainda que na noite de Natal, o tal 24 de cada Dezembro, a mesa das vitualhas entupida de doces e salgados tente, ingloriamente,  fazer a magia da aproximação, da cumplicidade e do amor !!!...

Anamar

domingo, 22 de dezembro de 2019

" NEM SÓ OS PÁSSAROS ... "



Só os pássaros passam as redes das escolas desertas, onde os risos soltos das crianças não ecoam, neste período de silêncios escolares ...
As portas estão cerradas, as relvas desabitadas e os bancos das merendas sozinhos e tristes ...
Os pássaros, nos seus voos de liberdade sempre passam fronteiras, sempre vencem distâncias e vão além dos muros. 
As folhas dos Outonos que já foram, atapetam de ocres queimados o chão molhado das chuvas persistentes.  As azedas, as macelas e outras vivazes, festejam em explosão de alegria os verdes das alcatifas com que a Natureza  forrou as terras sedentas ainda há pouco.  As águas derramadas dos céus encastelados foram bênção prazeirosa e potenciadora da floração das espécies de Inverno.

Na mata também só há silêncios.  Os habitantes não se vêem.   Só se ouvem.  Continuam a saltar por entre os galhos.  Abrigam-se da intempérie nas árvores de folha perene.  Lá terão os ninhos, por certo.
A Natureza despiu-se.  Só os musgos e os líquenes trepam os troncos, enquanto que os cogumelos selvagens ponteiam o chão, e as primeiras bagas começam a despontar ...
A solidão ... uma solidão, um abandono e um desconforto parecem pairar, e ombreiam com o meu sentir.  Os silêncios estão-me por dentro e por fora, como se a alma e o corpo iniciassem uma hibernação providencial ...

E há uma paz.  Só a busca daquela paz me leva para os caminhos enlameados.  Me leva para as veredas desertas, na certeza de que nem vivalma anda por ali.  As pessoas fogem  do cinzento, das sombras, da escuridão mesmo, que fecha os dias antes de tempo.  As pessoas fogem do silêncio ... do que parece ausência de vida ...
Eu, não.  Eu vou por lá ganhar um banho de tranquilidade, de equilíbrio, de contemplação, como se fosse uma purga da civilização que se impõe.  Como se fosse uma fuga ao que deve sentir-se e viver-se agora ... ainda que se não sinta ... Só porque é Dezembro, só porque é Natal ... e outro ano tudinho novo a escrever-se, abre o livro ...
Eu vou por lá beber, respirar, empanturrar-me de Natureza ... porque é a única fiável, certa e segura que me envolve.  A única perfeição que nos coexiste, neste minúsculo ponto do Universo ...
E o conforto que experimento não se descreve.  É uma masturbação infinita na alma, e uma faxina retemperadora no coração !

Acho que estou a tornar-me eremita.  O ser humano cansa-me mais e mais.  A capacidade de emaravilhamento, de sonho, de identificação, de plenitude, de êxtase ... neste momento só a encontro no diálogo que estabeleço com os seres irracionais que me cercam. 
Sinto-me feliz e em paz com a ternura dos gatos que vivem comigo.  Sinto-me preenchida e leve, quando persigo o voo das gaivotas frente à minha janela.  Respiro até ao âmago de mim mesma, no cimo de um penhasco, no alto de uma falésia.  Converso com os ouriços dos castanheiros, e silencio ao escutar os avanços e os recuos das marés, nos areais açoitados pelas ondas alterosas ...
Escuto a brisa leve que perpassa, e respeito a força dos vendavais que ordenam ...
Fascino-me com os acordes da música que toca dolente aqui ao meu lado, com a doçura da tarde que se pôs ...
E aí sim ... sinto-me um pouco feliz !...

"Só os pássaros passam as redes das escolas desertas, onde os risos soltos das crianças não ecoam, neste período de silêncios escolares ..."

O meu pensamento livre  voa com eles  além das redes, além dos muros e das paredes, além das convenções, do certo e do errado,  das memórias, da nostalgia que me toma ... numa troca muda de palavras com o silêncio do meu quarto !...



Anamar

sábado, 21 de dezembro de 2019

" NA HORA DO LOBO "




Verdade que depois da tempestade, chegará a bonança.
Temos vivido dias complicados em termos atmosféricos, em que depressões sucessivas com as consequências inerentes, têm violentado o país com ventos fortíssimos e cheias destruidoras que deixam populações, culturas e habitações em situações bem precárias.
Somos um país pequeno, de poucos recursos, e como tal, qualquer situação mais gravosa logo deixa marcas notórias de devastação e dor ...

Mas hoje, pese embora não tenhamos uma melhoria certa e segura, a chuva deu tréguas, o céu de chumbo pesado de borrasca  passou a um cinza menos agressivo, e há pouco, um sol muito mas muito tímido, espreitou e garantiu aos mais cépticos, que por cima das nuvens ele está lá ... sempre está lá !

Aqui da minha janela, frente à mesa onde escrevo, olho o horizonte lá longe, vejo o plátano despido aos meus pés, verifico que a folhagem das árvores que ainda a detêm, pouco mexe ... e escuto e sigo o rumo de algumas gaivotas que se bamboleiam na aragem que sopra lá fora.
O seu grasnido e o voo errante, sempre me deixam nostálgica.  Lembro os tempos da "minha" gaivota, quando ela me trazia novas dos areais distantes, e o cheiro da maresia e da caruma da Serra ...
Hoje, acho que até mesmo a "minha" gaivota foi à vida dela ... porque eu deixei de ter olhos para a contemplar e ouvidos e voz para com ela cumpliciar ...
Acho que essa ingenuidade contemplativa e onírica, ponteou apenas uma época da minha vida ... não mais !

Esta quadra calendarizada ... não canso de referir, porque não canso de sentir ... é muito complicada para a minha cabeça .   Sei que como eu, muitas pessoas se sentem, se possível, com uma solidão instalada e acrescida.  Sei que como eu, muita gente faz balanços de vida, pega no deve e haver que ela lhe estendeu ao longo do ano que se apresta a terminar, e muitas vezes, objectivamente se sente como barquinho de papel em riacho alteroso.
Questionamos mais e mais a razão da existência, reflectimos sobre o insucesso e a ineficácia da  perseguição falhada a objectivos  não alcançados ( apesar do denodo e da aposta tantas vezes investidos ), "crucificamo-nos" pela incapacidade sentida e frustrante no leme do barco, deixamo-nos invadir por saudades ( de pessoas, de lugares, de tempos, da nossa juventude ... de nós mesmos, e daqueles que um dia fomos ... ) ...
E enfim, este tipo de pensamentos perseguidores, despoletadores de vazios e mágoas, em nada contribuem para que nos sintamos felizes !

Entretanto, há poucos dias  Patxi Andión, o cantautor mais português de Espanha, sociólogo, actor e escritor, um lutador acérrimo contra o fascismo de Franco,  morreu estupidamente num acidente rodoviário, aos setenta e dois anos.
Foi para a minha geração, seguramente, uma referência cultural ecléctica, no panorama artístico internacional, em que se posicionou fundamentalmente como interventor social e político,  homem de esquerda que era.
Descomprometido e coerente, sempre assumiu, quer na sua terra ( um madrilenho com raízes bascas ), quer no exterior, nomeadamente em Portugal  onde actuou regularmente ao longo de cinquenta anos, o rosto da resistência anti fascista, da denúncia e da defesa contra as injustiças e arbitrariedades sociais, e bem assim das grandes causas e desafios, que se colocam ao homem do século XXI.
A sua voz rouca inconfundível, deixava passar mensagens de justiça, solidariedade e esperança.
Em 2013, o tema " Palavras ", intimista, particularmente doce e sensível, falava-me de algo que de alguma forma, eu experienciara anos atrás.

Hoje, Patxi Andión tinha em mãos a continuação de um trabalho em dois álbuns, a finalizar em finais de 2020 com o álbum "Profecias",  tendo o primeiro sido lançado em 2018 com o nome de "La hora Lobicán".
A "hora Lobicán" é uma expressão muito usada pelos "viejos", nas Astúrias e na Galiza, referindo aquela hora do dia, o lusco-fusco, aqueles momentos do amanhecer e do anoitecer, em que há uma indefinição entre a imagem do lobo e do cão. Em que há um confusionismo entre o que se vê e o que realmente é, como se "nieblas" espessas se abatessem e turvassem a nossa vista ...

" La hora lobicán, que decian los viejos.  Confunde al lobo en can y al perro en lobo.  Y todo pude ser sin que se vea nada.  Suspenso cautelar de todas las miradas.  La hora lobicán es hora y humo.  Humo para esconder y hora en punto que se dispone a ser, otra vez más, un nuevo amanecer ou atardecer secreto ... "  -  estas as primeiras estrofes do poema.

É como se se diluísse ou dissipasse a resolução visual das coisas.
Transpondo esta simbologia metafórica para a realidade da vida do Homem nos tempos actuais, pretende chamar-se a atenção para a mistificação das verdades, das realidades, das certezas.  De repente, tudo o que parece não é exactamente assim, havendo uma camuflagem perfeita, intencional, manipuladora do que está frente aos nossos olhos.
É manifestamente  um trabalho de índole social e política, que desmistifica a fluidez, a incerteza, a desvalorização e a insegurança da sociedade onde  hoje se vive.
Desmistifica, em suma, os valores de uma sociedade, que por valores reais já pouco se norteia !...
Uma sociedade "líquida" e escorrente, como actualmente se denomina ...
 





Anamar

sábado, 14 de dezembro de 2019

" O ANTI - NATAL "






Estamos na "tal" época ...
Se pudesse, emigrava.  Se pudesse, fechava a toca e hibernava.  Se pudesse, fazia-me de morta ...

Ontem tivemos a última sessão de 2019 do Clube de Leitura que integro.  Uma reunião mensal em torno de um livro, de uma mesa de vitualhas, de conversa jogada fora, mais ou menos oportuna, com maior ou menor interesse, em torno da obra, com ou sem autor presente.
Ontem o tema não se debruçava sobre nenhum enredo publicado.  Acordara-se que cada participante levaria algo sobre a quadra que atravessamos.  Algo seu, ou algo de outrém, que escolhera a propósito.
Em torno do Bolo Rei, Bolo Rainha, Tronco de Natal e azevias, cada um a seu gosto, compartilhou a escolha feita.
Nenhuma pachorra me acometera.  Para rabiscar qualquer coisa ... poema, texto ... sei lá !
Escolhi Gedeão, químico como eu, homem de ciências ... mente aberta e racional.  "Dia de Natal" ... o poema.

Mais do que amorfa, irritado é o meu estado de espírito.  Cansada de tanta ficção, hipocrisia, desencontro ... Saturada de tanto faz de conta, de tanta performance barata, que de original nada já tem.  Farta de ter que tomar o barco sem nenhum resquício de vontade, sem nenhum sopro de vento adjuvante, só porque a onda alterosa avança e leva tudo adiante, sem que consigamos escapar ao despautério.

Não me venham com a teoria familiar, do encontro, da partilha, da vivência romântica de corações em uníssono.
Não me venham obrigar a achar que só porque nascemos do mesmo tronco comum, herdámos a felicidade suprema de falarmos as mesmas linguagens, herdámos a tolerância do reencontro nas diferenças, a aceitação das divergências em cada um, na vivência da paz...
Não me venham com tretas, porque o meu tempo de ingenuidade já passou há muito, e as dores da vida, há muito também, me retiraram a bonomia do presépio de Belém.
Natais desses, santificados e sob medida, só terei tido na primeira infância.  E ainda assim, porque me concedo o benefício da dúvida, na análise de cada lembrança remota que me deixaram.  Talvez não tenha sido exactamente dessa forma, a versão doce, colorida e aconchegante que a memória já difusa pelos anos, me traz ...

Hoje, rumaria à Lapónia, com ou sem auroras boreais, para pular no calendário os dias necessários a apagarem-me no peito as mágoas, as lembranças doídas, as ofensas, as saudades, o cansaço e esta violentação que me sinto, de ter que fazer de conta que a alegria, a concórdia e a felicidade que advêm de teorias irreais, como se genéticas fossem, nos caem obrigatoriamente no prato, juntamente com as filhós, o arroz doce e as rabanadas.
Porque todos reconheceremos que tudo isso não passa de um tremendo e intencional sofisma ...
só porque Dezembro traz inevitavelmente consigo esta travessia no deserto, de que não conseguimos escapar !
Parece haver uma concertação do tipo: é Natal, ficamos todos bonzinhos e vamos brincar de sermos felizes !...

A minha cota de tolerância decresce inversamente ao avanço dos tempos e das vidas, com a confrontação face às vissicitudes progressivas do dia a dia, com o desencanto expectável perante tudo o que já nem surpresa constitui, dos posicionamentos, atitudes, indiferenças e distanciamentos de quem, nataliciamente falando, não seria suposto ...
À semelhança de todos os artefactos da época, também os meus sentimentos e emoções, jazem mudos, aferrolhados no armário, há já demasiados anos ...
É assim uma espécie de pirraça ou contestação que faço ao determinismo dos tempos ...

Entretanto, tento ser objectiva, fria e pragmática.  Entretanto, tento varrer para debaixo do tapete, as penalizações, as culpabilidades, as inseguranças, as dúvidas e aquela maldita tendência de achar que algures na vida, seguramente errei ... e muito.
Esquecendo que afinal, todos não somos mais que erráticos humanos, tentando acertos, à custa de insucessos !...

Bom ... exorcizar os fantasmas  impõe-se, nesta recta final de trezentos e sessenta e cinco dias que, inevitável e castigadoramente, exige balanços ... sempre exige balanços.
Para que, pelo menos interiormente, alguma paz nos invada e consigamos rumar, mais ou menos incólumes, a mais um ano que aguarda ao virar da esquina, a sua entrada triunfal !...


" Dia de Natal "

Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros— coitadinhos— nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)

Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.

A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra— louvado seja o Senhor!— o que nunca tinha pensado comprar.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.

Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.

Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.

Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.

António Gedeão

Anamar

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

" BOM DIA VIETNAME "




O melhor de uma viagem, dizem, é o regresso a casa !
Concordo, concordei totalmente desta feita, em que duas semanas me afastaram aqui do nosso torrão à beira mar plantado.  Foi uma viagem sem dúvida espectacular, até porque fora eu que a havia elegido, mas muito exigente e consequentemente cansativa.
O oriente uma vez mais me acolheu, pois a filosofia e as histórias de vida daquelas gentes, sempre me são fascinantes e apelativas.
Já por lá andei em muitos destinos, e em todos eles, a alegria, o desapego, a inexigência, a bonomia com vidas quase sempre precárias e sofridas, maravilham-me.
Efectivamente, o oriente nada tem a ver com os princípios e os valores que no ocidente norteiam as nossas existências.

O sol desperta muito cedo e adormece igualmente cedo, pelo que, na tentativa de se rentabilizar o tempo, a "alvorada" frequentemente ocorria entre as 5 e as 6 da manhã.  Dia após dia.  Sem pausas além das utilizadas para as refeições, sempre em locais e restaurantes espectaculares, foi um "non stop" permanente.
A Península da Indochina é constituída no sentido estrito, por três países absolutamente particulares, paisagística, social e historicamente falando : Vietname, Laos e Camboja.
Três países sofridos, com marcas recentes e indeléveis de tempos injustamente carrascos.  Mais injustos ainda, se pensarmos não ter sido este conflito na realidade, mais do que um ajuste de contas entre os dois monstros políticos, Estados Unidos e Rússia, que mediam forças como sabemos, na chamada Guerra Fria, entre 55 e 75 do século passado.
As marcas da guerra, conhecida como a Guerra do Vietname, que massacrou de igual forma os países vizinhos que serviram de corredor de acesso aos bombardeamentos americanos, existem física e psicologicamente bem visíveis num país que só teve a sua reunificação entre o norte e o sul, em 1975, graças a um político e mentor venerado acima de tudo, na nação - Ho Chi Minh, cujo nome renomeou a antiga Saigão.

Sob o domínio chinês cerca de mil anos, onde bebeu os ensinamentos de Confúcio, pensador e filósofo cujos valores persistem na sociedade vietnamita até hoje, posteriormente sob o colonialismo francês, cujas marcas se reflectem notoriamente  na traça de muitos e muitos edifícios, é, religiosamente um país com uma predominância budista, embora 80 % da população se diga ateia.
A taxa de analfabetismo é muito elevada, as condições sociais muito precárias, com zonas do país onde a emigração, se permitida pelo estado, é a única saída que se configura como meio de sobrevivência.
Não esqueçamos o triste acontecimento recente, em Londres, com a morte de 39 vietnamitas num camião cisterna, que viajavam clandestinamente, em busca de uma chance.  Norteava-os a possível ajuda à família que ficara para trás.
O vietnamita coloca a família sempre à frente das suas opções pessoais.
Os mais jovens residem na casa paterna, e assumem a responsabilidade de cuidadores dos seus progenitores.
Politicamente o país diz-se socialista, e o partido comunista lidera exclusivamente, a esfera política.  É um partido único, com uma assembleia de "cartas marcadas".  Nas eleições pseudo-livres, rodam as cadeiras, previamente escolhidas pelos órgãos superiores do Partido.
A corrupção, os compadrios e os interesses particulares, estão instalados infelizmente.

A aposta na educação dos jovens, em regime espartano com grau de exigência elevada e dura, é uma medida positiva valorizada pelo estado.
Saigão, como quase todas as cidades vietnamitas tem uma super população.  11 milhões de habitantes, numa cidade que parece não dormir.
7 milhões de motos nas ruas, principal meio de locomoção adoptado, desenham um verdadeiro postal turístico  muito particular da vida daquele povo.  Nas motos tudo se transporta.  Desde famílias com quatro pessoas, a toda a panóplia de materiais, em verdadeira ginástica acrobática.
As máscaras cobrem a cara da maioria dos utentes, já que por um lado a poluição é absurda e por outro, a preocupação estética com a preservação da brancura da pele, determina a sua utilização.
O trânsito é caótico, sem regras ou sinais a respeitarem-se.  É caricato o movimento sem rei nem roque, onde passa quem primeiro chega, seja da direita ou da esquerda.
Buzina-se permanentemente, ninguém discute com ninguém.  Há uma bonomia e um respeito muito próprios na condução.  E, não assisti a um único acidente ou colisão !!!
As crianças não usam capacetes.  Quase sempre se posicionam entre as pernas do condutor, em pé, agarradas ao volante da mota.  É vulgar que uma outra, mais velhinha, circule ainda atrás, ou mesmo "ensandwichada" entre os adultos !
A passagem dos peões, na travessia das ruas, afigura-se um "suicídio" para os ocidentais, e a regra é avançar sem hesitações sempre em frente, na certeza de que seremos contornados pelos milhares de veículos ... ahahah
Fechar os olhos e seguir adiante, deverá ser a "regra" a observar ! ahahah

Enfim ... miríades de coisas eu poderia abordar, contar, e ilustrar mesmo ... com algumas das 2800 fotografias que tirei ... 😃😃😃
Estou a prepará-las, antes de as guardar ou exibir para os amigos.
Oportunamente talvez coloque algumas por aqui.

Efectivamente, uma viagem é sem dúvida um investimento cultural, pessoal e humano inexcedível.  É um ganho e um valor acrescentado que guardamos na alma para toda a vida.  São vivências que não se relatam, não se transmitem ... apenas se sentem e vivem !!!






NOTA :  Retirei este vídeo do Youtube a fim de ilustrar exactamente o que ocorre nas ruas das cidades vietnamitas, seja Hanói, seja Ho Chi Minh, antiga Saigão, visto que o Blogger não me permite postar os meus próprios vídeos.  Penso que os mesmos deveriam ser colocados primeiramente no Youtube, mas isso eu não sei !
Anamar

sábado, 9 de novembro de 2019

" VOU "




Mais um Novembro no calendário.
Nasci nele e no entanto é um mês que me atormenta um pouco.  Transmite-me um misto de emoções difíceis de descrever.  Vira-me p'ra dentro de mim mesma, recolhe-me às cinco da tarde, como o dia que se encerra ...
E fala-me, fala-me de tempo e de passados.  Que coisa chata !
Novembro tem datas e memórias que saltam da profundidade do existir e escarafuncham-me a alma. Ainda que eu não queira.
Plantam-se-me na cabeceira como um vaso de cardos a atormentarem-me o sono.
Como uma mosca impertinente e invasiva, Novembro não respeita o aqui e o agora. Sendo que o aqui e o agora é o que vem depois do existir, em tempos que foram meus ...
Agora tudo parece demasiado impessoal e distante ...
Há escorrências do coração que não se estancam.  E quando nos pensamos apaziguados ... não é nada disso.
Novembro tem datas demais !
Novembro  tem  as  saudades  que  tombam, tantas  como  as  folhas  do  Outono  que  o aninham ...

E vou embora.  De novo vou buscar lá fora, longe das rotinas das coisas e das pessoas, num anonimato ou clandestinidade cómodos, uma tranquilidade e um distanciamento que os lugares e as memórias me não permitem por aqui.
Esta demarcação temporal dos anos, neste corrupio vertiginoso sem parança, lembra-me a cada momento da efemeridade da condição humana.  A celeridade com que os meses nos desfilam no calendário, a precariedade de certezas e seguranças, fazem-nos sentir a cada momento, com uma fragilidade sem tamanho, como se caminhássemos em arame sem rede protectora.
E a passagem dos anos, e as limitações que acarretam em termos de saúde física e mental, consciencializam-nos para a certeza de que os prazos de validade se nos escoam por entre os dedos, e  de que estamos mesmo a cumprir simplesmente um ritual de passagem ...

Vou p'ra outro mundo, outras civilizações, outras gentes e outros costumes.  Vou lá para os lados onde o sol nasce, onde os cheiros dos trópicos e o calor de dias com outras cores, nos afagam a alma.
Vou para uma terra com palavras que não conheço, com sabores que desconheço e com um desapego e uma espiritualidade que sempre me tocam.
Vou buscar silêncios ... talvez.  Vou buscar ecos nesses silêncios.  Vou ao encontro da genuinidade dentro da simplicidade.
Vou recarregar a alma, no conforto do reencontro comigo mesma, imergindo em multidões de seres.
Vou olhar as cores, beber a brisa adocicada das terras quentes, afundar a alma no azul transparente de águas mansas e escutar os sons.
Vou ... porque há tanto mundo a conhecer por aí ... e eu só tenho uma vida.  Uma vida curta, mas uma ânsia desmedida !...
Vou ... talvez simplesmente, em busca de mim mesma !...

Anamar

domingo, 3 de novembro de 2019

" A LENDA DE SANTO ANDRÉ "



É Dia de Todos os Santos.  Todos menos um ... dizia a minha mãe.

A minha mãe dizia muitas coisas.  Aliás, costumava dizer : " Vocês um dia vão lembrar-se muito de mim, por causa destas coisas que eu digo ..."
Não as registei. Achava que a memória não iria atraiçoar-me nunca, e que de todas eu lembraria.  Eram histórias, ditados, vivências passadas ao longo dos tempos.  Era um repositório da sua sabedoria de velha, mulher simples, que contava como era, o que era ...
Eram histórias de vida, da sua vida, mas também das tradições e da cultura do povo a que pertencia, lá, no Alentejo interior ...

Mas o tempo ... sempre o tempo se encarrega de contrariar o que tomamos como certo e seguro.  E se de algumas histórias, narrativas, frases, memórias repetidamente lembradas, eu ainda recordo, muitas delas perderam-se numa espécie de túnel de nevoeiro que atrás de mim mostra o poder do esquecimento.  E lamento-o profundamente, pois dou comigo a citá-la constantemente, tal como vaticinou.

O dia que hoje se comemora, o feriado que hoje se vive, festeja um evento religioso mas também pagão, que atravessa culturas, épocas e credos.
É vivenciado pelos cristãos, sejam católicos, ortodoxos, anglicanos ou luteranos.  É uma festa celebrada em honra de todos os santos e mártires, conhecidos e desconhecidos, perseguidos pela sua fé, conceito que se alarga aos que entregaram toda a sua vida a Deus, fazendo da mesma, uma oração, testemunho e fé na paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
A comemoração regular deste dia remonta ao ano de 609 ou 610 d.C. com o Papa Bonifácio VII, para recordar todos os cristãos que tinham sido perseguidos e mortos pelos romanos, nos primeiros anos da Igreja Católica.
Em 731-741 o Papa Gregório III dedicou uma capela, em Roma, a Todos os Santos, todas as pessoas que haviam vivido uma existência pia, de acordo com o Evangelho, e ordenou que eles fossem homenageados no primeiro dia de Novembro.

O 1º de Novembro já era marcado em algumas culturas por festas dedicadas ao início do Inverno, época em que a natureza morre. Por toda a simbologia que associa a morte à fertilidade que nessa altura inexiste nos campos, seria naturalmente neste período do ano que se centraria a simbologia ligada à morte, seja o Dia de Todos os Santos, seja o dia seguinte, o Dia de Finados.

Na cultura Celta celebrava-se o Samhain, festividade pagã de que pouco se sabe, a não ser que se centrava exactamente na ideia de morte associada ao rito agrário.  Começava o Inverno, morria a natureza, até que de Abril para Maio, a natureza ressurgisse na sua capacidade geradora de vida.
Era, por assim dizer, o fim e o início de um Ano Novo.
Os mitos Celtas giram em torno do que acontece na Natureza.  O Inverno, a Primavera, o Verão e o Outono, associam-se intimamente ao seu nascimento, crescimento, decadência e morte.
A noite de 31 de Outubro, vivida como o Halloween, dia das Bruxas e das entidades do Além, representa um rito de transição entre a Vida e a Morte, em que se acredita que é esbatida a distância entre os dois mundos, e em que existe uma aproximação sentida, entre nós e os que já partiram .

Dias antes do Dia de Todos os Santos, já a frase da minha mãe sobre a festividade, me martelava a cabeça.  "Todos os Santos menos um, que chegara atrasado ?!... "
Cheguei a falar disto a pessoas amigas, que nunca tal haviam escutado ...
Atrasado onde ? Porquê ? Que Santo ?...
Por que não apontei os contornos desta lenda, ou tradição popular ( que acaba virando "lei", como sabemos ) ?

E, pode parecer estranho ou ridículo, mas sentia-me angustiada por não lembrar  de nenhum modo, a descodificação deste quebra-cabeças.  Não por ele, em si mesmo ( que não deixava de achar curioso, contudo ), mas pela percepção clara da implacabilidade do tempo e da forma como ele apaga as memórias, turva os trilhos e larga uma poalha de neblina sobre as pessoas, as vidas, e as histórias ...
Já fora à Net vezes sem conta, tentando que o Google em alguma busca mais feliz, me respondesse ...
Em vão.  Totalmente em vão.
Muita informação histórica, religiosa e pagã ... mas, infrutífera face à minha pueril questão...

Na noite de Halloween, já deitada na cama e em silêncio no meu quarto, voltei a "encompridar" o pensamento e a lembrança, até onde o cérebro mo permitia, espremendo o mais possível os retalhos de todas as partilhas que ao longo da existência mantive com a minha mãe, de quem sempre estive muito próxima, filha única que fui ...
Voltei à Net sem expectativa, e ... levei, absolutamente, um soco no estômago ...
Incrível ... ali, bem na minha frente, no monitor mínimo do telemóvel, como um recado generosamente dado,  a história da lenda do Dia 1 de Novembro, era contada ...

Santo André, irmão mais velho de Simão ( chamado posteriormente de Pedro, por Jesus ), filho do pescador Jonas, também ele um humilde pescador da  cidade de Betsaida às margens do Mar da Galiléia, que viria a ser discípulo de João Baptista, e que se tornou hierarquicamente o segundo discípulo, dos doze Apóstolos que seguiram o Mestre ao longo da vida, nascera com uma malformação : era coxo.
Conta a lenda, e o povo repete-a de geração em geração, que no dia 1 de Novembro todos os Santos haviam sido convocados para uma festa.  E todos compareceram ... Todos menos um, que por ser coxo não conseguiu chegar atempadamente ao evento.  Era ele Santo André.
Santo André só chegaria no último dia do mês, dia que a Liturgia Cristã lhe dedica no calendário religioso, até hoje.  E por isso, 30 de Novembro é dia de Santo André, coxo de um pé !
Mais diz a tradição, que o tempo atmosférico que se fizer sentir no Dia de Todos os Santos, se repetirá no último dia de Novembro.

Dei por mim a sorrir.
Tenho a certeza que a minha mãe, donde estivesse,  veio dar-me uma mãozinha  e contar-me de novo a história, ao ouvido, com aquele seu ar maroto ... "Eu não te disse que um dia, ias lembrar muito as minhas "doçuras e travessuras" ?..."

Ainda a vi a encostar-me a porta do quarto ...


Anamar

Nota : Este post tem um atraso de dois dias, como se perceberá do texto.
           Foi utilizada informação baseada em estudos do Professor Paulo Mendes Pinto,
           coordenador da área de Ciências das Religiões, da Universidade Lusófona.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

" EM OUTONO DE ALMA "




A hora mudou seguindo esta determinação peregrina que obriga ao reajuste biológico de cada um.  Simultaneamente o tempo atmosférico aproveitou p'ra virar, e assim, cinco da tarde a escuridão aproxima-se a passos largos.
Tem chovido alguma coisa ... migalhas para o que as nossas reservas carecem ... e a abóboda cinzenta e espessa vista aqui do meu "posto observatório" de sempre, é desconfortante e triste.
É uma verdadeira tarde de Outono, aquela com que o dia escolheu para encerrar.
Entretanto, à tangente, fiz a minha caminhada sem que me molhasse.  Umas borrifadelas ainda ameaçaram chegar a vias de facto, mas depois retrocederam.
A mata estava estranhamente silenciosa.  Ausência de utentes e ausência de sinais de vida.  Parecia que por ali reinava um sono reconfortante.  As tonalidades que a pintam neste momento, têm predominantemente a doçura quente das cores da época.  Cores de recolhimento, introspecção e paz.
Os vermelhos, os laranjas e os amarelos  no meio de verdes algo desbotados, proliferam pelas veredas solitárias.  As  árvores despem-se ao sabor da aragem que perpassa, enquanto que os musgos já lhes trepam os troncos.

Eu estou em modo de hibernação ... batimentos lentos e suaves, emoções controladas, entusiasmos e motivações em banho-maria, deslumbramentos ... já eram, correrias e afobações ... não estou nessa !
Olho à volta e, sinceramente, pouca coisa me acelera as pulsações, pouca coisa me acelera o passo e motiva, pouca coisa me espevita a alma ...
Hibernação no seu todo !  Só não durmo como o urso pardo, os esquilos, os morcegos e as marmotas, entre muitos mais.  E há momentos em que verdadeiramente o lamento.
Estou numa espécie de ressaca de vida.  Isolo-me muito, disponho de pouca paciência e também não encontro no dia a dia, nada que justifique eu precisar despender mais.
Até mesmo acontecimentos que me projectavam o humor e a boa disposição aos píncaros, têm neste momento pouco efeito, como uma droga terapêutica a que o organismo já se tivesse habituado faz tempo ...
A vida que se foi fazendo com uma estabilidade precisa até há anos atrás, com certezas e concretizações nos limites espectáveis e previsíveis, de repente ( a mim parece-me mesmo de repente ), deu uma cambalhota insuspeita e inimaginável.
Muitos amigos em situações débeis em termos de saúde e de qualidade de vida, vivem realidades escuras, esgotantes e desinteressantes.
Grandes inseguranças e incertezas assombram e atormentam os dias.  Parece que só se ouve falar em desgraças, em dificuldades, em desencantos e em cansaços arrastados, sem soluções à vista.
Parece que espreito para um mar de náufragos ... cada um esbracejando e esfalfando-se para alcançar uma bóia salvadora ...

Sei que não sou uma optimista por excelência.  Bem ao contrário, sou aquela que quase sempre vê o copo meio vazio ... mas a análise que supra-citei, pouco tem do meu negativismo genético ou inato.
É simplesmente uma observação bem real e concreta.
E por isso, como claras que desandaram do ponto, assim sinto a vida escorregadia, pouco tranquila e fiável. Cinzenta e cansativa.
A incerteza de um amanhã que não se garante, é uma desestabilização interior.
Esbarra-se contínua e sistematicamente em dificuldades, tropeços e inacessibilidades.  A resiliência de cada um, atravessa provas de fogo e testa-se por cada dia.
Sendo que, porque os anos passam, e com eles a condição humana se deteriora, tudo o que enfrentamos carece de um esforço e de uma frescura acrescidos, que já não detemos na sua plenitude ...
E os "sempre em pé" são cada vez mais figuras míticas nesta nossa realidade ... espécies cada vez mais em vias de extinção !...

Enfim ... vive-se por cada dia, ainda que cada dia se envolva nas "nieblas" de que algumas vezes falo, sem visualização de grandes horizontes ou amanhãs auspiciosos ...

E pronto ... não consigo escrever nada melhorzinho.  Se o fizesse, estaria a falsear as minhas emoções, a trair os meus estados de espírito ... quiçá as minhas convicções.
Talvez esta saturação languinhenta do tempo escorrente, melhore daqui a alguns dias ...
Afinal a intensidade de uma dor sempre amaina milagrosamente, no efeito de um Ben-u-ron ... ainda que se saiba ser ele apenas analgésico e não um curativo da causa ...






Anamar

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

" CADERNO DIÁRIO "



Chove e faz sol ...  Um sol fraquito, uma chuva a fazer de conta, mas de pingos grossos, contudo espaçados, pingava na vidraça.
Comecei a ouvir um tic-tac aqui pertinho, sentada que estou frente à janela, sem perceber muito bem do que se tratava.  Completamente distraída, com o computador banhado por este reflexo dourado de um sol outonal, não percebi logo o que ocorria lá fora ...
O meu gato, plantado por detrás do PC, usufruindo também ele, do morno aconchego desta luminosidade doce, dormita ronceiramente, como os gatos costumam fazer, simulando um aparente desinteresse por tudo o que os rodeia.  Não é à toa que se define este estado letárgico, como sendo de "dormir a caçar ratos" ...

Entretanto ... a "chover e a fazer sol ... as bruxas estarão a comer pão mole", seguramente ... 😄😄😄
Estou muito versada hoje em adágios populares, parece ...

Dentro de alguns dias vou procurar "arrimo" para bem longe.  Dentro de alguns dias aniversario, também.  É sempre um evento malquisto por mim.  A impotência de parar esta torrente incontrolável do tempo, esta escorrência "non stop" cada vez mais vertiginosa, deixa-me angustiada.
Neste momento as semanas não andam ... correm.  Os meses não correm ... voam.  Os dias, mal começam e já delapidaram as devidas vinte e quatro horas por cada um.  Os anos ... bom ... esses, desafiam-me com ar de escárnio, sadicamente, mostrando-me constantemente quem mais ordena !!!
Falo com pessoas amigas.  Todas são unânimes em dizer-me que há por aí uma batota qualquer, que não descortinamos ...  2019 entrou ao sprint em Janeiro ( ontem mesmo ... ), e ainda não desistiu de alcançar a meta de 31 de Dezembro com a celeridade que mais parece a da luz nos seus caminhos ...

Assim, se estiver longe, num local mais impessoal, afastada de telefonemas, felicitações e quejandos, até parece que o tempo se vai esquecer de mim ...
Por aqui, o tempo tem a cara do tempo de sempre.  As rotinas são globalmente as mesmas.  "Tudo como dantes, no quartel de Abrantes" ...
Anoitece cedo, o céu cobre-se de nuvens encasteladas.  Não sabemos o que vestir, para não pecarmos por excesso nem por defeito.  A roupa da cama já fica ligeira, madrugada adiante.
Não ando apetrechada de vontade ou paciência p'ra ver gente.  Aliás, esta tem sido a tónica dos meus últimos posts, como se tem visto.  Mas reconheço não ser seguramente boa política, este isolamento.
Este encapsular teimoso conduz a um estado emocional negativo.  Cada dia mais nos confinamos ao nosso espaço, cada dia convivemos menos, menos aferimos a nossa sanidade mental, menos escrutinamos a nossa forma de pensar, a nossa capacidade de análise, as nossas conclusões.  Cada dia caminhamos mais e mais para um autismo formal, para um desinteresse pela realidade circundante que cada vez nos diz menos, numa espécie de busca de uma eremitagem salvadora ... num afastamento escolhido da realidade da vida.  Parece querermos defender-nos não sei bem do quê ...
E nada disto é, contudo, saudável !

Mas lá fora as pessoas correm.  Correm muito de manhã à noite.
Das minhas relações, a maioria já não está no activo.  Mas isso, ao contrário do expectável, parece ainda complicar mais a presunção de disponibilidade.  Fazem-se planos, "cadernos" de intenções ... "havemos de ..."  E depois, não havemos nada !  Sempre assim.
Não sei se em nome do comodismo, da preguiça, do imobilismo epidémico ... eu sei lá ... estamos e continuamos ( lamentando-o, ironicamente ), empacados !

E mal amanhece, já anoitece, o que é o caso ...
Ainda há pouco o sol fraquito me banhava ... Já é noite cerrada ... e mais um dia prepara o encerrar de portas !
"Mais um dia", dizia em tempos uma aluna minha, com ar sapiente, à meia noite, no encerramento de mais uma noite de aulas.
"Ou menos um "... retorqui.
Matutou por breves instantes e medindo-me de alto a baixo, afirmou, com ar sabedor, vitorioso e de alguma comiseração : " Para a senhora, talvez menos um, para mim, seguramente mais um !"...

Sorri para dentro, argumentei para dentro, e tive pena que ela, já adulta, ainda não se tivesse dado conta que para todos ( desde que pusemos o pezinho por aqui ), cada dia é sempre menos uma folha a escrever-se, no caderno diário que nos coube em destino...

Enfim ... Coisas da vida real ... simplesmente !

Anamar

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

" A MÃE QUE NUNCA NOS DEFRAUDA "




Estou com tiques de velha.  Mas velha bem velha, porque recuso que para lá caminhe ... Pelo menos por ora. Não, agora !!  ( rsrsrs )
Grosso modo, os meus serões terminam já, no quentinho do meu édredon - porque as noites arrefeceram à custa de uma viragem meteorológica acentuada - espapaçada na paz da minha cama, no silêncio do meu quarto, quando tudo já é sossego em casa e os gatos acomodados.
A televisão raramente transmite alguma coisa de jeito, porque simplesmente nada de jeito ocorre neste país e no mundo.
Não sou adepta de séries, porque não é garantido que tenha tempo para as acompanhar com continuidade.  Mais ainda, quando saio em períodos mais prolongados.  Tentar retomá-las à chegada, é um "drama", e sempre os momentos mais emocionantes são perdidos.  O que me irrita ... não nego.

Assim, na preparação de um sono calmo e retemperador, e para que a cabeça não me fuja para o que não deve ( às vezes verdadeiras "coligações explosivas" de pensamentos ), refugio-me no canal transmitido pela National Geographic, pelo qual pago uma mensalidade extra-pacote.
Mas sempre o que vejo, me justifica plenamente esse acréscimo.

A National Geographic é um canal inteiramente vocacionado para a Natureza.  Exibe programas fascinantes, de qualidade indiscutível, maravilhosamente filmados e legendados. Transporta-nos a lugares na terra, no mar ou mesmo no ar, que de outra forma nos estariam vedados.
A National Geographic Society é uma das maiores instituições não lucrativas do Mundo, no domínio da Ciência e da Educação, vocacionada para explorar, conhecer e proteger / preservar o nosso planeta.
Foi fundada em 1888 em Washington, Estados Unidos.  Abarca áreas como a Geografia, a Arqueologia, a História Natural, Aventura e Viagens, entre outras.
Os seus trabalhos envolvem fotógrafos, jornalistas, operadores de câmara, biólogos, naturalistas e exploradores intrépidos.
As filmagens com os riscos inerentes, são de um pormenor, de um preciosismo, de uma exigência e concretização, extraordinários.  O apoio e rigor científicos associados, são absolutamente insuspeitos, mantendo a bitola de excelência a que nos foi  habituando ao longo dos tempos, sendo que com o avanço das tecnologias de ponta, a realização dos trabalhos, beneficia hoje, de uma qualidade insofismável.
As equipas, deslocadas para os lugares mais inóspitos do mundo, em condições quase sempre severas  em termos logísticos e ambientais, são constituídas, como disse,  por técnicos de craveira superior, que na aventura das suas expedições, nos transportam a paisagens majestosas, a meandros incríveis da vida selvagem, ao  conhecimento  profundo dos hábitos das  espécies ( da  sua  adaptação,  resistência  e  mesmo  formas  de  sobrevivência ),  dos  habitats  de  plantas, animais  e  povos, de fenómenos  geológicos  e  climáticos  existentes  no  nosso planeta, que repito, assistimos  no conforto  do  nosso  lar, como  se  os  assistíssemos  em  presença ... e  que  de  outra  forma  nos seriam  inalcançáveis !...

E eu, que ando numa de misantropia ( versão light ... tranquilizem-se ) ( rsrsrs ), coroo as minhas noites, num emaravilhamento incansável e sem limites, com bichinhos, plantas, mares, pores-de-sol, neves perpétuas, tufões e furacões, Invernos, Verões, Outonos e Primaveras, ( com a magia com que nos surpreendem ), rios pressurosos desenhando caminhos no meio de rochas sem idade, auroras boreais, ilhas desertas, parques naturais fantásticos, peixes que sobem os caudais turbulentos para a desova, na obediência de uma lei biológica surpreendente, animais hibernantes, aves multicolores em rituais espantosos de acasalamento, águas que sobem, águas que descem ... terras que se irão extinguir um dia ... florestas que não desistem, desertos silenciosos e abrasadores, ainda assim com uma riqueza de vida inexpectável ...

Porque apesar da selecção natural ( com a lei do mais forte a prevalecer, obviamente ), da luta das espécies ( em que as mais adaptáveis, são as que resistem ) e da condenação torpe, inconsciente e assassina a que o Homem vota outras até à sua extinção ... a condição de se ser vivo e a luta por continuar a sê-lo, vence os designios, as eras, e a eternidade !...

Isto é a Natureza, mãe universal que nunca, mas mesmo nunca, nos defrauda !!!...

Anamar


quarta-feira, 16 de outubro de 2019

" NADA DE COISA NENHUMA - Reflexões "





Nascer e morrer são os dois momentos da vida em que estamos inevitavelmente sós. São instantes, quer queiramos quer não, que só a nós verdadeiramente respeitam.
Eu diria, que são os únicos que atravessamos inapelavelmente entregues a nós mesmos.
Depois, toda a travessia é feita com outrém, ou sob a influência de outrém.

Chegamos e entramos numa célula familiar e numa estrutura social pré-desenhadas, com regras, princípios e valores que logicamente nos pré-existem e para os quais não fomos obviamente consultados.  Realidades formatadas, em que previsivelmente teremos ou deveremos então, encaixar.
Por mais autónomos, assumidos e livres que sejamos, por mais independentes na mente e no coração que nos julguemos, sempre vamos estar inseridos num azulejo pré-concebido ou num figurino previamente estabelecido.
Sofremos todo o tipo de influências, sujeitamo-nos a todos os padrões já definidos, com os quais concordamos ou não, e a nossa margem de manobra sempre é, na realidade, restrita ou limitada.

Podemos levar uma existência "quieta", pacífica, sem grandes contundências e consequentemente, sem grandes atribulações.  Se tivermos uma maneira de ser amena, pouco questionante e polémica, pouco recalcitrante e com uma carrada de bonomia, não seremos dados a "bater de frente", a por em causa, a questionar ... menos ainda a discordar ...
Teremos uma vida meio amorfa, meio pacatona ... talvez mais pacífica.  Mas, será "vida" esse caminho ?

Se por outro lado tomarmos consciência do que nos rodeia sem abdicarmos de podermos / devermos  sentir-nos críticos, observadores e mesmo julgadores, se formos reivindicativos, exigentes, coerentes com princípios e convicções, não abdicaremos de nos situarmos, de denunciarmos e de pugnarmos em conformidade com essas mesmas convicções.
Mas esse trilho de honestidade, alimentado por sonhos, esperança e luta, dá uma mão de obra dos infernos !!!
Ganhamos inimizades, desgastamo-nos, sofremos provavelmente injustiças, descriminações, boicotes, perseguições quantas vezes, ciladas por inescrupulosos, outras tantas ...

E frequentemente, cansados e à beira de desistir, quase a depor armas, sonhamos voltar costas, sumir, partir para outra ... viver numa ilha isolada ... ( rsrsrs ) ... ou seja, alcançar a paz e o sossego da solidão ... outra vez ...
O avanço da idade tira-nos o fôlego, o empenho e a coragem. O cansaço, o desgaste da vida, desilusões, frustrações e o desacreditar muitas vezes no valer a pena, tolhem-nos a vontade e as ilusões.  Tornamo-nos amargos, saturados e impacientes.
"Sumir ... vontade de sumir ... " ouvimos frequentemente dizer.  "Hoje estou em baixo ... não tenho pachorra para ver e ouvir as mesmas coisas de todos os dias, outra vez !"

E isolamo-nos.  E começamos a sentir-nos melhor  sós, com as nossas rotinas, os nossos lugares, as nossas escritas, as nossas memórias, as nossas músicas, as nossas coisas ... quiçá, as nossas manias... Porquê não ?
Também a nossa solidão, como colo de repouso, segurança  e pacificação !...
E os nossos refúgios começam a ser os momentos de escape, os momentos de silêncios, os momentos de contemplação, de introspecção, de verdade ... As nossas verdades !!!

Este texto foi escrito sem grande construção prévia.  Foi sendo escrito ... digamos assim.  Tenho-o nas mãos há alguns dias já.  A corrente ideária não se definia.  Como um braço de água, buscou simplesmente, várias escapatórias ... e foi correndo.
Ele representa uma espécie de catarse.  Uma espécie de rebentamento de dique.  Uma espécie de mergulho na profundidade da alma.   Ou simplesmente o vómito de quem está assim ... como o tempo, meio corpuscular, meio entediante, meio sonolento de Outono morno, em ocres e vermelhos, das árvores que se vão despindo dia a dia.

Ele representa, na verdade, nada de coisa nenhuma em particular ... Talvez simplesmente, uma insatisfação e um vazio que constato na minha vida, sem se calhar o saber sequer descrever ...

Anamar

domingo, 6 de outubro de 2019

" VOLTA SALAZAR ... ESTÁS PERDOADO ! "




O 25 de Abril encontrou-me já com filhos nascidos.
Trazia atrás de mim, portanto, alguns anos vividos.  Nasci, cresci e fiz-me gente na vigência do Estado Novo, que vivenciei durante tempo suficiente, para lhe perceber e sentir os mecanismos e as manhas.
Sou alentejana.  Nasci num chão de miséria, de injustiça e de infâmia.  Tenho no sangue a coragem, a luta e a determinação, e no coração, a esperança, a convicção e a altivez que nunca permitiu que vergássemos e baixássemos a cabeça.
Sou de uma raça que quebra, mas não dobra.  Mas pura de alma, honesta e trabalhadora.  Resiliente e corajosa.  Gente que enfrenta e não foge ... leva adiante, se acreditar !

Lembro o tempo do pão dormido, da açorda temperada com um fio minguado de azeite, na janta, quando os senhores da terra se compadeciam dos assalariados que nos Invernos rigorosos não podiam trabalhar os campos, e não ganhavam.
Lembro o tempo da fome, do analfabetismo, da ignorância e do obscurantismo.
Das injustiças sociais e suas assimetrias carrascas, das desigualdades, das arbitrariedades, da exploração ... do domínio dos poderosos, e da servidão do povo.
E do que não lembrasse, os meus pais se encarregaram de mo contar.

Sou oriunda de uma classe social  média baixa, da chamada gente remediada.
Sou filha de pessoas humildes, que viveram sem outros proventos que não o seu trabalho.  O meu pai foi um comerciante no ramo das ferragens, a minha mãe, uma simples doméstica que concluíu a instrução primária apenas já adulta.  Gente honrada e trabalhadora.  Não mais !

Estudei, contudo.  Cursei uma Faculdade no tempo da ditadura.
Lembro as perseguições políticas, lembro os medos e os silêncios.
Lembro as invasões da Faculdade pela polícia a cavalo e a brutalidade usada indistintamente, os jactos de tinta lançados sobre os manifestantes, que o ousavam.
Lembro a Pide, e os "desaparecimentos" súbitos deste ou daquele colega.
Lembro a Guerra do Ultramar, onde milhares de jovens perderam a vida, ou a estropiaram.
"Para Angola, rapidamente e em força!" - dizia sem respeito, Salazar, em Abril de 1961 ...
Lembro os auto-expatriados, como saída única de fuga à mobilização.
Lá fora, sem opção, longe da família e o coração em sangue, viam o seu país sem esperança, a fenecer, a morrer aos poucos ...

E Abril de 74 chegou, e com ele, sementes de esperança, de fé e de liberdade desceram sobre todos nós.  Bençãos em que acreditámos.  Sonhos que voltámos a sonhar.  Causas que voltaram a valer a pena.  E fé ... de que então era a hora ...
Portugal acordou renascido naquela madrugada !
Demo-nos as mãos, derrubámos as diferenças, levantámos pontes e caminhámos juntos, porque era tão grande a felicidade, que não cabia num coração único !

E a democracia chegou, como presente de Natal, com laço e fita.  Foi o nosso bem maior !
Foi difícil, foi suada, foi experimentada, foi aprendida, dia a dia, passo a passo.
Caímos muitas vezes, levantámo-nos outras tantas.  Fomos mantendo a esperança no acreditar em ideais que nos guiavam.
Os valores de Abril foram perseguidos, doídos e paridos com muito sofrimento ao longo dos tempos e das vicissitudes de cada tropeço.
Porque os aprendi na pele, tentei transferi-los adiante.
Desde logo, o uso da verdade, a isenção, a coerência, a honestidade.
Desde logo, o esforço e a aposta nas convicções, com seriedade e responsabilidade, com verticalidade e carácter ... sem desistência ou abdicação, doendo a quem doer, custando o que custar, com frontalidade e sem medos ... em todas as circunstâncias da vida de cada um.

Chegámos ao hoje.  Hoje é um dia duplamente carismático na História do meu país.
Hoje é o dia em que se comemoram os 109 anos da implantação da República em 1910, marco histórico na História de Portugal, e hoje é também o dia de reflexão às vésperas das eleições legislativas para a Assembleia da República, que se realizam amanhã.

E a que se assiste, neste momento ?

Reflectindo sobre os anos andados em jogos políticos oportunistas, em jogos de bastidores pouco saudáveis e claros, olhando os escândalos sucessivos em governações sucessivas ( na justiça, na saúde, na banca, no ensino ... entre muitos mais ),  constato tristemente que nos tempos actuais se atingiu um clima generalizado de suspeição sobre tudo e todos.
Suspeição sobre a seriedade de pessoas, suspeição sobre a informação difundida pela comunicação social (onde as fugas de informação sobre casos mediáticos, justificam a proliferação da mediocridade e do sensacionalismo informativo ).  Suspeição sobre as instituições, sobre os órgãos de soberania, sobre as classes e estruturas políticas e sociais, totalmente descredibilizadas.
Neste momento, os compadrios são descaradamente visíveis.  Os negócios suspeitos e pouco transparentes, grassam.  O hermetismo de instituições acobertando apenas troca de favores e ganhos ilícitos, proliferam encapotadamente.
A mentira alastra e os órgãos que deveriam ser livres e independentes na investigação e defesa do esclarecimento e transparência de factos criminalmente censuráveis, são pressionados, silenciados e coagidos.
A corrupção, a falta de isenção e a fuga à verdade, driblam uma justiça manifestamente doente, limitada e ineficaz.
Parece termos voltado aos tempos tenebrosos do silêncio, da conivência, do favor, do jeitinho e do privilégio de alguns que se mantêm impunes, em permanente "estado de graça", intocáveis e acima da lei !... Aqueles que têm o poder de mexer a seu modo, as pedras do xadrês político e económico.
E os tempos vindouros, infelizmente,  não são sequer promissores, à luz de toda a conjuntura europeia e mesmo mundial !
Sinto-me profundamente triste, desconfortável, defraudada, estranha e revoltada, num país que devia ser o "meu", e começa a ser-me desconhecido.  Não sei viver a duvidar da minha própria sombra, com "fantasmas" ( outra vez ), a conviverem com a minha realidade !

Não foi seguramente para nada disto que os capitães de Abril saíram à rua !
Não foi seguramente para nada disto que pugnei para instituir e alicerçar valores sérios e puros, no seio da minha própria família !
Democracia será isto ?!   Ou, simplesmente fomo-la deteriorando na sua essência, com toda a mediocridade humana ?!...

Ouve-se por aí, perigosamente com demasiada frequência, mas talvez com algum entendimento, a frase : " Volta Salazar ... estás perdoado !..."
Ainda assim, e apesar dos pesares, prefiro a mensagem deixada na balada "Trova do vento que passa", saudosamente cantada por Adriano Correia de Oliveira nos idos de sessenta, do século passado :

" Mesmo na noite mais escura, em tempos de servidão, há sempre alguém que resiste ... há sempre alguém que diz não ! "

Teremos que acreditar !  Resta-nos acreditar !...

Anamar

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

" INSATISFAÇÃO "




Estou aqui em voltas e mais voltas, sem que jorre sequer um assunto, um tema, algo interessante para escrever.
Dispensei uma amiga com quem iria tomar café, na expectativa reconfortante de que, aqui no meu canto, seria seguramente bafejada com alguma ideia medianamente aceitável.  Qual quê ... sinto-me vazia por dentro, ou melhor, sinto-me esvaziada de conteúdo.
Crise de criatividade, consciencialização da desimportância objectiva do que escrevo, ou desinteresse  mesmo ?
E no entanto precisaria escrever, já que, fazê-lo, é uma catarse que me é vital.

Parece que já escrevi tudo o que tinha a escrever, nos tempos em que só me restava o espaço sufocante de permeio a estas quatro paredes, que por vezes se agigantavam.  Aqui, no sossego e na solidão do meu quarto.
Nos tempos em que os meus gatos eram as figuras importantemente silenciosas na minha vida, em que a minha gaivota esvoaçava por aqui, pousava perto, e piscando os olhinhos, me trazia notícias lá de longe, da orla costeira onde as águas batiam nos rochedos na maré baixa, e em que o seu vai-vem embalava e adormecia a alma ... nos tempos em que cada por-de-sol, com toda a sua singularidade, me fazia sonhar, na nostalgia da partida ...
Nos tempos em que a música, doce e lenta, escorria incessantemente e me aconchegava ...

Parece  que essa  "eu",  não  existe  mais.  Parece  que  essas  memórias  estão  a  ser  engolidas pelo tempo,  parece  que  o  mundo  à  minha  volta  se  descaracterizou  inapelável e doídamente ...
Chego a ter saudades desse tempo que foi.  E no entanto, não era um tempo fácil ... não era sequer um tempo feliz !
Estranho tudo isto !  Estranho, o ser humano ... ou se calhar, simplesmente estranha apenas eu, nesta insatisfação magoante que me tortura e despeja por dentro.
Parece que então, havia um norte que eu perseguia, um objectivo que me motivava, um foco que me justificava a caminhada.
Nada disso percebo, neste momento.  Nada disso percepciono neste timing da minha existência.  Parece que não há muita coisa que me valha a pena, ou me preencha.  Parece não existir de facto muita coisa que me dê asas, ou me sirva de bordão ...
É um marasmo que me inunda.  É uma angústia que não explico, que me toma.  É uma melancolia morna que me envolve ... São as cores outonais que me pintam o coração ...

Talvez nada importante.  Não sei.  Talvez nada que me "autorize" a sentir assim, nesta espécie de ingratidão com a vida.  Afinal, continuo viva por aqui, continuo com saúde e com os problemas que eventualmente as pessoas encaram, sem excessiva preocupação, felizmente.
Olhando à minha volta, sei exactamente que poderei chamar-me e sentir-me privilegiada !

Mas, fazer o quê ?...

Não consigo, por mais que racionalize, fazer valer a pena a vida que detenho.  Excesso de burrice, seguramente, utopia para a qual já não tenho idade, miopia formal face ao desenrolar dos dias ...
E sei-os a passar vertiginosamente.  Sei que cada minuto desperdiçado e não valorizado, é um minuto inglória e irreversivelmente delapidado.
Há quase ano e meio que a minha mãe partiu.  Incrível !  Parece ter sido ontem ...
Há quase dois anos e meio que a Teresa nasceu.  Igualmente incrível !  E de tudo fala, e tudo conversa e interage de uma forma rica e desinibida.
Ainda ontem o António usava fraldas e dançava ao som da "Joana come a papa ", e já entrou para a Faculdade.
E daqui a pouco, aniversario.  Um ano mais que não me interessa nada, e que vou procurar ignorar, longe daqui ...
E assim por diante !...

Como folha tombada num riacho serpenteante por entre as pedras, que vai encalhando pelo caminho ... como fiapo de algodão largado no vento que sopra ... como nuvem perdida no firmamento, que se faz e desfaz ... ou barco sem vela ou remo, longe do cais ... assim me sinto eu, sem rumo, bússola, norte ou motivo ... amodorrada que estou, numa onda pardacenta que não coa a luz !...

Anamar