terça-feira, 29 de maio de 2018

" VINAGRE E AZEITE "



Tive duas filhas, distanciadas de quatro anos e meio.
Tão diferentes nas formas de ser, quanto o são fisicamente.
Uma é branca, de cabelo claro raiando o loiro, olhos verdes... pele de porcelana.
A outra, morena claro, cabelo escuro, grandes e expressivos olhos castanho amendoado ...
Ambas bonitas. Sou suspeita a dizê-lo, mas tenho olhos e isenção ao concluí-lo.  E já o foram mais, muito mais.
A vida também nelas vai deixando os sinais, inevitavelmente, implacavelmente. Ambas, já nos "entas" ... o tempo não perdoa !

Nunca se entenderam, nem em miúdas, quando as cumplicidades e as conivências contra o "jugo" paterno, determina alianças entre os adolescentes.  Eu costumava dizer, com o devido exagero, que se "odiavam"...
Uma era o cúmulo da desarrumação. A outra tinha brios de método. Quando a primeira já tinha esgotada a roupa limpa disponível e abandonada toda enrodilhada na cadeira do quarto ... recorria, sem permissão, à roupa da irmã, que obviamente a tinha, nas melhores condições de ser vestida ...
Resultado ... discussões épicas, gritarias, cabelos puxados, vergonhosos palavrões e dislates pela boca fora...
Cheguei a ter vizinhos a baterem no tecto, em reclamação do barulho ...
E  já matulonas, com idades para terem juízo ...

Os ciúmes que nunca deixaram de as minar e que perduram até hoje, mães de filhos que já são, sem idade para esses despautérios, agudizaram ao longo das vidas, o distanciamento entre elas, a animosidade, o afastamento, a suspeita sempre presente, do prejuízo de uma em benefício da outra ( por maior cuidado que, conhecendo a situação, eu  sempre tivesse tido nas decisões, nas partilhas,  feitas com uma doentia  preocupação de justeza e equidade ) ...  Os ciúmes, dizia, foram-nas separando na vida. Indiferentizaram-se mesmo.
Nunca tiveram linguagens comuns, valores próximos, interesses idênticos.  Sempre cada uma remou o bote, em caminhos de divergência e nunca de aproximação.
Não rejubilam com as alegrias uma da outra, não falam a mesma língua, não dividem dificuldades.  Não têm as cumplicidades típicas dos irmãos.  Não parecem ter nas veias o mesmo sangue a correr ...
E sobretudo não têm tolerância, capacidade de relativização e perdão.

Personalidades e maneiras de ser difíceis, muito difíceis, cada uma ao seu modo, inviabilizam  um futuro mais auspicioso...  Já não faço nenhuma fé em alterações positivas.
Têm bons fundos, cada uma de "per si". Norteiam-se por valores fundamentais. Guardam dentro de si o que nós, os pais, lhes transmitimos.  Guardam e respeitam .
São boas mães, excelentes e reconhecidas profissionais, ambas ocupando lugares de muita responsabilidade e exigência.
São generosas, como podem, para com quem delas precisa. São solidárias e prestativas.
O problema é entre elas ... sempre e só entre elas.

Recentemente, nos últimos anos, factores exógenos à relação precipitaram uma ruptura total.  Nenhuma cede, e se uma faz uma tentativa de zerar  as mágoas instaladas, a outra, não só não corresponde, dando  um  só  passo  que  fosse  nesse sentido, como  não se disponibiliza  de  coração, para  que isso seja  possível.    E as posições continuam extremadas !
Como tal, como duas "mulas empacadas", ninguém tem a magnanimidade de se transcender, e arrastam as vidas de costas voltadas.

Eu, arrasto a minha com um desgosto profundo que me acompanha e acompanhará ao além ...
A avó que recentemente nos deixou, levou consigo também essa mágoa.  E muitas vezes lhes pediu que se ultrapassassem, para ultrapassarem este estado de coisas.  Em vão !
Só restamos as três, nesta família ínfima que é a minha.  Um dia, restarão as duas irmãs perdidas nesse mundo de Deus ...

É algo muito doloroso que me atormenta.  É um castigo que sofro e não sei porquê !
Vinagre e azeite, dois seres saídos de mim, e que a  vida teima em continuar a separar !

Anamar

sexta-feira, 25 de maio de 2018

" MILAGRE "






Quando o gaio chegou ao meu jardim,
com ele a Primavera regressou ...
só porque p'ra  mim,
o gaio cantou !

E o sol reluziu
e as flores se engalanaram ..
só porque p'ra mim ele sorriu ...
E a minha cama perfumaram !
E o céu, que de azul  sempre é vestido
mais azul ainda ficou ...
e o meu coração entristecido,
alegre se tornou ...
só porque p'ra mim,
o gaio cantou !
O mar que conhecia o meu soluço
nas areias em que a onda rebentava ...
chamou p'ra mim o gaio que voava,
e com ele, a Primavera regressou ...
E então  renasci e acreditei
que o gaio cantara só p'ra mim ...
E que com todo o sonho que sonhara,
outra vez a minha vida  se enfeitara
com  braçadas de alfazema e de jasmim ...   
Espreitei-o poisado no alecrim,
vi-o descansar no lilazeiro,
apanhou uma rosa para mim
e margaridas brancas, do canteiro ...
                                                                       
Tudo se acendeu na Natureza,
tudo cantou à minha beira
como canta a água pura da ribeira ...
Quando o gaio chegou ao meu jardim !...

Anamar

" O TEMPO NÃO AJUDA ... "




O tempo está enfarruscado.  Como eu estou também ... no coração.
Há um desconforto latente e sentido, dentro de mim.

Acordei a sentir-me mais órfã do que nunca.  As saudades da minha mãe, daquela minha mãe, tomaram-me ... Não a de agora, a que relembro nas fotos e vídeos que foram sendo feitos nos últimos anos, como se com eles eu pudesse mantê-la um pouco viva junto de mim.  Como se sequer eles precisassem existir para que isso acontecesse ...
Da outra ... da que foi minha mãe toda a vida e a que em dias como hoje, me aninhava, me amparava e animava ...
Do meu pai também, embora vinte e seis anos já tenham transcorrido.  Dele, não tenho vídeos e as fotos teimam em esbater-se na poeira dos tempos que passam ...
Tenho-o à cabeceira da cama, numa foto a sépia .  Tinha então vinte anos, e aquele também não é bem o meu pai ...

Hoje acordei nostálgica, saudosa, profundamente entristecida.  E desamparada também.  A sentir que as escoras que me suportam estão frágeis.  As âncoras que me agarram, deixam baloiçar demais o meu barco, precariamente amarrado ao cais.

Procuro ir fechando portas, arrumando a vida, queimando as etapas que se prendem a toda a panóplia de coisas que há que resolver, e sempre ficam pendentes, quando o ser humano parte.
É espantoso o número de questões práticas que urgem ser tratadas, para tentar repor  um outro e novo equilíbrio nas nossas vidas ... na vida dos que por cá ainda ficam ...
Procuro por isso virar páginas, porque talvez depois, consiga uma maior paz ... um reequilíbrio, um reencontro com a interioridade da minha dor.   Talvez consiga centrar-me um pouco melhor na vida, prestando-lhe uma maior bonomia e aceitação .

Tudo ainda está estranho.  Irreal.
Prefiro pensá-la cuidando das sardinheiras, na casa dos passarinhos .  Prefiro "vê-la" arrastando as mangueiras pela relva, nos fins de tarde solarengos, para regar tudo quanto por lá estava.  E a maravilhar-se com cada nova flor desabrochada, com cada rebento verde que eclodira e garantia o milagre da Natureza.
Prefiro escutá-la a chamar o seu Gaspar, para que saísse do sol ... como se cachorro lá se importasse com sol !
Prefiro sabê-la a varrer toda a tijoleira, a calçada exterior mesmo, frente à casa, num afã alentejano de limpeza, manhã cedo, por cada dia ... todos os dias ...
Na casa onde, há cerca de um ano, quando a cabeça ainda a não atraiçoara de vez, me confidenciava : " nesta casa eu fui muito feliz ! "...

Quando perdemos um dos nossos progenitores, metade de nós parte também.  Quando o outro nos deixa, a orfandade é total, a desprotecção é completa, o buraco deixado no peito invalida-nos a vontade de viver.  E fica muito difícil continuar o trilho, ainda que essa seja a lei da vida.
A consciencialização de que tomámos lugar na "calha", fica clara aos nossos olhos.  E de repente, parece termos envelhecido irreversivelmente.
Dizem que a dor se abate à medida que a terra baixa.  É uma metáfora que nos simboliza a força do tempo na distanciação às coisas.
Desejaria que assim seja, e que ele tenha clemência e nos favoreça com essa graça.
Até lá, vou continuando por aqui ...

Anamar

quarta-feira, 23 de maio de 2018

" O DESTINO FINAL "





" Pulvis es, tu in pulverem reverteris :  Sois pó, e em pó vos haveis de converter "  - Sermão de Quarta Feira de Cinzas,

Padre António Vieira

Esta citação do Livro do Génesis caiu-me em cima, com toda a acutilância que a situação que atravesso no momento, mo impôs.
Não sei se será, como "soi dizer-se", muito ortodoxo trazer aqui, a este espaço, as palavras que escreverei.
Não sei se será adequado fazê-lo.  Se será sequer aceite pacificamente, por quem me ler ...
Acontece que este espaço é meu, e será legítimo que aqui coloque a expressão de sentimentos, de angústias, de inquietações, de dúvidas, interrogações que me assolam ... pelo simples facto que serão palavras minhas, sentimentos meus, emoções que experimento.
E aqui, como sabem, falo quase sempre de mim para mim, num solilóquio silencioso, numa espécie de "muro", não de lamentações, mas de reflexões.  Aqui, interiorizo-me mais e mais, numa concha de molusco que a cerra ... e exorciso fantasmas, questiono-me, reflicto e julgo-me.
Por isso, estando no recôndito da "minha casa", penso que me será reconhecido esse direito.

Fui hoje buscar as cinzas do meu pai, que aguardava há vinte e seis anos a partida da minha mãe para se juntar à sua companhia.
Neste momento detenho as cinzas de ambos, aguardando de igual forma, que lhes destine uma definitiva morada,
E o misto de sentimentos, de emoções, de desconforto e toda a panóplia de tantos outros sentires, definíveis ou não, que o ser humano possa vivenciar, me assaltam, me tomam, me dançam do coração para a razão e da razão para o coração, num baile que me atordoa, me confunde e me deixa com sensações estranhas e contraditórias, com que não consigo conviver em paz.

O pragmatismo obriga-me a repetir-me que o que ali está, não será o meu pai ou a minha mãe.
Obriga-me a repetir-me, com a formação química que possuo, que aquilo que ali está, é simplesmente o resultado da transformação da matéria orgânica em despojos inorgânicos de óxidos de cálcio, como resíduos minerais dos ossos, os únicos que de alguma forma "sobrevivem" às altíssimas temperaturas.
Obriga-me a repetir-me que o meu pai e a minha mãe estão e sempre estarão, confinados a dois lugares invioláveis : o meu coração e a minha memória.  E aí permanecerão para todo o sempre !

O pragmatismo ... certo, o pragmatismo ...

Porque depois, gera-se todo este misto de inexplicáveis contradições ... E tudo se baralha outra vez.
Os mortos vêm e adonam-se das suas cinzas, e já são outra vez o meu pai e a minha mãe que estão ali ... e chego a falar-lhes ... e olho os potes, incrédula ... como pode ser ... dois quilos de cinzas serem eles ?!  Como pode a vida deixar-nos apenas isto ?!...

E tudo é doentio, estranho e confuso.  E há uma inquietude e uma perturbação atroz, dentro de mim ...

Estarei a ficar louca  ?

Terei que urgentemente os devolver a um lugar de repouso.  A uma última morada.
Penso que só assim o meu coração ganhará paz e alívio.  E sossegará !

À terra ... porque da terra brotamos e misturados nela, reencontraremos a nossa origem primordial, a nossa matriz.
Irei deixá-los no lugar para mim escolhido, quando a minha hora chegar.
Ficaremos miscigenados com a terra, com as plantas, os bichos, olhando o céu, sentindo a chuva e o vento a lapidar os rochedos, pelos tempos que virão.  Vendo o sol a poisar naquele horizonte distante que não termina nunca.  Ouvindo o mar bramir lá em baixo, num repouso doce e embalador ... num destino final de muita paz, adormecidos no meio das cores, dos cheiros e dos sons da Natureza ... nossa mãe eterna !

Anamar

sexta-feira, 18 de maio de 2018

" NIGHT AND DAY "





Há pessoas que têm uma vida extremamente movimentada.
Em tudo o que vivenciam, nas coisas que lhes aconteceram, naquilo que experimentaram, não há um marasmo nem um cinzentismo em ocasião alguma.
Normalmente são pessoas que ao longo da vida conheceram muita gente, percorreram muitos caminhos, viveram as mais variadas situações e sempre têm histórias para contar.
Muitos contactos, muitos locais, muitas etapas da vida, desde a irreverência da juventude ao alcance da maturidade, fazem surpreendentes relatos, alguns mais caricatos que outros, normalmente sempre engraçados, na maioria .  Constituem memórias de  juventude, de tempos escolares, de eventos familiares, de tropa ou ainda profissionais.
Porque mesmo no meio da actividade profissional nem tudo é chato ou desencantatório ... sempre ocorrem acontecimentos que indelevelmente nos ficam, e que vale a pena recordar mais tarde.

Todos  conhecemos pessoas destas, e eu acho-lhes imensa piada, porque  são uns privilegiados animadores de tertúlia, sempre têm a propósito, uma boa história para divertir, um emocionante acontecimento p'ra narrar, sempre estão artilhados para puxar da cartola, um inesperado "coelho" interessantíssimo !
E então, se lhe acrescentarem mais uns "piclezitos" que sempre são tentados a fazer, ou o apimentarem q.b, é um espectáculo !...
Às vezes não se distingue bem onde termina a verdade e começa a fantasia ...

São pessoas com perfis extrovertidos, boas conversadoras, desinibidas e muito simpáticas.
São elas que forneceriam o material mais rico e interessante, para a escrita de memórias ... as suas memórias !

Eu não.
A minha vida, demasiado enquadrada, previsível, com poucas atribulações e desvios do trilho comum, quase sempre expectável dentro do figurino dito de "normalidade", não conseguiu  rechear-se com grande coisa que valesse a pena.
Nunca me relacionei com muita gente, sempre fui pacata, recatada, tímida mesmo, o que me impediu de ter diversificado e enriquecido o meu círculo de relações, por aí além.
Sou portanto, nesta perspectiva, uma pessoa desinteressante !...

Em tempos conheci a Marta.  Já lá vão uns anos.
Era na altura uma mulher só, simpática, cordial, sem ser excessiva nas relações.  Profissionalmente, reconhecida, parece.
Não chamava a atenção, era discreta, sem ser sobranceira tinha um certo requinte na forma como se apresentava. Era pacata, insuspeita.
Adivinhava-se-lhe por isso, uma das tais vidas " enquadradas, previsíveis, com poucas atribulações ou desvios do trilho ". Sem "mácula", digamos.
Por vezes perguntávamo-nos qual seria a real história da vida da Marta ... Inevitavelmente havia especulação e curiosidade ...
Mas não mais.

Entretanto, porque mudei de hábitos diários, perdi-lhe o rasto e deixei mesmo de a ver .

Anos depois, em conversa de café, a propósito não sei bem de quê, a personagem  Marta foi abordada.  Quem falava, parecia estar por dentro e saber o que dizia.  A charada desfez-se.

A Marta, tinha na verdade uma vida dupla.  Muito poucos o sabiam .
Inconformada com uma vivência que não a preenchia, com uma necessidade insaciável de emoção para se sentir viva, farta da tal existência cinzenta, enquadrada, convencional e tradicional, presa a grilhetas morais que a cerceavam, e como um vulcão que a queimava, desenvolveu em si um alter-ego que a transformava noutra personagem.
Os seus dias e as suas noites passaram a ser o avesso e o direito, de uma mulher que inconformada,  procurou o seu destino !

Resolvi apor o título de "Night and day " a este meu post.  Entende-se claramente porquê.
Afinal, ele narra uma  história,  na vida real, da personagem literariamente  fantasiada por Joseph Kessel, levada ao cinema em França em 1967 e interpretada magistralmente por Catherine Deneuve -  "Belle de Jour" !

Anamar

quinta-feira, 17 de maio de 2018

" O QUE SOMOS ... POR QUE SOMOS ? "





O ser humano é resiliente.
Talvez seja apenas uma questão de sobrevivência, não sei, mas sempre arranjamos estratégias para aligeirar cargas, para reganhar optimismos, para ultrapassar dificuldades e manter o ânimo imprescindível à vida.

A existência de cada um é moldada desde a nascença, por muitos e determinantes factores.
Desde logo o pacote genético que independe de nós, e que transportamos nos cromossomas que nos formam.
Essa herança genética enraíza-se lá para trás, numa transmissão continuada de sinais, de informação e características  que retrocedem gerações fora, muito além dos nossos progenitores, a antepassados tão recuados quanto impensável.
Como uma árvore que se alicerça na raíz, progride nos ramos, ascende à folhagem, engalana-se nas flores e multiplica-se pelos frutos, assim é o ser humano, cuja estrutura, poderemos dizer, ser semelhante.
Essa, a origem biológica da espécie.

Depois, o Homem integra-se numa família, numa tribo, numa comunidade, numa sociedade determinada.
E aí, toda a aprendizagem recolhida pelo "modus vivendi" dessas estruturas grupais, esculpe e delineia cada perfil, de "per si".
As culturas, que incluem linguagens, religiões e toda a panóplia de regras sociais, morais e antropológicas, os media e todos os instrumentos que conhecemos, manipulam e formatam cada ser .

Finalmente as relações inter-pessoais,  quase sempre difíceis, paradoxais e contraditórias tantas vezes, as relações emocionais e afectivas, particularmente sensíveis, continuam a burilar  as personalidades e a fazer de cada um, aquilo que ele é.
Essa aprendizagem incessante, estabelece balizas, dá limites, socializa em suma, o ser vivo.  Fornece-lhe aprendizagens, transfere-lhe  competências, como sejam o diálogo, a troca de opiniões, a dialéctica, de preferência construtiva, no sentido de uma valorização pessoal e social, no sentido da construção de uma estrutura sólida.
Felizmente que as imposições biológicas conflituam frequentemente com a bagagem cultural de cada indivíduo, conferindo-lhe a liberdade de não ser liminarmente reduzido a robot.
Nessa dicotomia, cada ser reganha a capacidade de livremente, ser aquilo que escolhe ser.

Daí a diversidade humana.
Daí advém a sua forma e a sua  capacidade para enfrentar a realidade.

É portanto com toda esta panóplia de "armas", com toda esta diversificada bagagem, que o Homem se faz à estrada, lutando pela sua sobrevivência na base de um equilíbrio, quantas vezes periclitante e precário.
E aí a resiliência, o poder de aceitação, a superação, a coragem e a determinação, são as nossas mais valias, na luta do dia a dia.
Quem as tem, terá seguramente uma visão da vida menos amarga, mais despreocupada, optimista e "soft".
Quem as tem, é um resistente e consequentemente, um sobrevivente nesta saga que é o estarmos vivos !...

Anamar

quarta-feira, 16 de maio de 2018

" SILÊNCIO "






E desceu sobre mim a quietude
um silêncio de dia inacabado ...
sonho que em mim foi amputado
quando a noite me envolveu em negritude ...
Sonho que sonhei em doce jura
Sonho desenhado à cabeceira
Trazido e deixado à minha beira
por aquela ave que o ninho já procura
E a noite que caminha e já me abraça,
solta as lágrimas desta mágoa tão sentida,
por aquele sonho ser inacabado
e eu nele ter acreditado
como se ele viesse devolver-me a vida ...
E agora o que me resta é o caminho
sem flores e sombra a ladear ...
Uma estrada em que sigo tão sozinho,
onde nem as aves vão cantar
E é longa a caminhada,  já fechou o dia
sem sol a por, sem horizonte ...
A garganta, já sedenta espera a fonte
que lhe mitigue a dor e a agonia
A morte  por aqui já ronda...
Morre-se um pouco, quando a esperança vai ...
Vai-se morrendo quando o amor se esvai     
e nos deixa, como à praia, a onda ...

Anamar

quarta-feira, 9 de maio de 2018

" UMA PALAVRA DE GRATIDÃO - 60000 entradas "





                     60000 ACESSOS !!!!!!


Amigos de todas as horas, amigos que me lêem, que vêm espreitar com alguma sistematicidade, os meus escritos, que já fazem parte da minha vida também ... são para vocês estas palavras de gratidão.

60000 entradas neste meu blogue que não tem outras pretensões que não sejam falar comigo mesma, num diálogo mudo, introspectivo, sobre tudo um pouco que me mexe, me preenche, me alegra ou me angustia ...

sobre pedaços da minha vida, dos meus sonhos, realizações e angústias ... daquela que eu sou ...

onde venho contar as minhas histórias ...

onde coloco os meus versos, quando a maré é de sonho ou memória ...

60000 entradas, não é pouca coisa !

E por isso vos agradeço de coração todo o  tempo que me disponibilizam, numa cadeia de afecto que passa pela vossa presença, pelo facto de vos sentir desse lado, ainda que não comentem, nada digam ...

É também isso que me incentiva, me anima, estimula a continuar por aqui, ainda que nos últimos tempos esteja a escrever muito menos que em anos recuados.  Fruto da vida e dos seus sobressaltos e solavancos !...

Para cada um de vocês, o meu OBRIGADA, e uma flor perfumada do jardim  do meu coração !

Anamar

terça-feira, 8 de maio de 2018

" DEVIA SER PROIBIDO ... "


                                                                               


Quando começamos a fazer balanços, é complicado.
Ontem, ao fim do dia, a despedida de mais uma colega de profissão, amiga também, exactamente da minha idade.
Muitos, fomos apanhados de surpresa pela notícia.  Doença prolongada, de que poucos sabiam ela padecer, não havia contudo, muito tempo.
A mesma capela mortuária onde há três semanas me despedi da minha mãe , só que esta mulher tinha menos trinta anos que a minha mãe ...

Aquela coisa de sempre : o reencontro de rostos que já não se viam há tempo, porque os aposentados, erradamente deixam de se encontrar.  Parece não haver vagar, não caber no calendário, não terem espaço numa agenda que deveria ser, obviamente liberta.  Mas não !
Nestas circunstâncias rumamos todos, fazemo-nos presentes, como se nos tivéssemos separado ontem.
São as flores, o aperto na alma, a penalização no olhar e no coração, as palavras de conforto aos familiares ... os momentos de recolhimento frente à serenidade de quem parecia apenas dormir.
E depois, depois ficamos a falar uns com os outros, como se em intervalo na sala dos professores, estivéssemos.
Lembramos coisas, recordamos pessoas, fazemos estatística dos que já nos antecederam ( e foram já tantos ! ), sabemos de outros tantos que ameaçam estar na calha ... Terá sido o amianto que toda a vida nos cobriu, sobre os pavilhões ?  Havia de se fazer um levantamento do número dos que já partiram ... reféns da maldita doença ...
Falamos dos filhos .  Tem-los cá ?  Porque muitos, mas mesmo muitos, os têm em países estrangeiros, na busca de segurança e futuro mais digno.
Até porque, ao longo da vida permutámos os nossos filhos com os dos colegas, no ofício do magistério.  Frequentaram a mesma escola, a nossa escola.  Conhecíamo-los bem.
Pergunta-se pelos netos.  Mostram-se fotos, vídeos ...  Oh, tão fofinha !  Parecida com a mãe.  Dá-lhe um beijinho.  Sempre foi uma aluna impecável e trabalhadora ...

E regressamos a casa.  Mais pobres.  Mais tristes ...
O vento cá fora, desabrido apesar de Primavera, ainda nos desconforta mais.  O coração apertado, contrito.
Nem a piada de recurso daquele colega que anunciava ter resolvido não comparecer mais aos funerais dos colegas, como protesto por eles também não comparecerem ao seu próprio, nos amenizou o estado de espírito !

E quando nos despedimos, sempre a mesma frase repetida : até à próxima.  Que não seja pelo mesmo motivo !...

É assim a vida !
Dizia a minha mãe : " na cadeia e no hospital é que se reconhecem os amigos ! "
Eu acrescentaria ... e na partida também !...

Amanhã haverá sol.  O céu estará azul, os pássaros irão cantar.
Será Primavera mesmo, em toda a sua exuberância.  O verde, as flores, toda a Natureza estará pujante e plena.  Haverá risos, será leve a vida !...

Por isso, devia ser proibido morrer-se !...

Anamar

segunda-feira, 7 de maio de 2018

" O PRIVILÉGIO SUPREMO "




Mais um primeiro domingo de Maio ...
Para as gerações actuais, mais um Dia da Mãe.  Para mim e para os da minha geração, acredito que um dia atípico, ao qual nunca aderi.  Desde os bancos da escola, o dia que homenageava as mães, sempre foi o 8 de Dezembro, feriado religioso que venera Nossa Senhora da Conceição, dita a Padroeira de Portugal, mãe de todos nós ...

Bem pequenita, já rabiscava uns desenhos numa folha de papel, que a minha professora dobrava cuidadosamente, engendrando um cartãozinho de felicitações para orgulhosamente lhe oferecer.
Curiosamente, ainda há pouco, ao mexer nos guardados da minha mãe, na casa que estou a desfazer, me encontrei com muitos destes postaizinhos, arquivados religiosamente por ela ... como se de verdadeiros tesouros se tratasse ...
E tantos anos já passaram !...

Por isso  ontem, por defesa pessoal minha, três semanas decorridas sobre a partida da minha mãe, procurei,  por maioria de razão, esquecer o dia que actualmente se comemorava ...

Mãe não tem dia, nem mês ... Mãe é todos os dias, desde que lançámos ao mundo uma criaturinha nascida e formada dentro de nós... com todo o amor com que a concebemos .
E desde então, sê-lo, é uma tarefa "non stop", para o bem e para o mal, em jornada permanente.
Sê-lo, é o maior privilégio de que um ser humano pode usufruir.  E esse privilégio é a bênção que só uma mulher pode experimentar !

A minha mãe foi, de facto, um ser ímpar.  Talvez todos digamos exactamente isto, àcerca da sua própria mãe. Admito-o.
Mas, comparo muitas vezes a pessoa que ela era, e a pessoa imperfeita e incompleta que eu sou.
Nunca conheci ninguém tão generoso, abnegado, disponível, com um espírito de sacrifício total em prol de  todos da pequena família que nós somos, fosse eu, sua única filha, fossem as netas, fossem os bisnetos ...
Nunca conheci ninguém que nos devotasse um amor tão imenso e incondicional, esquecendo-se de si própria e vivendo sempre para todos nós.
Nunca conheci ninguém  tão de bem com a vida, como ela, sem exigências, sempre aceitando o que aquela  lhe destinava.
Sempre viveu a felicidade e as alegrias, as realizações e os sucessos de todos.  Sempre se envolveu e esteve presente, nos momentos mais difíceis na vida de cada um.
Foi a pessoa que sempre, mesmo nos últimos tempos, quando a cabeça já não era clara a discernir o que a rodeava, mais se preocupava comigo ... com a minha saúde e as minhas inquietações ... E sempre me dizia : " a mim não escondes nada. Conheço-te desde pequenina"...
Eu sorria e completava : "desde que nasci, não é, mãe ?"...

E assim viveu  feliz, toda a sua longa vida, sentindo-se sempre um ser abençoado !

Ainda que não estando já fisicamente perto de nós, o desígnio imenso que o destino lhe imputou, jamais terminará.  Onde quer que esteja, continuará a sorrir e certamente velará por todos os que amou e ainda por cá continuam ...

Mãe, é  isto mesmo !!!...

Anamar

sexta-feira, 4 de maio de 2018

" A FOTO "





Normalmente nas minhas escritas adiciono uma foto, um vídeo, enfim, algo com que acho valorizar o que escrevo.
Desta feita, escrevo sobre uma foto ... esta, exactamente esta !

Tem esta foto, gratas memórias para mim.  Digamos, que memórias gratas por inusitadas, por incomuns, por engraçadas ... memórias vivas.
Remontam a um período da minha vida sui-generis, já lá vão alguns, razoáveis anos. 
Um período em que me pus em pé, depois de tormentas atravessadas.  Um período de reabilitação e ressurreição, depois de uma turbulência sem tamanho.  Um período de me repintar, depois de um cinzentismo nebuloso e insípido  me ter tomado, parecendo não haver mais luz ou cor à minha espera.

Talvez por isso, ou mesmo por isso, escolhi para mim, na altura,  como fetiche, esta imagem espantosa, de plenitude, esperança, vida, sonho, liberdade ... Tudo o que eu precisava desencavar então, do buraco fundo onde me encontrava.

Tudo isso eu precisava voltar a vivenciar .  Tudo isso eu agarrava então, com toda a força preênsil dos meus braços, com toda a ânsia das minhas mãos, com toda a fé do meu coração.
E fi-lo com uma "fome" de vida que urgia voltar a sentir.
Fi-lo, com uma entrega de alma que me animava o âmago.
Fi-lo, num mergulho alucinado, de cima da falésia, não importando se me salvava ou me perdia, não importando se encontrava rocha ou tapete de flores à minha espera.
Era preciso que me sentisse viva, apenas !

Atravessei um tempo estranho, incomum, desconhecido, insuspeito.  Saltei baias, desafiei limites, enjeitei convenções.  Tapei os olhos, os ouvidos e a boca e deixei-me ir, na doçura do bote à deriva nas águas mansas de um riacho sereno.
Fiz descobertas, medi-me, tomei-me o pulso, alucinei-me talvez ...  saboreei o sal, o doce e o amargo.
E sinto-me muito grata por isso.
Fiz uma travessia no desconhecido e sinto-me abençoada por o ter feito.  Descobri ilhas inóspitas, galguei montanhas, desci ravinas, percorri desertos ...  Voei com o condor, senhor dos rochedos. Planei com as gaivotas, no auge de liberdades plenas. Tornei-me muitas, sendo uma só.  Senti-me sufocada de emoções.  Desafiei o escuro com o sol a pino ...

E saí-me bem.  De tudo me saí bem.  Mais feliz, mais mulher, mais eu !

E sinto-me privilegiada, incomensuravelmente privilegiada, porque posso olhar para trás e sorrir docemente, cúmplice com a vida que foi generosa comigo e me mostrou valer a pena vivê-la, sempre, porque tudo é sempre surpreendentemente ENORME, pelo facto de nos sentirmos vivos !

Anamar

quinta-feira, 3 de maio de 2018

" INGENUIDADE "





Uma porta, duas janelas
era o tamanho do sonho
que sonhei, sonhei, sonhei ...
até que um dia cansei
de vê-las sempre cerradas ...
E havia uma cancela,
malmequeres, um lilaseiro,
e o mar bramia por perto
em veredas já cansadas
Do outro lado, era a serra
com o vento em desalinho,
E as arcas guardavam sonhos
por entre os lençóis de linho
As tamareiras selvagens
conheciam os segredos
que lhes confiara um dia ...
E as trepadeiras subiam
ao alto, p'la cantaria
As juras que de amor fiz,
p'ra todo o sempre as selei ...   
E do peito onde as guardei,
roubou-mas a ventania !

Mas mataram-me este sonho
nos sobressaltos da vida ...
Sumiu como as andorinhas
que partem em despedida
As gaivotas já não pousam
nas traves dessa cancela,
e a porta e as janelas
têm o tamanho da dor,
têm o tamanho do amor
que viver ali, sonhei ..
E as lágrimas que hoje correm
em desnorte, pelo monte,
fecharam-me o horizonte,
porque do sonho, acordei !...

Anamar

quarta-feira, 2 de maio de 2018

" ENQUANTO O TEMPO PASSA ... "




Enquanto o tempo passa !...

Acordei cedo, o que não é normal em mim e fiquei no quente do édredon a olhar o tecto do quarto.
Percebia o cinzento lá fora, pois já me acostumei a adivinhar a cara do dia, pela claridade que me entra da janela que sempre fica aberta.
O tecto do quarto não tem nada de especial, juro, mas tornou-se inesperadamente no écran gigante por onde se foi desenrolando uma película fantástica : a história da minha vida ao longo do ano que mediou entre 2 de Maio de 2017 e este 2 de Maio que me amanheceu.
Um ano exacto da minha história, repleto de tantos acontecimentos que o tornaram transbordante ...

E porquê hoje ?  E porquê esta referência particular ?

Faz exactamente um ano que completei a última das três tarefas "exigíveis" ao ser humano antes de partir : tendo já plantado uma árvore, tendo já feito um filho, publiquei neste dia, um livro de poesia, sonho enorme que supunha irrealizável, e  me acompanhara desde menina.
Mas muito para além disso, e mais gratificante que isso, se o posso afirmar, foi a felicidade de, por esse motivo, ter reunido à minha volta os meus familiares próximos, os meus amigos, os expectáveis e os improváveis, os de perto e os de longe e ainda ter reencontrado, com uma alegria ímpar, amigas que deixara mais de cinquenta anos atrás, lá longe, no meu Alentejo, e que quiseram estar presentes, tornando o meu dia num misto único de sentimentos, numa perfeição total de estados de alma, numa completude sem igual, e que eu sei lá se merecia ?!...
Foi um dia imenso, que jamais terminará dentro de mim.  Um dia em que a festa foi linda, em que os risos e as lágrimas se misturaram.  Um dia em que as emoções me sufocavam e em que eu fui de facto, feliz !

Mas se este evento foi o expoente máximo  do júbilo, da alegria, da realização pessoal,  terei que assinalar como seu inverso, um dos dias mais tristes, sombrios e gélidos da minha existência : o passado próximo dia 11 de Abril, dia em que a minha mãe me deixou.  Esse dia, em que a orfandade absoluta me tomou, em que a escuridão uma outra vez desceu à minha vida, em que muita coisa deixou de fazer sentido, pintou de negro a minha alma e o meu coração, duma forma irremediável !
Obviamente estou a tentar reunir os cacos, a consertar os farrapos, porque o tempo faz-se todos os dias e a vida tem de continuar o seu trilho.

Olhando, pensando, lembrando, reflectindo exactamente sobre o meu percurso, neste deixar voar o pensamento, percebi ainda tantos altos e baixos, tantos escolhos e baixios em que tropecei nesta escorrência temporal.  Perdas doídas e sangrantes, com cicatrizes fundas cravadas indelevelmente no coração.  Voltas e reviravoltas inesperadas e injustas com que o destino nos experimenta e põe à prova, sem complacência ou piedade. Mágoas que se eternizam e parecem vir p'ra ficar. Incompreensões e incapacidades. Portas que se fecham e janelas que não se abrem.  Tempestades sem bonança, quando a exaustão nos joga ao chão ... Enfim ... talvez, simplesmente, vida !

Ganhos também, seguramente.  Nesgas de azul no meio da negritude.  Lufadas de ar, na sufocação da desistência.  Anjos que descem para nos afofar o travesseiro, ou nos aparar na queda iminente.  Braços que acolhem, amparam e embalam.
Sempre os afectos a atapetarem-nos o caminho . Sempre os bem-quereres a mostrarem-nos que talvez valha a pena acordar por cada dia, levantar e encarar o amanhã ... porque teremos por perto as escoras, as âncoras  e amarras  no molhe da nossa vida, mesmo quando o mar se agiganta e as marés alterosas parecem engolir-nos o horizonte !

Depois, lembrei outro dia  de uma alegria sem tamanho, de uma felicidade sem dimensão : o dia 15 de Junho, dia que a Teresa escolheu p'ra chegar a este mundo.
O meu quarto neto, a menina linda que ela é, veio mostrar-me que as nossas existências são afinal de perdas e ganhos, de partidas e chegadas, de dores e felicidade, neste caminhar adiante, sempre adiante... e que depois de nós ficarão os que transportam pedaços de nós em si, à revelia de vontades ou desejos.
Acredito que a Teresa tenha sido uma bênção que desceu à minha vida também, uma luz acesa no ocaso que me aguarda, tenha sido a acalmia que urgia, nos vendavais do destino, e que seja mais uma razão para que eu continue a alimentar a esperança e a confiança no amanhã ... apesar deste tempo implacavelmente célere que ainda nos surpreende, como onda gigante  que varre as nossas vidas !...

Anamar