terça-feira, 3 de outubro de 2023

" E AFINAL ESTOU VIVA !..."


Moro ao lado do Centro de Saúde da cidade que habito.  E moro aqui fará cinquenta anos no ano vindouro.
Ao longo dos tempos, não muitas vezes, devo convir, recorri ao mesmo, quase sempre exclusivamente para a obtenção de receituário, prescrições de análises ou exames de rotina, pouco mais.
Sempre fui absolutamente saudável e até hoje, tirando uns comprimidecos para o meu amigo colesterol não se armar "em pintas", nada tomo a nível de químicos.
Acresce que, sendo beneficiária da ADSE, por questões de praticidade, já que os Centros de Saúde funcionam como bem se sabe, prefiro quase sempre pagar do meu bolso a parte que me cabe e procurar médicos com ou até sem convenção com este subsistema de saúde. 
A médica de família que então tinha, era-o também dos meus pais, pois havia conseguido que o seu agregado familiar  fosse anexado ao meu, já que haviam perdido a respectiva médica na unidade da freguesia a que pertenciam, por esta se ter afastado.  
Assim, com o avanço dos anos e a inerente dificuldade de locomoção, sobretudo quando o meu pai acamou, a Dra.Dulce passou a responder também pelo apoio de que necessitavam.
Era o tempo de, apesar de eu viver, como poderá dizer-se "porta com porta" com o "meu" Centro de Saúde, eu descer frequentemente pelas cinco da manhã para conseguir a bendita senha para o que precisava para os meus pais.

A Dra. Dulce foi posteriormente embora também, e o nosso agregado familiar iria com ela para o novo centro para onde foi, numa freguesia ainda bem mais longe de casa, o que pelas razões que expus, inviabilizava mais ainda a situação.  Ficámos então sem médico de família, entregues em cada circunstância, aos chamados médicos de recurso..
Tal situação nunca mais se resolveu apesar de n exposições que fiz, de n reuniões que tive com a responsável pelo Centro, com a Assistente Social, e todas as estruturas responsáveis, e em que solicitava que pelo menos os meus pais pudessem ser apoiados duma forma estável por um médico fixo atribuído.  Lembro que o meu pai estava acamado, algaliado, com ameaça de escaras consequência da situação, carecendo de tratamentos de enfermagem ao domicílio, tinha 90 anos e a minha mãe, idosa, também com limitações motoras, com necessidade de acompanhamento na área da cardiologia e outras patologias associadas à idade, precisariam de estabilidade e segurança na área da saúde.
Não foi possível reverter-se a situação.

Os meus pais entretanto partiram, a minha mãe viveu os dois últimos anos na casa da minha filha, que sendo enfermeira, chamou a si toda a logística e apoio que em excelência prestou à avó até falecer.
Também já aqui não residia, e eu, cansada de todo este filme, simplesmente desliguei.

Em Outubro de 2018, ano da morte da minha mãe, resolvi reanalisar a minha situação no SNS e reactivei a minha inscrição.  Foi-me informado já ter atribuída uma médica de família, mas inexplicavelmente, pertencente a uma Unidade de Saúde Familiar noutra freguesia a alguns quilómetros de casa.
Ainda assim, resolvi fazer a marcação de uma consulta, via informática, pelo site do SNS, a fim de estabelecer um primeiro contacto com a médica referida, para uma primeira abordagem.  Foi-me informado não dispor a mesma de horário na especialidade requerida, obviamente de clínica geral.
Meteu-se todo este período conturbado de antes e pós Covid, e não sendo nada urgente, voltei a silenciar deste lado.

Há cerca de um mês acedi de novo ao site e voltei a fazer uma nova tentativa de marcação de consulta para a Doutora que não tenho sequer o grato prazer de conhecer e que já terá pensado ser eu por certo, um espécime extinto ...😁😁

Ontem, para felicidade geral, constatei que afinal ... estou ainda viva ... ainda sou um dos números da Segurança Social, e tenho FINALMENTE uma consulta marcada, pasme-se !!!

Ora bem, tamanha emoção trouxe-me à escrita, claro, porque trata-se duma conquista mais importante que Aljubarrota, ou até mesmo o Buçaco ou S.Mamede, para começar pelo princípio !!...

E estou tão, mas tão emocionada, tão mas tão agradecida, tão mas tão feliz e realizada, por ver como o SNS me tratou tão bem ... marcando-me no fim deste folhetim, a auspiciada consulta ... só que, para o dia 1 de Março de 2024 ... só cinco mesinhos depois ... 
Mas também, o que são isto, 5 mesinhos nos tempos que correm, e na vida de uma pessoa, Dr. Pizarro  ??!!😂😂😂

A ver se não morro até lá !!!

Anamar

domingo, 1 de outubro de 2023

" O CORDÃO UMBILICAL "

 




Não se pode viver a vida dos filhos ... não se pode viver a vida pelos filhos. 
O bendito cordão que cortamos à nascença, sempre vai marcando presença ao longo da vida, estou convicta que, verdadeiramente, na figura materna apenas.
Ouve-se dizer a propósito da relação entre pais e filhos, "mãe é mãe e pai é pai", exactamente reiterando essa ligação simbiótica e inapagável, tatuada pela biologia humana ao longo dos nove meses de gestação.
E tudo aquilo que partilhámos, essa chama vital que assegura a vida da criança até que fisicamente se separa da mãe, vai coexistir a vida toda transmitida por tantos outros cordões, tantas outros laços, tantas outras formas quase irracionalmente inexplicáveis.
A necessidade quase absurda de uma protecção constante que uma mãe sente em relação ao seu filho, o imperativo da sua presença cujas "asas" o defenderiam de todos os riscos, a ânsia de o poupar a todas as adversidades possíveis, chegam, em casos extremos roçando o patológico, a serem doentios.
Na natureza, as mães são defensoras e protectoras inabaláveis das suas crias.  
Assisti há poucos dias na minha viagem ao Quénia, à fúria de um bando de elefantes, encabeçado pela progenitora, na protecção de uma cria que estava ferida.
Racional ou apenas por razões biológicas, contra tudo e contra todos, viramos feras na protecção das nossas ... 

Hoje em dia, a desejada e desejável autonomia dos jovens em relação à casa paterna está objectivamente comprometida, consequência, além de outros factores sociais vividos neste momento, da crise que sobre todos se abate ... na qual ressalta a incapacidade material de se alcançar o legitimo direito à habitação.
É insustentável conseguir-se por aluguer ou compra, um espaço minimamente digno, ao alcance da maioria.  Se se faz face às despesas alimentares e outras do quotidiano, não se consegue de nenhuma forma ter acesso a uma renda especulativa ou à prestação bancária de um empréstimo, ainda que o mesmo tivesse sido alcançado.
Assim, é absolutamente dramático o que muitas e muitas pessoas singulares, ou famílias constituídas, estão a sentir, com o estrangulamento dos seus futuros.
As manifestações sociais multiplicam-se, as vidas hipotecam-se, não se seguem estudos superiores porque não há alojamentos compatíveis para os estudantes que da província acedem às Faculdades ... da noite para o dia, encurraladas e sufocadas, as pessoas caem na rua ...
Há dias, subindo a Av. Almirante Reis em Lisboa, deparei-me, para angústia minha, com sete ou oito tendas, só no espaço de um quarteirão, sob as arcadas de um prédio. Um verdadeiro acampamento em plena capital !... 
A tal, nunca ao longo das minhas já consideráveis décadas de vida, tinha assistido !
As televisões reportam situações idênticas, de pessoas que embora com empregos e respectivas remunerações, não conseguem suportar minimamente as responsabilidades diárias, e por isso dividem com outras em iguais condições, tendas aninhadas em parques ou espaços sem condições dignas de vida ... até que as deixem e não as escorracem para outros poisos. 
É o fim da linha pra muitos nossos concidadãos, é o que lhes sobrou num Estado e numa estrutura social que os marginaliza, os exclui ... porque simplesmente parece não haver mais caminho para andar.
Mães que acabam por entregar os filhos à guarda de instituições, porque o lugar de uma criança não pode ser uma tenda no meio duma rua ...

E depois há também os outros ... os que são despejados do caudal inestancável dos canais de emigração desde os países mais sofridos, e que buscam, numa Europa promissora, o sonho de um futuro, uma vida, subsistência, alguma dignidade e alguma paz ...
Vertidos das guerras, da violência, do vazio de horizontes, do abandono, da fome e da miséria, mais sós do que nunca, entregues à sua sorte, à exploração, às máfias e ao sofrimento, empilham-se às dezenas enlatados numa precariedade inimaginável, em quartos miseráveis, imundos, onde o sistema da "cama quente" é frequentemente o que têm ...
E são de facto uma fauna que pulula nas nossas cidades, bem aqui ao nosso lado, em olhares que a esperança há muito abandonou ...

Também  eles  têm  ou  tiveram  mães ... lá  longe,  numa  terra  que  já  só  deve  ser  uma  memória ...

Como aquele rapaz de vinte e oito anos, silencioso, de olhos tristes e vazios, que pediu para comer mas que teve vergonha de entrar no supermercado comigo, e preferiu esperar na rua.  O seu país, a família, a dor e a guerra, lá ... A dignidade também ...  
Cá, até o trabalho que tinha lhe falhou há um mês ... Tinha fome ...

A angústia é avassaladora.  Sabemos o hoje, nunca o amanhã foi tão incerto ! O viver tornou-se um pesadelo, e mesmo investidas do "super poder" milagroso das mães ... não podemos viver a vida dos filhos ... nem viver a dureza da existência pelos filhos !!...

Anamar