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quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

" REIS EM TEMPOS DE COVID ..."

 


Normalmente era uma noite gélida.  Era uma daquelas noites típicas do Alentejo interior, nestes Janeiros fim de festas, quando o Natal já fora, o Novo Ano despertara e a vida se preparava para retomar a normalidade.

Breve, o regresso a Évora onde a casa de sempre me esperava, deixaria para trás a mágica quadra que se atravessara.  As aulas do segundo período já acenavam, deliberando o fim das férias passadas ano após ano, em casa dos avós.
Já fora a Missa do Galo, já foram os cantares ao Menino em volta do braseiro sempre aceso naquela chaminé de parede a parede, já fora a consoada com os tios, os primos, os avós, os pais ... e sempre mais algum que aparecia, já foram todas as delícias da avó e das tias prendadas que se juntavam na confecção de tudo o que se esperara o ano inteiro ... Já fora o sapatinho na chaminé e toda a magia em torno da chegada, pela madrugada  ( sempre a horas proibidas à criançada ), do Menino Jesus que haveria de, generosamente, trazer uns chocolatinhos e uma roupa para estrear no dia ... 
Que mais, o Menino não dava e Pai Natal não existia então ...
Árvore também não, e era junto aos sapatos deixados no borralho que os presentes haveriam de se buscar na manhã seguinte !

A noite de Reis, a noite das Janeiras pautava-se quase sempre por um céu bem escuro e limpo, pontilhado por miríades de estrelinhas que piscavam lá por cima.  Há mais de sessenta anos, a pequena vila de Redondo, pouco iluminada, preparava-se para escutar os cantares dos grupos, pelas ruas, de porta em porta, lembrando que os Reis Magos haviam chegado a Belém, também eles obsequiando Jesus pequenino, com os simbólicos ouro, incenso e mirra.
Eu sempre jantava a correr, na ânsia da chegada das outras crianças para que, com casacos bem quentes, luvas, gorros e cachecóis, demandássemos, sacos na mão, as portas vizinhas, saudando os que lá moravam.  Pediam-se as janeiras ... doces, nozes, frutos  e outros acepipes que por bem nos quisessem dar.  
"Estas casas são bem altas e bem altas que elas são, aos senhores que moram nelas, Deus lhes dê a salvação !"  "Oh senhora lavradora, raminho de salsa crua, aos pés da sua cama, nasce o sol  e põe-se a lua" "Esta casa está caiada, esta rua está varrida, moradores que nela moram, Deus lhes dê anos de vida !"
Lembro bem a euforia da corrida de casa em casa, bochechas afogueadas, nem o frio sentíamos, tal o entusiasmo , tal a compenetração !
E havia aqueles que nada davam e se enfastiavam do incómodo. A criançada então cantava, ameaçando  : " Oh senhora lavradora, tem olhos de marrã morta, se não nos vier dar a esmola vamos-lhe cagar à porta !"...

E era assim !
Tudo já foi, quase todos já partiram.  Poucos já lembram.  À maioria não faz sentido, porque o desconhecem, porque o não viveram, porque talvez o não entendam ...
Foram outros tempos, foi outra vida, fomos nós há sessenta anos atrás !
A quem pode interessar ?!...

Ainda assim, nestes tempos que vivemos, gostei de recuar, gostei de lembrar ... voltei a sonhar um pouco !
E a noite está também gélida, as estrelas não se vêem ofuscadas pelas luzes da cidade ... é de novo 6 de Janeiro ... é de novo Dia de Reis !!!

Anamar

domingo, 14 de fevereiro de 2021

" NEM SÓ DE DESGRAÇAS VIVE O HOMEM ! "

 

12 - 02 - 2021


Como sabem, este meu espaço integrou desde sempre,  postagens variadas, indexadas a várias categorias ou etiquetas.

E uma delas chama-se " CURIOSIDADES ".

Sendo assim, reparemos nesta data vivida há dois dias atrás.

Leiam-na da esquerda para a direita e da direita para a esquerda !...

Leiam-na de cima para baixo e de baixo para cima !...

E então ?  Já perceberam, certo ?  É absolutamente indiferente, qualquer orientação na leitura da data da passada sexta-feira, portanto !

Sempre se lê : " Doze do dois de dois mil e vinte e um " , correcto ???


Esta data, ou melhor, esta especial e curiosa coincidência, advém de a mesma ser classificada como um AMBIGRAMA e simultaneamente um PALÍNDROMO !


E esta, hein ?   As coisas que se aprendem  na Internet !!! 😁😁😁

É giro, não é verdade ?


Anamar

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

"OBRIGADA ! "


 

Dispensa comentários, este post !

Digamos que ele é apenas uma efeméride minha, pessoal e particular.  Afinal, ela não retira nem acrescenta  nada  a  ninguém.  Ela  não  me  reconhece  ou  confere  especiais  pregaminhos ...

Não !  Apenas assinala que até hoje, desde que a brincar criei este espaço - espaço de alegrias, de tristezas, de vulgaridades, de comentários ... de interrogações, confrontos comigo mesma e com os que me rodeiam, e tudo o mais que por aqui passou e passa - já 90000 pessoas, de muitos lugares até impensáveis do mundo, a ele acederam, e acedendo, julgaram conhecer um pouco mais de mim e do que me vai na alma !

Por isso, também neste famigerado ano 2020, mais um acontecimento a registar !  
Este, apenas dizendo respeito a mim própria, marcando neste finalzinho de ano, um especial carinho de todos vocês para comigo.  Bem hajam por isso mesmo !

E embora seja prioritariamente para mim que escrevo, neste diálogo intimista e silencioso, cumpre-me agradecer de coração, com um imenso OBRIGADA !

Agora ... até às cem mil entradas !...


Anamar

sábado, 23 de maio de 2020

" COMEMORANDO ... "



80  MIL  VISUALIZAÇÕES

Amigos

     Acabo  de  atingir mais uma dezena de milhar de entradas aqui no meu espaço.
E é com muita alegria que constato ter ultrapassado a fasquia das 80000 visualizações daquilo que escrevo, e com gosto partilho convosco.

Começado em 2008, meio a brincar, como já referi, este meu blogue tem sido a súmula dos meus pensamentos, a partilha das minhas alegrias, tristezas, ansiedades, medos, realizações e tudo quanto me atravessa o espírito e compõe a minha realidade.

Este número foi agora atingido exactamente num período muito particular das nossas vidas, em plena pandemia da Covid 19, e nele tenho registado tudo quanto tenho vivenciado, tudo quanto foi acontecendo, tudo quanto atravessámos, toda a dinâmica social que constitui o nosso dia a dia e que fica registado para memória futura.

Estou grata a todos vocês.
Espero continuar a corresponder, de alguma forma, às expectativas dos meus leitores.

Até aos 90 mil acessos !  Cá vos espero !

Anamar

domingo, 3 de novembro de 2019

" A LENDA DE SANTO ANDRÉ "



É Dia de Todos os Santos.  Todos menos um ... dizia a minha mãe.

A minha mãe dizia muitas coisas.  Aliás, costumava dizer : " Vocês um dia vão lembrar-se muito de mim, por causa destas coisas que eu digo ..."
Não as registei. Achava que a memória não iria atraiçoar-me nunca, e que de todas eu lembraria.  Eram histórias, ditados, vivências passadas ao longo dos tempos.  Era um repositório da sua sabedoria de velha, mulher simples, que contava como era, o que era ...
Eram histórias de vida, da sua vida, mas também das tradições e da cultura do povo a que pertencia, lá, no Alentejo interior ...

Mas o tempo ... sempre o tempo se encarrega de contrariar o que tomamos como certo e seguro.  E se de algumas histórias, narrativas, frases, memórias repetidamente lembradas, eu ainda recordo, muitas delas perderam-se numa espécie de túnel de nevoeiro que atrás de mim mostra o poder do esquecimento.  E lamento-o profundamente, pois dou comigo a citá-la constantemente, tal como vaticinou.

O dia que hoje se comemora, o feriado que hoje se vive, festeja um evento religioso mas também pagão, que atravessa culturas, épocas e credos.
É vivenciado pelos cristãos, sejam católicos, ortodoxos, anglicanos ou luteranos.  É uma festa celebrada em honra de todos os santos e mártires, conhecidos e desconhecidos, perseguidos pela sua fé, conceito que se alarga aos que entregaram toda a sua vida a Deus, fazendo da mesma, uma oração, testemunho e fé na paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
A comemoração regular deste dia remonta ao ano de 609 ou 610 d.C. com o Papa Bonifácio VII, para recordar todos os cristãos que tinham sido perseguidos e mortos pelos romanos, nos primeiros anos da Igreja Católica.
Em 731-741 o Papa Gregório III dedicou uma capela, em Roma, a Todos os Santos, todas as pessoas que haviam vivido uma existência pia, de acordo com o Evangelho, e ordenou que eles fossem homenageados no primeiro dia de Novembro.

O 1º de Novembro já era marcado em algumas culturas por festas dedicadas ao início do Inverno, época em que a natureza morre. Por toda a simbologia que associa a morte à fertilidade que nessa altura inexiste nos campos, seria naturalmente neste período do ano que se centraria a simbologia ligada à morte, seja o Dia de Todos os Santos, seja o dia seguinte, o Dia de Finados.

Na cultura Celta celebrava-se o Samhain, festividade pagã de que pouco se sabe, a não ser que se centrava exactamente na ideia de morte associada ao rito agrário.  Começava o Inverno, morria a natureza, até que de Abril para Maio, a natureza ressurgisse na sua capacidade geradora de vida.
Era, por assim dizer, o fim e o início de um Ano Novo.
Os mitos Celtas giram em torno do que acontece na Natureza.  O Inverno, a Primavera, o Verão e o Outono, associam-se intimamente ao seu nascimento, crescimento, decadência e morte.
A noite de 31 de Outubro, vivida como o Halloween, dia das Bruxas e das entidades do Além, representa um rito de transição entre a Vida e a Morte, em que se acredita que é esbatida a distância entre os dois mundos, e em que existe uma aproximação sentida, entre nós e os que já partiram .

Dias antes do Dia de Todos os Santos, já a frase da minha mãe sobre a festividade, me martelava a cabeça.  "Todos os Santos menos um, que chegara atrasado ?!... "
Cheguei a falar disto a pessoas amigas, que nunca tal haviam escutado ...
Atrasado onde ? Porquê ? Que Santo ?...
Por que não apontei os contornos desta lenda, ou tradição popular ( que acaba virando "lei", como sabemos ) ?

E, pode parecer estranho ou ridículo, mas sentia-me angustiada por não lembrar  de nenhum modo, a descodificação deste quebra-cabeças.  Não por ele, em si mesmo ( que não deixava de achar curioso, contudo ), mas pela percepção clara da implacabilidade do tempo e da forma como ele apaga as memórias, turva os trilhos e larga uma poalha de neblina sobre as pessoas, as vidas, e as histórias ...
Já fora à Net vezes sem conta, tentando que o Google em alguma busca mais feliz, me respondesse ...
Em vão.  Totalmente em vão.
Muita informação histórica, religiosa e pagã ... mas, infrutífera face à minha pueril questão...

Na noite de Halloween, já deitada na cama e em silêncio no meu quarto, voltei a "encompridar" o pensamento e a lembrança, até onde o cérebro mo permitia, espremendo o mais possível os retalhos de todas as partilhas que ao longo da existência mantive com a minha mãe, de quem sempre estive muito próxima, filha única que fui ...
Voltei à Net sem expectativa, e ... levei, absolutamente, um soco no estômago ...
Incrível ... ali, bem na minha frente, no monitor mínimo do telemóvel, como um recado generosamente dado,  a história da lenda do Dia 1 de Novembro, era contada ...

Santo André, irmão mais velho de Simão ( chamado posteriormente de Pedro, por Jesus ), filho do pescador Jonas, também ele um humilde pescador da  cidade de Betsaida às margens do Mar da Galiléia, que viria a ser discípulo de João Baptista, e que se tornou hierarquicamente o segundo discípulo, dos doze Apóstolos que seguiram o Mestre ao longo da vida, nascera com uma malformação : era coxo.
Conta a lenda, e o povo repete-a de geração em geração, que no dia 1 de Novembro todos os Santos haviam sido convocados para uma festa.  E todos compareceram ... Todos menos um, que por ser coxo não conseguiu chegar atempadamente ao evento.  Era ele Santo André.
Santo André só chegaria no último dia do mês, dia que a Liturgia Cristã lhe dedica no calendário religioso, até hoje.  E por isso, 30 de Novembro é dia de Santo André, coxo de um pé !
Mais diz a tradição, que o tempo atmosférico que se fizer sentir no Dia de Todos os Santos, se repetirá no último dia de Novembro.

Dei por mim a sorrir.
Tenho a certeza que a minha mãe, donde estivesse,  veio dar-me uma mãozinha  e contar-me de novo a história, ao ouvido, com aquele seu ar maroto ... "Eu não te disse que um dia, ias lembrar muito as minhas "doçuras e travessuras" ?..."

Ainda a vi a encostar-me a porta do quarto ...


Anamar

Nota : Este post tem um atraso de dois dias, como se perceberá do texto.
           Foi utilizada informação baseada em estudos do Professor Paulo Mendes Pinto,
           coordenador da área de Ciências das Religiões, da Universidade Lusófona.

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

" DESÍGNIO CUMPRIDO ..."




E Agosto finou-se com temperaturas imperativas de que não devemos esquecer ser ainda Verão.
Apesar de na passada semana os dias haverem refrescado, o que nos aliviou dos mais de 40º C dos últimos tempos, voltámos de novo a ler trinta e muitos, nos termómetros.

É verdade, que na generalidade os locais costeiros já cerraram as portadas das suas casas de veraneio.  É verdade, que as escolas inauguram o próximo ano lectivo oficialmente, já nesta próxima segunda feira ... mas o lisboeta foi em força por o pezinho de molho, queimando assim, talvez os últimos cartuchos de 2018.
Isto, na verdadeira acepção do tradicionalismo do conceito de férias a sério, como desde sempre se gozaram.
Os meses ditos fortes do Verão, terminaram e Setembro já traz consigo um cheirinho à próxima estação.  Tudo em velocidade de cruzeiro ... como é a passagem do tempo nas nossas vidas !...

Lisboa, pejada de turistas, a rebentar pelas costuras ou a deitar pelo "ladrão" ... como preferirmos, é  desde hoje, uma cidade mais pobre
E sei de quem sentiria um desgosto a sério, por causa disso mesmo.
A quase centenária Pastelaria Suiça, localizada na Praça D.Pedro IV, o nosso Rossio, encerrou em definitivo as suas portas, terminando um ciclo de vida que não foi possível salvar, iniciado em 1922.

Foi um "ex-libri" da cidade, como sabemos.  Foi um ícone incontornável, geração após geração, ao longo das décadas.

O meu pai enquanto viveu, adoptou este espaço, afectivamente.
Poderíamos dizer que era figura "residente" do mesmo.
Todos os dias lá ia tomar a sua sopa, o folhado, o esquimó, o chocolate quente, o café ...
Todos os dias, mal franqueava a entrada, já no balcão se pedia familiarmente : "Sai uma canja para o sr. Coelho !..."
Dia após dia, mês após mês ... ano, depois de ano ...

O meu pai morreu com noventa anos e manteve até muito perto da sua partida, a qualidade de vida que lhe permitia ainda, quase diariamente, por lá passar.
Nascido em 1902, era um homem da cidade, onde detinha um Armazém de Ferragens. Era um cosmopolita, com Lisboa no coração.
Lá me comprava os mimos que eu adorava :  iguarias de chocolate, as amêndoas de licor se Páscoa era, fiambre especialmente cortado bem fino, quando ainda não era um género comum nas lojas, os esquimós, bolo com chocolate e chantilly que me levavam água à boca, miolo de pinhão a peso, caixinhas com línguas de veado especialmente queimadinhas ... e muito mais.

Após o seu passamento, algum tempo depois, fui com a minha mãe tomar um chá à Suiça.
Alguns empregados, reconhecendo-me, inquiriram sobre o que era feito do sr. Coelho, já que há muito deixara de frequentar o estabelecimento.
Sorri e disse-lhes perante os seus ares incrédulos e espantados : " O meu pai faleceu !  E já agora ... o meu pai não se chamava Coelho !"

Esse segredo duma vida, nunca ele havia contado !!!...  Por que o faria ???!!!



Anamar

quinta-feira, 12 de julho de 2018

" E TER, DEPOIS, MENINOS ... "



" O amor em Portugal continua a ser diferente.   Começou pelos sinos a tocar e um par que se ajoelhava e acabou por um anúncio no jornal e uma fotografia que se devolve ... "

" Antigamente, quando o amor sorria
e os vates o cantavam com talento,
tudo em volta de nós era poesia,
ternura e sentimento !
Os olhos das mulheres enamoradas
brilhavam como sóis,
os cardos eram rosas delicadas,
as águias rouxinóis,
o riso era cristal, a pele arminho
e a vida cor-de-rosa !
Os poetas em tardes outonais
não estavam lá com tretas
descobriam no cheiro dos currais
o aroma suave das violetas ;
a Lua era de prata,
as tranças d'ouro, os lábios de coral
e quatro pés de couve a verde mata
as áleas dum quintal ...
Como era bom, então, viver, amar
e unirem-se os destinos
quando bastava apenas p'ra casar
ouvir tocar os sinos,
por o joelho em terra aos pés do altar
e ter, depois, meninos ...

Mas hoje não arrulham pombas mansas,
nem se murmuram já palavras ternas ;
são outras as andanças
das práticas modernas
e como o Tempo volta a toda a hora
as costas ao passado,
aquele que hoje em dia se enamora
e quer mudar de estado
para seguir, enfim, p'la vida fora
até se reformar divorciado,
dispensa a frioleira
duma aliança d'ouro ou dum bragal,
não faz questão co'a flor de laranjeira,
põe de parte o que for cerimonial,
convivas mascarados,
passadeira e cortejo nupcial
com fatos alugados
que assentam muito mal
e chapéus com grinaldas de florinhas,
em troca dum anúncio no jornal
de quatro ou cinco linhas :
"  P'ra fins matrimoniais, sem mais rodeios,
um homem que não tem bens de raiz
pretende uma mulher com alguns meios,
que faça um lar feliz ;
uma mulher que entenda os seus anseios,
loura ou morena, de qualquer idade,
viuva ou separada, 
esteja ou não esteja em plena mocidade,
ou já recauchutada ... "

Diga o leitor agora, francamente,
com a sinceridade habitual,
se continua ou não a ser diferente
o Amor em Portugal ... "

                     V. M. S.



Estou a desfazer a casa dos meus pais.  Paulatinamente ... ao sabor da força e da coragem.

Afinal, foi casa de uma vida, carregada de histórias, de sombras e memórias.
Custo a mexer-me.  Quero e pareço não querer fechar definitivamente aquela porta, já que as janelas estão fechadas há largo tempo.
Tudo me tem passado pelas mãos.
Quando se desfaz uma casa, as coisas sabidas e impensadas nascem como cogumelos, das gavetas, das estantes, dos lugares que não frequentávamos.
Se nas nossas casas, isso acontece, imaginem em casas que não foram exactamente nossas ...

A minha mãe, num afã de afecto e saudosismo, tudo parece ter guardado :  o registo das minhas notas do colégio ao liceu ( e de outras colegas também, para ter bem a certeza, por comparação, que eu havia sido a melhor aluna da turma ... rsrsrs ) ... fotografias aos montes ( de caras conhecidas e de muitas outras que não identifico de nenhuma forma.  A maioria, a preto e branco ou a sépia, atestam bem a época a que respeitam.  Cavalheiros com bigodes façanhudos e respeitáveis, chapéus e raposas nos ombros de ignotas senhoras ... criancinhas com folhos e touquinhas ... ou completamente nuas, repousadas no cetim do fotógrafo de ocasião ... ), registos de actos públicos  como certidões, contratos, cartas de condução caducadíssimas, bordadinhos feitos por mim no colégio, mais tarde nos lavores femininos já no liceu ( logo eu que não fui dada a prendas domésticas !... ), rendas iniciadas e jamais acabadas ... quilos de cartões de felicitações por aniversários, Natal, Dia da Mãe ... pequenos riscos e desenhos feitos nos primeiros anos das netas, versinhos e pinturas feitos por mim e esquecidos em papéis velhos e rasgados, textos já então desabafados ... enfim ... um acervo interminável !

Eu própria, que sempre vivi muito sozinha naquela família curta, de pais velhos, sem autorização para grandes saídas e convívios, ocupava também os meus tempos livres, coleccionando religiosamente alguns tesourinhos da época : fotos dos meus ídolos do cinema e da canção, revistas femininas e ingénuas e recortes, muitos recortes de jornais e outras publicações, que reputava certamente como interessantes, por razões que hoje não descortino ! ( rsrsrs ).

É exactamente aqui que se prende o tema deste meu texto.

Entre toda a panóplia inimaginável e ternurenta, caíu-me nas mãos um pequeno recorte de jornal amarelecido, da década de sessenta.
Não tinha data precisa e está assinado por um, ou uma tal V.M.S.
Transcrevi-o e apu-lo a este post.

É incompreensível, coisa de extra-terrestre mesmo, para as gerações actuais, o seu teor.
As pessoas da minha geração entendê-lo-ão, certamente, e lembrarão que o mesmo respeita ainda assim,  já a dois períodos cronológicos distintos .
Ri-me ao lê-lo. O "naïf" do seu conteúdo, revelador de valores sociais, familiares, pessoais mesmo, bem característicos de tempos idos, é duma ternura imensa, duma ingenuidade quase infantil, que nos dias de hoje, lembra uma historinha inverosímil ...
Pela curiosidade e por se tratar de um apontamento literário praticamente humorístico, resolvi trazê-lo a té aqui.

Pergunto-me então, o que escreveria hoje ( certamente escandalizado até à medula ), o ou a  V.M.S. se pudesse deitar um olhar sobre a actualidade, e sobre as formas como se vive nas sociedades actuais, à luz dos costumes, das revoluções sociais, tecnológicas e todas as outras nossas conhecidas e com as quais já nem pestanejamos ... o famigerado " amor em Portugal " ?!...



Anamar

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

" MERA CURIOSIDADE "



O S.Valentim, está ligado a muitas histórias e tradições, até mesmo diferentes, de país para país.
Relato aqui, mais uma história, a Ele associada, por curiosidade, e porque a achei ternurenta ...

Feliz Dia de S.Valentim, para quem o valoriza !



Sabia que as celebrações populares do dia de São Valentim estão associadas às aves? 

Pensa-se que os costumes populares associados a estas celebrações, tenham tido a sua origem na Idade Média, época em que se acreditava que 14 de Fevereiro era o primeiro dia de acasalamento das aves. 
Por essa razão, este dia era considerado como sendo a ocasião apropriada para escrever cartas de amor e enviar presentes. 

De acordo com alguns historiadores, terá sido Chaucer (conhecido poeta inglês do séc. XIV), o primeiro a referir esta ligação entre o São Valentim (santo católico) e o amor romântico. 
No seu poema de 1381 escrito em honra do noivado do rei Ricardo II de Inglaterra com Ana da Boémia, Chaucer associou o noivado, a  época de acasalamento das aves, e o São Valentim: 

       “For this was on St. Valentine's Day, When every fowl cometh there to choose his mate".| 

     ( Porque foi no dia de S. Valentim, quando todas as aves vieram escolher o seu par (tradução livre).

Anamar

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

" A VIDA QUASE HÁ CEM ANOS ..."



A minha mãe nasceu em 1921, numa pequena vila, perdida no Alto Alentejo.
Era a filha do meio de cinco irmãos, duas raparigas e três rapazes.
Nessa altura, as pessoas oriundas de famílias modestas, e no Alentejo interior, viviam mal.
Ainda assim, os meus avós não subsistiam a partir da terra, porque os que trabalhavam para os latifundiários ( meia dúzia de famílias abastadas e detentoras das propriedades ), e que não detinham nada seu, a não ser a jorna quando trabalhavam, tinham uma vida de verdadeira escravidão.
O trabalho era de sol a sol, não existiam leis laborais que o regulassem, menos ainda, sindicatos ou reivindicações.
Um pai de família dava-se por muito feliz, se trabalhasse para algum lavrador, e conseguisse com isso, garantir na mesa, o pão dormido da açorda e o azeite na almotolia !
Os Invernos eram extremamente rigorosos, e havia meses e meses, em que as terras alagadas, não permitiam sequer, que nelas se entrasse .

Era o tempo da fome ...

Muitas crianças iam para a cama, com umas sopas de leite no estômago, porque o pão fazia-se em casa, para toda a semana, e o leite sempre vinha de alguma cabra, ovelha, ou vaca, que criassem, e que, com meia dúzia de "bicos" na capoeira, para os dias festivos, lhes compunham a mesa.

Existia na vila, um convento de freiras, que acolhia meninas órfãs, e que durante todo o ano, por iniciativa da mulher do Presidente da Câmara de então, garantia alimentação diária aos velhinhos do asilo - a "sopa dos pobres".
Pois bem, aí recorriam também os trabalhadores, que no período rigoroso do Inverno, por falta de trabalho,  não tinham do que viver.
E havia depois, como diz a minha mãe, a "pobreza envergonhada", de quem precisava e não pedia ... Mais dramátiva, portanto !

Os meus avós não viviam da terra, como disse.
O meu avô era sapateiro, e foi entretanto mobilizado para a guerra.
Fez a Grande Guerra de 14-18, e quando partiu, já cá deixara, a mulher e um filho.
Em condições precárias, a minha avó, foi então "servir", numa das casas ricas da terra, para garantir o seu próprio sustento, o da criança de meses, e ajudar a mãe que ficara viúva com trinta e um anos, e três meninas para criar.

Na Guerra, o meu avô,  incorporado nas tropas aliadas, esteve à morte, devido a um bombardeamento alemão, já então com armas químicas.
O "gás mostarda ou iperita ", tinha efeitos tremendos nas vias respiratórias, quando inalado, e queimava em profundidade o corpo.
E os alemães usavam-no !...
Salvou-se por mero golpe de sorte ; ainda recebeu a Extrema Unção, na eminência de morrer.
Ficou contudo, com sequelas para o resto da vida.
Isso ocorreu numa noite de passagem de ano, e desde então, ( ele que não era católico ), guardou um qualquer sentimento de gratidão e de respeito particular, por essa noite, enquanto viveu ...

Considerado um ferido de Guerra, muito grave, foi desmobilizado, e regressou a Portugal, com uma saúde tão precária e uma debilidade tão devastadora, que esteve à beira de uma tuberculose.

Decidiu então virar-se para o comércio, porque a saúde já não lhe permitia continuar com a sua profissão de origem.
Abriu um espaço polivalente, que era simultaneamente pensão de hóspedes, mercearia e cavalariça para recolha e guarda dos animais, e de quem viajava nos carros de canudo, ou nos carros de varais, pela planície adiante.
Ainda me lembro de ver lá alojados os "tendeiros", que eram feirantes de terra em terra, os ciganos que  negociavam pelas feiras, cavalos, mulas, e burros, e que se movimentavam, como nómadas que são, com toda a família e os animais, assentando acampamentos nos campos, onde lhes aprouvesse.
Às vezes, em noites tempestuosas, o meu avô dava graciosamente guarida, no palheiro ou na cavalariça, aos errantes, sem eira nem beira, que percorriam, como pedintes, as estradas do Alentejo.
Eram chamados de "frausteiros" ( que suponho ser uma adulteração popular, de forasteiros ).
A minha avó, às escondidas do marido, sempre lhes levava um prato de sopa, para aliviarem um pouco, a fome ...

Eram tempos muito difíceis, efectivamente !...

Depois do meu primeiro tio, nasceram mais quatro crianças, como também já disse.  Abaixo da minha mãe, vinham portanto dois rapazes.
A casa dos meus avós era de permanente labuta.  Havia alguma ou algumas "criadas", como se chamavam, mas as duas filhas raparigas, trabalhavam lado a lado, e em iguais condições que elas.
A minha avó era a cozinheira ( de mão cheia, ao que parece ), mas todo o restante trabalho, desde servirem à mesa, prepararem os quartos dos hóspedes, tratarem da casa, com todas as inerências que se conhecem, passavam pelas mãos das criadas e das filhas.
Todas as semanas se amassava o pão, e anualmente se faziam matanças de porcos, e se preparavam os enchidos ...

Por tais motivos, a minha mãe foi retirada da escola primária, a escassos dois meses de completar a terceira classe, porque havia que vir ajudar a criar os dois irmãos mais novos.
Apesar de ser uma aluna exemplar, e do interesse manifestado pela professora, de que ela continuasse, não houve qualquer sucesso, e talvez com oito ou nove anos, já ela era mãe substituta, porque a minha avó paria, mas não tinha condições objectivas para cuidar e criar as crianças !

Quando oiço a minha mãe contar memórias desses tempos, pasmo, de facto, e pergunto-me como viveriam os meninos de hoje, naquelas condições ...

Não existia luz eléctrica, nem água encanada.  Não existiam casas de banho ...
Os banhos eram tomados dentro de um alguidar de zinco, e a água era despejada sobre o corpo, com um jarro de esmalte.
As camas eram as tradicionais e bonitas camas de ferro, vendidas hoje, como antiguidades.
Tinham um estrado de arame, sobre o qual existia um enxergão de palha, e sobre este, um colchão feito de pedaços de trapos.
A palha do enxergão, era viveiro habitual e inesgotável de percevejos, parasitas que se alimentam do sangue obtido, pelas picadas no ser humano.
Tentavam debelá-los, ao que parece, com rodelas de cebola, ou petróleo ... mas infrutiferamente !

Nos quartos, existia um lavatório em loiça, com um balde por debaixo, para recolher a água, e um jarro ao lado, com essa mesma água..
Tanto quanto sei, em toda a pensão, existia um único bidé de esmalte, que circulava para os quartos, cujos hóspedes o reclamassem, e que não eram muitos ...
À cabeceira das camas, na mesinha de cabeceira, existia uma palmatória com uma vela, com a qual, o quarto era alumiado, e  uma garrafa de vidro com água, com um copo sobre o gargalo.
A maior parte dos cobertores, se assim se poderá chamar, era feita com bocados de tecidos, cosidos uns  aos outros, e havia ainda os cobertores de "papa", que era uma espécie de lã grossa, com pelo, alguns já com marcas das traças.
Remontam estes cobertores ao tempo do Marquês de Pombal, tendo existido, perto da Guarda, na aldeia de Macainhas, uma desenvolvida produção têxtil dos mesmos.
Hoje em dia, a última fábrica, na Serra da Estrela, fechou portas em Dezembro de 2012.
Eram feitos da lã da raça ovina churra, fiada especificamente para este fim, e eram imensamente pesados !
Como consequência, o peso da roupa sobre cada pessoa, jamais era proporcional ao aquecimento
produzido ...
Ainda nos quartos, existiam, para resolver as necessidades fisiológicas das pessoas, uns bacios  altos, de barro, com uma tampa em madeira.
Diariamente, eram os mesmos, colocados nas ruas, às portas das habitações, até que o Tio Rico ( assim se chamava a figura ... ), com um carro puxado por um boi, com uma canga de guizos a anunciar-se, os despejava, para dentro desse contentor.

O "destino" ... a minha mãe não sabe !   Talvez o campo, talvez adubasse terras ...

Os comensais fixos, na pensão, pagavam uma diária de 16$00, que incluía o quarto e as três principais refeições : pequeno almoço, com leite com café, e onde o queijo, a manteiga, os enchidos e o pão, se  faziam  presentes ;  o almoço, com sopa, prato de peixe, prato de carne, pão, vinho e fruta ... e o jantar,  de igual forma.

Havia quem apenas tomasse as refeições, e se deslocasse à Estalagem do sr. Barrancos ( como era conhecida ), devido aos pitéus da Sra. Brites, a  minha avó.
Incluiam-se  como tal,  figuras proeminentes da terra, destacadas para lá, a trabalho : o juíz em exercício, o escrivão do tribunal, alguns médicos, o delegado do Procurador da República, o Padre Serrão, e outras personagens com algum protagonismo ...

Ao tempo, não existiam sabonetes, gel de banho, shampôs e outros artigos de toillete.
Existia sim, para tudo, desde a lavagem criteriosa das tijoleiras de barro, da loiça, da roupa, e de tudo o resto, até mesmo às lavagens pessoais, exclusivamente o sabão azul e branco.

A iluminação caseira era feita por velas, como disse, por candeeiros de petróleo, ou candeias de azeite, espalhados pela casa.
Cozinhava-se em fogões de lenha  ( só mais tarde apareceram os de petróleo ), passava-se a roupa com ferros a carvão, por vezes difíceis de pegar, outras, queimando a roupa, porque algumas brasitas saíam para fora, ou com ferros que se aqueciam na chapa do fogão, simplesmente !

As ruas eram iluminadas com candeeiros de pé, os quais tinham um depósito, que diariamente era provido de petróleo, e assim se iluminavam.
Nas noites quentes do Verão alentejano, terminada a labuta diária, o local mais aprazível para as famílias se juntarem, era  as soleiras das portas, ou mesmo, os poiais das mesmas.
Para garantir a frescura, regava-se a rua previamente.
A água, claro, ou provinha do poço do quintal, ou era buscada diariamente, vezes sem conta, ao poço da Faia, que  ficava  na  estrada, já  fora  da vila, em  cântaros de  barro, à  cabeça  e  no  quadril ...
Muitas rendas do seu enxoval, e muitos livros, diz a minha mãe, ter feito e lido, à luz do candeeiro da rua ...

As roupas usadas, eram frequentemente de chita, ou de riscado.
Com a chita, confeccionavam-se blusas, saias, vestidos, sendo que  cada metro custava vinte e cinco  tostões ...
A roupa interior, as camisas de noite e as combinações ... eram feitas em casa, por quem sabia costurar, e eram exclusivamente de flanela.
O guarda-roupa era parco. Só o essencial, e uma roupita para os domingos, já estava bem!
O material escolar era transportado numa bolsa de flanela, feita em casa, e passava de irmão a irmão. Resumia-se ao livro, ao caderno, à tabuada, lápis e borracha, a ardósia e o ourelo para limpá-la.
As carteiras escolares tinham um tinteiro incorporado, e com uma caneta de aparo, aí molhada, escrevia-se a tinta ...

Bom, não me alongo mais.
Isto tudo, este "modus vivendi", é uma realidade tão longínqua, mas sobretudo tão irreal, que custamos a concebê-la .
Fui tentando descrevê-la, o mais fielmente possível, à medida que a minha mãe ma relatava.
A cada observação minha, a cada espanto meu, a minha mãe dizia-me : "Pois, filha ... mas era assim ! E tudo se criava !!!..."
É tudo tão surrealista, que nem a geração das minhas filhas ... que direi a dos meus netos ... o conseguirá conceber.
Olhando à nossa volta, pergunto-me, como os meninos dos Ipads, Iphones, computadores, telemóveis de última geração, toda a parafernália que nos rodeia, incluindo alimentação, hábitos caseiros, vestuário ... meninos que sabem que o Homem pisar a lua já nada tem de especial, que a concepção de crianças "in vitro", também não, que a clonagem e que a genética mudam o Mundo ...
Pergunto-me, que sentido tudo isto fará/faria, para eles???!!!

Seguramente,  achariam  tratar-se  de  um  filme  do  tempo  das  cavernas !!!...

Anamar 

segunda-feira, 13 de maio de 2013

" NAQUELE TEMPO ... "


 
Nesta semana que passou, viveu-se  o "Dia da Espiga", ou a comemoração religiosa da Ascensão de Jesus aos céus, quarenta dias depois da Ressurreição Pascal ... se ainda me lembro.
Fora as raízes católicas que já perdi nos meandros do tempo, lembro a quinta-feira "da espiga", vivida em miúda, no Alentejo, claro, e que só pode ser privilégio de quem viva no interior rural, ou perto dele.

Na altura eu vivia em Évora, era menina de tranças e vestidinhos rodados.
As meninas à época, ao contrário de hoje, não vestiam calças nem calções, no dia a dia.  Quando muito, isso era traje da época balnear.
Não obstante, lembro de ter tido umas calças e camisa, em vermelho liso e risquinhas condicentes, "à pirata", que é como quem diz, as nossas "bermudas" de hoje, feitas pela costureira que ia quase semanalmente a casa, fazer os arranjos e roupas simples.
As de maior responsabilidade, ou mais elaboradas, iam para a D. Soledade, a modista da classe "fina" de Évora ... senhora bem apetrechada de figurinos, onde a minha mãe escolhia criteriosamente os modelitos.

Eu vivia então, na Av. dos Combatentes, que ficava num extremo da cidade .  Esta avenida terminava na estação dos caminhos de ferro, e atravessando as linhas férreas, do outro lado, continuava numa estrada que cortava os campos, até ao Bairro de Almeirim.
Era um caminho quase sem trânsito, ladeado por campos cultivados, com searas a perder de vista.
Era montado de sobreiros e azinheiras, e olival com azeitona a formar-se ;
Eram "jardins" de papoilas, malmequeres e flores roxas ... de urzes, estevas e giestas ;
Eram postes de alta-tensão, com os ninhos das cegonhas empoleirados a desníveis ;
Eram varas de porcos, ou rebanhos adormecidos por ali, quando o calor apertava, e o convite, era a sesta para o gado e para quem o pastoreava ;
Era o pipilar dos pássaros pela seara ... os cucos, os melros, os tordos, as alvéolas ... as andorinhas rasantes, em bandos volteadores ...
Era o cantar dos grilos à desgarrada, e a melopeia dormente das cigarras ...
Eram os cheiros adocicados trazidos pela brisa mansa, dos cereais de espiga a formar-se, e dos pólens, a darem-se ao zumbido dos zângãos e das abelhas atarefadas, do meu Alentejo !...
Era o chocalhar lá longe, de quando em quando, dos badalos das vacas, que se misturava ( ao crepúsculo ), com o sino de alguma igreja da cidade, nas "Avésmarias" ...
Era o céu azul de uma Primavera quase Verão, nas terras quentes ...
E era eu, menina, sem saber, sem imaginar, sem sequer sonhar o que a Vida é ...

Apanhava-se o "ramo da espiga", garante de pão na mesa, azeite, "luz", paz e alegria na casa, por todo o ano.
Para isso, deveria ser formado por espigas de trigo ( pão ), um raminho de oliveira ( azeite e paz ) ... e flores, todas as flores dos campos, e de todas as cores que pudéssemos apanhar ( os malmequeres amarelos e brancos simbolizando respectivamente o ouro e a prata,  e  as papoilas, o amor e a vida ).
Era atado com uma guita, e dependurado na despensa ou na cozinha, até ao ano seguinte, até à próxima  "5ª Feira da Espiga", para que o "clima" fosse favorável a um ano de abundância, paz e felicidade na família.

Hoje, na cidade ( sinal dos tempos ), também há "ramos de espiga", onde a contrafacção já chegou.
Longe de searas à séria, o lisboeta que quer fazer uns trocos, vende ramos atamancados, em que as espigas são praganas, apanhadas nos baldios que bordejam os grandes centros.
O resto, bom, o resto é mais fácil de encontrar.  Sempre há umas oliveiras aqui ou ali, meio adormecidas e tristes, fora do "seu" olival ... e flores ...
Desde as papoilas e macelas, a todas as flores selvagens e coloridas, a Natureza não regateia generosamente oferecê-las, em qualquer canto, mesmo agreste.

Ainda que o silêncio dos espaços não impere, ainda que o ar seja poluído, ainda que o chilreio das aves  não se faça ouvir por todo o ruído envolvente ...
Ainda que não haja cegonhas encarrapitadas nos postes de alta-tensão  ...
Ainda  que eu já não seja a menina das calças "à pirata", vermelhas ... e também já não tenha tranças ...

... ainda  que eu já tenha "descoberto" o que a Vida é ... continuará a existir a "Quinta-feira da espiga" !!!...


Anamar


EM JEITO INFORMATIVO :

Consultei este artigo que infra-cito, a propósito, e que achei muito interessante.


  • O Dia da Espiga
     ( Informação recolhida junto do Município de Évora - Núcleo da Cultura )
Coincidente com a Quinta-feira da Ascensão


O Dia da Espiga

O Dia da Espiga, coincidente com a Quinta-feira da Ascensão, é uma data móvel que segue o calendário litúrgico cristão.
Mas, se actualmente poucas são as pessoas que ainda vão ao campo nessa quinta-feira, abandonando as suas obrigações, para apanhar a espiga, ou que se deslocam às igrejas para participar nos preceitos religiosos próprios da data, tempos houve em que, de norte a sul do país, esta foi uma data faustosa, das mais festivas do ano, repleta de cerimónias sagradas e profanas, que em muitas zonas implicava mesmo a paragem laboral. A antiga expressão “no Dia da Ascensão nem os passarinhos bolem nos ninhos” deriva dessa tradição.
A origem gaudiosa deste dia é, contudo, muito anterior à era cristã. Este dia é um herdeiro directo de rituais gentios, realizados durante séculos, por todo o mundo mediterrâneo, em que grandiosos festivais, de intensos cantares e danças, celebravam a Primavera e consagravam a natureza.
Para os povos arcaicos, esta data, tal como todos os momentos de transição, era mágica e de sublime importância. Nela se exortava o eclodir da vida vegetal e animal, após a letargia dos meses frios, e a esperança nas novas colheitas.
A Igreja de Roma, à semelhança do que fez com outras festas ancestrais pagãs, cristianiza depois a data e esta atravessa os tempos com uma dupla acepção: como Quinta-feira de Ascensão, para os cristãos, assinalando, como o nome indica, a ascensão de Jesus ao Céu, ao fim de 40 dias; e como Dia da Espiga, ou Quinta-feira da Espiga, esta traduzindo aspectos e crenças não religiosos, mas exclusivos da esfera agrícola e familiar.
O Dia da Espiga é então o dia em que as pessoas vão ao campo apanhar a espiga, a qual não é apenas um viçoso ramo de várias plantas - cuja composição, número e significado de cada uma, varia de região para região –, guardado durante um ano, mas é também um poderoso e multifacetado amuleto, que é pendurado, por norma, na parede da cozinha ou da sala, para trazer a abundância, a alegria, a saúde e a sorte. Em muitas terras, quando faz trovoada, por exemplo, arde-se à lareira um dos pés do ramo da espiga para afastar a tormenta.
Não obstante as variações locais, de um modo geral, o ramo de espiga é composto por pés de trigo e de outros cereais, como centeio, cevada ou aveia, de oliveira, videira, papoilas, malmequeres ou outras flores campestres. E a simbologia de cada planta, comumente aceite, é a seguinte: o trigo representa o pão; o malmequer o ouro e a prata; a papoila o amor e vida; a oliveira o azeite e a paz; a videira o vinho e a alegria; e o alecrim a saúde e a força.
Além destas associações basilares ao pão e ao azeite, a espiga surge também conotada com o leite, com as proibições do trabalho e ainda com o poder da Hora, isto é, com o período de tempo que decorre entre o meio-dia e a uma hora da tarde, tomando mesmo, nalguns sítios do país a designação de Dia da Hora. Nas localidades em que assim é entendida esta quinta-feira, acredita-se que neste período do dia se manifestam os mais sagrados e encantatórios poderes da data e nas igrejas realiza-se um serviço religioso de Adoração, após o qual toca o sino. Diz a voz popular que nessa hora “as águas dos ribeiros não correm, o leite não coalha, o pão não leveda e até as folhas se cruzam” . Nalgumas povoações era também do meio-dia à uma que se colhia a espiga.
Noutras regiões ainda, esta data é dedicada ao cerimonial do leite. Na aldeia da Esperança, no concelho de Arronches, este é aliás o “Dia do Leite” e os produtores de queijo ordenham o seu gado e oferecem o leite a quem o quiser. Também em Guimarães, e em muitas freguesias do concelho de Pinhel, o leite ordenhado neste dia é oferecido ao pároco. Em Santa Eulália, no concelho de Elvas, esse leite é dado aos pobres, acreditando-se assim que a sarna não atingirá as cabras.
Nas zonas onde esta data é associada à abstenção laboral, cessam-se muitas actividades como a cozedura do pão ou a realização de negócios. Na Lousada, em Penafiel, não se cose nem se remenda e há quem deixe comida feita de véspera para não ter de cozinhar neste dia.
No que diz respeito ao sul do país, e sobretudo na actualidade, a maioria das tradições do Dia de Espiga resume-se à apanha do ramo da espiga, ao qual, em muitos sítios, se adiciona também uma fatia de pão, para que durante todo o ano não falte este alimento em casa.



Consultei ainda informação, que diz deverem ser em número de cinco, cada uma das espécies presentes no ramo, e outra que afiança que duas espigas de trigo, duas papoilas, dois malmequeres brancos e outros tantos amarelos, e uma haste de oliveira em flor, são a quantidade certa para "não ser demais nem de menos" ...
Há também zonas do país, em que se junta videira ( simbolizando o vinho e a alegria ) e alecrim ou rosmaninho ( simbolizando a saúde e a força ).

Acredita-se que este costume associado à recolha da "Espiga", e que prevalece primordialmente no Centro e Sul do país, teve origem num antigo ritual cristão, que era uma bênção dos primeiros frutos.
No entanto, tendo tanta ligação à Natureza, supõe-se que vem bem mais de trás no tempo, talvez das antigas tradições pagãs, associadas às festas da deusa Flora, que aconteciam por esta altura, e às quais se prendem também as tradições dos Maios e das Maias.

Há zonas de Portugal em que por cada ano, o ramo velho, digamos, é queimado numa fogueira no dia de S. João.

terça-feira, 7 de maio de 2013

" O CHICO "



À noite, chega a "hora das bruxas" ...

Quando as luzes se acendem e as sombras se projectam no chão, e mexem, o Chico fica louco.
E rodopia desvairado, na caça da sombra da sua cauda.  Nem é da própria cauda, como muitos gatos fazem ... é da sombra da mesma, desenhada no chão, que lhe saracoteia aos bigodes, provocando-o, e deixando-o confuso.
É essa, e todas as outras sombras que mexem !...
O Chico não aprecia bolinhas, ratinhos, e outros brinquedos demasiado vulgares.  O Chico, gosta mesmo é do domínio das sombras, que fazem e desfazem fantasminhas, no mármore do pavimento ... E que por não serem figuras fixas, lhe dão a adrenalina do que é e deixa de ser, no momento seguinte ... lhe dão a emoção do visível e do escondido, numa fracção de segundos ...
Isto, para um felídeo, é um desafio provocador à caça, por emboscada, quase sempre!

O Jonas olha para ele, com um ar surpreso e de comiseração, como quem diz : " Olha-me ... olha-me o marmanjo ( porque o Chico faz dois do Jonas, em tamanho ) ... Este gajo, passa-se "!...

Mas o Chico está na dele, e não liga a "mal vestidos" ...

Chegou a minha casa, envolvido num invejável casaco de pêlo negro e luzidio, com reflexos acobreados, quando o sol lhe dá.
É uma panterinha, em tamanho XS.
De pantera, só o aspecto, porque a doçura do Chico, não tem medida.
Habituada ao "bom feitio" do Óscar, que lembro com nitidez ainda, e do qual guardo gratas e indeléveis  "recordações" tactuadas nas pernas, pasmo, por neste momento ter dois doces felinos, a viver comigo !

O Chico já me chegou com cédula pessoal e tudo, que é como quem diz, com o devido registo de baptismo.
Ora bem ... para quê então, baralhar o neurónio de serviço do bicho, trocando-lhe o nome ??!!
Não carecia !
E Chico era, Chico ficou !
O veterinário acrescentou-lhe o "apelido", quando o viu, na primeira vez.  E o Chico, passou mais completamente, a chamar-se de "Chico Escuro", que aliás, tem tudo a ver ...

Tenho portanto, um gatalhão preto, que persegue as sombras, de uma forma um pouco endemoninhada.
E acresce que chegou, no passado dia 13 !!!
Com este cúmulo de coincidências interessantes, o Chico só pode ter entrado, finalmente, para ser portador de sorte, aqui para casa ... que bem precisa é !!!

Gosto de todos os animais.
Dos chamados "de estimação", já tive um pouco de tudo.
Começando com peixes de água fria, peixes de água quente, tartarugas, hamsters, canários e periquitos, até gatos e cães, hierarquicamente subindo na escala inteligente .
O meu voto vai, de facto, para os felinos.
Talvez porque eles sejam um pouco parecidos comigo, ou eu com eles, na forma de estar na vida.
Os felídeos são animais com uma independência invejável, que é coisa de sobrevivência mesmo.
São inteligentes, são curiosos, não se acobardam, são desafiadores, nunca subservientes ...
Mas sabem dar e partilhar afecto.  Claro que, quando querem, não, quando lho pedem !
Dispensam-no sem regateio, a quem elegem.  E uma vez eleito alguém, no seu coração, é amor p'ra todo o sempre !

"O gato escolhe o dono" ... sempre se ouviu dizer.  E o dono deixa-se escolher pelo gato, numa partilha inquestionável.
O gato, ao seu jeito, protege o dono.  Perante estranhos, assume comportamentos que indiciam a espécie de gente, que temos à frente.
Têm códigos de comunicação inteligíveis, para quem a  eles esteja atento.
E depois, para quem acredita, no domínio do oculto, possuem  mesmo, parece, uma capacidade de comunicação, com entidades que escapam à percepção dos humanos .
Dizem, que quando o gato parece olhar o vazio, ou fixa um determinado ponto  no espaço, onde aparentemente nada existe, essa inexistência, é isso mesmo ... "aparente", simplesmente ...

Bom, o meu Chico acaba portanto de ser socialmente apresentado.

E eu, que até aqui, tinha o fetiche inexplicado de possuir ainda na minha vida, um gato preto  ( tendo entretanto estabelecido uma cumplicidade já, com o meu "Farrusco do fiambre" dos terraços  das  traseiras - como já muito contei ), concretizei assim, o meu desiderato.
Tenho "à mão de semear", "ao pé de semear", e "ao cólo de semear", um Chico Escuro que faz as minhas delícias, e  que é um porreiraço de companhia !!!...

 Anamar

terça-feira, 6 de novembro de 2012

" O JONAS "



Ontem, 4 de Novembro, o JONAS entrou, no que virá a ser, espero, o seu lar de adopção para sempre ...

O JONAS é mais uma história de vida ( curta ainda ), de resistência e de luta pela sobrevivência.
Mais um animal abandonado à sua sorte, jogado na rua, terá apenas três meses de idade ( estimados, obviamente ).
Tem um ar doce e meigo, tem os medos de quem sabe o que é a luta para se manter vivo, perante as adversidades, sabe o que é o abandono ... e a acrescer a essa desdita, já sabe também, até onde pode ir a maldade humana, infligida a vinte centímetros de gato, digamos ...

Apareceu em Oeiras, perto da casa de alguém que o soube olhar, alguém que, felizmente, sabe o que é amar um animal, e que desenvolveu ( não podendo acolhê-lo), todos os esforços possíveis e impossíveis para lhe procurar um futuro.

Por  ele  ( a quem a maldade do Homem, já retirava a água e a comida, que o Bruno diariamente lhe deixava ), cresceu, em boa hora, uma onda de solidariedade humana, através do Facebook, uma rede social, a que de facto, terei que fazer justiça, e render homenagem, e que tem um poder de mobilização, que eu própria subestimara.
Que estas redes sirvam para algo positivo, algumas vezes pelo menos, e já serão redimidas !...

O JONAS chegou-me portanto via Internet, por onde chega muita coisa, para o bem e para o mal.
Chegou-me com o apelo do seu protector, e com as fotos que aqui deixo.

Ora bem ... há mais de três anos, tive que "adormecer" o Óscar, também ele meu companheiro de "fatias"  de vida ;  ele, que  igualmente  entrou em minha casa  ( da desdita do abandono ), no Novembro de 1994.
Sobre o  "Sr. Óscar", gato inteiro com um perfil muito particular, já aqui falei sobejamente, neste meu espaço, e na minha memória e coração, ocupa lugar de honra até hoje.
Era um "Bosque Norueguês", branco e beje, e quando me chegou, também era um espécime de quinze centímetros, num cestinho com laço de fita e tudo ...
Olhinhos azuis do leite, traquina e reguila, imparável como são todos os gatos bébés.
Na família que então ainda existia, adoptou-me como dona, por que o gato sempre escolhe o dono, e não o contrário.

Desta feita, eu que equacionara fechar a porta a animais, quando a geração "Rita" terminasse, olhei as fotos ... li o apelo ... mas sobretudo, não deixei de olhar as fotos ...
E juro-vos, que para lá da cor da pelagem ser a mesma da do Óscar, os olhinhos, que me encaravam do computador, desde o primeiro instante, eram iguais aos que ele trazia quando então veio para o meu cólo ...
O mesmo olhar penitente, suplicante, mas doce, irrequieto, reguila também, altivo também ... Olhar de felino, naquela "coisa" em miniatura ...

E a sensação, de que se calhar nada acontece por acaso nas vidas, começou a ocupar-me a mente.
Eu desviava os olhos do monitor, eu passava adiante, mas vinha atrás vezes sucessivas !

Hoje, o JONAS entrou na minha vida, pela porta da minha casa ...
Qual de nós dois partirá primeiro ?... É especulação ... é futurologia pura !

Esta noite já tentou dormir aos meus pés, e "sopra" da forma mais convincente e provocadora que pode, na disputa  do  espaço  que  considera  já  seu,  de  direito - com  a  Rita -  residente  há 13 ou 14 anos !
Não mia ainda ... "Chia", como fazem os bébés de três meses.
Defende-se com as unhas e com a força de que dispõe ...  Já me mostrou o poder dos dentes mínimos que tem na boca, ao ministrar-lhe a medicação pelas cinco da manhã !

Enfim ... baptizei-o de JONAS !

JONAS  é o profeta referido nos livros bíblicos,  cuja  história é  narrada  na fábula "Jonas e a baleia".
Jonas supunha que enganaria Deus, desobedecendo e falseando as ordens dadas pelo Senhor.
Mas Este, castigou-o, e Jonas foi engolido por uma baleia, dentro da qual teve três dias de consciencialização do erro, arrependimento e contrição.
Deus deu-lhe uma segunda oportunidade.
Passados os três dias, Jonas, o "resistente", foi cuspido das entranhas do "grande peixe" ... e sobreviveu, agora já redimido ...

O meu JONAS não prevaricou, penso ... É simplesmente um gatinho que o destino quis abandonar à má sorte ...
Mas o mesmo destino, fez também dele um "resistente", e concedeu-lhe uma outra chance na vida !

JONAS hoje tem um lar, tem o conforto, tem o amor e a dedicação de quem, sem saber, estava à sua espera, desde sempre ... Eu !...
Não tinha por que ser penalizado afinal !!!...

Assim acontecesse, com todos os JONAS deste Mundo !!!...

Anamar

domingo, 21 de outubro de 2012

" A MÁQUINA DO TEMPO "



Alterei a hora esta noite.
Mudei-a em todos os relógios, meus e não só.
Procurei, já ontem, actualizar a minha mãe, lembrando-lhe à saída : " Não esqueça que a hora muda " !...

Afinal, a hora não mudou .
Estou adiantada uma hora.  Os meus relógios vão ganhar uma hora, ao longo de todos os dias  de toda  uma semana.
Contudo, comecei este domingo atrasada, atrasada em relação à vida real ... a horas, em relação à vida que inventei !

"Perdi" a amiga com quem convivo ao pequeno-almoço, porque ao chegar ao café, ela ( que cansara de me esperar ), partira para o seu domingo normal.
No café, tudo às avessas.   A frequência habitual já fora embora, óbvio, porque as pessoas são de facto, escravas do Tempo.
Hoje eu tive a evidência, de como este papão assustador, o é afinal, muito mais.
Todos andamos a reboque dele, sem dúvida !

O  meu domingo começou num ritmo absolutamente estranho.   A sensação de ter deixado fugir tempo ( a mim, a quem sobra tempo dos dias ), é terrífica.
Engoli o pequeno-almoço, literalmente !
Agora, engoli-o  porquê, se não haveria pressa para nada ??!!    Se nada me espera, com horário a cumprir, se a casa continua vazia, e tudo continuará imperturbável nos mesmos sítios ??!!
Sei lá !...
Engoli, porque se me instalou a urgência, que sente alguém que perdeu  "aquele" combóio, e que terá que esperar pelo próximo.
Engoli, porque estou com pressa de apanhar o tempo ...  Eu, que me concedera gratuitamente, mais uma hora neste meu dia !!!...

Tenho uma sensação esquisita em mim ;  a sensação de que o planeta começou a rodar ao contrário, e que tudo está caótico ;  eu, estou caótica ...
A diferença que faz uma hora, na Vida ... no espartilho que é a Vida do Homem !!!...

Hoje brinquei "à máquina do tempo", sem querer.
Mas estranhamente percebi, que tenho demasiadas amarras a prenderem-me ao convencionado, ao determinado, ao figurino ...
Logo eu, que sempre pensei não andar a reboque de nada disto !
Logo eu, que anarquizo horários de refeições, subverto horários de sono ... conflituo horários de vida !

Hoje, estou em contra-ciclo, e não me sinto cómoda.   Parece uma incoerência em relação ao que defendo, sinal de que não estou tão liberta praticamente, como mentalmente o estou !

E se eu pudesse atrasar os relógios, não uma hora ... mas uma vida, meia vida, um quarto de vida ??!!

Como seria chegar aqui, olhar tudo à minha volta e senti-lo desconexo, incompreensível, estranho ??
Não conhecer o mundo encontrado, sentir-me analfabeta do real ?
Sentiria seguramente, o espanto do soldado, que  na  parada,  olha  os  outros  a  marcharem  em  formatura oposta  ao  seu  sentido  de  marcha ...

Lembrei o filme relativamente recente,  "O estranho caso de Benjamin Button", que nasceu velho, e caminhou da velhice para a juventude, para a infância, para o nascimento ...
Regrediu, fez o percurso às avessas ...
Lembrei, e percebi.
Hoje eu tive uma percepção aproximada do que é brincar com o "Gigante" ... o TEMPO, e querer manipulá-lo !!!

Vamos supor que eu atrasava a minha existência, de meia existência.

As minhas filhas iriam ter uma mãe mais nova que elas ;
Iria cruzar pessoas que já cruzei ...  Agora, seriam elas a olhar-me como jovem.
Quem amei, estaria a envelhecer, enquanto eu manteria a juventude ...  Quem amei, talvez quisesse voltar a amar-me !...

A regressão do meu relógio, ia deixar-me perdida num mundo que não entenderia, que não me faria sentido.
Um mundo, para o qual  não estava programada, um mundo, cujos ritmos e contornos me alucinariam, porque os não acompanhara ...
Um mundo de seres que não reconheceria ... de sonhos e anseios que não identificaria, de luz, cores e sons diversos, onde provavelmente eu não encaixaria ...

Tenho a certeza, que a pessoa que eu fui, na época para a qual cronometrei o meu relógio inventado, deveria sentir-se um zombie, no relógio real.
As realidades de então, far-me-iam sentir a anos-luz das actuais, apesar de eu só ter regredido meia existência, não esqueçam !
Haveria fantasmas imensos, que desarticulariam o meu mundo de então.
Haveria sustos, medos, dores abissais que não experienciara, logo, não compreenderia.
Tentava vestir-me, com um "fato" que não era o meu número ...

E a juventude que alcançara ( mesmo sem tomar o tão almejado elixir dos alquimistas ), não me faria mais feliz, tenho a certeza !
Transmitir-me-ia o desamparo estranho, de criança abandonada em cidade grande.

Transmitir-me-ia a insegurança e o desconforto, que se traduz naquela velha frase que o ser humano emprega muitas vezes, no seu discurso :   "Quem  me  dera ser mais nova ... mas saber o que sei hoje " !!!...

Por favor, acertem os relógios !
A hora só muda na madrugada do próximo sábado !!!

Anamar

terça-feira, 2 de outubro de 2012

" A BARCA DA MEMÓRIA "


Veja este vídeo fantástico do MSN - Memórias da cidade do Porto no fundo do mar


( clique sobre esta frase para abrir o vídeo )

Na cidade do Porto decorre uma iniciativa cultural interessantíssima, que apelidaram da "Barca da Memória". Conforme o vídeo que aqui  posto e que retrata o evento, os portuenses são convidados a colocar em contentores que serão posteriormente selados, o que entenderem poder retratar o Porto actual.
Algo que fale dos dias de hoje, da história da cidade e dos seus habitantes.
Esses contentores, reunidos num Barco Rabelo - "A Barca da Memória" ( como lhe chamaram ), serão então, em cerimónia adequada, transportados para alto mar, e afundados a  três milhas a sudoeste da barra do Douro.
A ideia é serem recuperados em 2112, ou seja, daqui a cem anos, para que as memórias de hoje na vida da cidade e dos portuenses, sejam dessa forma - nas mais variadas vertentes - narradas e ilustradas aos concidadãos de então.

Esta iniciativa, lembrou-me o conhecido envio de mensagens em garrafas lançadas ao mar, na expectativa de que, algures num qualquer areal, de um qualquer continente, num qualquer lugar do Mundo, ao serem recuperadas, essas mensagens sejam lidas, e dessa forma tenham colocado em comunicação dois seres, que não se conhecem, que jamais se conhecerão, que talvez já nem existam,  mas  que  dessa  forma  saiam  perpetuados,  através  dessa  comunicação ...

São nostálgicas estas formas de expressão e transmissão de pensamentos e sensações, por quem assim os expressa .  É como se o ser humano, de certo modo, quisesse eternizar a sua existência, a sua pegada, algures aqui na Terra ;
Como se dessa forma se sentisse um pouco detentor e manipulador do Tempo, vencendo-o, numa espécie de passada de gigante.
É como se dissesse :  " Daqui a cem anos eu já não estou ;  mas estarei, através de quem me ler, quem me sentir, quem me perscrutar ... "

O ser humano sempre sonha com a eternidade, sempre sonha deixar o seu rasto, de alguma maneira, no Planeta.
Os namorados inscrevem corações entrelaçados e atravessados por setas, em troncos de árvores, que atravessam anos ... às vezes, vidas ;
Nas pedras deixam-se inscrições a desafiar as eras ;
Nas areias escrevem-se nomes, deixam-se pegadas e tactuam-se mãos, para a maré desfazer, indiferente ...

Em casa, não em barcas, mas em arcas, guardam-se as memórias, como se pode.  De fotos, a postais, a escritos, a flores secas, a pedras, a conchas, a bilhetes de espectáculos, a guardanapos de papel ... de tudo, essas arcas têm ( já aqui falei delas muitas e muitas vezes, e da minha compulsão em recheá-las ).
É como se disséssemos : " Passei aqui na Terra por algum tempo.    Aqui estão  as  minhas marcas ... as memórias  da  pessoa  que  eu  fui !... "

E tudo porque temos pavor do esquecimento, até mesmo na cabeça dos nossos entes queridos.
A minha mãe frequentemente diz, sobre isto ou aquilo que faz : " Depois vocês vão lembrar-se de mim, um dia !... "  ( como se nós pudéssemos esquecê-la !... )
Mas na cabeça dela, sendo algo material, permanecerá depois dela partir, e terá para todo o sempre, a marca das suas mãos.
Ela não entende que a marca individual do ser humano, não passa por nada material, mas advém sim, do espólio espiritual, afectivo, do todo global que essa pessoa intrinsecamente foi, distribuíu, doou de si mesma, na sociedade, e no seu meio restrito, junto de todos e de alguns.
Esse é que é o legado que fica.  Isso  é que imortaliza ou não, o Homem !

Sentimos pavor de não sermos realmente mais do que o pó, em que nos transformaremos ...
E o pó é volátil, o pó vai com o vento, o pó transporta um anonimato doloroso, e até os mais humildes, conscientes e realistas, sentem que é injusto ser em vão, a sua passagem por aqui.  
Que diabo ...  boa, má, louvável, reprovável ... fomos gente ... tivemos "história" !
Temos direito a um lugar na "galeria" !!!...

Recordo o  filme  que a maioria de vocês  lembrará seguramente, baseado na  novela do mesmo nome, de Nicholas Sparks :  "As palavras que nunca te direi".
O enredo da película assenta exactamente, como referi atrás, nas palavras, nos sentimentos, nas emoções, nas histórias, narradas anonimamente, encerradas e transportadas numa garrafa lançada ao mar.

Esta  ideia  é  assaz  romântica,  é  emocionante,  é  nostálgica,  poética ...
Comporta em si, a remota ilusão de que um dia, alguém lerá aquelas confidências ...
Onde?  Quando ?  Quem ?
Ninguém poderá responder a nada disso ;  é como uma página da nossa vida, uma folha do nosso destino, que seguiu à deriva pelo Mundo.
Somos nós a falarmos para alguém sem rosto ; é um pouco do que somos, transportado a outros corações ;
é parte das nossas memórias, que alguém / ninguém irá partilhar com alguém / ninguém, também sem rosto, mas certamente com alma !...

Nunca o fiz, mas às vezes penso que gostaria de um dia, também embarcar nessa viagem ... largar a minha garrafa numa qualquer maré, de um qualquer mar ...
E já me perguntei, quais seriam as minhas palavras, sem destinatário conhecido ??

Afinal, talvez simplesmente encerrasse nela, um poema ...  um poema da mulher-poetisa, eleita pelo meu coração, e que tão bem dá eco à alma feminina ... Florbela Espanca 
Talvez este ... quem sabe ??!!...


                    " EU "

Eu sou a que no Mundo anda perdida,
Eu sou a que na Vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
sou crucificada ... a dolorida ...

Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
impele brutalmente para a morte !
Alma de luto sempre incompreendida !...

Sou aquela que passa e ninguém vê ...
Sou a que chamam triste sem o ser ...
Sou a que chora sem saber porquê ...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao Mundo p'ra me ver
e que nunca na Vida me encontrou !    
  
                                        Florbela Espanca ( do Livro de Mágoas )
                                                       


Anamar

sábado, 18 de fevereiro de 2012

" 40 ANOS ... "

Pois é, a minha escola acendeu hoje 40 velinhas!

40 anos é cerca de metade da vida de alguém !...
Lá, eu fiz cerca de trinta e seis desses quarenta ... o que significa que também para mim, lá me passou perto de metade de uma vida, neste caso, a minha!

Entrei, lembro bem, com vinte e três anos de idade.
Cara de miúda, corpo de miúda ... sonhos e vontades de gente graúda.
Estávamos em 74, o 25 de Abril tinha sido apenas meses antes, o seu sonho sonhado povoava as cabeças !

Respirava-se esperança, respirava-se convicção de luta e vitória, respirava-se fé !...
Eram tempos promissores.
O "Inverno" terminara, e com ele, a longa estação escura na vida de todos os portugueses ...  Era impossível que o que se acreditava não virasse realidade !...

Entrei na escola, dossier debaixo do braço, determinação na alma ... susto no coração ... ar sério afivelado no rosto, na convicção de que daria assim credibilidade ao "boneco".
Mini-saia não era prevaricação na altura ... Até eu casara de mini-saia, poucos anos antes.
Mas, o empregado a postos no portão, resolveu tirar dúvidas e "barrou-me" a entrada...  "Onde é que a menina pensa que vai "?...

Corou ele, e corei eu, creio ... quando, timidamente lhe disse : "Desculpe, mas eu sou aqui professora "!...

Naquela escola "vivi" como disse, cerca de trinta e seis anos.
Lá me nasceu a minha filha mais nova ... lá criei laços, realizei sonhos, construí afectos.  Afectos que nunca se destruíram até hoje, na generalidade.
Lá me partilhei com todos, fossem empregados, colegas, alunos. Afinal, todos juntos éramos uma "família"!
Para lá, entrei com um montão de sonhos, esperanças, creres…mas também de dúvidas, medos e angústias no peito !

Ainda se "remava" na altura, numa só direcção.
Ainda não coabitávamos em "campo minado" !
Ainda não víamos no nosso par, um potencial "rival" ... Sim um amigo, um companheiro de jornada, quase um irmão !

Aprendia-se com uns, ensinava-se a outros ... Aprendia-se sempre muito mais que se ensinava !...
A entreajuda, o companheirismo, o trabalho de equipa norteavam os nossos ideais ... ninguém era "mais" que ninguém ... todos éramos aprendizes uns dos outros, nas vidas divididas.
A meta ... a "perfeição"...ou a aproximação da mesma, já que esta não existe !
A luta ... era pela formação de "gente", gente inteira, genuína, com valores ... Gente que continuaria a nossa estrada futuro adiante ... na ética, no respeito do indivíduo, dos valores humanos e sociais ...

Guardo memórias indestrutíveis, que são o espólio precioso da minha vida !
Guardo afectos até hoje, de pais de filhos, que também já passaram pela minha escola !
Guardo o calor da amizade sentida, de todos quantos dividiram comigo, espaço, tempo, vida !...
E estou grata, por tudo o que me foi dado, generosamente, porque tudo afinal, fez de mim também, a mulher que sou hoje !...

Como homenagem bem singela, deixo aqui um poema que ofereci em jeito de despedida, aos meus alunos, no último ano que leccionei.
Também vo-lo ofereço !...




 




ESCOLA SECUNDÁRIA DA AMADORA
Ano Lectivo de 2008/2009

AOS MEUS ALUNOS E AMIGOS
DAS TURMAS 11º e 10º B

“Até breve…”

Dizer adeus
e ver-te seguir em frente
mesmo ainda que o presente te seja penoso e duro,
acredita, vale a pena,
“se alma não é pequena”,
ser lavrador do amanhã,
tecer de esperança o futuro!

Mas…
Dizer adeus,
é também um até breve…
Alguém o disse, e estaria na razão.
Fomos companheiros,
Amigos verdadeiros,
E ser amigo, é um pouco ser irmão!...

Eu sou um marco da estrada…
Eu fico, tu vais partir…
Mas já me sinto feliz
se te ajudei a seguir…
Nada tenho p’ra te dar…
Tu já tens tudo contigo!...
Contudo, podes levar
a certeza de apertar
p’ra sempre, a mão de um amigo (a)


Ano lectivo 2008/2009  (talvez o meu último ano como docente)

Um grande beijinho de felicidades
da professora de Física e Química

Anamar