quinta-feira, 25 de abril de 2024

" MEIO SÉCULO PASSADO ..."



Hoje, 25 de Abril de 2024 , fui impelida a escrever. 

Sinto um misto de sentimentos e emoções que não sei muito bem explicar. Um aperto no peito, uma angústia, uma espécie de tristeza, um vazio, um buraco aqui dentro ... uma esquisita sensação de orfandade ... talvez nem eu saiba porquê ...

Festeja-se no país uma data absolutamente histórica, uma data indelével ... "a data" ... a primordial, a determinante, a matriz de um Portugal que nos arrebatou, nos envolveu e nos ensinou a sonhar, naquela  madrugada de Abril, faz hoje exactamente meio século.
Convidaram-me pra festejar, pra recuar no tempo, pra me deixar ir pelo sonho, Avenida da Liberdade abaixo, no que, estou certa, estará a ser uma nova expressão de unidade, de partilha, de felicidade colectiva.  Afinal, é o que se sente quando uma onda nos envolve, nos mergulha em turbilhão, numa embriaguês que nos transporta adiante, que nos aturde e nos leva do riso à lágrima, só porque a emoção é arrebatadora demais ...
São expressões inquestionáveis, são manifestações de massas que não precisam de justificações.  São fenómenos que acontecem, irreprimíveis, proporcionais àquela felicidade avassaladora que nos toma, que nos faz falar com quem não conhecemos, dar o braço a quem está ao lado, gritar até que a voz se oiça, cantar até à exaustão.  É como se um "porre" nos tomasse, como se o cérebro parasse e apenas quiséssemos viver o momento antes de acordar outra vez !
Recordo o Maio de 74, a que assisti, então por impossibilidade pessoal, apenas das janelas.  Engraçado, que, ao longo do tempo sempre lastimei assim ter sido.
Desta vez, fui eu que declinei.  E sem que o lamente !

Já escrevi alguns textos sobre o 25 de Abril, aquele, o de 74, aquele em que tudo pareceu possível, em que tudo foi tão intenso, que as águas oníricas  rebentaram as comportas  fechadas de uma vida,  extravasaram e inundaram.   
Já poemei sobre a avalanche que me submergia, já senti vezes sem conta um nó de ferrolhos na garganta e a escorrência incontida rosto abaixo, de lágrimas de emoção.
Já acreditei tanto em tudo, como a menina que antevê a felicidade que há-de experimentar com a boneca que acabou de ganhar ...
Eu ainda choro se escuto o Hino, choro se os acordes da "Grândola, vila morena" se ouvem ... choro se vejo pela décima vez  as reportagens de Salgueiro Maia à frente das tropas revoltosas ... nessa madrugada distante. 

Mas mudei, mudei muito.  Endureci, insensibilizei-me, tornei-me indiferente.  Acho que a velhice e o pragmatismo com que comecei a encarar a vida, me estão a roubar a parte mais bonita de mim, a parte mais encantatória e interessante, que advinha, creio, da capacidade de sonhar e acreditar. Uma espécie de faceta infantil, ingénua e pura.
Seguramente sou eu que não estou bem.  A minha mãe até ao fim da vida sempre foi doce, crédula nas coisas e nas pessoas, tolerante com as situações e esforçada por entender e aceitar o mundo possível.
Emocionava-se facilmente, tinha o coração ao pé da boca, como "soi dizer-se".  De lágrima fácil, sempre preservou valores e sentimentos de que nunca abdicou. 
Hoje, perante o rememorar das imagens da Revolução dos Cravos, quantas lágrimas já teria vertido pelo seu país !!!
Mas a minha mãe era uma pessoa boa !...

Anamar

quinta-feira, 4 de abril de 2024

" E AS SAKURAS AINDA DORMIAM ... "


Hoje, dia 1 de Abril, decidi descer ao terreno e escrever alguma coisa, neste absurdo e ruidoso silêncio que tem povoado os meus últimos tempos. 
Hoje até é o Dia das Mentiras, reza a nossa tradição popular.  Ainda assim, resolvi tornar verdadeiro este meu desígnio.

Em parte, na vida tudo tem uma explicação.  Sempre há uma lógica que preside a qualquer situação, consigamos ou não descobri-la e entendê-la.
Desta feita, a minha ausência neste espaço ( pela primeira vez na vida, desde que em 2008 iniciei as minhas andanças como hipotética escritora por estas paragens, criando este blogue intimista, sem qualquer pretensão assumida que não fosse apenas pôr no papel os meus estados de alma ) ultrapassou o razoável e até o aceitável ... um mês inteiro totalmente em branco !
Nem eu mesma, se mo referissem como possível, acreditaria em tal despautério !

Ora bem, uma série de eventos, de coincidências, de acontecimentos, estão na base deste meu desligamento das lides literárias.
Tinha marcada para o meio do mês de Março, uma saída para o outro lado do mundo, nove fusos horários para oriente, ao país do sol nascente, no cumprimento de um sonho antigo, não só conhecer um país, um povo e uma cultura totalmente distintos de todos os que conhecemos aqui pelo nosso quintal, mas fazer o dois em um com esta viagem :  agregar a este desiderato, o sonho de poder desfrutar de um espectáculo que suspeito único no mundo ... a floração das sakuras, ou seja a floração inebriante e incomparável das cerejeiras, árvore endémica proliferante em todo o Japão.
Este acontecimento anual prevê-se acontecer por todo o país, entre meados de Março e Abril, com início variável de cidade para cidade de acordo com a sua localização geográfica.  Constitui, por assim dizer, um marco histórico que para os japoneses define como  o início da sua Primavera, sendo mesmo o dia 27 de Março, considerada a sua data oficial.
As famílias reúnem-se em parques e jardins, fazendo piqueniques debaixo das árvores, cuja floração não dura mais que uma semana a dez dias, após o que os espaços se atapetam das pétalas brancas e rosa numa imagem idílica e onírica.

Pois bem, adoeci algum tempo antes da partida, tendo sido inclusive colocada em risco a concretização da mesma.  Pela primeira vez, do que me lembro, uma afecção respiratória conseguiu levar-me à cama. 
Muita medicação tomada, com a agressividade terapêutica imposta na urgência do tratamento, desorganizou-me por completo todo o equilíbrio orgânico, fragilizando-me e retirando-me consequentemente as resistências.  Fui portanto para o Japão com as capacidades físicas a cinquenta por cento, o que obviamente, só por si, me prejudicou toda a dinâmica da viagem.
Tive que enfrentar uma rotina exigente e inteiramente diversa, um clima inesperado e excessivamente frio em relação ao previsível, uma alimentação completamente adversa para quem ainda por cima é dificilmente adaptável a novos cardápios, ritmos de sono igualmente complicados não só por curtos mas porque vividos no fuso oposto ao habitual ... em suma, as exigências de uma viagem em grupo, experienciada não nas melhores condições físicas.

E depois, há ainda a considerar, pelo menos assim o senti, a difícil gestão das expectativas, colocadas numa fasquia, confesso que elevada.
Sempre vivo o que me motiva, a duzentos por cento.  Só assim, a perseguição e a concretização dos desejos, se me justifica.
O Japão está como se sabe a muitas milhas de distância, a muitas horas de voo ... a muitos sonhos sonhados em noites de insónias ...

Mais que conhecer um país que me impressionou em organização, disciplina, inovação, capacidade laboral ... um país a sério na planificação e na concretização, descobri uma terra de espiritualidade, interioridade, delicadeza e contemplação. 
"Precisamos de muito pouco para sermos felizes !"  ou, "Temos muito mais do que precisamos !" ... valores difundidos pelo xintoísmo e reiterados pela filosofia budista, norteiam e orientam o povo japonês no trilho da mitologia em que o Céu e a mãe Terra são as principais divindades e em que o Homem está em permanente ligação com o culto e o respeito  pela natureza.

Ironia do destino ... embora globalmente faça um saldo positivo desta minha viagem, não pude concretizar o sonho primordial que ao país do sol nascente me levou : o deleite da visão de uma terra totalmente engalanada e pintada de branco e rosa, em abóbodas fascinantes de sakuras em flor.  Anormalmente fria esta época do ano, em que até mesmo a altitudes invulgarmente baixas apanhámos neve, motivou a que, contra o expectável, na generalidade as sakuras ostentassem apenas  borbotos fechados ao longo das ramagens ainda despidas, e não mais.  
Pontualmente algumas árvores já exibiam flores abertas, mas não é isso que torna icónico e único o espectáculo que está na base da demanda ao Japão, de turistas de todo o mundo, nesta época do ano ...
Portanto, a razão maior pela qual enfrentei não nas melhores condições esta aventura, frustrou-se completamente. 

O Monte Fuji, que também era para mim, um ponto alto da viagem e que vê-lo ou não, é perfeitamente aleatório, dependendo das condições atmosféricas com que sejamos presenteados, também esteve em risco, com a persistência duma cerração quase total.
Felizmente, depois de um dia de tempestade indescritível e chuva copiosa que nos roubara todas as esperanças, amanheceu uma nova madrugada, corroborando a certeza de que também no Japão, depois da tempestade vem a bonança !... 
Um dia claro, imaculado, de céu azul, sem uma nuvem no horizonte e iluminado por um sol radioso, desvendou-nos, manhã cedo, assim do nada, como se de um quase milagre se tratasse, a tão desejada montanha coberta de neve perpétua, grandiosa e altaneira ... o Monte Fuji, aos nossos olhos numa aparição compensatória, como se me pedisse desculpa pela tristeza com que regressei, de um país onde já não voltarei seguramente !...

Anamar