Tenho pra mim que normalmente não dá bom resultado chafurdar no que a vida foi plantando lá para trás. Fotos, escritos, papéis, pequenos objectos ... enfim, tudo o que teve significância e não tem mais, ou pelo menos não tem aquela que teve.
Contudo, remexer em tudo isso não é mais do que uma incursão no tempo, que quase sempre nos deixa a perder por representar na maior parte das vezes, épocas já desfocadas, descontextualizadas, de memórias inquinadas, creio, pela distância e pela erosão que esse mesmo tempo nos foi deixando na alma e no coração.
Quando tento este exercício insano e desaconselhado, quase sempre me arrependo depois, amargamente. É como aquela velha constatação de compararmos o nosso estado de espírito antes e depois da ida a algum lugar que amámos. À ida tudo é promissor, é como se fôssemos reencontrar tudo o que deixámos, exactamente nos lugares e no contexto em que deixámos ... para depois acabarmos percebendo a dor da fraude sentida pelo tamanho do equívoco em que embarcámos ... por tontice, ingenuidade ou mesmo insensatez !...
E de nada valeu a pena ... de nada valeu o estrago e o amargor deixado, afinal !
A Páscoa passou. Ontem foi o domingo que encerra as celebrações.
Hoje na mata tudo continuava igual. Os pássaros que elaboram verdadeiros e emocionantes concertos de cantoria, ou não estivéssemos numa Primavera generosa de dias bonitos, temperaturas elevadas e flores ... miríades de flores engalanando os arbustos em profusão ... não sabem que a Páscoa passou, não sabem que ontem foi Domingo de Páscoa, ou sequer que foi domingo ...
O que interessaria a um pássaro saber qual o dia que vivencia ? A natureza, a vida, a sequência simples dos dias e das noites, o nascer e o por do sol, o dormir e o acordar, o instinto apenas, a orientá-lo no caminho da sobrevivência, é quanto basta. Ele chega, cumpre o destinado e parte. O seu desígnio biológico justifica-lhe a estadia ... não mais !
E nós ? Nós "somos" ... hoje. Amanhã já só dirão que "fomos"...
Também nós chegamos, cumprimos o destinado e partimos. Partimos com a indiferença do Universo. Partimos sob a pequenez, a insignificância e a irrelevância da nossa dimensão ... menos que um grão de areia no contexto da existência ... Partimos com o silêncio indiferente de tudo o que nos rodeou e não rodeia mais ...
E vamos ainda "viver" por uns tempos ... se as memórias forem longas. Depois, "fomos" apenas ...
Fomos aquele rosto imobilizado e gravado na película que ficou na moldura daquela mesa ... fomos aquele texto que escrevemos e ficou perdido no fundo da gaveta, aquelas palavras que expressámos, cujo eco também se vai esbatendo ... fomos o riso que talvez alguns ainda lembrem por uns tempos, o dichote e o humor sarcástico que nos acompanhava ...
Depois fomos o que fizemos ... se fizemos alguma coisa que ficasse ...
Não mais !...
A Teresa olha longa e pesarosamente o Chico, que se arrasta, cujas patas não suportam o peso ou os movimentos do corpo. O Chico que come deitado e que permanece deitado todo o tempo, ainda que olhe cá de baixo, do chão, o céu azul que a vidraça acima dele lhe desvenda. O Chico que já só salta para os lugares que eram seus, em memória ... em desejo ... em sonhos ... porque de seu, o Chico vai tendo cada vez menos !
O Chico agora mia quando está só. Não quer afastar-se de mim. Não era hábito. E esconde-se numa caixa que, como uma toca dissimulada e escura, o aninha. O Jonas cheira-o insistentemente. Será que a morte tem cheiro ?! Não sei. Mas a sua presença por aqui, anuncia-se e assusta ...
A Teresa olha longa e pesarosamente e diz : " O Chico está quase a ir para a estrelinha "...
Hoje também, há cinco anos atrás a minha mãe buscou outra dimensão . Mais uma estrelinha que enfeitou o nosso firmamento. Também de lá a Teresa garante dialogar com ela ...
Só que, lamentavelmente, somos crianças por tão pouco tempo nas nossas vidas !...
Partiu, partiu discretamente como sempre foi a sua vida, partiu sem queixume ou estardalhaço no silêncio íntimo dos seus dias ... partiu com a noção absoluta do descaso com que o ciclo da existência nos trata ... uma simples e anónima partícula da poeira em que se transformou ... matéria física que somos ...
Não mais !
E cada dia que passa me faz mais falta, cada dia que passa lhe sinto mais e mais a ausência, cada dia que passa a minha orfandade se torna mais e mais absoluta e gigantesca !
Cada dia que passa o silêncio que deixou me fere ensurdecedoramente ...
E a vida é isto. Viver é mais ou menos isto ...
Não mais !...
Anamar