terça-feira, 25 de junho de 2019

" A FRONTEIRA "







"O  HOMEM  DOS  OLHOS  LINDOS "

O homem dos olhos lindos
é lindo por dentro e fora
porque não há fora sem dentro
e não há dentro sem fora ...
O homem dos olhos lindos
tem doçura no olhar
tem um coração imenso
tão profundo quanto o mar ...
Tão imenso quanto o céu
sem horizonte a fechar...
pois não há dentro sem fora
nem fora sem adentrar ...
O homem dos olhos lindos 
é uma criança a sorrir ...
Tem ternura no olhar
e um coração a partir
com vontade de ficar ...
Tem uma alma gigante
e uns braços de albergar
os amigos e os amores,
os afectos e o sonhar
Um ninho dentro do peito
que é berço-maré de jeito,
sempre embala em qualquer hora ...
É lindo por fora e dentro ...
Pois não há fora sem dentro
e não há dentro sem fora !...


Este  poema  escrevi-o  há pouco  mais  de dois anos, e  apus-lhe  a  seguinte dedicatória  :   ( " dedicado com todo o carinho ao Pedro, amigão de tertúlias vadias ..." )

Hoje eu vi um farrapo humano.  E vi exactamente como, num piscar de olhos, aí podemos chegar ...

O Pedro era um desportista, de olhos azuis, rosto franco, disposição invejável, disponível em todas as horas e como eu dizia então, "um amigão de tertúlias vadias "...
Mais velho que eu cerca de meio ano apenas, costumava brincar dizendo que o ano em que nascêramos fora a época de ouro da década de cinquenta.
Nascido na terra que habitamos, não há quem não lembre o Pedro desde sempre.  Licenciou-se em psicologia, exerceu numa escola superior e apesar de ter tido uma vida afectiva muito conturbada de que lhe resultaram três filhos ( o mais novo actualmente com dezoito anos apenas ), vivia sozinho há largos anos.
Sempre se manteve ligado ao desporto.  Foi treinador de andebol, foi dirigente desportivo, de coração verde de nascença, amava o seu Sporting de paixão.
Não era fanático, tinha fair-play e interessava-se por todas as modalidades, nacionais e internacionais.
Praticava futebol inserido num grupo de amigos, de várias faixas etárias.
Dizia a brincar que o "leão da Gago Coutinho" ( a rua em que nasceu ), era imbatível ... e ria desbragadamente, como um puto travesso e irreverente, que desafiasse os coleguinhas de rua, onde em criança dera os primeiros pontapés na bola ...

2019 derrubou o Pedro e afastou-o do convívio de todos nós.  Um surto psicótico desencadeador de uma profunda depressão com posicionamentos obsessivo-compulsivos, jogaram-no para os serviços de psiquiatria de vários hospitais.
E aparentemente, de uma forma irreversível, o seu quadro clínico tem vindo a agravar-se.  A sua degradação física e mental têm-se acentuado.
Hoje o Pedro parece ter mais vinte anos em cima, não lê, pouco fala, descoordena as ideias, não elabora nenhum discurso assertivo, não mantém sequer um diálogo, e vive totalmente afastado do que ele chama de "o mundo lá fora" ...
Diz-se confuso, tem medos, vive o fantasma da não reabilitação. não concebe para si um dia de amanhã ...
Duas tentativas de suicídio falhadas, fala da solidão que vive entre as paredes do mundo alucinado da psiquiatria.  E repete, trémulo, compulsivamente :  " é o fim da linha, Margarida! "

Hoje, eu vi um farrapo humano.  E vi quão fácil é o atravessar dessa fronteira débil e ténue, entre o mundo dos ditos "normais" e o mundo dos "loucos" ...
Hoje, ele é um prisioneiro da Vida ... um refém do Destino !

Hoje, o homem dos olhos lindos, o "amigão de tertúlias vadias" está já do outro lado !...

Anamar

segunda-feira, 24 de junho de 2019

" TÃO SIMPLES ASSIM ..."



Escrevo pouco, ando dispersa, desligada, indiferente.
Acho que um pouco vazia de emoções.  Experimento uma certa acomodação à vida, que me desafiava e já não desafia como antes.
Penso que rotinei em excesso, amodorrei, indiferentizei-me com o que me rodeia.  Vivo num encolher de ombros, tanto me fazendo que o sol brilhe ou seja cinzento o dia ...
Cansada.  Cansada, parece ser o vocábulo que mais me vem aos lábios.  Digo-o e digo-mo, vezes sem conta.  Quase todos os dias ...

Será que quando atravessamos uma grande tempestade, pouco já consegue abalar-nos ?
Será que quando olhamos a morte de perto, quando a percebemos realmente e com ela conversamos, ainda que noutro corpo e noutro coração, ficamos meio dormentes, como com uma ferida aberta que já não sangra mas continua a doer ?  Um doer lento, manso, como um resto de anestesia que nos ficasse no sangue, circulando de alto a baixo ??
Talvez passemos a relativizar a importância de tudo, a importância até da própria vida.
E percebemo-la tão pequenina, tão insignificante ... tão frágil, que toda a importância que ao longo dos anos lhe atribuíamos, toda a inquietação com que nos atormentou, não passaram de fogos fátuos, que se apagam na noite escura.

Sinto-me "entupida" de um desconforto destrutivo, e sinto-me só comigo mesma, falando-me de estados de alma que só eu conheço, que só a mim interessam, que só para mim têm significância, e que os outros não entendem nem aceitam, simplesmente porque não entendem mesmo.
Vem aquela coisa de empatia solidária de alguns ... "sim ... tem dias assim, em que acordamos com uma insatisfação atroz com tudo, com uma inércia que nos tolhe até os menores movimentos e vontades ... Comigo também "... bla bla bla ...
Parece que oiço as vozes, distingo as palavras, até vejo os rostos de quem, complacentemente, o diz, no intuito de uma espécie de compensação, ajuda, compreensão ... simpatia ...

Ou oiço os outros que não entendem, simplesmente porque não entendem a linguagem ... como dizia.
Porque na verdade, na realidade ... porquê, sentir-me assim, sem alegria de viver, se a vida parece ser tão importante ?!

A vida, a sua justificação, o seu significado, o seu interesse, a sua lógica, são as tais questões existenciais que, se começamos a questioná-las, está tudo perdido ... para não usar um português mais vernáculo ...
Em tempos idos tive um interlocutor nesta mesma onda.  Talvez de nada adiantasse, mas pelo menos existia uma compreensão empática das dúvidas que nos tomavam ...
Acho que ele encontrou um "modus vivendi", e vai seguindo.  O trabalho é uma excelente terapia.  Pelo menos retira-nos tempos de ociosidade e introspecção.  E isso, ele tem muito.
Eu não.
É espantoso como, quando estamos no activo, ansiamos atingir aquele patamar de vida em que teoricamente iríamos finalmente realizar isto, aquilo e o outro, para que não temos então tempo ...
Tolice.  Nada se passa dessa forma.  O tempo está mais vazio, de facto, mas falta o resto.  E o resto é a centelha de vontade, a exuberância da frescura, o quinhão de loucura que parece termos perdido por aí ... Faltam objectivos, porque parece que pouco nos falta já, fazer.  Já está quase tudo pronto.
Os filhos têm vidas próprias e resolvem as suas próprias questões.  Os netos cresceram ou estão a crescer, depressa de mais, quase à nossa revelia, com padrões e linguagens que já não identificamos bem.  A casa ou as casas que haveríamos de adquirir, já quase só são, uma dor de cabeça, uma fonte de despesas e preocupações. Os nossos ascendentes, grosso modo, já partiram e libertaram-nos das exigências que lhes eram devidas.  Praticamente todos os amigos que tenho já não têm pai ou mãe ...
Começamos a perder conhecidos e amigos ... Alguns deles, inesperadamente.  E a sensação de "orfandade", torna-se assim mais abrangente ... Os amores ... bom, os amores também já os vivemos.
Quando pensamos, dizemo-nos como seria bom apaixonarmo-nos de novo !  Sorrimos, ao lembrar ... A vida também já nos roubou sonhos, esperanças, fé.  A vida já nos apagou as chamas que nos ardiam no peito ... e não há tanto tempo assim, afinal !!!

Então, fica aquela coisa de "pão dormido" ... de "comida requentada" ... de balão furado ...
Falta gás, falta "élan", falta força, falta projecto ... faltam objectivos ...

Porque ...

Os objectivos norteiam a vida.  A falta deles amorfiza os dias e retira o ânimo e a vontade.
Nas empresas trabalha-se por objectivos que impõem ritmos, metas, orientam esforços, definem rumos.  A luta pelo alcance dos mesmos, estimula a superação, o aperfeiçoamento, o desafio pessoal, a capacidade individual. Diariamente devem ser condutores das nossas vidas, porque são o semáforo que, aceso no fim do trilho, chama, ilumina, facilita.  Sem eles, vive-se um pouco por viver.

O homem gera-os, por vezes por razões positivas, por vezes por razões negativas.
São eles que erguem diariamente o homem que clama por justiça, o homem que busca a vingança de ódios acumulados, o homem que luta pela reposição de direitos feridos ... o homem que pugna por ideais em que acredita.
São uma mola impulsionadora que nos empurra o sonho adiante, que nos alimenta o ego e nos dá força para continuar...

Deve então ser exactamente  tudo isto, e não mais !... Ausência  de  objectivos,  na  minha  vida ! Tão simples  assim !!!...

Anamar

segunda-feira, 17 de junho de 2019

" SIMPLESMENTE UMA RECAÍDA ... "



Um pardal cisca na mesa da frente, as migalhas por ali deixadas.  Reparo que as alfazemas já estão em flor e os jacarandás, eu sei que iluminam de lilás esfusiante as ruas, os largos e alamedas por toda a cidade.
Na mata, os "bordões de S. José" estão também a começar a florir, neste mês de santos, que não o seu ...
Tempo vai em que Junho era um mês de muitas ocupações.  Desde logo, os exames à porta, no quinto ou no sétimo ano, relegavam-nos ao reduto do quarto, em noites de estudos intermináveis, quando a rima dos manuais a serem dissecados, parecia infindável.  Três de História, três de Geografia, três de Física e outros tantos de Química dos terceiro, quarto e quinto anos, e por aí adiante ... em todas as disciplinas curriculares.
Eram noites para estudar e manhãs para dormir, já que o silêncio da concentração só nos ajudava pelas madrugadas. Eu vivia num rés-do-chão de uma avenida barulhenta e movimentada, e por isso, não era fácil durante o dia conseguir o sossego desejado.

Já aqui contei, creio, que a minha mãe entendia que se me fizesse companhia noite dentro, tudo me seria mais fácil. E por isso, vinha para junto de mim  fazer renda e obsequiar-me com miminhos constantes ... miolo de pinhão, bolachinhas a gosto, ananás em calda, pratinhos de arroz doce, frutas caramelizadas e tudo o mais que lhe viesse à cabeça.
Sempre gostei de estudar com música, baixinha, e nessa altura do ano, toda a noite as marchas populares ocupavam as estações de rádio.

Depois, Junho era o mês dos casamentos de Sto.António e assisti-los pela televisão, era um programa e tanto ... As  marchas  populares, no  desfile  pela avenida, eram  outra  "maravilha" !...
Os afazeres eram aligeirados ou acelerados mesmo, para que não se perdesse pitada !
O Festival da Canção parava o país ...
E a vida corria mansa e simples.  As tecnologias que nos absorvem e estupidificam hoje em dia, não existiam, e por isso, ler, escrever, desenhar para quem gostava e deliciar-se com o que um dos dois únicos canais televisivos exibiam, já estava de bom tamanho ...

Os horizontes passavam muito pelos desígnios norteados pelos pais, que ansiavam que os filhos fossem mais além do que a bitola e a fasquia das suas próprias vidas !
Os objectivos a atingir eram por isso óbvios.  A vida era modesta, aparentemente sem grandes surpresas ou sobressaltos.  Os valores eram aqueles que a boa formação que nos era transmitida, impunha.
As casas eram lares, as famílias eram clãs, os sonhos eram direito da existência, os relógios pareciam correr devagar, e os anos pareciam mais generosos do que agora.
As estações estavam definidas, e sabíamos perfeitamente que grossas camisolas de gola alta eram imprescindíveis no Inverno.  Sabíamos que as andorinhas e as cegonhas haviam de emigrar, quando os primeiros tremores da estação se fizessem sentir.
Sabíamos vagamente que no mundo havia conflitos, e que existia um fantasma que se chamava "guerra fria" ... Mas tudo isso era lá longe !... O muro de Berlim parecia dividir o mundo, e tudo se passava entre a América e a Rússia, que assustava, e onde existia uma gente estranha, dura e má ...
Por cá, convinha ser discreto, andar na linha, não fazer politiquice ...
As férias do Verão eram intermináveis e passavam-se por aqui mesmo. Quem tinha "terra", recolhia uns dias ao chão onde nascera e donde no regresso vinham as batatas, as chouriças, até o azeite e o vinho, da colheita do ano ...
As roupas faziam-se nas modistas.  Pronto a vestir era ainda uma ideia estranha.  E não havia marcas. Todos usávamos mais ou menos indumentárias semelhantes, sem luxos ou exibicionismos.  Não existiam as "jeans" e as raparigas quase sempre usavam saias.
Víamos o Flipper, golfinho inteligente que sempre nos deliciava, e a Bonanza entrava-nos em casa na garupa dos cavalos dos Cartwright ...
A mãe comprava a Crónica Feminina, a Flama, os Lavores Femininos e nós líamos os "Caprichos" meio à surrelfa. Amor e sexo, pertenciam um pouco ao imaginário de adolescentes como eu ...
Passávamos o cabelo a ferro na tábua de engomar, e em vez de condicionador usava-se cerveja para o fortalecer ...
Começávamos a reivindicar os primeiros biquinis, que não o eram, mas sim os púdicos "duas peças" ...
Sonhávamos ouvindo Roberto Carlos, delirávamos com o romantismo de Adamo, Hardy, Silvie e o seu romance escaldante com Hallyday ... Bécaud, Aznavour ...
Livros existiam, alguns ... não muitos ... os clássicos ... Eça, Herculano, Guerra Junqueiro, Florbela, Camilo e outros. Encadernados, com bordaduras e letras a ouro, davam requinte às estantes que os exibiam ...

Enfim ... o pardal acabou voando, o perfume das alfazemas impregna-me o coração e eu ... acabei "acordando" desta recaída nostálgica a um tempo já esbatido, como o são as imagens a sépia que ocupam ainda muitas das nossas molduras ...

Saudades do que era ... das que éramos ...

Anamar