terça-feira, 30 de junho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia sem número



Mais um dia igual a todos os outros !
Rotinas instaladas numa realidade entediante.  Pairo por aqui.  Não vou dizer que vivo por aqui, porque este torpor cinzento que se abate sem novidade ou notícia, é fastidioso e cansativo.

Hoje não era dia de caminhada.  Nem sequer já a descida à mata, o encontro com o verde, o ar puro, a passarada e os raios de sol intrusivos pelo meio da ramagem, me animam.
Ando por aqui na mesmice de sempre.  Gastou-se  há muito, o "combustível" anímico dos primeiros tempos deste filme a preto e branco.  Hoje, cirando neste périplo demasiado gasto ... apática, distante e desinteressada.
Vou às compras porque devo ir às compras ... Automatizo os gestos, os rituais e os cuidados. De resto, arrasto-me, simplesmente ...
Oiço algumas notícias ... poucas.  Procuro os números, como quem confere a chave do euromilhões ou os bonecos da raspadinha.  Os mortos e os infectados, os que desesperam nos cuidados intensivos, em hospitais que já sabemos super-lotados.
Mas procuro os números sem emoção.  Sem emoção e quase já sem angústia.  Sem angústia e quase já sem medo !...
Indiferença !  Tudo isto se tornou indiferente de mais, para o potencial de coragem, de ânimo e de esperança que parecia termos ...

Oiço falar da América ( a antecâmara do horror ) ... oiço falar do Brasil ( a hecatombe que não gostaríamos de assistir ... ) ... e penso : como estará África ?  Continente de quem ninguém fala ... Países que parecem não interessar nada ... e se calhar não interessam mesmo, nesta distante realidade  de abundância e prosperidade, dos ditos pertencentes ao primeiro mundo !...
O silêncio que se "escuta" deve ser revelador de qualquer coisa ... qualquer coisa muito má, como uma maré negra que avança indomada, pelas praias da vida ...
Mas tudo é muito esquisito !  Eu sinto-me profundamente esquisita !
Tenho a postura do espectador que assiste comodamente da frisa, ao desenrolar de uma película,  que  por  pior  que  seja,  ele  sabe  que  é  só  uma  película  e  ele, um  actor  fora  da  trama !...
Apatia ...  O coração já nem acelera !
Quando as luzes acenderem e a sala se iluminar, tudo não passou de um filme ... e cá fora, espera-nos a normalidade da nossa vida "normal" ...

Sonhar ... talvez ainda nos reste.  Será ?
De preferência, que não seja um pesadelo que nos assombre as madrugadas ... e que a alvorada possa erguer-se límpida e luminosa ... como os dias de um Verão que nos assoma pelas varandas, pelas vidraças, nos céus claros e promissores ...

Tudo é efémero.  Tudo, menos o peso desta devastação mortal !
Tudo, menos a certeza do dia que amanhã vai nascer ... Tudo, menos a luz que se apaga logo ali, no fim desta linha indivisa, e que não nos deixa nem suspeitar o que está para além, no horizonte escuro de um túnel demasiado longo, misterioso e terrífico !...

O Outono não demora.  Como nada demora ... a não ser a espera ...
Notícias novas já vêm outra vez de lá, do oriente, onde tudo começa ... Novas infecções, ameaças de novas, ou outras ... ou a mesma pandemia, mascarada ...
Lá, de onde o sol nasce, onde tudo é delicado, é doce, é sensível ... lá, onde a sabedoria milenar inunda as almas e mostra ao Homem o valor e o poder regenerador da espiritualidade ... lá, onde os silêncios são recolhimento e purificação nos corações desapegados, humildes e em paz ... chega-nos a escuridão, chega-nos o ocaso profundo e a desesperança no renascer ...

Porquê ?!...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

sexta-feira, 26 de junho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - outro dia mais





Bom, não sei qual será o degrau desta escada até ao infinito, em que o dia de hoje se encaixa.
E nem esperava sequer, estar novamente a escrever mais uma página desta história de um pesadelo ... "olhada" aqui da minha janela ...
Esta "never ending story" que se arrasta, e que perpetua a desestabilização, a angústia ... o medo e a morte ... objectivamente a "não vida" nas nossas vidas, voltou a pincelar-se de nuvens negras no nosso firmamento que se mantivera azul e estoicamente ensolarado, nos primeiros meses da pandemia.
Aliás foi este "status quo" que nos cotou como um dos países que mais assertivamente abordara e tratara a tragédia que se abate sobre o Mundo.

Contivemos e estabilizámos de certa forma, o avanço dos casos de infecção, por forma a que paulatinamente a curva exponencial que o representa, se achatasse em planalto, evitando que uma hecatombe numérica fizesse sucumbir o SNS.
Estendemos portanto no tempo, o aumento brusco  do número de infecções, o que provocaria a ruptura dos meios técnicos e humanos desse serviço.
Víramos o que fora o descalabro, sobretudo em Itália e Espanha, e fomos eficientes, prudentes e eficazes nos resultados.
O confinamento rigoroso do país, resultado dos sucessivos estados excepcionais decretados pelo Governo e instituições de saúde responsáveis pela gestão da crise, contiveram efectivamente o que poderia ter sido um desastre com custos demasiado elevados.

As pessoas ficaram em casa, o país mobilizou-se em torno duma causa que reconheceu, a protecção pessoal a vários níveis, o distanciamento social de segurança e o respeito pelas regras superiormente emanadas, deram resultados.
No cômputo global, mesmo a nível europeu e por comparação com países similares em área e população ao nosso, as coisas correram favoravelmente, e parecia estarem a criar-se condições para fases mais leves de confinamento.
É que, a realidade social na sua vertente económica e política, pressionava drasticamente, a impossibilidade da manutenção de um país totalmente fechado, por muito mais tempo.  A crise económica que se abatera por todo o mundo, obrigava à retoma do trabalho, da actividade laboral no seu conjunto, sob pena dos danos sociais serem absolutamente destrutivos e irreversíveis.
Assim, estados de emergência, estados de calamidade, estado de alerta, e de contingência ... foram os passos sucessivamente percorridos pelo território nacional, ao longo dos tempos.
Foi aberto o desconfinamento, ainda que faseado e sob medidas rigorosas de contenção.
E estragou-se tudo !!!

Neste momento temos o país a caminhar sorrateiramente e em bicos de pés, no avanço para a normalidade, mas em três fases distintas em simultaneidade :  zonas que estão regidas simplesmente por um estado de alerta ( as mais bafejadas por alguma bonança da doença, com a existência de uma acalmia na prevalência de casos ), zonas abrangidas ainda por um estado de contingência, e zonas, como aquela onde resido, em que dezanove freguesias estão abrangidas, de novo, por um estado de calamidade, o que lhes configura um quadro de confinamento novamente bem mais apertado, e um recuo nas posições profilácticas, assumidas até agora.
Restrições mais severas nas liberdades sociais, encerramento da maioria dos espaços comerciais às 20 h, permissão de circulação para o estritamente necessário apenas, e recolhimento a casa.

Era previsível.  Sempre me foi previsível, que em consequência do desconfinamento decretado, iríamos ter uma inversão da tendência que vinha a manifestar-se até então.
Somos um povo de brandos costumes, somos permissivos em excesso, pouco disciplinados e pouco responsáveis.
Depois de demasiado tempo sob medidas rigorosas de confinamento, de uma reclusão pesada e doída com inibição das mais elementares e simples necessidades, contenção de vontades e desejos ( em que cada um nas suas casas convivia com o mundo exterior exclusivamente com o auxílio das novas tecnologias, e em que os afectos ansiosamente necessários e equilibrantes à vida, eram expressados e transmitidos à distância de andares, de patamares, de ruas ... de vídeo-chamadas e vídeo-conferências, e em que tudo tão completamente distante e impessoal, nos deixava quantas vezes, com o coração ainda mais espremido e as lágrimas mais incontidas ... ), o desconfinamento decretado, ainda que com apelos de prudência, responsabilidade e equilíbrio, revelou-se demasiado gorado ...
De repente, e numa espécie de emaravilhamento, descompressão urgente e loucura colectiva, parece termos esquecido que o vírus não partiu, que circula entre nós, se transmite vertiginosamente e sem regras, está e continuará a estar nas nossas vidas, sem clemência ... e que passos em falso, podem ter preços excessivamente elevados !

Inicialmente verificava-se serem os menos jovens a assumirem algumas atitudes permissíveis e de irresponsabilidade.  Havia alguma renitência a cuidados de protecção achados excessivos, porque afinal, já havíamos passado tantas coisas nas nossas vidas, que quase parecíamos invencíveis !...
Não seria este vírus a vir derrubar-nos !

Agora, mercê da "liberdade" a viver-se, novamente com as portas abertas, a alegria a empolgar-nos, a criatividade e a juventude amputadas, de novo a saírem pelos poros, são os mais jovens que parecem ter assumido o tal grau de invencibilidade.
E com os poucos anos que detêm, a insuficiente experiência de vida, e uma convicção de que ela está toda aí à sua frente para ser vivida em pleno, rápida e urgentemente ... facilmente são impulsionados para atitudes inconsequentes, imprudentes, com desrespeito pelas regras determinadas superiormente para a situação sanitária que se vive.
Desta forma, têm propiciado um recrudescimento de contágios, mercê do pouco cuidado dos convívios e da proximidade entre si, comprometendo toda a estabilidade e melhoria possível já  alcançada no país.

Por outro lado, não podemos ignorar que estas dezanove freguesias problemáticas têm de facto um perfil muito particular.
Pertencem a zonas limítrofes da cidade de Lisboa, da sua cintura industrial, zonas de habitação precária onde residem pessoas de parcas condições económicas, na generalidade emigrantes, alguns já de segunda e terceira gerações.
Vivem em condições difíceis, em que fisicamente é praticamente impossível a observância das regras de privacidade e distanciamento social.
São bairros e freguesias de gente que diariamente sai de suas casas, em transportes públicos com um excesso de frequência, com ocupações que exigem presença local  nunca substituível por tele-trabalho.
Havendo um foco de infecção num destes espaços, o mesmo alastra como um rastilho, em cadeias de transmissão familiar e social, duma forma vertiginosa e incontrolável.

Esta é, em síntese, a realidade que volto a viver no presente momento, em que aguardava já, com alguma serenidade, uma evolução mais positiva e optimista do panorama sanitário da Covid 19 em Portugal !

Até amanhã !  Espero que tenham, neste entretanto, continuado a ficar bem !

Anamar

quarta-feira, 24 de junho de 2020

" MORTE VERSUS VIDA - A PROBLEMÁTICA DO SUICÍDIO "



Vivemos num paraíso e não o sabemos !
Este micro-mundo perdido no Universo, grão de poeira estelar, a meia distância entre o centro e a borda da Via láctea, reserva-nos tesouros naturais indescritíveis !
Tanto para ver e tão curto tempo para o fazer ...
Ainda se existisse um qualquer varandim com vista para os cantos e recantos do planeta Terra, sentir-nos-íamos menos injustiçados, e eu já não me importaria de morrer ... quando fosse ...

Por morrer, por morte ... por esta temática se encontrar na ordem do dia mercê de um acontecimento mediático ocorrido esta semana, em que uma figura pública acarinhada pelas audiências que frequentam séries e novelas da televisão, pôs fim à vida  de uma forma que deixou consternados mesmo os que não são "habitués" ... resolvi escrever alguma coisa a propósito.

Porquê ?!  Como foi isso possível ?!  Por que é que as pessoas escolhem estes caminhos sem retorno ?!  Por que não superou os possíveis problemas ou tudo aquilo que o deprimia, estando inserido numa família estruturada, sendo uma pessoa de sucesso e reconhecida profissionalmente e não só ?!... Não tinha o direito de fazer isto ! ... e et cetera, et cetera, et cetera ...
Estas e outras questões, saltaram de imediato para a boca das pessoas, numa espécie de busca absurda, de uma explicação para o que a não tem.

Consternados ficámos todos, como o ficará qualquer pessoa, penso, face a um suicídio com contornos de uma violência física e de uma coragem fria, atrozes.
Consternados, ficámos todos quando somos levados a questionar como é que um pai de cinco filhos, dos três aos vinte anos, naturalmente com o peso de uma responsabilidade e de um apego à vida que obviamente lhes eram exigíveis ... conseguiu fazê-lo ...

E porque tudo isto foge ao nosso entendimento, porque tudo isto foge a uma lógica com que sempre tendemos a rotular os actos do dia a dia, tudo isto foge a comportamentos que sempre tendemos a padronizar ... reagimos com a tal estupefacção ilegítima, e logo acorremos rapidamente a procurar respostas.
Como se uma depressão, uma afecção psicológica e mental ... essas tais doenças sem rosto e demasiadas vezes sem voz ... tivessem ou pudessem ser passíveis de explicação ou entendimento à luz da lógica de outras patologias, do tipo tem uma dor, toma um analgésico, tem azia, toma um anti-ácido ...
Como seria simples se assim fosse !...

Sou uma pessoa intrinsecamente negativa.  Sou um ser que sempre se pauta, ao longo da vida, por posturas e visões tendencionalmente negativas e não positivas.  Derrotistas e facilmente problematizáveis, e não o inverso. Sou a do copo meio vazio e nunca meio cheio.  Sou a que luta, para espevitar quantas vezes, uma auto-estima que injustificadamente lhe tende a despencar aos pés.
Reajo com dificuldade face à adversidade, tenho fraca capacidade de adaptabilidade e resiliência.
Puno-me vezes de mais ... e injustamente ... confesso-o.
Tenho um historial de vida, como a generalidade dos seres humanos certamente, atulhado de pedregulhos, becos e vielas, estradas sinuosas e mares encapelados ...
Até aqui, nada de novo. Não sou vítima nem heroína.
Tenho-me saído razoavelmente bem, mas isso não faz de mim uma vencedora, nem me espanta as angústias, os desânimos e os medos de não ter forças.
Já recorri e muito, a acompanhamento médico.  É para isso que eles existem.
Não tenho pudor ou medos de me expor.  Por que o teria ?  O estigma social que infelizmente tende a marcar as pessoas, também não me assusta por aí além, apesar de ouvir com alguma frequência que me irrita ( confesso ), "não tens necessidade de falar de assuntos íntimos !"... "Não precisas expor o que te vai na alma!"... 
Porquê não ?
Ao contrário ... sinto algum orgulho por me "despir" face ao comum dos mortais ... porque o comum dos mortais, podendo não o escancarar, talvez saiba claramente do que falo ... e se isso servir para alguma coisa, já será bom !

As pessoas não gostam, eu sei, de se confrontarem com situações incómodas, com vidas problematizadas, com realidades incomodativas ...
Tão melhor, como acontece no nosso dia a dia, nas nossas relações sociais ( seja ao vivo e a cores, seja através das redes de convívio disponibilizadas pelas tecnologias existentes ), ostentarmos vidas impolutas, famílias de felicidade exemplar, núcleos familiares intocados e invejáveis, uma perfeita "ordem" existencial, assumida plasticamente, sem mácula, sem carne, sem sangue e sem nervos...
Tão melhor e mais cómodo, não percebermos ou sentirmos o incómodo do sofrimento desestabilizador do nosso semelhante, numa sociedade egoísta, egocentrista e centrada nesta necessidade  canibalesca de sobrevivência ...
Tão melhor, mas tão intencionalmente hipócrita !

Mas se o pressentimos ou sentimos, aí vêm todos os que passam a saber de tudo. Todos os "técnicos" de gabarito e especialização adequada à circunstância : "tens que ser mais forte ... tens que ver com estes ou aqueles olhos ... tens que te abrir ... e eu oiço-te, escuto-te, estou aqui p'ra ti ... em qualquer momento ... Tens que, tens que ... deves ... !"...

O que sabe esta gente do sofrimento oculto ?
O que lhes confere o atrevimento de opinarem sobre tudo o que, talvez felizmente para eles, nunca experienciaram ? O que lhes permite fazerem juízos de valor e julgarem ... tão de ânimo leve que até dói ?!
Por que razão, de repente, nos meios de comunicação, se passou a falar de estatísticas suicidárias, se passaram a veicular números telefónicos de organismos e instituições de SOS no apoio a situações extremadas ... se passou a equacionar urgentemente a saúde mental dos portugueses, até aqui aparentemente negligenciada ... se passou a escalpelizar toda a problemática em torno da escolha da morte, como refúgio para os que já não acreditam na vida ?!
Consciência social inquieta ? Ou tormentos mal resolvidos ?

Bom ... não alongo mais esta minha exposição.
Anexo um artigo de opinião que li  entretanto, produzido por Carmen Garcia do jornal Público, exactamente no contexto da morte do actor Pedro Lima ... pois tem sido esta infeliz ocorrência que fez escorrer rios de tinta, a propósito.
Esse artigo enforma com toda a clareza, o que penso a respeito de um assunto tão sensível e devastador.  Subscrevo portanto as palavras desta articulista.




Morreu ontem o actor Pedro Lima.

Aparentemente terá sido mais uma das cerca de oitocentas mil pessoas que, anualmente, colocam termo à própria vida. O país ficou em choque e, por todo o lado, se multiplicaram as manifestações de pesar e surpresa. As redes sociais, aquelas que, curiosamente, nos bombardeiam diariamente com fotos plásticas e altamente trabalhadas de vidas perfeitas, encheram-se de publicações com apelos para que não se esconda o sofrimento. A incoerência abraçou o seu pico.


Bottom of Form
Não vou falar especificamente sobre a vida do actor porque não me cabe fazê-lo. Da sua história pouco ou nada conheço. Mas conheço a história de muitas outras pessoas que diariamente lutam com a doença mental, muitas delas em segredo, porque o mesmo país que ontem gritava “peçam ajuda” é o mesmo que continua a apontar o dedo e a estigmatizar quem assume frontalmente estar deprimido. “Tens de ser mais forte do que isso” diz. Quase como se a doença mental fosse uma escolha ou um sinal de fraqueza.
O suicídio mata mais do que o cancro da mama. E por este último saímos à rua, corremos, usamos laços cor-de-rosa ao peito. Mas em relação ao suicídio continuamos a assobiar para o lado, quase como se fosse uma coisa indigna de ser falada, uma coisa feia que precisa de ser escondida. E pior, julgamos, criticamos, atiramos a primeira pedra. “Mas ele tinha tudo para ser feliz”, dizemos quase chocados e cometendo o pior dos erros: avaliar, à luz de uma mente saudável, aquilo que se passa numa mente doente.

Ao longo dos últimos anos, a ciência (e consequentemente a medicina) evoluíram muito. Sabemos hoje que a depressão pode ser associada a factores genéticos e que o funcionamento dos neurotransmissores está afectado nesta patologia. Ainda assim muitos continuam a acreditar que a depressão se trata com “a força de vontade”, como se esta, por si só, aumentasse de forma significativa os níveis de serotonina de alguém. Se fizéssemos uma comparação directa com outra doença, por exemplo a diabetes, o que teríamos seria um amigo a quem diríamos “vá lá, tens que ter força de vontade para o teu pâncreas começar a produzir insulina suficiente”. É ridículo, não é? Pois…

E pedir ajuda de qualidade é difícil. Muito difícil num país onde figuras públicas de relevo dizem coisas como “tomar medicamentos para a depressão é que não, porque isso faz-nos deixar de ser nós próprios”. Assim mesmo, como se a farmacologia hoje fosse a mesma de há 40 anos e os antidepressivos fossem comprimidos que nos deixam tipo zombies a babar pelos cantos da casa. A sério, não sei mesmo a que ajuda é que estas pessoas se referem. É que os 50/50 só funcionam em programas como o “Quem quer ser milionário?”.
É urgente, muito urgente, combater estes preconceitos infundados. Se há quadros depressivos que até podem responder bem a intervenções não-farmacológicas, acreditem que muitos vão precisar dessa ajuda. E está tudo bem. Os antidepressivos não roubam a identidade de ninguém, antes pelo contrário. E os psiquiatras não são bichos-papão. São médicos competentes que tratam doenças concretas com aquilo que a ciência tem para oferecer.


A morte de Pedro Lima é uma tragédia. Há uma família que fica de coração partido e, quem passou por isso sabe, como diz o provérbio africano, que “um morto amado nunca mais pára de morrer”. A eles dirijo as mais sentidas condolências e peço desculpa em nome de uma sociedade que continua a falhar aos seus, que continua a fazer com que as pessoas com perturbações mentais sintam que se devem esconder. 

Que a morte do Pedro desta família sirva para, pelo menos, darmos um passo em frente enquanto sociedade. Que finalmente deixemos de lado a hipocrisia e estejamos realmente aqui para quem precisa de ajuda. Sem recriminações. Sem frases feitas. Sem julgamentos.




Anamar

quinta-feira, 18 de junho de 2020

" FESTA DA AMIZADE "



Nesta anormalidade quase já normal que vivemos ( já nem conseguimos surpreender-nos com nada ... ), resolvi desafiar duas amigas, daquelas de toda a vida.
Amigas, meio amigas quase irmãs, de quarenta, cinquenta anos ... por aí ... daquelas que a vida nos oferece de bandeja, no virar de uma esquina, num qualquer acidente de percurso ... Que chegam, e depois nunca mais partem das nossas vidas !
Até porque nós nem íamos deixar ... era o que faltava !!!

Não podemos nunca esquecer que os amigos são a "família" escolhida, e são eles que, quando os nossos ancestrais vão partindo, nos ficam à cabeceira ...
São eles que nos escutam, quando os acontecimentos que nos atravessam o caminho, nos tentam derrubar ... são eles que nos limpam as lágrimas e nos dão colo, se os desgostos nos invadem e amarfanham ... são eles que nos amparam quando parece não haver luz nenhuma nas estradas a percorrer ... e o cansaço nos atormenta ...
Mas é também com eles que dividimos as alegrias, que rimos, brincamos e partilhamos momentos que por serem tão especiais, se tornam eternos ...
E foi um desses momentos, a tarde em que confraternizámos ontem.

Desafiei duas amigas, dizia eu, a fazermos um almoço juntas, num local que conheço e que sei seguro, com respeito por todas as regras do desconfinamento, na preservação da segurança individual de cada uma de nós.
Em torno de um caril de gambas com frutas, de um copo de branco bem fresquinho e de umas farófias tão inexpugnáveis quanto as muralhas encasteladas das fortalezas mouriscas, nem demos pelo tempo passar, tão animada era a conversa, tanta a necessidade de nos contarmos como estamos a viver todo este pesadelo, como tentamos superar as dificuldades que parecem ser cada vez maiores, tanta a cumplicidade que advinha de uma partilha de histórias que foram as nossas, e vividas tão de perto ao longo dos tempos ...
Os assuntos fluíam naturalmente, porque a linguagem era a mesma, a forma de estar e sentir também, as inquietações identificadas e conhecidas, as angústias partilhadas sentidas da mesma forma ...
As nossas actividades profissionais eram comuns, e como tal, reabrir o baú das recordações, foi gratificante, doce e saudoso ... mas também divertido e mesmo hilariante !
Porque lembrar as histórias, os momentos, os episódios ... até as pessoas que já partiram ... nos aquecia o coração ... nos levava numa viagem de regresso lá atrás, a tempos e a vivências inalienáveis e inesquecíveis ...

A tarde passou, por isso, muito rápido.
Resolvemos, para registar este encontro tão particular e feliz, fazer uma selfie de recordação pela reabertura da vida, pela saída da clausura total e pela esperança em melhores dias.
E na celebração que chamámos de Festa da Amizade, jurámos para breve, a repetição de outro "programita"  assim divertido ... porque a vida é curta e nunca sabemos até quando nos deixarão andar por aqui !...



Anamar

terça-feira, 16 de junho de 2020

" MAIS UM DIA SEM HISTÓRIA "



Dia sem história, modorrento e arrastado. Dia daqueles que não levedam, que não levantam, quais claras em castelo sem fôlego.
Ontem, dia de aniversários. Dia destinado a festa, alegria e disposição. Jantar mascarado, naquele ritual fantasmagórico de chegada ao restaurante.  Cumprimentos de longe, de leve, sem compromisso, sem beijos ou abraços.  Resta a bebé, que dorme o sono dos justos sem saber que colo ou que peito a aninha ...
Tudo estranho, eufemisticamente desenhado como jantar de família, porque o calendário mandou ... a vontade não tanto !
Hoje, esbarro em mim própria, embrulho-me nas pernas, por astenia de vontade.   Encalho nas letras que se negam a formar palavras, menos ainda frases, ideias e histórias ...
Desperdiço tempo.  Levo os dias a desperdiçar os dias, neste arrastar de tempo sempre igual.
Tempo engelhado, enrugado, enrodilhado, envelhecido de esperado, tempo cansado de sonhado em vão.  Tempo sem história já !  Maculado do ranço acumulado ou dos sonhos vazios ...
Tempo escrito com histórias reinventadas, para ver se é menos inglória a jornada ...

Mais um dia com o sol a disparar rumo ao horizonte ... com pressa de chegar, porque a travessia de oriente a ocidente, é longa e desesperançosa.  Daqui a pouco é noite !
Já não há histórias que pintem de azul os dias, e de estrelas as noites.
A caminhada é insípida e sinuosa.  Labiríntica e sem rumo, como as estradas no deserto que rumam a lugar nenhum, embora sempre haja um oásis na cabeça de cada homem !
Puro engano ! Atrás de cada duna, há só mais uma duna, e nunca se chega ao fim da eternidade, e as miragens sempre atentam nas esquinas das areias ...

Cansaço.  Canseira.  Saturação.  Tempo inóspito rumo ao Verão, que se abeira sem água que nos dessedente.
As rosas já floresceram.  Os jacarandás pintalgam de lilás e mel as pedras da calçada.  E tudo foi em vão, porque a cidade não se acendeu com a alegria de sempre.
As vozes que nos povoam as noites desertas já não falam do amor embrulhado em laço de fita, as gaivotas que voam por aqui, já perderam o rumo das falésias distantes ...
E só há uma imensa e pesada solidão !...

Anamar

sábado, 13 de junho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO





Faz hoje três anos, a esta hora passeava-me eu por Alfama, numa tarde solarenga de calor, céu azul e turistas nas ruas e pracinhas, em busca da tradicional animação em honra de Sto.António, padroeiro de Lisboa.
Lembro uma cidade cheia, não só nos bairros populares, mas mesmo no coração da capital.  Lembro o Rossio, o Terreiro do Paço, a Avenida, a zona ribeirinha, por todo o lado deitando pelas costuras a alegria, a animação, a música a rodos, as gargalhadas, os grupos em animado cavaqueio ...
Lembro as tasquinhas, os fogareiros nas ruas, as esplanadas improvisadas em cada canto, o cheiro das sardinhas a assar, as grelhadas, o tinto a correr ... a cerveja, a jinginha ... as farturas ...
Lembro os balões de papel dependurados das grinaldas e festões, num dossel perfeito nos céus das vielas e dos becos ... nas escadinhas e mansardas ...
Lembro as sacadas com as sardinheiras em flor, os vasos de manjericos com o cravo e a quadra alegórica ...
E de repente, num qualquer nicho, num qualquer recanto, numa qualquer esquina espreitava um trono de Sto. António e os restos do que fora uma fogueira saltada ... uma alcachofra florida ...
A procissão desceu às ruas, num percurso que terminou na capela do Santo, junto à Sé.
Pelo meio das varandas engalanadas com as melhores colchas, o povo em recolhimento religioso, os foguetes pelo ar e a banda a fechar o cortejo, a procissão foi pelo caminho, integrando as imagens dos diferentes outros santos, venerados em todas as igrejas por onde foi passando e parando, e que completaram o cortejo.
Os andores de S. João Baptista, S. Miguel Arcanjo, Sto. Estêvão, S.Vicente de Fora e Santiago Maior, todos eles com ligação e significado na vida de Sto. António, são sempre transportados por mulheres.
No largo da Sé, os noivos de Sto.António casados nesse mesmo dia pela manhã, numa cerimónia que faz parte da tradição da cidade, esperavam a chegada do Santo e depositaram os seus ramos nupciais nas grades da capelinha, aos pés da imagem, como homenagem, gratidão e busca de protecção e sorte, para os laços então juramentados ...

Eu perambulei por ali.
Lembro que estava aflita, preocupada com o nascimento da Teresa que viria a acontecer dois dias depois.  Existindo problemas com a colocação da criança, o atraso que já se verificava, não seria de bom augúrio.
Nesse dia, a minha filha, no seu estilo habitual, ainda não decidira onde a criança iria nascer, sendo que a situação era delicada e enfermava de algumas preocupações.
Lembro, que embora sendo agnóstica, e vá-se lá saber porquê ... à passagem da imagem de Sto.António, emocionada e frágil, elevei-Lhe  por isso  um estranho pedido de protecção, num gesto incoerente, utópico e de alguma forma, despropositado.
Comportamentos  humanos  que  não  se  entendem,  não  se  explicam ... e  custam  a  aceitar-se ...
Mas foi exactamente assim ... confesso !!!

Este ano, "Alfama está morta" ... desabafo de uma moradora, que li há pouco.
Com a pandemia que vivemos e muito embora estejamos num período de desconfinamento, todos os arraiais, todos os eventos que implicassem aglomeração de pessoas e consequente desrespeito do distanciamento social exigido, foram cancelados.  Não se realizaram as marchas populares na Avenida, não houve casamentos, nem arraiais, nem tasquinhas nas ruas, nem fogueiras, nem tronos, nem música ou sardinhas ...
E a procissão, que desde o século XVIII sempre fez parte da História de Lisboa, também não saíu à rua !

Os manjericos, este ano quase todos virtuais, chegam às nossas casas, através dos amigos que connosco têm dividido este inferno ! Como um miminho, no apoio de todos para todos !
Até o Santo, tenho a certeza, estará mais triste e descoroçoado, a achar que os lisboetas o esqueceram na capelinha onde reside por todo o ano !!!

Também por tudo isto, 2020 ficará lamentavelmente para todo o sempre, nas histórias inolvidáveis da História que vivemos !!!



Anamar

quinta-feira, 11 de junho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO




ENÉSIMO  DIA  DO  QUE  FOI ...

Já não conto os dias.  E também já não sei contá-los, nesta confusão de tempo sem ter fim.

Sei que continuamos mergulhados num futuro incerto, sei que os números crescem numa média de trezentos por cada vinte e quatro horas, sendo a maioria exactamente na zona geográfica em que me inscrevo ( Lisboa e Vale do Tejo ), apesar de considerarem  controlado o surto, de acordo com as autoridades de saúde.
Sei que as pessoas já não estão confinadas de todo, apesar de ainda haver restrições severas, e de haver exigência na observação rigorosa das medidas de distanciamento social e cuidados complementares.
Sei que já podemos comer fora de casa ( carregando luvas e desinfectante de preferência, como prevenção, apesar do mesmo se encontrar à discrição em todos os locais ) ... Que já podemos estar com amigos, mais proximamente ... que já podemos visitar os filhos ... olhando-nos à distância, falando-nos à distância ... não nos tocando ...
Sei que as nossas empregadas domésticas, na generalidade já regressaram, com máscaras e desinfectantes à entrada, sobretudo se utilizam os transportes públicos na deslocação até nossas casas.
E também sei, que pelo menos isso me aliviou das prestações domésticas que, odiando, tive que executar durante os tempos tenebrosos do confinamento.
Sei que já fomos ao cabeleireiro, ás unhas, aquelas minudências que nos levantam um pouco a alma ... 😃😃 ...
Mas ainda não há compras para ninguém.  Os centros comerciais, encerrados aqui na zona de Lisboa, travam o acesso consumista, que até parece termos esquecido.  Afinal, passando a maior parte do tempo enfiados entre as nossas conhecidas e seguras quatro paredes, os modelitos continuam repousando nos roupeiros e no fundo das gavetas ... Precisamos de mais, para quê ?!
Sei que já poderemos ir ao cinema, embora ache que não terá a mínima graça estar amordaçada, numa sala às escuras, cadeira sim, cadeira não ...
Sei que se poderá  ir às praias, por trilhos demarcados na areia, trilhos de ida e trilhos de volta, com áreas de ocupação por chapéu, bem demarcadas, por forma que as pessoas não se esbarrem ... e com uma lotação limitada que nos remete para uma espécie de plateia com bilhetes marcados ... Um horror !!!... 😃😃
Sei que apesar de ser Junho e os Santos terem descido às ruas, não haverá sardinhas, arraiais, bailaricos e marchas ... não haverá martelinhos, alho porro e foguetório pelos céus de Lisboa e do Porto ... Nem casamentos de Sto. António ... é verdade !... 😢😢
Sei que as esplanadas já são francas e que o pessoal poderá retomar as tertúlias ... Poderá ... mas ...
E até sei que se pode viajar por aí, pelo país ... com cautelas e medidas ... mas ...
E sei de mais algumas outras coisas ...

Bom, sei de tudo isto, mas também sei da modelação que toda esta anómala forma de vida provocou dentro de cada um de nós ... E talvez não erre muito se disser que o reinício e a retoma da normalidade tão ansiada das nossas rotinas, são bem mais complicados e penosos  do que foi o seu fim.
Talvez não erre muito se falar do medo que ainda sentimos todos, quando nos cruzamos nas ruas, nas compras, nos lugares mais frequentados, com os outros, que certamente também estarão a experimentar o mesmo medo de nós próprios ...
Talvez não erre muito se falar do desconforto sentido, quando pontualmente ficamos mais perto de alguém, porque dificilmente conseguimos escamotear pelo menos, a apreensão sentida ...
E não erro de certeza, quando percebo que o vazio e a mágoa daquele beijo adiado, vão continuar  a apertar-me  o  peito,  porque  o  beijo  vai  continuar  adiado,  sabe-se  lá  até  quando !...
E também talvez não erre muito, se falar do desencanto e de uma espécie de tristeza interior instalados, que nos conseguiram  roubar a alegria e a capacidade de fruição, de gosto e de vontade em relação até às pequenas coisas, que direi em relação às mais ambiciosas que poderíamos fazer ... e que não conseguimos fazer ... simplesmente !
E do cansaço interior, desmotivante e anestesiante já, frente às forças e determinação reunidas no início deste filme de terror ... e que se nos esvaíram aos poucos, enfraquecendo a esperança e a capacidade de luta !
E também não erro quando percebo e falo da estranha que há em mim, que veio, tomou conta e se abancou, sem hora de ir embora ... e de como isso me perturba, me angustia e desanima ...

E ainda que eu continue de olho no "pote de ouro" que me espera no fim de um qualquer prometido arco-íris que há-de subir no céu, numa aurora que virá ... e ainda que eu saiba que o arco-íris foi exactamente escolhido como símbolo da esperança, da confiança e da fé de que "tudo vai ficar bem", no flagelo que nos atormenta ... ainda assim, frente à minha janela, não parecem perfilar-se as condições para que as sete cores, disciplinadamente se arrumem, para o desenharem neste meu céu escuro !!!



Anamar

quarta-feira, 10 de junho de 2020

" TEMPO DE RECUAR "




Hoje foi dia de recuar no tempo ... e voltar no tempo, nunca dá coisa boa !

Sentia-me totalmente desocupada, num daqueles dias que cirandamos sem destino, nem que seja no habitual périplo caseiro, mexendo aqui, abrindo ali, olhando acolá, com todo o tempo do mundo à nossa frente.
Depois de mais uma noite mal dormida, quase uma noite não dormida, mercê do disco partido que adquiri, e que dá pelo nome de "gata surda a miar pela casa fora, ininterruptamente pela madrugada" ... fui caminhar com sacrifício acrescido, pois parecia-me antes, estar a cumprir uma penitência e não propriamente a usufruir de um tempo lúdico ... tal o estado "desgraçado"  a que me sentia votada.

O meu rumar lá atrás começara já durante a noite, num dos "intervalos" em que até consegui sonhar ... Os sonhos, é sabido, umas vezes lembramos, outras não ... desta vez fiquei com farrapos na memória.
Ainda assim, era um sonho meio baralhado ( como aliás convém a qualquer sonho que se preza ... 😃😃😃 ), pois remontando a factos pertencentes a quinze, dezasseis anos atrás, incluía anacronicamente a minha gata no enredo ...
Percebe-se claramente porquê.  É que enquanto eu tentava dormir e até mesmo sonhar, ela continuava a "serenata" no corredor, paredes meias comigo ... Só pode ter sido isso !!!

Almocei e vim dar volta a uma gaveta cujo conteúdo precisava  reavaliar.  De lá pingaram então memórias, em que há muito não mexia e que já nem lembrava estarem por ali.  Documentos escritos, fotografias ... enfim, algumas das coisas que sou perita em manter comigo.
Quando um dia eu for em viagem de ida, muito trabalho terá quem cá fica para "encaminhar" para o "arquivo morto", como diz a Lena, o tanto que guardo em caixas e caixinhas, sacos e dossiers que na verdade só a mim respeitam ...
Ou então tenho que me cultivar o sentido do desapego, atempadamente, para ainda de cabeça feita, conseguir cortar os laços afectivos e emocionais que me prendem a tão valiosas e inestimáveis insignificâncias na minha vida ... e dar-lhes eu, o destino que então entender !
Não será fácil, conhecendo-me como me conheço ...

Essas incursões pelos idos de dois mil e pouco, mais não foram do que uma espécie de reencontro com aquela de quem tenho uma infinita saudade, e com tempos que nostalgicamente me assomam à mente e ao coração : a que eu era então, a vida que eu detinha e as histórias da minha história, nesses anos transactos !
Ultimamente dou por mim ( nesta escorrência temporal que parece ter-nos estagnado as existências ) em romagens absurdas, em buscas inglórias da minha silhueta, da energia criativa de que dispunha, dos sonhos que me invadiam e me faziam sentir viva, da força impulsionadora que me guiava ... até do meu sorriso ...
Ultimamente, nesta vida atordoada que é a nossa realidade actual, arrasto dias insipidamente iguais, sou uma sombra descolada de um corpo, que meio vivo meio morto, vai percorrendo tempos sem definição, rumo ou norte.  Sinto-me pardacenta, baça, sem luz e sem brilho no caminho.  Sinto-me sem vontade ou decisão, como as palavras que não saem de línguas entarameladas ...

Olham-se as fotos, perscrutam-se os olhares, avaliam-se os sorrisos ... relembra-se este e aquele episódio, fazemos rewind das histórias, reabrimos as emoções ... e parece que repegamos o passado e o arrastamos ao presente, nem que seja por brincadeira, por saudosismo ... apenas por pirraça, como se isso pudesse consolar-nos, acrescentar-nos ou compensar-nos, pelo menos !
Mas nada disso é verdade.  Nada disso acrescenta, afinal, um pingo que seja de sonho, à inevitabilidade do transcurso inexorável do destino de cada um ...
... simplesmente porque o tempo não recua nunca !!!

Anamar

sexta-feira, 5 de junho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 85





O ser humano tem uma capacidade resiliente espantosa, e uma rápida adaptabilidade a tudo, neste mundo !
As piores coisas, as experiências mais difíceis e dolorosas de ultrapassar, acabam por ser assimiladas e incorporadas mesmo, nas nossas vidas, em tempos por vezes espantosamente record.
Por esse motivo, a capacidade regenerativa, a capacidade de superação e a capacidade de encaixe de novas realidades, permitem ao Homem continuar a viver e a reinventar-se perante situações limite, eu diria quase com alguma normalidade.

O cataclismo que tem varrido o planeta, é de alguma forma, um exemplo disso mesmo.
No início da catástrofe, quando de epidemia passámos a pandemia devastadora, percorrendo o globo de oriente para ocidente, de sul para norte, semeando o terror, a dor e a morte em todos os humanos, as pessoas, num registo catatónico provocado pelo pavor bloqueante que as dominava, eram animais encurralados, acossados numa luta contra um inimigo desproporcional, desconhecido, invisível e cobarde.
Vivíamos em permanência "pendurados" das notícias, sofríamos com elas, aterrorizávamo-nos perante a imagem apocalíptica do que parecia aguardar-nos sem escapatória ( sendo apenas uma questão inevitável de mais ou menos tempo ), solidarizávamo-nos no sofrimento e sofríamos  brutalmente com todos os povos de todos os continentes, raças e línguas ... não dormíamos com tranquilidade, condicionámos as nossas vidas em figurinos que nos amputaram a paz, a alegria e a saúde ... o sobressalto era permanente, vinte e quatro sobre vinte e quatro horas ... e tínhamos p'ra nós, grosso modo, numa visão determinista arrasadora, que mais cedo ou mais tarde, chegariam estes, aqueles e aqueloutros sintomas de que o maldito nos apanhara de jeito ... e aí ... engrossaríamos as estatísticas, simplesmente ... sem remédio que nos valesse !

Este pesadelo  couraçado, musculado, paralisante, enfraqueceu-nos, destruíu-nos, adoeceu-nos.
Pôs à prova, em permanência, do que éramos e do que não éramos capazes, experimentou-nos a capacidade reactiva, o nosso instinto de defesa e mesmo de sobrevivência, colocou-nos frente a nós mesmos  num desafio de forças ... ou reagimos, ou estaremos definitivamente perdidos ... ou paramos e reflectimos, ou morreremos na praia ...
E aí, havia seriamente que escolher qual o trilho que avisadamente deveríamos percorrer.

E chegámos ao hoje.
Volvidos quase quatro meses desde as primeiras "chuvas", e tendo passado por todos estes estádios ( eu e certamente os outros também ), percebo que me fortifiquei interiormente. Percebo que ganhei um distanciamento emocional, uma racionalidade construtiva ... que cresci, ou que pelo menos amadureci psicologicamente ... que me fui despindo aos poucos do fantasma do medo que tanto me martirizou quando a perplexidade face às realidades, era uma constante ... quando a confusão no coração e no espírito me tolheu os passos p'ra caminhar.

Ou seja, arranjámos todos, creio, mecanismos de defesa para podermos prosseguir  no que vier a ser o nosso destino, ganhámos arcaboiço para enfrentarmos as dificuldades que ainda virão, e formas de encararmos mais positivamente e relativizarmos, o desenrolar das situações.
Hoje dizemos ... de ontem p'ra hoje "só" houve dez óbitos... "só" há sessenta e quatro internados em cuidados intensivos ... "só" surgiram  trezentos e setenta e sete novos casos...
E ao fazê-lo, temos sempre presentes comparativamente, outros números, outras estatísticas, a expressão dramática e assustadora de outros países ... e por isso, pouco mexem connosco já, os números chegados das actualizações diárias ...
Começámos a banalizar as estatísticas, começámos a habituar-nos a viver com elas, começámos a insensibilizar-nos com a nova realidade, com a nova tipologia existencial de que agora fazemos e faremos parte  por um futuro muito longínquo, certamente .... por resiliência, adaptabilidade ... ou talvez simplesmente por cansaço !...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

quinta-feira, 4 de junho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 84



Hoje, matematicamente dia 84 !

84 no cômputo total, embora nos últimos dias eu não esteja a escrever com nenhuma regularidade as minhas crónicas que presumiam ser diárias.
Quebrou-se esta cadeia continuada de elos presos uns aos outros, quantos os dias que em procissão nos foram preenchendo a vida, nesta aventura em que fomos compulsivamente lançados.
Estamos a vivenciar já, o período do desconfinamento decretado pelas autoridades políticas e da esfera da saúde.
Um desconfinamento totalmente monitorizado, observado à lupa e analisado com todo o rigor que a gravidade da situação, nos impõe.  Um rigor acautelado, sob suspeição constante e permanentemente policiado, por forma a obstar que uma qualquer desbunda - de alguma forma compreensível, em pessoas sujeitas há excessivo tempo a vidas totalmente espartilhadas, desconformes e consequentemente alteradas - ponha tudo a perder, na situação pandémica no nosso país, até agora controladamente contida nos números do flagelo.

Desde a primeira hora ... eu diria antes da primeira hora, já eu, incluída numa considerada faixa etária de risco, me auto-confinara a uma reclusão praticamente total, visando o distanciamento voluntário de segurança, a nível da comunidade.
Restringi os meus movimentos ao indispensável e inalienável, por forma a manter-me razoavelmente sã, dentro do figurino possível.
Deixei de sair de casa, de fazer a vida social que sem ser excessiva sempre mantive, concentrei toda a aquisição dos bens essenciais num único dia, a fim de evitar um risco de contágio acrescido nos locais de compras ... e apenas mantive a caminhada três vezes por semana, por razões de salubridade, repito, física e mental.
E ainda assim, porque a mesma é feita na mata de que já vos falei vezes sem conta, onde, sendo um bosque totalmente natural, não existe nenhum risco de me cruzar com demasiadas pessoas.
E só !

A minha filha mais velha ( excessivamente cautelosa e hipocondríaca ) e família, apenas tive o grato prazer de ver à distância de um patamar de escada, ou da altura dos sete andares onde habito.  E, se me não falha a memória, por duas ou talvez três vezes apenas ...
E era aquela coisa, doída e triste, eram os sorrisos amarelos encobridores da vontade louca do abraço, ou mesmo do beijo que se fizesse à distância ... Não mais !
Tirando isso, a chamada vídeo, as tecnologias de recurso, tentavam trazer o longe p'ra perto.  Mas nem como panaceia serviam !...
A minha filha mais nova, mais descontraída talvez até por deformação profissional na forma da abordagem das coisas, não restringiu totalmente a nossa aproximação.  Ao contrário, e obviamente com os devidos cuidados, apareceu uma vez ou outra, trouxe a Teresa, e permitiu um contacto mais próximo.  Até porque, em última análise, a criança ficará em breve comigo, em períodos de trabalho da mãe que já reiniciou a actividade hospitalar.

E assim se desfiaram os quase três meses desta vida anormal, castradora, injusta e insensível às emoções, aos sentimentos, às dores e a toda a panóplia mortal de devastação psicológica em cada um de nós.
Como me tenho aguentado, nem eu mesma sei.  Como tenho suportado esta existência presa por arames ... também não.  Tenho-a vivido como uma prova de resistência, como uma situação limite requerendo "endurance",  como uma espécie de desafio à minha capacidade de superação, equilíbrio, disciplina interior, como teste de aferição à minha coragem e manutenção da esperança e alguma fé em melhores dias vindouros.
Hoje, digo um basta neste rigor excessivo e desproporcionado.
Tenho para mim, que o êxito da contenção desta tragédia, passa apenas pela assumpção de responsabilidades individuais e não mais.
Se todos fizermos a nossa parte ... dos "maiores" aos mais jovens ... posicionando-nos sempre com seriedade, precaução, rigor e sem cedências ou facilitismos no enfrentar do risco que se mantém permanente, como sabemos ... teremos certamente sucesso nos resultados.
Afinal, o vírus será um passageiro permanente desta nossa viagem ainda por muito e muito tempo seguramente, com o qual teremos de aprender a conviver ...
O medo apenas nos tolhe, destrói e incapacita.  E não poderemos / deveremos ficar confinados a vida toda, sob pena de morrermos da cura e não da doença !...
Então, vamos encará-lo de frente, com determinação e a convicção de que iremos ser seguramente  mais fortes do que ele !

Anexo aqui um texto um pouco a propósito do que aqui escrevi, da autoria do Dr. Eduardo Sá, eminente psicólogo, psicanalista, professor e autor, que merecerá certamente a vossa atenção, e fará eco provavelmente, das convicções de muitos de vós :


Daqueles de quem se fala como se fossem "criancinhas"

Chega de "velhinhos". Daqueles de quem se fala como se fossem "criancinhas". E em relação aos quais, de repente, no lugar da admiração e do respeito, ficasse a condescendência e o paternalismo.
Chega de "velhinhos". Daqueles que, no início da quarentena, eram descritos como se parecessem estar todos tolos e não medissem as consequências do confinamento. E que, agora, devessem estar todos confinados, por tempo indeterminado, por serem uma "população de risco". Em relação aos quais parece que nem sempre se pergunta que custos pode ter, para o seu equilíbrio, essa ideia que faz com que, para muitos de nós, velhice e confinamento perecessem casar tão bem.
Chega de "velhinhos". Daqueles que são "arrancados" do seu mundo, da sua casa e das suas relações e são colocados em casas comunitárias a que se chama "lar" ou "casa de repouso". E que, como se não bastasse o esdrúxulo dessa designação para esses lugares, nalguns casos, têm no seu nome "eterno descanso", "paraíso” ou "céu", por exemplo. Como se as pessoas não tivessem a noção que, de lá, nunca regressam a casa. E como se estivessem todas tão entretidas que nunca se deprimissem ao ter consciência daquilo que se passa com elas, das raras visitas que têm numa semana ou da forma como, em função daquilo que esperariam da família, se sentem na mais corrosiva solidão.
Chega de "velhinhos". Daqueles de quem se fala como se estivessem, agora, a suicidar-se mais, nos lares. Como se, não sendo isso, quase mais nada acerca deles parecesse merecer a nossa preocupação. Como se isso, sim, fosse um alarme (e é!). Mas a depressão em que muitos vivem, todos os dias, nem por isso é o que os faz morrer, para a vida, quase em silêncio. Nem o modo como adequam o discurso a um certo tom de subserviência não fosse importante. Ou a sobremedicação pela qual muitos passam. Ou a forma como nem sempre são tratados como pessoas (mas como "velhinhos").
Não, o mais importante dos nossos actos para com os "velhinhos" não passa por não conseguirmos imaginar que, mais tarde ou mais cedo, seremos como eles. O que, sendo ainda muito centrado no nosso umbigo, já não seria mau. Mas pela dificuldade de nos colocarmos no lugar deles. De sentir com eles. E de (ao menos) imaginarmos o seu sofrimento. Eu acho que, em relação às pessoas mais velhas fazemos de conta que "está tudo bem" porque evitamos pensar nelas, nas omissões da nossa relação com elas e em nós no lugar delas. Às vezes, protege-nos imaginar que eles sejam “velhinhos”. Que pensam de forma entaramelada. Que eles e o Alzheimer têm uma relação de privilégio. E não pararmos para perguntar como se sentem confinados num corpo que manda neles. Confinados a uma esperança de vida sem direito a índices de felicidade. Confinados a espaços de onde não têm liberdade para sair. Sem direito ao seu dinheiro e (muitas vezes) ao seu património. Confinados. Confinados. E confinados!
Não; o mais importante dos nossos actos para com os "velhinhos" passa por não os considerarmos "velhinhos". Passa por reconhecer que têm direito à sua vida, à sua autonomia e aos nossos cuidados. Passa por reconhecermos que, num mundo ocidental mais envelhecido, as pessoas mais velhas não são, sobretudo, um custo acrescido. Mas um adicional de sabedoria que quase todos desprezamos.

Por tudo isto, chega de falarmos das pessoas mais velhas com se fossem "velhinhos"! Respeito! Sim?

                                        Eduardo Sá - psicólogo, psicanalista, professor e autor


Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

segunda-feira, 1 de junho de 2020

"AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 81



"Nós somos as nossas memórias !" - já o disse seguramente vezes sem conta, por aqui.
Parafraseio apenas a grande Fernanda Montenegro ...
E se as perdemos, ficaremos perdidos, porque as referências que sempre nos situam, esfumam-se e as coordenadas vão embora.

Hoje em dia, todos receamos mais ou menos acintosamente, a ameaça da enfermidade que dá pelo nome de Alzheimer.
É assim um pesadelo sempre pairante - até pela frequência da sua incidência - que se apropria da nossa mente, do nosso computador de bordo, e consequentemente das nossas vidas, escarnecendo, brincando de gato e rato, e deletando indiscriminadamente tudo o que guardávamos religiosamente no nosso disco rígido ... ou seja, tudo o que enforma e desenha a nossa vida pregressa.

Não parece depender da faixa etária.  Não parece depender de cuidados e prevenções não havidos.  Não parece escolher este ou aquele, por mais ou menos factores de risco a que se tenha exposto.
Não !  Ela chega silenciosamente, pé ante pé ... e já vai destruindo, trucidando, arrasando ...
Talvez nos apanhe distraídos nas primeiras incursões.  Sinais de alerta que talvez ( ou não ), tenham tido apenas a capacidade de nos ligar as antenas ...
Um esquecimentozinho aqui, outro ali ... quem não tem ?!   Isso não é nada !  Estamos todos cansados, desgastados ... quem não esquece ?!
A palavra que não vem, a frase que ficou "debaixo da língua" ... a associação de ideias que não ocorre ... o sentido que se perdeu ... a "branca" ... a maldita branca !  Mas sê-lo-à só isso ?!
Aquele corte mental ... aquela estrada de raciocínio que de repente despenca no vazio absoluto do pesadelo ... O que é isto ?  Quem é aquele ?
E o hiato ... a história interrompida ... o vazio !  O vazio da existência ... a não vida, perdida e largada algures, lá atrás, naquele túnel escurecido dos frangalhos da mente !...

Julgo ser mais ou menos assim.
E é dramático, é devastador, é inglório  tentar soprar a chama duma vela que continua insensível, bruxuleante apenas ... cuja combustão não reactiva por nada, nem por ninguém ... e se extingue aos poucos, dia após dia ...

Tenho casos próximos que me angustiam.  Tenho familiares e amigos mergulhados nesta teia destruidora e injusta de silêncios, cujas vidas encaixam na minha, cujas existências ajudam a entretecer a minha existência também ... e cujo espaço vazio, retirará a significância, amputará e incompletará mortalmente o que um dia houver a escrever-se ... sem retorno ou conserto !

Hoje, no meu dia 81, dia um da fase três do desconfinamento que caminha hesitante, assustado, asténico e pouco convicto ... e porque as memórias, tantas memórias  me vieram chegando nos temas musicais que me acompanharam caminhada fora ... "saltitei" peregrinante por entre as pessoas, as lembranças, os lugares, as palavras ditas, os risos largados, os sons, as histórias, as emoções, os afectos ... num bouquet interminável, colorido e cheiroso de tudo o que tem sido, afinal,  a minha Vida !

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar